Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
747/19.8T8CNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA
NEGÓCIOS USURÁRIOS
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE CANTANHEDE DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃP
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 282.º E 405.º, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: I - Integra a figura da alienação fiduciária em garantia a venda de um imóvel, na sequência e com a finalidade de garantir o pagamento de quantia que havia sido mutuada ao vendedor, com a estipulação nessa ocasião, em documento denominado “contrato de arrendamento”, da obrigação de revenda de tal bem, a ser exercida em determinado prazo, por valor previamente fixado.

II – Tal negócio é de considerar usurário considerando: a) estipulação de um valor de recompra, a par do pagamento de prestações mensais, que excedem, na sua globalidade, em mais de 67% o valor de capital e de juros permitidos pelo disposto no art.º 1146 do C.C.; b)  a sujeita da recompra a um prazo curto e a uma condição resolutiva estipulada no contrato de arrendamento; c) o facto de o imóvel alienado em garantia ser de valor muito superior ao do crédito; d) a situação de inferioridade do fiduciário no momento do negócio e o aproveitamento dessa situação pelo fiduciante.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


RELATÓRIO

AA instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra H..., LDA., peticionando que seja:

i) declarado nulo o contrato de mutuo celebrado com a R., por inobservância de formalidade ad substantiam (escritura pública) prescrita na lei para a celebração do mesmo, nos termos dos artigos 1143º e 220º, ambos do Código Civil; e,

ii) declarada a anulabilidade do negócio fiduciário celebrado entre Autor e Ré, nos termos do art.º 282º, nº 1 do Código Civil.

Para o efeito alega, em síntese, que na sequência de penhora de um imóvel de sua propriedade, acordou com a R. na concessão de um empréstimo da quantia de € 30 000,00, correspondente ao valor necessário para liquidar a dívida exequenda, impondo a R. como contrapartida deste empréstimo a venda do referido imóvel por esse valor, acordando simultaneamente num arrendamento ao A. com opção de compra, no final do respectivo prazo, com imputação das rendas pagas no valor da compra, caso exercesse a opção.

Porém, chegado o momento de exercer o direito de compra, o autor comunicou à ré que esta seria efectuada pelos seus filhos, mediante recurso ao financiamento bancário, o que aquela recusou.

Conclui, assim, o autor que a ré agiu de má-fé, aproveitando-se da fragilidade daquele para celebrar um negócio fraudulento e desproporcionalmente vantajoso para si, já que adquiriu uma casa de habitação por uma quantia de € 30 000,00 e ainda recebeu € 6 000,00 ao longo de dois anos do próprio vendedor, evitando que o imóvel regressasse à propriedade deste. Face ao exposto, entende o autor que o acordo celebrado entre as partes corresponde a um mútuo que serviu de instrumento a um negócio fiduciário, pugnando pela nulidade do primeiro, por falta de forma, e pela anulação do segundo, por ser usurário, face ao aproveitamento/exploração da situação de fragilidade do autor.


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Citada para contestar, invocou a ré, antes de mais, a insuficiência ou inaptidão dos pedidos formulados pelo autor para obter a sua condenação, e defendeu-se ainda por impugnação, alegando que o contrato foi o de simples compra e venda e arrendamento com opção de compra. Mais alega que o autor age em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, e com manifesta má-fé, porquanto celebrou um negócio de compra e venda ciente de todos os seus termos e respectivas consequências, e pretende agora aparentar um acordo negocial distinto e que não corresponde à realidade.

Deduziu ainda a ré um pedido reconvencional, com base no contrato de arrendamento celebrado entre as partes, alegando que o autor/reconvindo não pagou a primeira renda acordada, relativa ao mês de Novembro de 2016 e, como tal, deve ser condenado a suportar o respectivo pagamento à ré.

Termina ainda pedindo a condenação do autor como litigante de má-fé, por ter deturpado factos e utilizado de forma manifestamente reprovável o processo para obter um benefício a que sabe não ter direito.


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O A. deduziu impugnação das excepções invocadas e veio apresentar novo articulado, aperfeiçoando os pedidos formulados pedindo, a título principal, o reconhecimento da existência de um contrato de mútuo celebrado entre as partes e declaração da respectiva nulidade, por falta de forma, com a consequente restituição do valor entregue e, subsidiariamente, o reconhecimento do negócio como sendo uma venda fiduciária, bem como a sua anulação, por usura.

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Admitido o articulado e a alteração dos pedidos, realizou-se audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador com fixação do objecto do litígio e elaboração dos temas de prova.

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Após, realizou-se audiência de julgamento, sendo proferida sentença na qual se julgou:

A) Julga-se parcialmente procedente a presente acção e, em consequência, declara-se a anulação do contrato de alienação fiduciária celebrado entres as partes, condenando-se a ré a restituir ao autor o prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, sito na Rua ..., ..., ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...49 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...77 da freguesia ..., devendo, de igual modo, o autor restituir à ré o valor € 30 000,00 que lhe foi entregue por força do referido contrato;

B) Julga-se totalmente improcedente a reconvenção, absolvendo o autor/reconvindo de tudo o peticionado.”


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Não conformada com esta decisão, impetrou a R. recurso da mesma relativamente à matéria de facto e de direito, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

“I – Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos presentes autos que julgou:

A) Parcialmente procedente a acção proposta pelo autor (aqui recorrido) e consequentemente declarou a anulação do contrato de alienação fiduciária celebrado entre as partes, condenando a ré, aqui recorrente, a restituir ao autor, aqui recorrido, o prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, sito na Rua ..., ..., ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...49 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...77 da freguesia ..., devendo, de igual modo, o autor restituir à ré o valor de € 30.000,00, que lhe foi entregue por força do referido contrato;

B) Totalmente improcedente a reconvenção, absolvendo o autor de tudo o peticionado; e

C) Com custas a cargo da ré.

II – Entende a ré (aqui recorrente) que o douto Tribunal a quo não andou bem ao decidir como decidiu.

III – Na realidade, na “III – Fundamentação de facto” da douta sentença recorrida vem elencados os “III – I – Factos provados” (v. págs. 4 a 8 da referida sentença) e que são os seguintes:

1. O autor é divorciado e pai de dois filhos, residindo actualmente sozinho na localidade de ....

2. Ao longo dos últimos 8 anos, tem passado por diversas dificuldades, associadas a problemas de saúde entretanto manifestados, problemas familiares e ao agravamento da sua situação económica.

3. No ano de 2013 entrou em processo de divórcio litigioso, que correu os seus termos na Comarca ..., Juízo de Família e Menores, Juiz I, sob o proc. n.º 610/15.... e nos anos seguintes foi executado em diversos processos de execução fiscal.

4. Com um filho, à data, menor e estudante, cujas responsabilidades parentais lhe foram atribuídas e um historial clínico crítico, que lhe determinou períodos consecutivos de baixas médicas, desde 2015/2016, o autor ficou numa situação de completa fragilidade económica, de saúde e, consequentemente, emocional.

5. No ano de 2013, o autor decidiu contrair um empréstimo junto da C..., no montante de € 20.000,00 (vinte mil euros), que deu origem ao contrato de mútuo n.º ...81.

6. Como garantia do cumprimento das obrigações decorrentes daquele empréstimo, o autor declarou constituir a favor daquela C... uma hipoteca sobre o seu prédio urbano, casa de habitação de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, sito na Rua ..., ..., ... da

..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...49, com o valor patrimonial de € 58.150,00, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...77 da freguesia ..., cujo direito de propriedade estava registado em seu nome, pela Ap. ...30.

7. Contudo, o autor viu-se incapaz de efectuar o pagamento de diversas prestações devidas por força do referido empréstimo, tendo a C... instaurado um processo executivo para cobrança de dívida, que correu termos no Juízo de Execução da Comarca ..., Juiz I, sob o n.º 1972/15.....

8. No âmbito desses autos, em que figurava como exequente a C..., e como executado o autor, foi designado o dia 24 de Novembro de 2016, pelas 14:00h para abertura de proposta em carta fechada, do bem imóvel supra identificado.

9. Encontrando-se em vias de perder o referido imóvel, o autor abordou um conhecido, residente na sua localidade, e informou-o da situação, pedindo, em desespero, a sua ajuda.

10. Essa pessoa, incapaz de ajudar o autor financeiramente, indicou-lhe o representante da sociedade aqui ré, como terceiro a quem poderia recorrer, o que efectivamente o autor veio a fazer.

11. Assim, o autor contactou BB, representante legal da ré, informando-o de toda a sua conjuntura económica e social.

12. As partes acordaram que, como contrapartida da entrega da quantia de € 30.000,00, no próprio dia da realização do pagamento da quantia exequenda, e consequente distrate da hipoteca do imóvel do autor, celebrariam um contrato de compra e venda do imóvel em causa, podendo o autor continuar a usufruir do mesmo, através de um contrato de arrendamento, com direito a readquirir o imóvel decorridos dois anos, diante do pagamento de € 44.000,00.

13. Atendendo à situação de desespero em que o autor se encontrava, e sendo esta a única forma de evitar ver o seu imóvel vendido em sede de execução, o mesmo acedeu ao dito acordo.

14. Por escritura pública outorgada em 31 de Outubro de 2016, o autor declarou vender à ré e esta declarou comprar-lhe, pelo preço de € 30.000,00, o prédio urbano descrito no ponto 6.

15. No dia 1 de Novembro de 2016, autor e ré celebraram um contrato de arrendamento para fins habitacionais sobre o dito prédio urbano, pelo prazo de dois anos, através do qual a segunda declarou dar de arrendamento ao primeiro o local supra identificado, acordando no

seguinte:

--- A renda mensal é de € 250,00, a pagar até ao dia 8 do mês a que disser respeito, entregando o segundo outorgante (aqui autor), no acto de assinatura do contrato, a quantia correspondente à primeira renda, relativa ao mês de Novembro de 2016;

--- Durante o período de vigência do presente contrato, a segunda (trata-se de um lapso, dado que é a primeira outorgante, no processo ré, que se obriga a vender ao segundo outorgante, no processo autor) outorgante (aqui ré) obriga-se a vender ao segundo o imóvel objecto do locado, pelo preço de € 44.000,00, caso este manifeste intenção de o adquirir, através de carta registada enviada para a sede da primeira outorgante, cessando tal obrigação se, findo o período de dois anos, o segundo outorgante não exercer o direito de compra do locado.

16. Antes do término da vigência do contrato de arrendamento, o autor comunicou ao representante legal da ré a intenção de exercer a opção de compra do imóvel, explicando que seriam os seus filhos que iriam proceder ao pagamento do montante de € 44.000,00, através de um financiamento que iriam obter junto do Banco, o que foi rejeitado pelo gerente da ré, invocando a cláusula décima do contrato de arrendamento.

(Da reconvenção)

17. O autor pagou a primeira renda, referente ao mês de Novembro de 2016.”

IV – Dos factos não provados, e que para o presente recurso interessam, salientamos o seguinte: (…)

“C) Bem sabia o gerente da aqui ré que seria totalmente expectável que o autor não conseguisse, por si só, arrecadar € 44.000,00, num prazo de dois anos, tendo de suportar as prestações do empréstimo, as demais despesas correntes do seu agregado, e auferindo o escasso rendimento provindo, durante grande parte do ano, apenas do seu subsídio de doença, factos que eram do conhecimento prévio do gerente da ré.”

V – Na motivação da matéria de facto da douta sentença recorrida, vem fundamentada a decisão do Tribunal a quo com base na “análise crítica e conjugada do teor dos documentos juntos aos autos, das declarações das partes e dos depoimentos testemunhais prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, tudo analisado à luz das regras da experiência” (v. pág. 9 da douta sentença recorrida).

VI – Neste contexto, e relativamente aos factos provados, na motivação da matéria de facto, refere a douta sentença recorrida, de forma assertiva, que foi a testemunha CC “…que intermediou este contacto…” entre o autor e o representante legal da ré. (v. pág. 10 da mencionada sentença).

VII – “Com efeito, este último (a testemunha CC), que disse ser amigo do autor, confirmou o desespero em que este se encontrava quando procurou a sua ajuda, explicando que a sua intenção era encontrar alguém que lhe pudesse emprestar a quantia necessária para pagar a dívida em execução por forma a evitar a venda judicial do prédio aqui em causa, mas como tal não se mostrava viável, face à precária situação económica em que se encontrava, ele próprio (CC) propôs-se colocá-lo em contacto com o representante legal da ré, para quem prestava serviços de contabilidade, sugerindo em alternativa um negócio que, em termos genéricos, correspondia aos moldes descritos no ponto 12. (dos factos provados), acabando as partes por acordar o seu respectivo concreto conteúdo” (v. pág. 10 da douta sentença recorrida).

VIII – “Assim, pese embora esta testemunha (CC) tenha referido que o negócio “não tinha características de empréstimo”, sendo, antes, na sua visão, uma forma de transmitir a propriedade do imóvel, livrando-se de encargos e de simultaneamente dar tempo ao autor de a poder recuperar, o mesmo não deixou de deixar expresso que o objectivo do autor era obter, através da compra e venda do prédio, a liquidez necessária para pagar a dívida exequenda, sem perder a oportunidade de a readquirir, acrescentando ainda que o preço do negócio foi sugerido em função do valor necessário para liquidar a dívida exequenda” (v. págs. 10 e 11 da

mencionada sentença).

IX – “Por sua vez, BB, representante legal da ré, admitiu ter sabido, embora sem muitos detalhes, (negrito nosso) da situação de “aperto económico” que o autor atravessava, nomeadamente que tinha um processo de execução pendente e que se arriscava a perder o imóvel em causa, declarando que aceitou celebrar este acordo, porque lhe pareceu uma boa oportunidade de negócio e a sua empresa visa o lucro, acrescentando, porém, que os respectivos termos do contrato lhe foram previamente apresentados, não tendo sido ele quem os sugeriu (o que vai de encontro às afirmações quer do autor, quer da testemunha CC) e dizendo ainda que no final do prazo acordado para o arrendamento não quis aceitar que a aquisição fosse feita em nome dos filhos porque achou mais vantajoso revender a casa a um terceiro (o que não admira, face à subavaliação a que aquela foi sujeita aquando do negócio), estando salvaguardado, para esse efeito, pela cláusula constante do contrato” (v. pág. 11 da mesma douta sentença recorrida).

X – No tocante aos factos não provados, e concretamente “…à matéria vertida nas alíneas A) e B) do elenco da matéria de facto, a prova produzida não se mostrou suficiente para concluir pela sua realidade, porquanto não se extraiu dos depoimentos e declarações prestadas que o acordo em causa tivesse resultado de uma contraproposta da ré (aqui recorrente) a um pedido de empréstimo feito pelo autor, resultando antes daquela prova que a ideia do negócio firmado partiu de CC, que sugeriu a ambas as partes, por ser susceptível de satisfazer os interesses de um e de outro” (negrito nosso), (v. pág. 12 da mencionada sentença).

XI – “Por outro lado – continua a ler-se na douta sentença recorrida, págs. 12 e 13 – não obstante o apuramento feito acerca dos contornos deste negócio, nos termos que ficaram provados, também não se apurou, com segurança suficiente, que as partes tivessem afinal querido utilizar o imóvel como mera garantia de pagamento do valor entregue pela ré ao autor, sem considerar transmitida a respectiva propriedade, ou sequer que o autor estivesse disso convencido, nos termos descritos na alínea B), o que sempre traduziria uma vontade diferente da declarada, que não se apurou ser o caso. Pelo que, independentemente do objectivo visado com o negócio – que era, da parte do autor, o de não perder o gozo do imóvel e de o poder readquirir mais tarde, e, da parte do réu, (entenda-se, da ré), obter uma vantagem económica, fazendo o lucro patente nas cláusulas negociais acordadas – não podemos concluir que tal ocultasse uma vontade diferente daquela que ficou firmada, nomeadamente a de o imóvel ser dado apenas como garantia de pagamento do valor entregue pela ré ao autor, a título de empréstimo, sendo neste único sentido que não se consideraram provados os factos em causa.” (negrito nosso).

XII – “Do mesmo modo, não ficou claro que o representante legal da ré (aqui recorrente) tivesse um conhecimento tão próximo da sua situação (entenda-se, da situação do autor) pessoal e económica que pudesse à partida antever o resultado referido na alínea C) e agir em conformidade com ele, de molde a prejudicar os efeitos das vontades subjacentes à celebração do contrato” (v. pág. 13 da douta sentença recorrida), (negrito nosso).

XIII – Relativamente à fundamentação de facto, concretamente aos factos provados, aos factos não provados e à motivação da matéria de facto, importa, sublinhar, em síntese, o seguinte:

a) No ano de 2013, o autor (aqui recorrido) decidiu contrair um empréstimo junto da C..., no montante de € 20.000,00;

b) Como garantia do cumprimento das obrigações decorrentes daquele empréstimo, o autor constituiu uma hipoteca a favor daquela C... sobre um prédio urbano, sua propriedade, sito na Rua ..., ..., ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... e inscrito a seu favor na mesma Conservatória;

c) No entanto, o autor viu-se incapaz de efectuar o pagamento de diversas prestações devidas e relativas ao referido empréstimo, tendo a C..., na qualidade de credora, instaurado um processo executivo para cobrança da dívida;

d) No âmbito deste processo executivo foi designado o dia 24 de Novembro de 2016, pelas 14:00h, para abertura de proposta em carta fechada do bem imóvel dado de garantia ao mencionado empréstimo e atrás identificado;

e) Encontrando-se em vias de perder o referido imóvel, o autor abordou a testemunha CC a quem expôs a sua situação, pedindo-lhe ajuda, tendo-lhe este indicado o legal representante da ré (aqui recorrente), BB, a quem poderia recorrer, o que o autor efectivamente fez;

f) As partes, isto é, autor e ré, esta representada pelo referido BB, acordaram que, como contrapartida da entrega da quantia de € 30.000,00, no próprio dia de realização do pagamento da quantia exequenda, e consequente distrate da hipoteca do imóvel do autor, celebrariam um contrato de compra e venda do referido imóvel, podendo o autor continuar a usufruir do mesmo, através de um contrato de arrendamento, com direito a readquirir o imóvel decorridos dois anos, diante do pagamento de € 44.000,00;

g) Atendendo à situação difícil em que o autor se encontrava, e sendo esta a única forma de evitar ver o seu imóvel vendido em sede de execução, o autor aceitou o dito acordo;

h) Assim, por escritura pública outorgada em 31 de Outubro de 2016, o autor declarou vender à ré e esta declarou comprar-lhe, pelo preço de € 30.000,00, o prédio urbano em causa e atrás identificado;

i) Também conforme acordado entre autor e ré, no dia 1 de Novembro de 2016, as partes celebraram um contrato de arrendamento para fins habitacionais sobre o dito prédio urbano, pelo prazo de dois anos, mediante o pagamento, por parte do autor à ré, de uma renda mensal de € 250,00;

j) Durante o período de vigência do presente contrato de arrendamento, a ré obriga-se a vender ao autor o imóvel objecto do referido contrato pelo preço de € 44.000,00, caso manifeste intenção de o adquirir, cessando tal obrigação se, findo o período de dois anos, o autor não exercer o direito de compra do mencionado imóvel;

k) Antes do término da vigência do contrato de arrendamento, o autor comunicou ao representante legal da ré a intenção de exercer a opção de compra do imóvel, explicando, porém, que seriam os seus filhos que iriam proceder ao pagamento do montante de € 44.000,00, através de um financiamento que iriam obter junto do Banco, o que foi rejeitado pelo gerente da ré, invocando a cláusula décima do contrato de arrendamento;

l) Quem intermediou este contacto entre o autor e o legal representante da ré foi a testemunha CC, conhecido de ambos;

m) A ideia do negócio firmado, isto é, quem gizou as condições e os termos genéricos do negócio descritos no ponto 12 dos factos provados, acabando as partes por acordar o seu respectivo concreto conteúdo, foi a testemunha CC, não tendo, portanto, sido a ré, através do seu legal representante, quem procurou o negócio.

Bem pelo contrário, este foi-lhe proposto e oferecido.

n) O negócio firmado entre as partes correspondeu à livre vontade de ambas e os contratos escritos correspondem àquilo que as partes dos mesmos contraentes efectivamente quiseram, não se podendo alegar que, nomeadamente, o autor foi coagido ou pressionado a celebrar os contratos em causa;

o) Aliás, como resulta provado no ponto 13. dos factos provados “…esta (foi) a única forma de (o autor) evitar ver o seu imóvel vendido em sede de execução…” – que era o que efectiva e realmente queria – tendo, por isso, acedido ao dito acordo;

p) Por fim, não ficou provado que o representante legal da ré tivesse conhecimento tão próximo da situação pessoal e económica do autor de molde a poder à partida antever o resultado referido na alínea C) dos factos não provados e agir em conformidade com ele, de molde a prejudicar os efeitos das vontades subjacentes à celebração do contrato;

q) Assim sendo, agiu de boa fé e efectuou um contrato que válida e juridicamente cabe no escopo da sociedade que legalmente representa.

XIV – A actividade comercial desenvolvida pela ré – e que consta do seu pacto social e da certidão permanente junta com a contestação como documento n.º 1 - é importante para enquadrar o negócio celebrado entre as partes, os moldes em que o foi e a sua legitimidade.

XV – Este importante facto foi omitido na douta sentença recorrida, não o referindo esta como facto provado – como devia – face à prova documental do mesmo (v. certidão permanente junta com a contestação como documento n.º 1).

XVI – Na realidade, resulta da mencionada certidão permanente que a ré é uma sociedade por quotas que “tem como objecto social a compra, venda e arrendamento de bens imobiliários e a prática de actividades florestais”, o que obviamente sustenta, legitima e valida juridicamente o negócio celebrado entre as partes, cabendo, portanto, o mesmo no âmbito do seu escopo social, o que torna este facto relevante e importante para uma boa decisão da causa.

XVII – Importa, também e ainda, relevar que a douta sentença recorrida, na sua fundamentação de direito, considera que “…não há fundamento para considerar inválido este negócio, por si só…” (v. pág. 16 da douta sentença recorrida), admitindo, portanto, a contrario sensu, a validade jurídica do mesmo.

XVIII – Acresce que, com a petição inicial, o autor juntou, sob documento número 8, o contrato de arrendamento, livremente e de boa fé, celebrado entre as partes (autor e ré) e se encontra nos autos, que na sua cláusula décima, sob a epígrafe “Opção de compra”, refere ipsis verbis o seguinte: “1. Durante o período de vigência do presente contrato, a primeira outorgante (entenda-se, a ré) obriga-se a vender ao segundo outorgante (entenda-se, ao autor) o imóvel objecto do locado, pelo preço de € 44.000,00 (quarenta e quatro mil euros), caso este manifeste intenção de o adquirir.

2. A intenção de adquirir o imóvel tem de ser manifestada através de carta registada, enviada para a sede da primeira outorgante”, (entenda-se, da ré), (v. artigo 69.º da contestação), o que o autor efectivamente não fez.

XIX – De facto, a única abordagem que o autor fez ao gerente da ré foi, poucos dias antes de terminar o contrato de arrendamento e juntamente com a sua filha, questionar se poderiam ser os filhos a adquirir o imóvel, ao invés do autor (v. artigo 74.º da contestação), o que veio a ser confirmado pela filha, DD, na audiência final ao referir nesta, quando inquirida, afirmou sobre este facto, minuto 4, 20 segundos do seu depoimento:

“Nesse mesmo dia fomos – referindo-se a si e ao seu irmão – a uma das empresas do senhor AA na Zona Industrial para podermos adquirir o imóvel uma vez que estava a chegar o fim do contrato...”

XX – Outrossim, vem consignado no mesmo contrato de arrendamento, concretamente na cláusula décima primeira, número dois, que: “De igual forma, findo o período de dois anos sem que o segundo outorgante (entenda-se, o autor) exerça o direito de compra do locado, cessa a obrigação de venda inerente ao presente contrato” (v. artigo 70.º da contestação), constando esta matéria como facto provado (n.º 15.) na douta sentença recorrida (v. pág. 7 desta).

XXI – Ainda e por fim, a cláusula décima segunda do mencionado contrato de arrendamento, sob a epígrafe “Intransmissibilidade da posição contratual”, refere inequivocamente que “O segundo outorgante (entenda-se, o autor) não pode, em caso algum, ceder ou transmitir a sua posição contratual a outrem” (v. documento n.º 8 junto pelo autor com a p.i. e artigo 75.º da contestação), facto que foi omitido na douta sentença recorrida.

XXII – Neste contexto, dado que é matéria que, por um lado, consta da fundamentação de direito da douta sentença recorrida e, por outro, está documentalmente provada e interessa à boa decisão da causa, deve à mesma ser aditada, como matéria provada, e aos factos provados

constantes da douta sentença recorrida, os seguintes factos:

11. Assim, o autor contactou BB, representante legal da ré – que é uma sociedade que tem como objecto social a compra, venda e arrendamento de bens imobiliários e a prática de actividades florestais (a negrito a matéria a intercalar) – informando-o de toda a sua conjuntura económica e social.

18. Os contratos de compra e venda e de arrendamento celebrados entre o autor e a ré são, por si só, juridicamente válidos.

19. O segundo outorgante (no caso, o autor) não pode, em caso algum, ceder ou transmitir a sua posição contratual a outrem.

20. Não ficou claro que o representante legal da ré tivesse um conhecimento tão próximo da situação pessoal e económica do autor que pudesse à partida antever que este não conseguisse, por si só, arrecadar € 44.000,00, num prazo de dois anos, e agir em conformidade com a antevisão desse resultado, de molde a prejudicar os efeitos das vontades subjacentes à celebração do contrato.

21. Para que a escritura fosse realizada, a ré pagou dívidas fiscais do autor, como taxas de portagens, coimas, IMIs, IUCs, no valor total de €1.937,54 conforme se encontra documentalmente provado e inclusive pelas próprias declarações do autor no seu depoimento:

Minuto 9, 33 segundos:

“(…) Havia nas finanças a pagar relativamente a um débito meu dos IMIs e outros valores, dois mil e qualquer coisa euros que sei precisar agora. Entretanto combinámos, a esposa do senhor AA foi comigo às Finanças, pagou esse valor em dinheiro franco (…)”

E, consequentemente, deve ser eliminada a alínea C) dos factos não provados, e corrigidas consequente e sequencialmente as letras D) e E), e o número 17. dos factos provados passar a número 22.

XXIII – No tocante à fundamentação de direito em que assenta a douta sentença recorrida importa sublinhar que, depois de concluir pela validade do acordo negocial celebrado entre o autor e a ré e afastada a hipótese de simulação e de fraude à lei, o douto Tribunal a quo sindica o seu concreto conteúdo à luz dos artigos 280.º e sgs. do Código Civil, referindo na douta sentença recorrida que “A respeito da invalidade dos negócios, quanto ao seu objecto, dispõe o artigo 280.º do Código Civil que é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável, bem como aquele que seja contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes.” (v. pág. 18 da douta sentença recorrida).

XXIV – E continua a douta sentença a referir, citando o artigo 282.º do Código Civil, que “é anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.” (v. mesma pág. e mesma sentença).

XXV – De acordo com a referida norma legal, - continua a mencionada sentença – para estarmos diante de um negócio usurário é, assim, necessário que se verifique não só o referido estado objectivo de necessidade, inexperiência ou fragilidade psíquica por parte de um dos contraentes (i), mas também que haja uma consciência do mesmo por parte do outro(ii), exigindo-se ainda, para além disso, um aproveitamento dessa inferioridade para alcançar uma vantagem ou benefício(iii) e, finalmente, que tal proveito se mostre manifestamente excessivo ou injustificado (iv), ficando esta determinação entregue ao prudente arbítrio do julgador – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, Cbra. Ed., pág. 260.” (v. págs. 18 e 19 da mesma sentença).

XXVI – “Volvendo ao caso concreto – continua a referir a douta sentença recorrida – parece-nos manifesto não ter existido aqui uma fraude à lei, na medida em que não está em causa qualquer eventual prejuízo para terceiros, nomeadamente outros credores, nem se pretendeu com o negócio alcançar, por vias travessas, qualquer efeito proibido por lei.” (v. pág. 19 da mencionada sentença).

XXVII – Já no que respeita à usura, depois de destacar, em síntese, o cenário factual em que se apoia – dispensando-nos de o transcrever, mas dando-o aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais – a douta sentença recorrida considera “…manifesta a excessividade do proveito conseguido (pela ré, aqui recorrente) com a realização do negócio, cuja razão de existência não tem outra justificação que não a situação de fragilidade e desespero em que o autor (aqui recorrido) se encontrava, com receio de perder definitivamente o imóvel, e da qual a ré se aproveitou de forma consciente.” (v. pág. 20 da mesma sentença recorrida).

XXVIII – Veja-se, no entanto, o que vem referido na motivação da matéria de facto da douta sentença recorrida a propósito do facto não provado constante da alínea C) destes, quando o douto Tribunal expressa e assertivamente declara que “…não ficou claro que o representante legal da ré tivesse um conhecimento tão próximo da sua situação pessoal e económica (entenda-se, da situação do autor) que pudesse à partida antever o resultado referido na alínea C) e agir em conformidade com ele, de molde a prejudicar os efeitos das vontades subjacentes à celebração do contrato.” (v. pág. 13 da douta sentença recorrida).

XXIX – Verifica-se, assim, que esta afirmação constante da douta sentença recorrida e citada na precedente conclusão está em manifesta, clara e objectiva contradição, senão mesmo em oposição, com a afirmação constante da mesma sentença e citada na conclusão XXVII.

XXX – E a mencionada sentença recorrida continua a contradizer-se ao referir que “Por outro lado, bem demonstrativo da atitude de aproveitamento da ré é, em primeiro lugar, o facto de esta ter feito o negócio paralela e extrajudicialmente, conseguindo assim obter um benefício relativamente ao valor pago pelo imóvel que não alcançaria através de uma eventual compra no processo de execução, sendo este o procedimento normal a seguir se estivesse de absoluta boa fé e sem segundas intenções. E, para além disso, a recusa em aceitar que a aquisição do imóvel fosse feita, no termo do prazo acordado, pelos filhos do autor, para assim acumular maior vantagem económica, é mais um sinal que reforça aquela atitude.” (v. págs. 20 e 21 da mencionada sentença).

XXXI – Para concluir o douto Tribunal a quo entende “…estarem presentes no caso sub judice os elementos característicos que conformam o conceito de “usura”, nos termos previstos no artigo 282.º do Código Civil, tendo o autor legitimidade para ver anulado o respectivo negócio.” (v. pág. 21 da mesma sentença).

Mas será mesmo assim?

Nas conclusões seguintes, iremos demonstrar que não assiste razão ao douto Tribunal a quo.

XXXII – No caso sub judice há que ter em consideração e sublinhar o seguinte:

a) A ré, na pessoa do seu representante legal, até ser contactado pelo autor, por encaminhamento e apresentação da testemunha CC, desconhecia totalmente a existência não só do autor como também deste caso, pelo que, naturalmente, não podia fazer uma proposta de compra do imóvel no processo executivo para cobrança de dívida movido ao autor pela C...;

b) Na verdade, a ré ao aceitar o negócio nos moldes que lhe foram propostos – e nenhuma intervenção teve nem tão pouco no preço a pagar – manteve a possibilidade de o autor recomprar o imóvel, sendo que caso a ré não interviesse neste negócio e o imóvel fosse vendido em processo de execução, o autor – e disso tinha consciência – não teria qualquer possibilidade de poder recomprar o imóvel, conforme teve, aceitou e disso tinha consciência.

c) Quem gizou os contornos do negócio não foi a ré, através do seu legal representante, mas sim a testemunha CC, que prestava serviços de contabilidade à ré e que, além desta profissão, foi quadro superior da C..., exercendo nela as funções de Director e, portanto, pessoa qualificada e experiente neste tipo de negócios, condições e termos que as partes aceitaram livremente e de boa-fé e às quais acederam;

d) Não foi o legal representante da ré que detectou ou procurou o negócio, mas o mesmo foi-lhe “oferecido” e proposto, servindo de intermediário, no contacto entre o autor e o legal representante da ré, o referido CC;

e) A douta sentença recorrida entende que “…não há fundamento para considerar inválido este negócio, por si só…” (v. pág. 16 da mesma);

f) O mesmo cabe no escopo societário da ré que tem como objecto social a compra, venda e arrendamento de bens imobiliários e a prática de actividades florestais, como resulta provado da certidão permanente junta com a contestação como documento n.º 1 (v. artigo 23.º da contestação);

g) Não ficou provado, porque “…não ficou claro que o representante legal da ré tivesse um conhecimento tão próximo da (…) situação pessoal e económica (do autor) que pudesse à partida antever o resultado referido na alínea C) dos factos não provados (v. pág. 9 da douta sentença recorrida) e agir em conformidade com ele, de molde a prejudicar os efeitos das vontades subjacentes à celebração do contrato”, o que consequentemente elimina qualquer postura de má-fé que porventura pudesse assumir na celebração do contrato, resultando, a contrario sensu, provado que a ré não conhecia a real e concreta situação pessoal e económica do autor, não se podendo obviamente aproveitar de uma situação que, de todo, não conhecia na sua verdadeira dimensão e amplitude;

h) Aliás, o objectivo do autor era não perder o imóvel dado de garantia ao C... e que estava para ser vendido em processo executivo contra si instaurado por aquela Instituição de Crédito;

i) Perante este objectivo pode é retirar-se outra conclusão:

Se alguém estava de má fé, esse alguém era o autor, aqui recorrido, que, possivelmente admitindo à partida que não conseguiria cumprir as condições e os termos do contrato que livremente aceitou, se resguardou para momento posterior e, na altura, tomar, perante o contrato que celebrou com a ré, a posição que melhor satisfizesse os seus interesses;

j) Se assim não fosse, porque guardou quase até ao termo do prazo para manifestar e comunicar verbalmente a sua posição à ré – e não por escrito como devia ter feito e resultava do contrato de arrendamento - de exercer a opção de compra do imóvel, fazendo-se substituir pelos seus filhos no exercício desse direito, - explicando que os filhos iriam pedir um financiamento bancário para procederem ao pagamento do montante de € 44.000,00 (ponto 16. dos factos provados e pág. 8 da douta sentença recorrida) - quando bem sabia e conhecia que existia no contrato de arrendamento que livremente assinou uma cláusula – cláusula 10.ª do referido contrato de arrendamento - que só a ele permitia exercer essa faculdade de opção de compra?

k) Não se mostra provado nos autos que o financiamento bancário em causa seria obtido e estava garantida a sua concessão por um Banco – desconhecendo-se qual o Banco - antes do término do prazo para exercer a opção de compra do imóvel - e mesmo depois de terminado esse prazo - mas apenas se mostra provado “…que seriam os seus filhos (entenda-se, do autor) que iriam proceder ao pagamento do montante de € 44.000,00, através de um financiamento que iriam obter junto do Banco…”, sem também ficar provado se já havia sido feito algum contacto com o Banco e se os filhos do autor reuniam condições - nomeadamente possuindo rendimentos – para obter esse financiamento, gorando-se, também, por esta via o exercício da opção de compra do imóvel;

l) Porque não fez inserir no referido contrato a possibilidade de indicar uma terceira pessoa, caso fosse necessário, que o substituísse na intenção de exercer a opção de compra do imóvel?

m) Aliás, esta questão nem sequer foi colocada ao legal representante da ré, por ocasião das negociações do contrato, e daí não poder dizer-se que, na altura, este a rejeitou;

n) Bem pelo contrário, o contrato de arrendamento foi livremente e de boa fé celebrado pelas partes (autor e ré) e dele consta a cláusula décima segunda que expressa e inequivocamente refere o seguinte: “O segundo outorgante (entenda-se, o autor) não pode, em caso algum, ceder ou transmitir a sua posição contratual a outrem” (v. documento n.º 8 junto pelo autor com a p.i.).

o) O autor possui vasto património imobiliário, conforme o mesmo admitiu em sede de audiência, limitando-se a afirmar em tribunal que tem terrenos à venda para pagar. A verdade é que não logrou vender nada nem pagar o que quer que fosse. Declarações do autor ao minuto 19, 43 segundos: “(…) Tenho terrenos à venda, continuo com terrenos à venda para pagar essa situação.”

p) Se o autor tinha real interesse na aquisição do imóvel teria efectuado todos os esforços nesse sentido para o readquirir, algo que não fez porque não quis, nem se esforçou para tal.

q) Na verdade, este acabou por ser um negócio excelente para o autor, que ficou sem uma dívida perante a C..., ainda viu a ré pagar-lhe dívidas às finanças conforme demonstrado pelos documentos juntos aos autos e depoimentos prestados pela legal representante da ré, bem como pelo próprio autor e já transcritos nas presentes alegações, viu-se o autor livre de pagar IMI do imóvel durante este período, e agora pode reaver o imóvel por €30.000,00 (trinta mil euros) sem mais…

r) Possuí é a ré toda a legitimidade para questionar, quem “usou” quem? Insiste, estava a ré completamente alheia desta situação, é-lhe proposto um negócio - não um mútuo, pois caso assim fosse a ré não interviria com interveio - do completo e total conhecimento do autor e por este querido e aceite, que ainda lhe vê a ré pagar dívidas fiscais que possuía, e agora entende o douto tribunal a quo que deve ser restituído o imóvel perante o pagamento de €30.000,00 (trinta mil euros)? Não é justa nem legal esta decisão…

s) Aliás, se o autor não tivesse querido este negócio e não tivesse consciente do mesmo, certamente não teria pago a renda estipulada no contrato de arrendamento durante dois anos, aliás durante 23 meses, algo que o douto Tribunal, sendo que o douto Tribunal considerou, simplesmente com base no depoimento do autor e sem qualquer outra sustentação – parte completamente interessada na causa – que a renda não foi paga – algo confessado pelo autor – para compensar despesas efectuadas por aquele em momento prévio à redacção do contrato. Sobre este ponto refere a douta sentença que:

Quanto ao pagamento da primeira renda acordada, que se considerou provado no ponto 17, a prova assentou, essencialmente, no teor das declarações apostas por ambas as partes no ponto 2 da cláusula quarta do contrato (cf. doc. 8 junto à PI), que se mostra congruente com a versão

explicativa dada pelo autor no sentido de ter havido uma compensação daquele valor com despesas por si efectuadas em momento prévio à redacção do contrato, perdendo, assim, a alegação da ré no sentido de a renda estar em falta qualquer credibilidade face à sua desconformidade com a posição por si assumida por escrito aquando da celebração do acordo, sendo certo que sempre se nos afiguraria estranho que a ré se mantivesse inerte perante tal omissão durante todo tempo de execução do contrato.

Mas que despesas foram essas que deveriam ser imputadas, então à ré?

Certificado energético? Alguma licença? E onde está escrito que essas despesas seriam por conta da ré? Em lado nenhum, pelo que não tem qualquer sentido o douto Tribunal ter dado credibilidade do depoimento do autor.

XXXIII – Ora, se a opção de compra do imóvel não foi exercida por quem a devia exercer – e sabia e conhecia que apenas e exclusivamente a ele essa faculdade competia e estava contratualmente cometida – há, apenas e tão só, que cumprir o contrato assinado pelas partes e que objectivamente o autor não cumpriu, nem se esforçou por cumprir.

XXXIV – Neste sentido, se o autor não cumpriu o contrato que celebrou com a ré, não pode proceder a acção que intentou contra esta.

Tenha-se em consideração, a este propósito e sobre a noção de “Obrigação”, o que refere o artigo 397.º do Código Civil: “Obrigação é o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação.” Por sua vez, o artigo 398.º, também do Código Civil, sobre o “Conteúdo da prestação” diz, no seu n.º 1, que “As partes podem fixar livremente, dentro dos limites da lei, o conteúdo positivo ou negativo da prestação.”

XXXV – E, sobre a explicitação destes dois preceitos legais, a doutrina é clara e abundante.

A título de exemplo, citamos A. Varela, in Obrigações, 37, que refere: “Em sentido estrito ou técnico, a obrigação é o vínculo jurídico por força do qual uma pessoa tem o poder de exigir de uma outra certo comportamento (prestação), para satisfação de um interesse digno de protecção legal.” E continua o Ilustre Professor, desta vez in Obrigações, 1.ª ed., 73, a referir que “Prescinde-se de que a prestação tenha valor económico, ou seja susceptível de avaliação pecuniária e não se exige que o interesse do credor na prestação tenha carácter patrimonial. (…) Exige-se apenas que a prestação corresponda a um interesse real do credor e que este interesse seja digno de protecção legal.”

“Para ser digno de protecção legal “o interesse” do credor há-de ser lícito e além disso suficientemente sério e razoável (segundo a apreciação predominante na consciência social). Não tem que ser um fim objectivo e socialmente útil. A obrigação pode servir interesses pessoais e subjectivos contanto que não se trate de puros caprichos do credor” (Pereira Coelho, in Obrigações, 67). “É necessário que o interesse do credor seja um interesse sério, não correspondente a simples capricho ou fantasia, e que se apresente como determinante de vinculação jurídica e não apenas de um compromisso moral ou de cortesia ou de um acto de favor” (Galvão Teles, in Obrigações, 3.ª ed., 31).

XXXVI – Ora, se na sua fundamentação de direito, a douta sentença recorrida, depois de ter feito uma apreciação do negócio no âmbito do negócio de venda fiduciária, distinguindo este do pacto comissário, previsto no artigo 694.º do Código Civil, concluiu que “…não há fundamento para considerar inválido este negócio, por si só…”, admitindo-o como lícito e juridicamente válido, não se entende como depois faz a sua apreciação e enquadramento no âmbito do negócio usurário, quando é certo que a ré (aqui recorrente) o fez na esfera da sua actividade, embora não o tendo procurado nem sendo ela a definir os termos e as condições do mesmo e nem sendo, à partida e totalmente, conhecedora da real situação económica e social do autor. Aliás, a douta sentença a quo colide, inclusive, com o artigo 394º do Código Civil e que determina que:

1. É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.

2. A proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores.

3. O disposto nos números anteriores não é aplicável a terceiros. Ora, estando em causa uma escritura pública e um contrato de arrendamento com assinaturas devidamente reconhecidas, a prova testemunhal no que toca aos factos que colidem com os documentos em causa, nem tão pouco deveria ter sido atenda por inadmissível, algo que o tribunal a quo desconsiderou e não o podia ter feito.

XXXVII – Vejamos, então, se in casu, se verifica que o negócio celebrado entre as partes (autor e ré) cai no âmbito dos negócios usurários. Dando aqui por integralmente reproduzida toda a matéria de facto dada como provada, relevamos e destacamos, o que para a presente situação interessa, que, para que se verifique este vício, é necessário que cumulativamente estejam reunidos os seguintes elementos:

a) uma situação de inferioridade do declarante;

b) uma actuação consciente de o declaratário ou de um terceiro (autor da usura); e

c) manifesto excesso ou manifesta injustiça do proveito – ponto referente ao objecto (Castro Mendes, in Teoria Geral, 1979, III – 261). No fundo, “o autor da usura deve ter consciência não só da inexperiência, ou da situação de necessidade do outro, mas ainda da desproporção das prestações e também da causalidade da sua actuação” (Castro Mendes, in op. cit., pág. 267). “Exige-se que o conteúdo do negócio seja manifestamente excessivo ou injusto, mas o elemento dominante é a representação mental da situação de inferioridade, vício da vontade” (Autor e op. cit., pág. 268).

XXXVIII – Neste sentido se pronunciaram os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães (TRG), de 01.02.2018, proferido no processo n.º 1646/16.0T8VCT.G1, cujo Relator foi o Ilustre Desembargador António Barroca Penha, ao referir que “I – Para concluirmos que estamos perante um negócio usurário (art.º 282.º, n.º 1, do Cód. Civil) devem encontrar-se preenchidos requisitos objetivos (benefícios excessivos ou injustificados), assim como requisitos subjetivos (a exploração consciente de situações de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter)” e o do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 05.02.2009, Revista n.º 4108/08 – 7.ª Secção, cujo Relator foi o Ilustre Conselheiro Ferreira de Sousa, ao referir que “VII – Uma coisa é explorar, no âmbito de uma relação negocial, a situação de especial vulnerabilidade ou de inferioridade da contraparte, resultante de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter, para desse modo obter benefícios excessivos ou injustificados; outra coisa diferente é cada parte tentar valorizar e vender o seu produto pelo melhor preço possível, no âmbito de uma negociação livremente discutida e esclarecida e voluntariamente aceite e, portanto, sem resquícios de usura”, (negrito nosso), como sucedeu, quanto a esta última parte, no caso sub judice.

XXXIX – Ainda neste domínio e a propósito, atente-se no que, de forma assertiva, diz Menezes Cordeiro, in Tratado, I, 1, 2.ª ed., 2000, pág. 459, ao aludir “…à necessidade de se enveredar pela utilização de um sistema móvel no regime jurídico aplicável ao negócio usurário, com o seguinte sentido: quanto maior for o desequilíbrio das prestações de um determinado negócio jurídico, menor deverá ser a ponderação dos elementos subjectivos a aferir nas esferas jurídicas do usurário e do lesado. Não será de exigir, em caso de manifesto desequilíbrio negocial, um aproveitamento intencional (ou mesmo consciente) do estado de inferioridade do lesado, por parte do usurário. Inversamente, há-de ser-se particularmente exigente na medida em que a desproporção das prestações seja menos gravosa: só haverá negócio usurário, nestes casos, se o usurário se aproveitar intencionalmente do estado de inferioridade do lesado. Por outras palavras: quando a lesão seja muito significativa (laesio enormissima) o aproveitamento da situação de inferioridade do lesado - bem como o da sua fraqueza – pode ser descaracterizado.”

XL – Ora, fixando-nos no que vem afirmado na douta sentença recorrida – e passamos a citar – e, na esteira das orientações doutrinárias acabadas de referir, relevamos que “…não ficou claro que o representante legal da ré tivesse conhecimento tão próximo da sua situação (entenda-se, da situação do autor) pessoal e económica que pudesse à partida antever o resultado referido na alínea C) (dos factos não provados) e agir em conformidade com ele, de molde a prejudicar os efeitos das vontades subjacentes à celebração do contrato” (v. pág. 13 da douta sentença recorrida), isto é, não ficou provado que o legal representante da ré sabia “…que seria totalmente expectável que o autor não conseguisse, por si só, arrecadar € 44.000,00, num prazo de dois anos, tendo de suportar as prestações do empréstimo, as demais despesas correntes do seu agregado, e auferindo o escasso rendimento provindo, durante grande parte do ano, apenas do seu subsídio de doença, factos que eram do conhecimento prévio do gerente da ré” (v. pág. 9 da douta sentença recorrida).

XLI – E, na sua fundamentação de direito, a mencionada sentença, a págs. 20, continua a referir que “…é manifesta a excessividade do proveito conseguido com a realização do negócio, cuja razão de existência não tem outra justificação que não a situação de fragilidade e desespero em que o autor se encontrava, com receio de perder definitivamente o imóvel, e da qual a ré se aproveitou de forma consciente”, constatamos, com linear objectividade, que, nas afirmações vindas de transcrever, existe uma clara contradição que deve ser sanada, sob pena de a sentença ficar juridicamente afectada.

XLII – Mas, admitindo-se, sem conceder, que o proveito conseguido pela ré fosse considerado excessivo, ainda assim, atentando na orientação doutrinária de Menezes Cordeiro, citada na precedente conclusão XXXVIII, não estaríamos na presença de um negócio usurário.

XLIII – De facto, dado que não se provou o preço de mercado daquele tipo de imóveis (v. alínea D) dos factos não provados e pág. 9 da douta sentença recorrida) e se atentarmos no valor patrimonial actualizado do imóvel, que é de € 58.150,00, e o compararmos com valor de recompra fixado no contrato celebrado entre as partes, que é de € 44.000,00, e se tivermos ainda em conta o objecto social da ré – que é uma sociedade comercial e não de beneficência – e o facto de o autor ter podido continuar a usufruir do imóvel, embora pagando uma renda, dado que o imóvel já não era seu, se considerarmos ainda o benefício que o autor obteve, por intervenção da ré, ao não perder o imóvel, em sede de venda em processo executivo, que é muito maior do que o proveito obtido pela ré, e mesmo que existisse “…aproveitamento (por parte da ré, que não houve) da situação de inferioridade do lesado – bem como da sua fraqueza – (este) pode ser descaracterizado”, no dizer de Menezes Cordeiro e consequentemente não valorado. Situação diversa seria que a possibilidade de recompra fosse fixada, por exemplo em €100.000,00, pois aí até se poderia considerar um aproveitamento da ré, caso fosse esta a gizar o negócio – que nem essa questão se coloca. Repare-se, se fosse o autor tivesse possibilidade de contrair um empréstimo bancário no valor de €30.000,00, pense-se, em quanto lhe ficaria o pagamento desse mesmo empréstimo no final?  €90.000,00? Está demonstrado que, em regra, um mutuário paga o triplo da quantia que requer a uma instituição bancária e não é considerada usura essa conduta por parte dos bancos. Não se compreende, salvo o devido respeito a decisão do douto Tribunal. O autor ficou com a possibilidade de recomprar o imóvel por mais €14.000,00 relativamente ao preço que vendeu à ré, ficou sem dívidas à CA e à Autoridade Tributária e ainda alega usura e esta tese é-lhe corroborada pelo Tribunal? Salvo o devido respeito, nenhum Homem Médio entenderá esta decisão.

XLIV – O que tem de se concluir é que a ré, com o negócio que celebrou com o autor, lhe criou condições – que efectivamente não tinha - para ele, no imediato, não perder o imóvel e poder readquiri-lo mais tarde, pagou-lhe dívidas à Autoridade Tributária, eximiu-o de pagar IMI do imóvel durante todo este período, permitiu que o mesmo continuasse a usufruir do imóvel através de um arrendamento, sendo certo que o autor não é uma pessoa inexperiente e destituído de capacidades que o impeçam de ajuizar e avaliar, com rigor, os negócios que faz. Dito de outra forma, sem a intervenção da ré – que lhe foi proposta, insiste-se - o autor jamais teria a possibilidade de readquirir o imóvel. Quis-se fazer passar em julgamento a imagem de um autor destituído de discernimento e faculdades, mas tal não corresponde à verdade, não existindo sobre o mesmo qualquer acção que visasse o seu acompanhamento enquanto maior.

XLV – Mas, se dúvidas existissem – que não existem – tal conclusão é reforçada pela douta sentença recorrida quando afirma que não ficou provado que o representante legal da ré tivesse um conhecimento tão próximo da situação pessoal e económica do autor que pudesse antever que seria totalmente expectável que este não conseguisse, por si só, arrecadar € 44.000,00, num prazo de dois anos, o que confirma, também, o que na mesma sentença vem referido de que foi a testemunha CC, que prestava serviços de contabilidade à ré e era conhecido de ambas as partes, que intermediou o contacto entre as mesmas partes e que lhes sugeriu um negócio que, em termos genéricos, correspondeu aos moldes do negócio acordado entre as referidas partes e que vem dado como provado no ponto 12. dos factos provados (v. págs. 10 e 6 da douta sentença recorrida, respectivamente).

XLVI – Assim sendo, também nesta perspectiva, não se verifica, in casu, os pressupostos do negócio usurário dado que a ré, através do seu representante legal, até à data em que o autor lhe foi apresentado pela testemunha CC, não o conhecia, não sabia, concreta e objectivamente, a real situação económica e social do autor, pelo que consequentemente não se podia aproveitar de uma situação de eventual inferioridade, fragilidade ou fraqueza do mesmo, que verdadeiramente não conhecia na sua real e concreta dimensão.

XLVII – Neste contexto, sendo o negócio juridicamente válido, cabendo o mesmo no âmbito do objecto social da ré, não sendo conhecida do representante legal da ré, e, por via deste, consequentemente juridicamente da ré, a real situação económica e social do autor em toda a sua dimensão e amplitude, não tendo o negócio resultado de uma actuação consciente da ré, através do seu representante legal, em prejudicar o autor, e não sendo o proveito obtido por aquela manifestamente excessivo e, por fim, tendo o autor incumprido a parte a que contratualmente estava obrigado, não estamos perante um negócio usurário pelo que o mesmo, corporizado nos contratos (de compra e venda e de arrendamento) celebrados entre as partes, é juridicamente válido e não padece de usura pelo que deve e se requer ao Venerando Tribunal Superior que revogue a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo e consequentemente julgue totalmente improcedente por não provada a acção intentada pelo autor (aqui recorrido) contra a ré (aqui recorrente), absolvendo a ré dos pedidos formulados pelo autor, com todas as demais e legais consequências que daí se retiram. Mais ainda, provando-se como se provou o não pagamento de uma renda por parte do autor, que este seja condenado a pagar essa mesma renda no valor de €250,00 (duzentos e cinquenta euros) à ré, conforme peticionado em sede de reconvenção. Conclui a ré/recorrente, que a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo errou também quando determina, tout court, a devolução da casa mediante o pagamento de €30.000,00. Primeiro, pois não considerou o pagamento de dívidas tributárias por parte da ré e que eram da responsabilidade do autor. Depois, quando não estipulou prazo para a concretização do negócio. Repare-se, se esteve a ré dois anos para pagar €44.000,00 e só pensou nessa questão dois ou três dias antes do termo do prazo, então quanto tempo necessitará para pagar os €30.000,00, a que deveriam acrescer os impostos pagos pela ré? E até lá, quem suportará as despesas referentes ao IMI, por exemplo? Em última instância e por mera hipótese académica – e não mais que essa hipótese - a douta sentença deveria fixar um prazo não superior a um mês para a realização do negócio, mas pelo valor estipulado e acordado pelas partes de €44.000,00, sob pena de essa recompra ficar sem efeito. Aí sim, estaríamos perante uma sentença ainda que injusta mas mais consentânea com a verdade e com a realidade acordada pelas partes.

Nestes termos e nos mais e melhores de Direito, cujo douto e sábio suprimento se invoca, deverá o Venerando Tribunal da Relação ... determinar que:

A) Seja eliminada a alínea C) dos factos não provados, constante da pág. 9 da douta sentença recorrida;

B) Seja aditada à matéria dada como provada, constante das págs. 4 a 8 da douta sentença recorrida, os seguintes factos provados:

11. Assim, o autor contactou BB, representante legal da ré – que é uma sociedade que tem como objecto social a compra, venda e arrendamento de bens imobiliários e a prática de actividades florestais (a itálico a matéria a intercalar) – informando-o de toda a sua conjuntura económica e social.

18. Os contratos de compra e venda e de arrendamento celebrados entre o autor e a ré são, por si só, juridicamente válidos.

19. O segundo outorgante (no caso, o autor) não pode, em caso algum, ceder ou transmitir a sua posição contratual a outrem.

20. Não ficou claro que o representante legal da ré tivesse um conhecimento tão próximo da situação pessoal e económica do autor que pudesse à partida antever que este não conseguisse, por si só, arrecadar € 44. 000,00, num prazo de dois anos, e agir em conformidade com a antevisão desse resultado, de molde a prejudicar os efeitos das vontades subjacentes à celebração do contrato.

21. Para que a escritura fosse realizada, a ré pagou dívidas fiscais do autor, como taxas de portagens, coimas, IMIs, IUCs, no valor total de €1.937,54.

E, nesta conformidade e consequentemente, alterada a numeração dos factos provados passando o número 17 para número 21.

C) Após a eliminação da alínea C) dos factos não provados e do aditamento, primeiro, ao número 11. dos factos provados, da matéria intercalar proposta, e, segundo, dos números 18., 19., 20. E 21., mas mesmo que o Venerando Tribunal Superior não determine a eliminação da alínea C) e o aditamento à matéria provada requeridos - o que, no entanto, só por mera hipótese se admite e, portanto, não se concede -, ainda assim, requer-se que seja revogada a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo e consequentemente julgada totalmente improcedente por não provada a acção proposta pelo autor (aqui recorrido) contra a ré (aqui recorrente), absolvendo a ré dos pedidos formulados pelo autor, com todas as demais e legais consequências que daí se retiram,

Sem prescindir e subsidiariamente, seja considerada inadmissível a prova testemunhal nos termos do artigo 393º, n.º 2 do Código Civil, considerando-se os documentos autênticos junto aos autos e em consequência revogada a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo e consequentemente julgada totalmente improcedente por não provada a acção proposta pelo autor (aqui recorrido) contra a ré (aqui recorrente), absolvendo a ré dos pedidos formulados pelo autor, com todas as demais e legais consequências que daí se retiram,

Ainda subsidiariamente e por mera hipótese académica, que seja revogada a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, substituindo por outra que fixe o prazo máximo de 30 dias após o trânsito em julgado da decisão, para que o autor recompre a habitação mas pelo preço de €44.000,00, sob pena de em definitivo, caducar este direito de recompra.

Assim se fazendo inteira e sã JUSTIÇA!”


*

Pelo A. foram interpostas contra-alegações, delas resultando as seguintes conclusões:

“CONCLUSÕES

I. A Recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto e de direito, considerando que o douto Tribunal a quo errou na análise e apreciação da prova documental e testemunhal produzida em sede de julgamento, sufragando, fundamentalmente, os argumentos indicados no art.º 1º das presentes Contra-Alegações.

II. Salvo o devido respeito, no nosso entender a sentença recorrida não encerra qualquer vício de raciocínio na apreciação da prova e contém uma fundamentação suficiente e coerente de modo a permitir compreender o processo lógico-mental que lhe serviu de suporte. Nesse sentido,

III. Da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, nomeadamente dos depoimentos das testemunhas CC, contabilista da Recorrente, e DD, filha do Recorrido, e das declarações de parte do legal representante da Recorrente, devidamente transcritas nos arts. 2º, 7º e 12º das Contra-Alegações, respectivamente, resultou à saciedade que foi celebrado um negócio fiduciário usurário entre Recorrente e Recorrido, atendendo ao estado de necessidade deste, que era do conhecimento da primeira, com um benefício excessivo para esta.

IV. A testemunha CC, que prestou um depoimento isento e esclarecido aos olhos do homem médio, foi a pessoa quem desenhou ambos os contratos - de compra e venda e de arrendamento, com opção de compra -, tendo sido o próprio a fixar os valores e a duração do arrendamento, que correspondia ao lapso temporal que o Recorrido tinha para readquirir o imóvel, com o intuito de tornar um bom negócio para ambas as partes, principalmente para a sua cliente, aqui Recorrente, pois, sendo uma empresa, o seu objectivo primordial é o lucro.

V. O Recorrido simplesmente aceitou os termos sugeridos pela testemunha CC, como se de um contrato de adesão se tratasse, atendendo ao estado de desespero e ansiedade em que aquele se encontrava.

VI. A testemunha CC mais referiu que o espírito do contrato era permitir que o ora Recorrido pudesse readquirir o imóvel, por si ou através de terceiro. Todavia,

VII. Não foi a testemunha que redigiu o contrato, tendo a mesma afirmado que havia sido um advogado da confiança da Recorrente, a seu pedido que assim o fez.

VIII. A testemunha DD, apesar da sua condição de filha do Recorrido, manteve um discurso isento e conciso, relatando os factos que assistiu e que teve intervenção.

IX. Nesse sentido, a testemunha foi bastante esclarecedora quando mencionou que o Recorrido se encontrava efectivamente numa situação de fragilidade sem precedentes, tendo apenas dado conhecimento do negócio que havia celebrado com a Recorrente na fase final de execução do contrato.

X. Mais referiu que, juntamente com o Recorrido, se deslocou à sede de uma das empresas do legal representante da Recorrente para propor que fosse a própria a exercer a opção de compra, pagando o valor de € 44.000,00 (quarenta e quatro mil euros), nos termos do contrato.

XI. Proposta que foi prontamente rejeitada pelo legal representante da Recorrente, com a justificação de que queria o imóvel para si e para a sua família, usando como válvula de escape a cláusula décima segunda do contrato.

XII. Já as declarações de parte do legal representante da Recorrente, absolutamente parciais e contraditórias não só entre si, mas também com o depoimento da testemunha CC e com o contrato de compra e venda celebrado entre ambas as partes em juízo, demonstram que o seu objectivo era tão-só aproveitar-se do estado de fragilidade do Recorrido para ficar com

um imóvel para si próprio, sob o manto da Recorrente, do qual é gerente.

XIII. Em primeiro lugar, é peculiar que um gerente de uma sociedade imobiliária, com largos anos de experiência nessa área de actividade, e sabendo que se encontrava um processo executivo em curso contra o Recorrido, já em fase de venda judicial do imóvel, proceda ao pagamento do valor de € 30.000,00, por cheque, entregue a este último, correndo o sério risco de que aquele valor não fosse entregue à C... e que imóvel fosse vendido em sede de execução.

XIV. Todavia, o contrato de compra e venda junto com a petição inicial, sob o doc. 7, mostra precisamente a contradição condenável das declarações prestadas pelo legal representante da Recorrente. Veja-se,

XV. No referido contrato, celebrado no dia 31 de Outubro de 2016, encontra-se redigido que foi exibido nessa data o “termo de cancelamento emitido pela C..., em 13 de Outubro de 2016, comprovativo de que autoriza o cancelamento da hipoteca voluntária, registada a seu favor pela apresentação mil seiscentos quarenta e três, de trinta de Janeiro de dois mil e treze, que incide sobre o mencionado prédio, depositado eletronicamente via internet sob o processo em 13/10/2016, foi atribuído o código ...15”. Ora,

XVI. Havendo um termo de cancelamento da penhora de 13 de Outubro de 2016, significa que o cheque foi entregue directamente à C... nessa mesma data, para pagamento da dívida do Recorrido perante a referida instituição bancária.

XVII. Ou seja, ao contrário do que o legal representante da Recorrente afirmou, este pagou directamente à C..., por forma a que se procedesse ao cancelamento da hipoteca e extinção do processo executivo, e assim adquirir um imóvel, livre de ónus e encargos.

XVIII. O legal representante da Recorrente tinha a obrigação de saber quais os contornos do pagamento que efectuou para que pudesse adquirir o imóvel ao Recorrido.

XIX. De igual forma, o legal representante da Recorrente tinha a obrigação de saber quem e como lhe foi apresentada a proposta de negócio a realizar com o Recorrido.

XX. Conforme tivemos oportunidade de analisar supra o depoimento da testemunha CC, contabilista da Recorrente, este relatou de forma clara e inequívoca sobre os contornos e circunstâncias do negócio, tendo sido o próprio a delinear os contratos a celebrar, os seus termos e valores e apresentá-los ao gerente da Recorrente.

XXI. Tal como era sua obrigação de saber quem redigiu o contrato de arrendamento, com opção de compra: um advogado da sua confiança, a seu pedido, e não o aqui Recorrido.

XXII. Tratam-se de demasiadas incongruências, que apenas evidenciam que o legal representante da Recorrente tinha, efectivamente, um interesse pessoal – e não meramente empresarial - na aquisição da casa do Recorrido, querendo aproveitar-se do seu estado de fragilidade e desespero para realizar um autêntico “negócio da China”.

XXIII. Ficou estipulado entre ambas as partes que, como contrapartida da entrega da quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros), no próprio dia da realização do pagamento da quantia exequenda (dia 13 de Outubro de 2016), e consequente distrate da hipoteca do imóvel do autor, celebrariam um contrato de compra e venda do imóvel em causa, podendo o ora Recorrido continuar a usufruir do mesmo, através de um contrato de arrendamento, pagando um renda no valor de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), durante 24 (vinte e quatro) meses, tendo o Recorrido o direito de readquirir o imóvel decorrido aquele lapso temporal, mediante o pagamento da quantia final de € 44.000,00 (quarenta e quatro mil euros).

XXIV. Caso o ora Recorrido não procedesse ao pagamento do montante de € 44.000,00 (quarenta e quatro mil euros), acabaria por perder o seu imóvel, que apesar de já não se encontrar na titularidade deste, sempre foi considerado pelas partes como sendo seu.

XXV. Antes do término do prazo para exercer o seu direito de opção de compra do imóvel, o Recorrido e a sua filha manifestaram ao representante legal da Recorrente a sua intenção de o exercer, através daquela, a qual iria entregar a quantia de € 44.000,00 (quarenta e quatro mil euros), socorrendo-se de empréstimo bancário,

XXVI. Possibilidade que foi prontamente rejeitada pelo gerente da Recorrente, invocando a cláusula décima segunda do contrato de arrendamento.

XXVII. Cláusula essa que, do depoimento da testemunha CC, resulta ter sido inserida a pedido do legal representante da Recorrente!

XXVIII. A referida testemunha foi peremptória quando referiu que o espírito e grande objectivo do contrato era o de permitir ao Recorrido readquirir o imóvel, por si ou através de terceiros.

XXIX. Todavia, quem redigiu o mencionado contrato foi um advogado da confiança da Recorrente, a seu pedido. Dessa forma,

XXX. A Recorrente, ou melhor, o legal representante desta, sob o seu manto, adquiriu assim uma moradia, sita na ..., por uma verdadeira pechincha.

XXXI. E é aqui que se verifica, face a todo o circunstancialismo devidamente provado e alegado nas Contra-Alegações, de forma manifesta e devidamente provada, a figura da usura.

XXXII. Apesar de o Tribunal a quo entender que a Recorrente, através do seu legal representante, não tinha um profundo conhecimento da situação de fragilidade e desespero do Recorrido, não deixa de ser verdade que “não ter conhecimento profundo” não significa “não ter conhecimento de todo”. Até porque,

XXXIII. A Recorrente bem sabia da situação de desespero do Recorrido, nem poderia não saber, pois essa mesma situação, por um lado, foi exposta pela testemunha CC, seu contabilista, quando apresentou a proposta dos contratos, por si desenhada e que considerou ser vantajosa para a sua cliente, e, por outro lado, tinha conhecimento do processo executivo em curso e da iminente venda judicial da casa do Recorrido, bem como da existência das suas dívidas fiscais, as quais prontamente se disponibilizou a liquidar.

XXXIV. Aos olhos do Homem Médio, só uma pessoa num estado de fragilidade e desespero é que poderia aceitar vender o seu imóvel por um preço muito abaixo, inclusive, do seu valor patrimonial tributário e do seu valor de mercado, pagando posteriormente, por dois anos consecutivos, uma renda mensal de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), sendo que para o readquirir teria de pagar a quantia total de € 44.000,00 (quarenta e quatro mil euros), ao qual se somaria o valor de € 6.000,00 (seis mil euros), pagos anteriormente em rendas, pelo que o Recorrido dispenderia a quantia total de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), havendo um saldo positivo para a Recorrente, no valor de € 20.000,00 (vinte mil euros), em apenas dois anos.

XXXV. Há, dessa forma, um acentuado desequilíbrio entre as prestações em benefício da Recorrente.

XXXVI. A Recorrente, apesar de conhecer todo o circunstancialismo em que decorreu o negócio, aproveitou-se do estado de necessidade do Recorrido, pretendendo transformar um negócio numa pechincha em seu proveito, num circunstancialismo de aperto económico do Recorrido, a quem havia prometido a sua colaboração, acabando por ver-se este despojado da

propriedade do imóvel, em resultado da recusa daquela em revendê-lo ao Recorrido, através dos seus filhos.

XXXVII. Precisamente o resultado que pretendia obviar com a solução encontrada.

XXXVIII. Tal atitude, para além de ser elemento constitutivo da usura, é igualmente lesiva do princípio da “boa-fé contratual” com acolhimento no artigo 227º do Código Civil apresentando-se ética e juridicamente como censurável.

XXXIX. Nos termos do disposto do art.º 282º, nº 1º do C.C., “é anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.”

Por tudo o exposto, e sem necessidade de mais amplas considerações, deverá a presente apelação ser julgada improcedente, por não provada, e, consequentemente, confirmar a decisão proferida pelo Tribunal a quo com todos efeitos legais, justamente porque não violou quaisquer preceitos legais, maxime os mencionados pela Recorrente. E assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!.”


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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

Assim sendo, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar:


a) Se foram cumpridos os ónus impostos ao recorrente pelo artº 640 do C.P.C. e se, deve ser alterada a matéria de facto fixada em primeira instância;
b) Se o negócio celebrado entre as partes se subsume a um negócio fiduciário e se este se deve considerar inválido por usurário.  


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Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes Desembargadores adjuntos, cumpre decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:

III.1 – Factos provados

1. O autor é divorciado e pai de dois filhos, residindo actualmente sozinho na localidade de ....

2. Ao longo dos últimos 8 anos, tem passado por diversas dificuldades, associadas a problemas de saúde entretanto manifestados, problemas familiares e ao agravamento da sua situação económica.

3. No ano de 2013 entrou em processo de divórcio litigioso, que correu os seus termos na Comarca ..., Juízo de Família e Menores, Juiz ..., sob o proc. n.º 610/15.... e nos anos seguintes foi executado em diversos processos de execução fiscal.

4. Com um filho, à data, menor e estudante, cujas responsabilidades parentais lhe foram atribuídas e um historial clínico crítico, que lhe determinou períodos consecutivos de baixas médicas, desde 2015/2016, o autor ficou numa situação de completa fragilidade: económica, de saúde, e consequentemente, emocional.

5. No ano de 2013, o autor decidiu contrair um empréstimo junto da C..., no montante de € 20.000,00 (vinte mil euros), que deu origem ao contrato de mútuo n.º ...81.

6. Como garantia do cumprimento das obrigações decorrentes daquele empréstimo, o autor declarou constituir a favor daquela C... uma hipoteca sobre o seu prédio urbano, casa de habitação de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, sito na Rua ..., ..., ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...49, com o valor patrimonial de € 58 150,00, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...77 da freguesia ..., cujo direito de propriedade estava registado em seu nome, pela Ap. ...30.

7. Contudo, o autor viu-se incapaz de efectuar o pagamento de diversas prestações devidas por força do referido empréstimo, tendo a C... instaurado um processo executivo para cobrança de dívida, que correu termos no Juízo de Execução da Comarca ..., Juiz ..., sob o n.º 1972/15.....

8. No âmbito desses autos, em que figurava como exequente a C..., e como executado o autor, foi designado o dia 24 de Novembro de 2016 pelas 14:00h para abertura de proposta em carta fechada, do bem imóvel supra identificado.

9. Encontrando-se em vias de perder o referido imóvel, o autor abordou um conhecido, residente na sua localidade, e informou-o da situação, pedindo, em desespero, a sua ajuda.

10. Essa pessoa, incapaz de ajudar o autor financeiramente, indicou-lhe o representante da sociedade aqui ré, como terceiro a quem poderia recorrer, o que efectivamente o autor veio a fazer.

11. Assim, o autor contactou BB, representante legal da ré, informando-o de toda a sua conjuntura económica e social.

12. As partes acordaram que, como contrapartida da entrega da quantia de € 30 000,00, no próprio dia de realização do pagamento da quantia exequenda, e consequente distrate da hipoteca do imóvel do autor, celebrariam um contrato de compra e venda do imóvel em causa, podendo o autor continuar a usufruir do mesmo, através de um contrato de arrendamento, com direito a readquirir o imóvel decorridos dois anos, diante do pagamento de € 44 000,00.

13. Atendendo à situação de desespero em que o autor se encontrava, e sendo esta a única forma de evitar ver o seu imóvel vendido em sede de execução, o mesmo acedeu ao dito acordo.

14. Por escritura pública outorgada em 31 de Outubro de 2016, o autor declarou vender à ré e esta declarou comprar-lhe, pelo preço de € 30 000,00, o prédio urbano descrito no ponto 6.

15. No dia 1 de Novembro de 2016, autor e ré celebraram um contrato de arrendamento para fins habitacionais sobre o dito prédio urbano, pelo prazo de dois anos, através do qual a segunda declarou dar de arrendamento ao primeiro o local supra identificado, acordando no seguinte:

 A renda mensal é de € 250,00, a pagar até ao dia 8 do mês a que disser respeito, entregando o segundo outorgante (aqui autor), no acto de assinatura do contrato, a quantia correspondente à primeira renda, relativa ao mês de Novembro de 2016;

 Durante o período de vigência do presente contrato, a segunda outorgante (aqui ré) obriga-se a vender ao segundo o imóvel objecto do locado, pelo preço de € 44 000,00, caso este manifeste intenção de o adquirir, através de carta registada enviada para a sede da primeira outorgante, cessando tal obrigação se, findo o período de dois anos, o segundo outorgante não exercer o direito de compra do locado.

16. Antes do término da vigência do contrato de arrendamento, o autor comunicou ao representante legal da ré a intenção de exercer a opção de compra do imóvel, explicando que seriam os seus filhos que iriam proceder ao pagamento do montante de € 44.000,00, através de um financiamento que iriam obter junto do Banco, o que foi rejeitado pelo gerente da ré, invocando a cláusula décima do contrato de arrendamento.


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(Da reconvenção)

17. O autor pagou a primeira renda, referente ao mês de Novembro de 2016.


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III.2 – Factos não provados

A) O autor solicitou ao representante legal da ré um empréstimo pessoal, no valor de € 30 000,00 (trinta mil euros) para pagamento da quantia exequenda peticionada pela C..., tendo aquele acedido ao seu pedido.

B) O representante da ré contrapropôs à concessão daquele empréstimo o negócio supra descrito nos pontos 13 e 14, referindo que o mesmo apenas serviria para garantia do bom cumprimento do empréstimo que agora firmavam, que o contrato de arrendamento serviria como plano de pagamento do empréstimo e que caso o autor não procedesse ao pagamento do montante global de € 44.000,00, acabaria por “perder o seu imóvel”, que apesar de já não se encontrar na titularidade deste, sempre foi considerado pelas partes como sendo seu.

C) Bem sabia o gerente da aqui ré que seria totalmente expectável que o autor não conseguisse, por si só, arrecadar 44.000,00€, num prazo de dois anos, tendo de suportar as prestações do empréstimo, as demais despesas correntes do seu agregado, e auferindo o escasso rendimento provindo, durante grande parte do ano, apenas do seu subsídio de doença, factos que eram do conhecimento prévio do gerente da Ré.

D) O preço de mercado daquele tipo de imóveis ronda, pelo menos, os € 200 000,00.


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(Da litigância de má-fé)

E) O autor omitiu factos relevantes para a decisão da causa e utilizou o presente processo de forma manifestamente reprovável, causando graves prejuízos na esfera patrimonial da ré.”

 


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DA IMPUGNACÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Vem a recorrente peticionar a reapreciação da matéria de facto dada como não provada na alínea C) requerendo a sua eliminação, indicar nas suas conclusões XIII diversos factos não totalmente coincidentes com os dados como provados e requerer o aditamento de factos à matéria assente nos seguintes termos:

11. Assim, o autor contactou BB, representante legal da ré – que é uma sociedade que tem como objecto social a compra, venda e arrendamento de bens imobiliários e a prática de actividades florestais (a negrito a matéria a intercalar) – informando-o de toda a sua conjuntura económica e social.

18. Os contratos de compra e venda e de arrendamento celebrados entre o autor e a ré são, por si só, juridicamente válidos.

19. O segundo outorgante (no caso, o autor) não pode, em caso algum, ceder ou transmitir a sua posição contratual a outrem.

20. Não ficou claro que o representante legal da ré tivesse um conhecimento tão próximo da situação pessoal e económica do autor que pudesse à partida antever que este não conseguisse, por si só, arrecadar € 44.000,00, num prazo de dois anos, e agir em conformidade com a antevisão desse resultado, de molde a prejudicar os efeitos das vontades subjacentes à celebração do contrato.

21. Para que a escritura fosse realizada, a ré pagou dívidas fiscais do autor, como taxas de portagens, coimas, IMIs, IUCs, no valor total de €1.937,54”.

Para tanto, invoca a fundamentação do tribunal recorrido, a certidão de registo comercial da R., o contrato de arrendamento firmado entre as partes e, em relação ao alegado pagamento de portagens, coimas, IMIS e IUCs, as declarações do próprio A. e “por se encontrar documentalmente provado”.

Ora, estatui o artº 640 do C.P.C., como ónus a cargo do recorrente que pretenda a reapreciação da matéria de facto, a especificação obrigatória, sob pena de rejeição do recurso nesta parte, dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (nº1 a); dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (nº1 b); da decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. (nº1 c))

No que toca à especificação dos meios probatórios, mais dispõe que quando estes tenham sido objecto de gravação, “incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (nº 2, al. a) do referido preceito legal).

No que respeita à observância dos requisitos constantes deste preceito legal, após posições divergentes na nossa jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória[1]

Assim, “O que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art. 640º do Novo CPC.

A saber:

- A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados;

- A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;

- E a decisão alternativa que é pretendida”.[2]

Ora, a recorrente nas suas alegações, sob o ponto 5 sob a epígrafe “DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO” indica em várias alíneas, alegados factos não totalmente coincidentes com aqueles adquiridos pelo tribunal recorrido, pretensão reproduzida na Clausula XIII das suas conclusões, invocando após no ponto 6 sob a epígrafe “ADITAMENTO AOS FACTOS PROVADOS. ELIMINAÇÃO DA ALÍNEA C) DOS FACTOS NÃO PROVADOS”, a alínea da matéria de facto não provada que pretende ver eliminada e os factos que pretende sejam aditados à matéria de facto provada.

Devendo constar das conclusões a especificação dos factos que se pretendem impugnar e as respostas alternativas que deverão ser dadas por este tribunal de recurso, não se exige que nas conclusões se reproduza toda a apreciação probatória efectuada em sede de alegações, sob pena de as converter numa repetição destas, exigindo-se apenas que das alegações conste todo esse acervo probatório e com cumprimento dos requisitos impostos pelo nº2 do artº 640 do C.P.C.

No entanto, não basta para o cumprimento destes requisitos que o recorrente proceda a uma impugnação genérica da matéria de facto, com remissão para meios de prova igualmente genéricos e sem os delimitar em relação a cada facto. As exigências contidas neste preceito impõem que “esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos”.[3]

Expostos estes considerandos, em relação ao ponto 5 reproduzido na conclusão XIII, não se vislumbra a pretensão da recorrente, uma vez que destas não resulta nem a pretensão de alteração dos factos dados como provados, nem os meios de prova que efectivamente suportariam essa alteração e que hajam de ser reapreciados pelo tribunal ad quem. Delimitando as conclusões o objecto do recurso, destas não resulta em concreto qual a alteração que a recorrente pretende seja realizada a estes factos, menos ainda quais os meios de prova que os sustentariam. Conforme defende ABRANTES GERALDES[4], “o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto, que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões (…) Deve ainda especificar na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos (…) deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus da alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto.”

Não sendo cumprido este ónus, imposto pelo artº 640 do C.P.C. para a admissibilidade do recurso quanto à matéria de facto, não é esta omissão passível de despacho de aperfeiçoamento. Com efeito, do disposto nos artºs 639 nº2 e 3 do C.P.C., resulta a possibilidade de prolacção deste despacho nos casos em que estas conclusões se apresentem como deficientes, obscuras ou complexas ou quando, nelas não se tenha procedido às especificações constantes do nº2: quando não tenham sido indicadas as normas jurídicas violadas, ou o sentido com que as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deveriam ser interpretadas ou quando, invocando-se erro na determinação da norma aplicável, não seja indicada a norma jurídica que deveria ter sido aplicada e não o foi.

Da conjugação deste preceito com o disposto no artº 640 nº2 a) do C.P.C. que determina a imediata rejeição do recurso, sem possibilidade de aperfeiçoamento ou inclusão da parte omitida, resulta que o despacho de aperfeiçoamento das conclusões está restrito a estes fundamentos, não sendo extensível aos fundamentos de impugnação ou ao cumprimento dos requisitos previstos no artº 640 do C.P.C. Assim, volvendo aos ensinamentos de Abrantes Geraldes[5], “A comparação que necessariamente tem que ser feita com o disposto no artº 639º e, além disso, a observação dos antecedentes legislativos levam-me a concluir que não existe, quanto ao recurso da decisão da matéria de facto, despacho de aperfeiçoamento. Resultado que é comprovado pelo teor do art. 652º, nº1, al. a), na medida em que limita os poderes do relator ao despacho de aperfeiçoamento “das conclusões das alegações, nos termos do nº3 do artº 639.”  

Nesta medida, indefere-se o conhecimento dos factos indicados na conclusão XIII, por, nesta parte, não estarem preenchidos os requisitos previstos no artº 640 nº1 e 2 do C.P.C. para a impugnação da matéria de facto.


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Invoca ainda a recorrente a inadmissibilidade de prova testemunhal tendo em conta o disposto no artº 394 do C.C. que introduz limitações à admissibilidade de prova quando em causa estejam convenções adicionais ou contrárias ao contrato constante de documento autêntico ou particular.

Lavra a recorrente em manifesta confusão sobre o que constitui uma estipulação verbal acessória ao contrato para que se exija forma legal, abrangidas estas pela aludida limitação constante do nº1 do artº 394 do C.C., as circunstâncias relevantes para a decisão de contratar e as finalidades visadas com o contrato, embora não concretamente declaradas (pactum fiduciea), sendo certo que este fim pode estarencoberto, oculto ou dissimulado das cláusulas contratuais formalmente acordadas e em que se consubstanciou a venda do imóvel, necessariamente realizada por escritura pública”[6] e os vícios que possam afectar o contrato, sobre os quais, à excepção do acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores, pode incidir, quer prova testemunhal quer prova por declarações de parte.

Conforme já decidido nesta Relação, em Ac. de 03/11/2020[7], a “proibição da prova testemunhal contra ou praeter scriptum não impede que tal força probatória seja atacada por via de exceção, invocando-se qualquer um dos vícios ou defeitos capazes de ditar a ineficácia lato sensu do negócio, ou seja, que se recorra a testemunhas para prova quer dos vícios da vontade (erro, dolo, coação moral, incapacidade acidental) quer das divergência entre a vontade e a declaração (falta da vontade, erro na declaração, etc.), assim como não obsta à prova por testemunhas a interpretação do sentido e alcance atribuídos ao texto do documento (prova juxta scripturum). (…) embora a inserção sistemática do negócio usurário (art. 282.º do C. Civil) seja como vício de conteúdo do negócio jurídico (dum conteúdo excessivo ou injustificadamente desequilibrado, que implica uma quebra na justiça interna do negócio jurídico), o certo é que “envolve também uma situação de inferioridade que se traduz em insuficiente liberdade e discernimento da vontade negocial do lesado e ainda um reprovável aproveitamento/exploração por parte do usurário da situação de inferioridade ou de carência do lesado”, ou seja, é (num momento inicial e antes de ser um vício de conteúdo) também um vício da vontade, razão pela qual a proibição da prova testemunhal contra ou praeter scriptum não impede que a carater usurário do negócio possa ser provado com o recurso a testemunhas”.

Sobre os acordos que constituem afinal o pactum fiduciae e as circunstâncias que rodearam estes acordos e que são aqui invocadas como vícios que determinam a anulabilidade do contrato pode incidir depoimento testemunhal e por declarações de parte.

Improcede assim a invocada inadmissibilidade de prova testemunhal.


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Por último, em relação aos factos que se pretendem ver aditados, incluídos nas conclusões XIV a XVI, relativos ao objecto social da R., estão indicados os respectivos meios de prova, nada obstando ao conhecimento do recurso nesta parte.

Trata-se de facto expressamente alegado no artº 23 da sua contestação, com suporte na certidão de registo comercial junta a este articulado. Não é, por outro lado, totalmente indiferente ao enquadramento deste negócio e à decisão da causa, este objecto social, pelo que se impunha que o juiz a quo, fizesse constar da matéria de facto o objecto social da R., em cumprimento do disposto no artº 607 nº4 do C.P.C., por provado por documento.

Neste conspecto, defere-se esta impugnação aditando à matéria de facto, sob o ponto 18, o seguinte:

18-A R. é uma sociedade comercial que tem como objecto social a compra, venda e arrendamento de bens imobiliários e a prática de actividades florestais.”

Relativamente aos pretensos factos que se pretendem ver aditados sob os pontos 18 e 20, confunde manifestamente a recorrente a apreciação da prova com vista à aquisição de factos realizada pelo julgador, com os factos em si. Aquelas, a par das conclusões jurídicas, não integram a matéria de facto, sem prejuízo de se considerar que, como afirma ANSELMO DE CASTRO[8]a linha divisória entre o facto e o direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto num caso poderá ser direito ou juízo de direito noutro”. Se não existe total estanquicidade entre o facto e o direito, decorrente do emprego na linguagem corrente de termos com sentido jurídico e, em alguns casos integrando mesmo a estrutura da norma (e.g a expressão “proveito comum”), ainda assim, constituem factos aqueles que designam as realidades da vida e que, ao mesmo tempo, integram uma determinada previsão normativa.

 Nestes termos, factos a considerar são os factos jurídicos concretos que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido. (artº 581 nº4 do C.P.C.)

Pretender dar-se como assente que os contratos de compra e venda e de arrendamento são juridicamente válidos, é matéria de direito, a ser decidido nessa sede, mas não corresponde a qualquer descrição de uma realidade relevante para efeitos de aplicação desse mesmo direito.

O ponto 20 não constitui igualmente facto, tratando-se antes de uma conclusão retirada pelo tribunal a quo da análise que fez da prova que, com base nessa análise, entendeu dar como não provado o teor da alínea C). Pretender erigir em factos conclusões jurídicas e convicções sobre a prova produzida, explanadas pelo tribunal recorrido, é desconhecer totalmente o que constitui facto e o que constitui fundamentação jurídica.

Indefere-se assim, também esta pretensão da recorrente.

No que se reporta ao ponto 19 resulta este do contrato de arrendamento em apreço. Constando do ponto 15 as cláusulas gerais deste contrato de arrendamento, não se fez constar o teor da clausula 10ª, relevante, tendo em conta que na sua fundamentação jurídica para a consideração do negócio como usurário, fez o tribunal a quo constar que “a recusa em aceitar que a aquisição do imóvel fosse feita, no termo do prazo acordado, pelos filhos do autor, para assim acumular maior vantagem económica, é mais um sinal que reforça aquela sua atitude.”

Por outro lado, em relação ao prazo de arrendamento, igualmente se não fez constar deste ponto 15, o teor da cláusula 3ª dela constando que o arrendamento celebrado por dois anos, não podia ser objecto de renovação, como se não fez constar o teor da clausula 11ª referente à condição resolutiva imposta neste contrato.

Nesta medida, altera-se este ponto 15, dando-lhe a seguinte redacção:

“15. No dia 1 de Novembro de 2016, autor e ré celebraram um contrato de arrendamento, sobre o dito prédio urbano, através do qual a segunda declarou dar de arrendamento ao primeiro o local supra identificado, acordando no seguinte:

 o prazo de dois anos, com início em 1 de Novembro de 2016, não sendo o mesmo renovável;

 A renda mensal de € 250,00, a pagar até ao dia 8 do mês a que disser respeito, entregando o segundo outorgante (aqui autor), no acto de assinatura do contrato, a quantia correspondente à primeira renda, relativa ao mês de Novembro de 2016;

 Durante o período de vigência do presente contrato, a primeira outorgante (aqui ré) obriga-se a vender ao segundo outorgante o imóvel objecto do locado, pelo preço de € 44 000,00, caso este manifeste intenção de o adquirir, através de carta registada enviada para a sede da primeira outorgante, cessando tal obrigação se, findo o período de dois anos, o segundo outorgante não exercer o direito de compra do locado. Este direito apenas poderia ser exercido se, durante a vigência do contrato de arrendamento, fosse liquidada atempadamente cada uma das rendas.

 o segundo outorgante não pode e, em caso algum, ceder ou transmitir a sua posição contratual a outrém.

a mora no pagamento das rendas igual ou superior a 60 dias, bem como a mora superior a oito dias, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses, concede à primeira outorgante o direito de denunciar de imediato o contrato, incluindo a obrigação de venda do locado, devendo o segundo outorgante proceder à desocupação do mesmo. 

Relativamente ao último ponto da matéria de facto, consta o pagamento destas quantias alegado na contestação nos artºs 35 a 38, suportados pelos docs. juntos aos autos sob os nº2, 15 a 17 da contestação, factos e documentos não impugnados pelo A. na sua réplica.

Deveria, pois, este facto ter sido dado como provado com base na sua admissão por acordo, como aliás decorre do disposto no artº 607 nº4 do C.P.C.

Assim sendo, adita-se um novo facto, sob o nº 19 e com a seguinte redacção:

            “19.Com vista a possibilitar a celebração da escritura de compra e venda do imóvel referido em 6, a Ré procedeu ao pagamento de dívidas fiscais pessoais do Autor, como taxas de portagens, coimas, IMIs e IUCs, no valor total de €1.937,54.”

No demais, indefere-se a pretensão da recorrente.


***

É a seguinte a matéria de facto consolidada:

1. O autor é divorciado e pai de dois filhos, residindo actualmente sozinho na localidade de ....

2. Ao longo dos últimos 8 anos, tem passado por diversas dificuldades, associadas a problemas de saúde entretanto manifestados, problemas familiares e ao agravamento da sua situação económica.

3. No ano de 2013 entrou em processo de divórcio litigioso, que correu os seus termos na Comarca ..., Juízo de Família e Menores, Juiz ..., sob o proc. n.º 610/15.... e nos anos seguintes foi executado em diversos processos de execução fiscal.

4. Com um filho, à data, menor e estudante, cujas responsabilidades parentais lhe foram atribuídas e um historial clínico crítico, que lhe determinou períodos consecutivos de baixas médicas, desde 2015/2016, o autor ficou numa situação de completa fragilidade: económica, de saúde, e consequentemente, emocional.

5. No ano de 2013, o autor decidiu contrair um empréstimo junto da C..., no montante de € 20.000,00 (vinte mil euros), que deu origem ao contrato de mútuo n.º ...81.

6. Como garantia do cumprimento das obrigações decorrentes daquele empréstimo, o autor declarou constituir a favor daquela C... uma hipoteca sobre o seu prédio urbano, casa de habitação de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, sito na Rua ..., ..., ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...49, com o valor patrimonial de € 58 150,00, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...77 da freguesia ..., cujo direito de propriedade estava registado em seu nome, pela Ap. ...30.

7. Contudo, o autor viu-se incapaz de efectuar o pagamento de diversas prestações devidas por força do referido empréstimo, tendo a C... instaurado um processo executivo para cobrança de dívida, que correu termos no Juízo de Execução da Comarca ..., Juiz ..., sob o n.º 1972/15.....

8. No âmbito desses autos, em que figurava como exequente a C..., e como executado o autor, foi designado o dia 24 de Novembro de 2016 pelas 14:00h para abertura de proposta em carta fechada, do bem imóvel supra identificado.

9. Encontrando-se em vias de perder o referido imóvel, o autor abordou um conhecido, residente na sua localidade, e informou-o da situação, pedindo, em desespero, a sua ajuda.

10. Essa pessoa, incapaz de ajudar o autor financeiramente, indicou-lhe o representante da sociedade aqui ré, como terceiro a quem poderia recorrer, o que efectivamente o autor veio a fazer.

11.Assim, o autor contactou BB, representante legal da ré, informando-o de toda a sua conjuntura económica e social.

12. As partes acordaram que, como contrapartida da entrega da quantia de € 30 000,00, no próprio dia de realização do pagamento da quantia exequenda, e consequente distrate da hipoteca do imóvel do autor, celebrariam um contrato de compra e venda do imóvel em causa, podendo o autor continuar a usufruir do mesmo, através de um contrato de arrendamento, com direito a readquirir o imóvel decorridos dois anos, diante do pagamento de € 44 000,00.

13. Atendendo à situação de desespero em que o autor se encontrava, e sendo esta a única forma de evitar ver o seu imóvel vendido em sede de execução, o mesmo acedeu ao dito acordo.

14. Por escritura pública outorgada em 31 de Outubro de 2016, o autor declarou vender à ré e esta declarou comprar-lhe, pelo preço de € 30 000,00, o prédio urbano descrito no ponto 6.

15. No dia 1 de Novembro de 2016, autor e ré celebraram um contrato de arrendamento, sobre o dito prédio urbano, através do qual a segunda declarou dar de arrendamento ao primeiro o local supra identificado, acordando no seguinte:

 o prazo de dois anos, com início em 1 de Novembro de 2016, não sendo o mesmo renovável;

 A renda mensal de € 250,00, a pagar até ao dia 8 do mês a que disser respeito, entregando o segundo outorgante (aqui autor), no acto de assinatura do contrato, a quantia correspondente à primeira renda, relativa ao mês de Novembro de 2016;

 Durante o período de vigência do presente contrato, a primeira outorgante (aqui ré) obriga-se a vender ao segundo outorgante o imóvel objecto do locado, pelo preço de € 44 000,00, caso este manifeste intenção de o adquirir, através de carta registada enviada para a sede da primeira outorgante, cessando tal obrigação se, findo o período de dois anos, o segundo outorgante não exercer o direito de compra do locado. Este direito apenas poderia ser exercido se, durante a vigência do contrato de arrendamento, fosse liquidada atempadamente cada uma das rendas.

 o segundo outorgante não pode e, em caso algum, ceder ou transmitir a sua posição contratual a outrém.

a mora no pagamento das rendas igual ou superior a 60 dias, bem como a mora superior a oito dias, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses, concede à primeira outorgante o direito de denunciar de imediato o contrato, incluindo a obrigação de venda do locado, devendo o segundo outorgante proceder à desocupação do mesmo. 

16. Antes do término da vigência do contrato de arrendamento, o autor comunicou ao representante legal da ré a intenção de exercer a opção de compra do imóvel, explicando que seriam os seus filhos que iriam proceder ao pagamento do montante de € 44.000,00, através de um financiamento que iriam obter junto do Banco, o que foi rejeitado pelo gerente da ré, invocando a cláusula décima do contrato de arrendamento.

17. O autor pagou a primeira renda, referente ao mês de Novembro de 2016.

18.A R. é uma sociedade comercial que tem como objecto social a compra, venda e arrendamento de bens imobiliários e a prática de actividades florestais.

19.Com vista a possibilitar a celebração da escritura de compra e venda do imóvel referido em 6, a Ré procedeu ao pagamento de dívidas fiscais pessoais do Autor, como taxas de portagens, coimas, IMIs e IUCs, no valor total de €1.937,54.


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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A recorrente impugna ainda a decisão proferida pelo tribunal a quo, alegando nas suas conclusões que ambos os negócios outorgados entre as partes, compra e venda e arrendamento são negócios válidos, legalmente tipificados e ainda que se não verificam os requisitos da usura, uma vez que a sociedade R. se dedica à compra e venda de propriedades e ao seu arrendamento, estando os contratos celebrados incluídos no seu objecto social e visando a sociedade o lucro nos negócios realizados.

Por último, alega que não decorre dos factos provados nem se pode concluir ser o A. a parte prejudicada com este negócio, porque sempre estaria sujeito à venda executiva da fracção, o que se procurou evitar com esta venda à R. e com a opção de (re)compra do imóvel, no qual a R. acordou, por um valor que não é excessivo, face à sua actividade e ao seu efectivo e real valor.

Alega ainda que este meio era o único possível, uma vez que o A. não tinha possibilidade de recorrer a empréstimo bancário e que, em consequência do negócio acordado com a R., ficou liberto de dívidas fiscais, na fruição do imóvel e ainda com opção de compra do mesmo, por um valor também ele inferior ao do mercado.

Cumpre-nos assim apreciar a primeira questão colocada:

Se o negócio celebrado entre as partes se subsume a um negócio fiduciário ou pelo contrário a dois negócios distintos, independentes e válidos. 

Considerou a primeira instância que o acordo celebrado entre as partes se enquadrava no âmbito da venda fiduciária, considerando ainda que “Neste tipo de negócio, quer o fim indirecto de garantia, quer o carácter temporário da alienação do bem estão ocultos ou dissimulados nas clausulas formais do contrato, que aparentam antes um objecto típico de uma ou várias modalidades contratuais, normalmente a compra e venda e o arrendamento com opção de (re)compra a final” negócio que considerou permitido pelo ordenamento jurídico e assim, em princípio, válido e eficaz, “sem prejuízo de sujeitar os seus termos e o seu conteúdo ao crivo das normas gerais de validade dos negócios jurídicos, nomeadamente por haver fraude à lei, ser contrário à moral ou aos bons costumes, revestir características de usura ou padecer de qualquer outro vício que a lei proíba.”

Concorda-se em termos gerais com a qualificação jurídica operada pelo tribunal a quo. A aparência criada de celebração de dois contratos, distintos e interdependentes entre si, não sobrevive à análise dos factos que resultaram adquiridos pelo tribunal recorrido.

Figura originária do direito romano, a admissibilidade da fiducia cum creditore no nosso ordenamento jurídico, a par da fiducia cum amico[9], tem vindo a ser admitida pela doutrina e mais recente pela jurisprudência[10], decorrente, como refere ANDRÉ FIGUEIREDO [11] da “autonomização e consequente admissibilidade de uma causa fiduciae, enquanto fundamento jurídico-económico legítimo de um acto translativo; a outro, a definitiva rejeição de um numerus clausus de negócios com eficácia real”. Aceite esta admissibilidade “a doutrina dominante identificou no negócio fiduciário, a combinação de duas componentes: de um lado, um efeito real, que se materializa na transmissão (temporária) para um fiduciário de um direito tendencialmente pleno e exclusivo sobre determinado bem (quase sempre, de propriedade), e, de outro, porque o alcance daquele efeito transmissivo seria afinal excessivo, uma limitação contratual do exercício daquele direito em benefício do fiduciante.”[12]   

A combinação destas duas componentes, traduz-se na configuração de um negócio unitário, embora atípico, a fiducia cum creditore, pactum fiduciae válido enquanto emanação do princípio consagrado no nosso ordenamento jurídico de autonomia da vontade dos contraentes (expressamente permitido pelo disposto no artº 405 do C.C.).

Sujeito, no entanto, na sua conformação, aos requisitos gerais dos demais negócios jurídicos: a conformidade com a lei, a ordem pública e os bons costumes e a ausência de vícios do contrato, nomeadamente os decorrentes da usura (cfr. o disposto nos artºs 280nº2, 281 e 282 nº1 do C.C.) 

Nestes termos, pode-se definir o negócio de alienação em garantia, ou fidutia cum creditore como aquele em que um determinado sujeito (prestador da garantia/fiduciante) transmite a outro (beneficiário da garantia/fiduciário) a titularidade de um bem ou de um direito, com a finalidade de garantia de um crédito, ficando o beneficiário da garantia obrigado, uma vez extinto essa finalidade, a retransmitir-lhe a titularidade daquele bem.[13] Trata-se, conforme referido pela decisão recorrida, em princípio e desde que não afectado por vícios que determinem a sua nulidade ou invalidade, de negócio válido.

A diferença entre a função típica do negócio ou negócios celebrados e o fim fiduciário que se visou, não obsta de per si à validade do negócio, mas como refere PAIS DE VASCONCELOS[14] da “divergência entre o fim fiduciário da compra e venda e a função económico-social típica da compra e venda, que é uma transmissão onerosa e definitiva da propriedade, só se pode concluir que o negócio em questão não é afinal qualificável como uma verdadeira compra e venda, mas antes um negócio atípico, de tipo modificado, construído sobre o tipo de referência da compra e venda, em relação ao qual as partes estipularam uma modificação consistente precisamente no fim fiduciário. O negócio é válido, embora não como compra e venda, mas antes como negócio atípico, com fundamento na autonomia privada”

Que o negócio celebrado entre as partes se subsume a uma venda fiduciária em garantia de um crédito, decorre dos factos referidos nos pontos 9 a 11. Destes decorrem as componentes que integram a fiducia cum creditore, ou seja:

- a existência de um crédito do fiduciante sobre o fiduciário, decorrente da entrega da quantia de € 30.000,00 pela R. ao A, para que este extinguisse uma execução em curso contra si e a hipoteca incidente sobre o imóvel;

- a transmissão do bem como garantia deste crédito, decorrente do facto nº 12, ou seja o acordo alcançado entre A. e R. para, como contrapartida da entrega da quantia de € 30 000,00, no próprio dia de realização do pagamento da quantia exequenda, e consequente distrate da hipoteca do imóvel do autor, celebrar escritura pública de compra e venda do imóvel em causa;

- a prossecução de um interesse do fiduciante, mediante acordo corporizado na celebração de um arrendamento do imóvel por prazo determinado e não renovável, mediante o pagamento de uma renda; 

- a obrigação de, uma vez extinta a finalidade de garantia, ser retransmitida a titularidade do bem, mediante a opção de compra deste imóvel a ser exercida no prazo de dois anos, pelo A., fixando-se logo o valor de recompra.

Nesta medida, embora formalmente celebrados dois contratos distintos e tipificados no nosso ordenamento civil, o contrato de compra e venda de imóvel e o contrato de arrendamento embora este reunindo elementos de um outro tipo contratual a opção de compra, permitidos pelo disposto no artº 405 nº2 do C.C., ambos visaram uma única finalidade e assim integram, um único negócio atípico, a venda fiduciária em garantia do pagamento de um crédito do fiduciário sobre o fiduciante.

Como se refere no Ac. de 28/06/17, já citado, “por definição, o fiduciário fica investido numa propriedade temporária, porque sujeita a um dever contratual de transferir para a esfera do fiduciante os bens que integram o acervo fiduciário” sujeito sempre a uma possibilidade de abuso, também identificado por ANDRÉ FIGUEIREDO (ob. cit, págs. 77) como o risco fiduciário, consistente na recusa de retransmissão do bem ou na sua alienação a terceiro. No entanto, por via do dever obrigacional de retransmissão do bem para o fiduciante, a situação jurídica emergente do negócio fiduciário é, de um prisma puramente económico, neutra para o fiduciário, uma vez que sobre o fiduciário recai a obrigação de fazer repercutir sobre o fiduciante não só os benefícios, mas igualmente as perdas associadas ao bem fiduciário (FIGUEIREDO, ob. cit., págs. 91.).

Questão diversa se coloca quando esta neutralidade económica se não verifica ab initio, decorrente de um abuso dos termos acordados no pactum fiduciae, dele resultando um desequilíbrio das prestações devido à inferioridade de uma das partes, em geral o fiduciante, conhecida e aproveitada pelo fiduciário e que assim constitui um acordo usurário, questão que constitui o cerne deste recurso e que passaremos a apreciar.

Se o pactum fidiciae constitui um acordo usurário.

No caso em apreço, a primeira instância considerou que o negócio celebrado é anulável por constituir negócio usurário, face aos contornos deste negócio que deu por apurados sob os pontos 9 a 15. Considerou assim ser evidente “a desproporcionalidade entre as prestações a que correspondem as respectivas obrigações de autor e ré, na medida em que não só o preço pago pelo imóvel se mostra muito baixo, face às suas características e por referência, desde logo, ao seu valor patrimonial, como a ré ainda aumentou essa vantagem, já de si elevada, ao receber, pela cedência do gozo daquele ao próprio vendedor, uma renda mensal no valor de € 250,00 ao longo de dois anos e, ao fim deste período, fazer depender a sua reaquisição por aquele do pagamento de uma quantia correspondente a uma valorização de cerca de 33%, relativamente ao valor pelo qual a ré o havia comprado (…)”, considerando assim “manifesta a excessividade do proveito conseguido com a realização do negócio, cuja razão de existência não tem outra justificação que não a situação de fragilidade e desespero em que o autor se encontrava, com receio de perder definitivamente o imóvel, e da qual a ré se aproveitou de forma consciente.

Com efeito, apenas esse estado de aflição e absoluta necessidade de encontrar uma qualquer solução que evitasse a venda do imóvel na execução e, bem assim, o fito de não perder definitivamente a sua propriedade, cuja possibilidade ficou acautelada com o acordo realizado, podiam ter levado o autor a aceitar uma solução tão desastrosa em termos económicos.

Por outro lado, bem demonstrativo da atitude de aproveitamento da ré é, em primeiro lugar, o facto de esta ter feito o negócio paralela e extrajudicialmente, conseguindo assim obter um benefício relativamente ao valor pago pelo imóvel que não alcançaria através de uma eventual compra no processo de execução, sendo este o procedimento normal a seguir se estivesse de absoluta boa-fé e sem segundas intenções. E, para além disso, a recusa em aceitar que a aquisição do imóvel fosse feita, no termo do prazo acordado, pelos filhos do autor, para assim acumular maior vantagem económica, é mais um sinal que reforça aquela sua atitude.”

O regime da anulabilidade previsto no artº 282 e segs. do C.C. constitui uma limitação ao princípio da liberdade contratual no que se reporta à fixação do conteúdo do contrato, visando proteger a parte contratual mais fraca, contra quem dele pretenda retirar benefícios considerados excessivos ou injustificados, conhecendo e aproveitando-se dessa fragilidade. Mas, como nos ensina HÖRSTER[15]a finalidade do art. 282º não é-na senda de um “pensamento de equidade geral”- permitir aos incautos, aos imprevidentes e aos despreocupados, depois de estes terem feito um mau negócio ao agirem dentro dos parâmetros da autonomia privada, desvincularem-se agora do mesmo e das suas obrigações mediante a invocação de uma situação de inferioridade, alegadamente existente. Agir com base na autonomia privada significa assumir a liberdade com responsabilidade e o artº 282 do C.C. não serve para alterar essa correlacção.”    

Exige-se para que se verifique a usura, o preenchimento dos seguintes pressupostos subjectivos:

-verificação de uma situação de inferioridade decorrente de uma necessidade económica, política, social ou habitacional que determine a obtenção da prestação pecuniária, com vista a libertar-se destas dificuldades; ou

-um estado de inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter; e

-que essa situação de inferioridade, seja conhecida do usurário;

-que este se aproveite conscientemente dessa situação de inferioridade, com vista à obtenção de benefícios excessivos;

Preenchidos estes pressupostos subjectivos, exige-se para que se verifique a usura o preenchimento de um critério objectivo consistente na desproporção excessiva ou injustificada entre o benefício obtido e a contraprestação, a resolver casuísticamente.

 Que a situação de necessidade económica e o desespero do A., existiam decorre dos pontos 2 a 8.

Que esse estado foi determinante para a obtenção de uma prestação que o pudesse libertar dessa necessidade económica consistente na possibilidade de perda eminente do imóvel, pela sua venda em sede executiva, decorre dos pontos 8, 9 e 12.

O conhecimento por parte da R. desse estado de necessidade económica premente, resulta dos pontos 9 a 11.

Para além destes requisitos subjectivos é necessário que exista um aproveitamento ilícito do estado de inferioridade da contraparte e um benefício excessivo por parte do contraente que se aproveita deste estado.

A primeira instância, conforme acima referido, considerou que este benefício excessivo e usurário decorria das próprias condições acordadas, ou seja pelo preço fixado como valor de aquisição do imóvel inferior ao valor patrimonial (cerca de ½), pelo valor fixado pela opção de compra que correspondia a uma valorização do imóvel em dois anos de 46,7% que, embora inferior também ele ao valor patrimonial do imóvel constituiria um benefício excessivo do fiduciário, a que se somaria ainda o valor pago pela fruição do imóvel e que corresponderia ao valor de 10% anuais sobre crédito aqui garantido.

A esta alegação opõe a R. que o seu negócio de compra e venda visa o lucro, que o A. retirou também benefícios do negócio e que, a ser-lhe concedido crédito bancário, os juros peticionados seriam também muito superiores.

Consistindo a sua finalidade oculta a garantia do pagamento de um crédito de que era credor o fiduciário e devedor o fiduciante, é manifesto que o montante acordado para a satisfação deste crédito e para a retransmissão da propriedade, mediante o exercício da opção de compra, excede a remuneração normal aplicável aos mútuos, prevista no artº 1146 do C.C.

No entanto, conforme se refere no já citado Ac. do STJ de 28/06/17, em situação muito próxima da ora tratada, “estaríamos perante um contrato usurário, por força do disposto no nº1, do art.1146º, o qual não pode ser anulado, contra o que se preceitua no citado art.282º. (…) Nada impedia, pois, que as autoras tivessem formulado o pedido de redução da taxa de juros aos limites fixados no nº1, do art.1146º, ao abrigo do disposto no nº3, do mesmo artigo.”

Ou seja, a simples estipulação de um valor de restituição do capital mutuado superior à taxa de juro permitida por lei, não constitui por si só, fundamento de anulabilidade, se desacompanhado dos demais requisitos subjectivos e objectivos que exige o artº 282 do C.C.

No entanto, estes requisitos verificam-se no caso em apreço, decorrendo o aproveitamento e o benefícío excessivo dos demais termos do negócio.

Conforme considerou a primeira instância, o bem alienado em garantia excede em quase 100% o valor do crédito, excedendo o valor fixado para recompra este valor em 47% a que acrescem ainda as prestações periódicas fixadas a título de renda do imóvel que correspondiam a uma taxa de juro de 10% ao ano, ou seja a restituição do capital seria acrescida de valor equivalente a 67%, num curto prazo de dois anos.

Por último, a obrigação de revenda do fiduciário estava dependente do pagamento pontual destas quantias mensais pelo devedor fiduciante, conforme estipulação inserta na clausula 11ª do denominado “contrato de arrendamento” e extinguia-se com a sua cessação por qualquer meio.

 Tratam-se de clausulas que oneram excessivamente o fiduciante, ao qual deu o seu acordo apenas devido à sua situação de inferioridade, que era bem conhecida do fiduciário. Constituem um benefício que excede o âmbito da finalidade da garantia do crédito, para o fiduciário.

Assim sendo, decorrendo dos factos provados um flagrante e desproporcionado desequilíbrio das prestações, com exploração e aproveitamento de uma situação de inferioridade do fiduciante, assiste-lhe, ao abrigo do disposto no nº2 do artº 282 do C.C., o direito à anulabilidade do contrato. Podendo o R. opor-se á anulabilidade declarando aceitar a modificação do contrato, não pode no entanto, vir opor-se apenas em sede de recurso, mediante a formulação de um pedido que, por não apreciado pelo tribunal a quos, está vedado a este tribunal conhecer.


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DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes que compõem a 3ª secção desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo recorrente e, em consequência manter nos seus precisos temos a decisão recorrida.
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As custas fixam-se pelo R. (artº 527 nº1 do C.P.C.)

Coimbra 05/04/22



[1] Ac. STJ de 01.10.2015, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ana Luísa Geraldes; Ac. STJ de 14.01.2016, proc. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ de 11.02.2016, proc. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ, datado de 19/2/2015, proc. nº 299/05, Tomé Gomes; Ac. STJ de 22.09.2015, proc. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção, Pinto de Almeida; Ac. STJ, datado de 29/09/2015,proc. nº 233/09, Lopes do Rego; Acórdão de 31.5.2016, Garcia Calejo, proc. nº 1572/12; Acórdão de 11.4.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 449/410; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Clara Sottomayor, proc. nº 1060/07.
[2] Ac. STJ. de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 861/13.3TTVIS.C1.S
[3] Ac. do STJ de 05/09/18, relator Gonçalves Rocha, proc. nº 15787/15.8T8PRT.P1.S2; no mesmo sentido vide Ac. do S.T.J. de 27/09/18, relator Sousa Lameira, proc. nº 2611/12.2TBSTS.L1.S1.
[4] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª ed., 2017, Almedina, pág. 155/156.
[5] Recursos no Novo Código de Processo Civil, ob. cit., pág. 157. No mesmo sentido vide ainda AMÂNCIO FERREIRA, Manual de Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 170; LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, 1999, pág. 466 e LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 62.
[6] Ac. do STJ de 16/03/11, proferido no Proc. nº 279/2002.E1.S1, relator Lopes do Rego, disponível in www.dgsi.pt.
[7] Proferido no Proc. nº 1602/19.7T8CTB.C1, relator Barateiro Martins, disponível in www.dgsi.pt.
[8] Direito Processual Civil Declaratório, edição de 1982, Vol. III, pág. 270.
[9] Pactum fiducia com a finalidade de gestão de bens por conta alheia mediante a constituição de um depositum ou comodatum (cfr. JUSTO, António dos Santos – “Direito Privado Romano II (Direito das Obrigações)”, in Studia Iuridica, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pág. 40).
[10] Vide  a título de mero exemplo os Acs. do STJ de Ac. do STJ de 11-5-2006, proc. nº06B1501, relator Salvador da Costa, de 16-3-11, proc. nº279/2002.E1.S1, relator Lopes do Rego, de 30-9-2014, proc. nº 844/09.8TVLSB.L1.S1, relator Maria Clara Sottomayor e de 28/06/2017, proc. nº 1626/12.5TBMT.J.L1.S1, relator Roque Nogueira e de 14/01/21, proc. nº 2603/17.5T8STB.E1.S2, relator Tomé Gomes, todos disponíveis no sítio www.dgsi.pt
[11] FIGUEIREDO, André, O Negócio Fiduciário Perante Terceiros, Com Aplicação Especial na Gestão de Valores Imobiliários, Almedina, 2014, pág. 66/67.  
[12] Ibidem, pág. 68/69.
[13] PIRES, Catarina Monteiro Alienação em Garantia, Almedina 2009, pág.99.
[14] PAIS DE VASCONCELOS Pedro, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 2019, pág. 558.
[15] HÖRSTER, Heinrich Ewald, A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 9ª Reimpressão, pág. 557.