Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ISAÍAS PÁDUA | ||
Descritores: | LETRA/LIVRANÇA EM BRANCO SEU CONTEÚDO NECESSÁRIO PACTO DE PREENCHIMENTO FORMA CRÉDITO AO CONSUMO RESOLUÇÃO DO CONTRATO | ||
Data do Acordão: | 09/14/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO LOCAL CÍVEL DA COVILHÃ – JUIZ 1 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTº 20º, Nº 1 DO DL Nº 133/2009, DE 2/06. | ||
Sumário: | 1. Uma letra ou livrança em branco corresponde ao documento (sujeito ao modelo normalizado de letra ou, ao menos, que contenha a palavra “letra” ou “livrança”) que, não contendo todas as menções obrigatórias essenciais previstas nos artigos 1º ou 75º da LULL, possua já a assinatura de, pelo menos, um dos signatários cambiários (com a consciência e a intenção de assumir uma vinculação cambiária), acompanhado de um acordo ou pacto de preenchimento futuro das menções em falta. 2. Por sua vez, o pacto de preenchimento pode definir-se como o acto pelo qual as partes no negócio cambiário ajustam os termos ou as condições em que deve vir a ser posteriormente completado o título de crédito, definindo a obrigação cambiária, ou seja, as condições relativas ao seu conteúdo, nomeadamente no que concerne ao montante, à data do seu vencimento ou ao lugar de pagamento. 3- Acordo de preenchimento que não está sujeito a forma, podendo ser expresso (por escrito ou acordo verbal) ou tácito. 4- Intervindo no pacto de preenchimento e encontrando-se o título no domínio das relações imediatas, pode o executado/embargante/subscritor ou avalista opor ao exequente/beneficiário a violação desse preenchimento, ou seja, a exceção material (perentória) do preenchimento abusivo do título, sendo sobre o opoente que incumbe/incide o ónus de alegação e prova desse abusivo preenchimento. 5- Como decorre da leitura do artº. 20º, nº. 1, DL nº. 133/2009, de 02/06, num contrato de crédito ao consumo, e em caso de incumprimento do mesmo pelo consumidor, o credor só pode invocar a perda do benefício do prazo ou resolver o contrato no caso de cumulativamente se verificarem os seguintes requisitos/pressupostos: a) A falta de pagamento de duas ou mais prestações sucessivas/consecutivas; b) Que o montante total dessas prestações em falta exceda 10% do total do crédito; c) Ter antes o credor interpelado, sem êxito, o consumidor devedor para cumprir, nas condições de tempo e modo (com advertência admonitória) referidas na al. b) daquele normativo legal. 6- E daí ressalta que nos contratos de crédito ao consumo, em caso de incumprimento por parte do consumidor, o credor não pode invocar a perda do benefício do prazo e resolver o contrato quando o valor total das prestações não realizadas ou em falta não ultrapasse 10% do valor total do crédito, mesmo que haja mais de duas prestações não realizadas/pagas. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra I- Relatório 1. No Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco – Juízo Local Cível da Covilhã – correm termos (sob o nº. 913/19.6T8CVLA) os autos de execução para pagamento de quantia certa (€20.960,01), sob a forma de processo ordinário, instaurados (no ano de 2019) pelo exequente, Banco P..., S.A. contra as executadas, M... e A..., tendo como título executivo uma livrança subscrita e entregue – em branco, contendo apenas as suas assinaturas - pelas últimas (em favor daquele/sacador) na sequência de celebração de um contrato de concessão de crédito para aquisição de veículo automóvel. 2. As executadas opuseram-se a tal execução, mediante a dedução (em 08/01/2020) de embargos. Embargos esses que, em síntese, fundamentaram na seguinte matéria alegada: Na sequência do estipulado no aludido contrato (no qual as executadas/embargantes se comprometeram reembolsar o mutuário em prestações mensais) o exequente só poderia resolver o mesmo, e preencher a livrança dada à execução, em caso de incumprimento definitivo das mutuárias, o que só deveria suceder, além do mais, quando o montante das prestações em dívida excedesse 10% do valor total do capital mutuado. O que não aconteceu no caso presente, pois que quando o exequente a tal procedeu o montante das prestações então em dívida não excedia tal percentagem de valor. Pelo que invocaram, com base em tal fundamento, ter havido, por parte do exequente, violação do pacto que fora acordado para o preenchimento da livrança dada à execução, que leva à sua nulidade e, consequentemente, à inexistência de título executivo (cambiário). Terminaram por pedir a procedência dos embargos. 3. Contestou o exequente, defendendo-se por impugnação motivada, alegando em síntese: Que quando o exequente comunicou às executadas (depois de prévia e atempadamente as ter interpelado para cumprir as obrigações em falta, advertindo-as para as suas consequências e para o preenchimento da livrança) a resolução do contrato, com o vencimento imediato/antecipado das prestações em dívida, as mesmas apenas haviam pago 10 das 108 prestações a que se haviam contratualmente obrigado (no montante de € 278,11 cada), encontrando-se então por pagar parte da 11ª., e a totalidade das 12ª., 13ª., 14ª., 15ª. e 16ª. (sendo que quando aquela interpelação teve lugar a referida mora ocorria já em relação àquelas primeiras cinco prestações, num total de € 1.199,28). E sendo assim, havia fundamento legal e contratual para a resolução do aludido contrato e para o preenchimento da livrança dada à execução, nos termos em que o fez. Pelo que pediu a improcedência dos embargos. 4. No despacho saneador, a sra. juíza a quo - entendendo disporem já os autos dos elementos necessários para conhecer da causa, sem necessidade de produção de mais prova – proferiu despacho saneador/sentença, no final da qual decidiu julgar procedentes os embargos, determinando, em consequência, a extinção da execução. 5. Inconformado com tal sentença, o exequente dela apelou, tendo concluído as suas alegações de recurso nos seguintes termos: « A) O presente recurso tem como objecto a matéria de facto e, consequentemente, o respetivo tratamento ao nível da matéria de direito, já que o tribunal recorrido incorreu em manifesto erro de julgamento e de apreciação que, consequentemente, conduziu auma má aplicação do direito. B) O tribunal a quo considerou não verificada uma das condições de que dependia o vencimento antecipado das prestações: que o montante das prestações em dívida excedesse os 10% do montante total do crédito. C) Ao fazê-lo, salvo diverso entendimento, o tribunal a quo cometeu um erro na apreciação da norma de Direito aplicável ao presente caso, designadamente, o n.º 1 do artigo 20 do DL 133/2009. D) Mal andou o tribunal a quo nesta matéria, sendo algo com o que não se pode concordar. E) Segue-se nesta matéria o entendimento do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.05.2015 do Relator Ilídio Sacarrão Martins disponível em in www.dgsi.pt onde se dispõe “que seja dada protecção ao consumidor que deixe de pagar duas prestações sucessivas que exceda 10% do montante total do crédito, mas já não se justifica que subsista a mesma protecção relativamente àquele consumidor que deixe de pagar mais do que duas prestações sucessivas, qualquer que seja o montante dessas prestações não pagas. Este consumidor relapso, reincidente, não merece aquela protecção quanto à perda do benefício do prazo e à resolução do contrato.” F) O facto das 5 (cinco) prestações vencidas, não pagas e sucessivas não representarem mais do que 10% do montante total do crédito concedido, não significa no caso em concreto que, não tivesse havido perda do benefício do prazo ou a possibilidade da resolução do contrato, face às comunicações quer de interpelação quer de resolução que o Recorrente fez (elencadas pelo tribunal a quo na factualidade relevante para a decisão da causa), concedendo, respetivamente o prazo suplementar de 20 (vinte) dias em cada uma das comunicações. G) Ora da redacção da alínea a) depreende-se que a mesma não contém duas condições cumulativas mas apenas uma: “falta de pagamento de duas prestações sucessivas que excedam 10% do montante do crédito”, entendendo-se que a falta de pagamento de 3 prestações seguidas - independentemente do seu quantum proporcional face ao montante do crédito concedido - permitirão a resolução do contrato desde que cumprido o formalismo constante da alínea b). H) O referido contrato foi incumprido. I) Perante o incumprimento foi o contrato legalmente resolvido pelo Recorrente. J) Deverá então ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, sendo em consequência substituída por outra que condene ambos as Recorridas ao pagamento da quantia de € 20.960,01 (vinte mil, novecentos e sessenta euros e um cêntimo) acrescidos dos respectivos juros calculados à taxa contratual, desde a resolução contratual, operada em 25.05.2019 até efectivo e integral pagamento. »
6. Contra-alegaram as executadas/embargantes, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção do julgado, e após concluírem nos seguintes termos: « 1- O presente recurso foi interposto do despacho saneador sentença que julgou procedentes os embargos de executados para pagamento da quantia exequenda de 20.960,01€, titulada por um livrança preenchida e emitida pela embargada e subscrita pelas embargantes, por considerar a inexistência de título executivo, por nulidade da livrança em virtude do seu preenchimento abusivo em violação do respetivo pacto de preenchimento; 2- A recorrente entende porém que as embargantes incumpriram definitivamente o contrato o que permitiu a sua resolução, não ocorrendo a alegada violação do pacto de preenchimento da livrança, inexistindo portanto a alegada nulidade da mesma, que, por isso, constitui título executivo válido; 3- A embargante e a sentença recorrida têm o mesmo entendimento que, quanto a tal matéria de incumprimento e resolução do contrato de crédito, não foram cumpridas as cláusulas contratuais gerais outorgadas pelas partes, bem como a legislação aplicável (Decreto-Lei 133/09, de 2 de Junho - contratos de credito aos consumidores), pelo que o mesmo não podia ser resolvido, como considera a recorrente. 4- Considerando o teor da cláusula 15º das condições gerais do contrato, não pode haver dúvidas que o incumprimento contratual só poderá ocorrer pela falta de pagamento de duas ou mais prestações, quando o valor em conjunto das prestações incumpridas exceda 10% do valor total do crédito. 5- Sendo o montante do crédito no valor de 21.954,31, torna-se claro que o contrato só poderia ser resolvido pela embargada por incumprimento dos mutuários quando tal incumprimento ultrapassa-se o valor de 2.194,43€, correspondente a 10% daquele valor, mesmo tratando-se de mais de duas prestações em atraso. 6- Por sua vez, segundo o pacto de preenchimento da livrança, o banco ora exequente só poderia proceder ao preenchimento da livrança na sequência da resolução do contrato, resolução que por sua vez só era possível com o incumprimento do mesmo, nas condições acordadas naquele contrato, o que não ocorreu. 7- Deste modo a ora exequente violou o respetivo pacto de preenchimento da livrança, o que, necessariamente, acarreta a nulidade da livrança dada à execução (art. 10º da LULL) e a inexistência do título executivo. 8- Deve por isso o presente recurso considerar-se improcedente mantendo-se integralmente a sentença do tribunal da 1ª instância.. »
7. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir. II- Fundamentação A) De facto. Pelo tribunal da 1ª. instância foram dados como provados os seguintes factos: ... B) De direito. 1. Do objeto do recurso. Com sabido, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, 608º, nº. 2, e 852º do CPC). Ora, calcorreando as conclusões das alegações do recurso da exequente/apelante a única questão nelas colocadas traduz-se em saber se a exequente ao preencher a livrança dada à execução violou o pacto/acordo que para o efeito havia sido estabelecido com as executadas e, em caso afirmativo, das consequências jurídicas daí resultantes. O tribunal a quo, na sentença recorrida – em entendimento perfilhado pelas executadas/embargantes -, concluiu assim. Conclusão a que chegou depois de, em síntese, considerar que a referida livrança foi entregue (em branco, apenas por elas subscritas) pelas executadas/embargantes ao exequente/embargado na altura da celebração do contrato de concessão de crédito por este àquelas, com vista à aquisição de um veículo automóvel pelas mesmas, destinando-se a mesma, conforme o acordado entre as partes outorgantes, a garantir o cumprimento por aquelas das obrigações assumidas através do aludido contrato, e que apenas devia ser preenchida em caso de um incumprimento desse contrato pelas mesmas. Porém, estando-se perante um contrato de crédito ao consumo, entendeu o referido tribunal que o mesmo só poderia, face ao estatuído no artº. 20º, nº. 1, al. a), do DL nº 199/2009, de 02/06, ser resolvido, com perda do benefício do prazo, pelo ora exequente se o seu incumprimento pelas ora executadas se reportasse à falta de pagamento de duas ou mais prestações sucessivas (a que as mesmas se obrigaram) cujo valor excedesse 10% do total do credito concedido, o que não ocorria com as prestações em falta quando o exequente interpelou as ora executadas para proceder ao seu pagamento e nem mesmo quando subsequentemente procedeu à resolução do contrato, provocando o vencimento imediato das prestações futuras, já anunciado como cominação, na falta desse pagamento, naquela interpelação. E sendo assim entendeu o tribunal não poder, com base nesse incumprimento, ter resolvido o contrato (por não se verificarem preenchidos os pressupostos legais para o efeito) e ter procedido ao preenchimento da referida livrança, o que fez, assim, de forma abusiva. Discorda o exequente/apelante de tal entendimento, opinando que encontrando-se naquela altura as executadas em falta de pagamento de mais de duas prestações (no caso em cinco) não é de exigir (também), numa interpretação atualista daquele citado normativo legal, que montante total delas exceda 10% do total do crédito concedido. Apreciemos. Como é sabido, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam os fins e os limites da ação executiva (artº. 10º, nº. 5, do CPC). O título executivo – que, como se sabe, não se confunde necessariamente com a causa de pedir -, enquanto documento certificativo da obrigação exequenda, assume, assim, uma função delimitadora (por ele se determinando o fim e os limites, objetivos e subjetivos), probatória e constitutiva, estando sujeito ao princípio da tipicidade. Todavia, não se confundido com a causa de pedir e nem sendo conceitos necessariamente coincidentes, costuma-se, porém, ainda afirmar que, como pressuposto processual específico da ação é executiva, o título é, grosso modo, uma condição e suficiente da mesma. O exequente deu à execução, a que se reportam os presentes autos, como título executivo, uma livrança (a qual, como título de crédito cambiário que é, figura, como é sabido, entre os títulos de executivos tipificados, isto é, dotados de força executiva – cfr., 703º, nº. 1, al. c), do NCPC, e 75º LULL). E fê-lo apresentando-o na sua função natural de documento cartular ou cambiário, ou seja, enquanto título de crédito de natureza cambiária, e portanto enquanto um título de crédito próprio, (Cfr. ainda a propósito, o prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º., Coimbra Editora, 1999, pág. 90” e in “A Acção Executiva, 5ª ed., Coimbra Editora, pág. 59”; Amâncio Ferreira, in “Curso de Processo de Execução, 2005, 8ª ed., Almedina, pág. 35” e o Ac. do STJ, de 12/09/2019, proc. 125/16. 0T8VLF-A.C1.S1, disponível, em www.dgasi.pt). Grosso modo, pode dizer-se que a livrança é um título (cambiário) à ordem, sujeito a certas formalidades (artºs. 75º e 76º da LULL), pelo qual uma pessoa (o emitente, subscritor ou passador) se compromete, para com outra (o tomador ou beneficiário), a pagar-lhe determinada quantia (cfr., por todos, Abel Pereira Delgado, in “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, Anotada, 4ª. ed. Actualizada, Livraria Petrony, págs. 321/322”). Apresentada em tal veste cartular, e porque a obrigação cambiária é uma obrigação literal e abstrata, que decorre do título que a incorpora, o credor que exige o respetivo pagamento não carece, em princípio, de invocar a sua causa (a relação subjacente ou fundamental) e, portanto, poderá limitar-se a apresentar o título que incorpora a obrigação. Porém, encontrando-se a livrança domínio das relações imediatas, o obrigado cambiário pode invocar ou opor ao seu portador/credor qualquer exceção fundada na relação subjacente ou fundamental que com ele havia estabelecido e que terá dado causa à relação cambiária (cfr. artº. 17º e 77º da LULL). Pois bem – encontrando-nos no domínio das relações imediatas -, foi isso que, in casu, fizeram as executadas/embargantes, que subscreveram (e entregaram em branco ao exequente) a aludida livrança dada à execução, ao invocarem a exceção de seu preenchimento abusivo por parte do exequente (por violação de pacto/acordo de preenchimento que entre eles havia sido estabelecido para o efeito). Vem sendo cada vez mais usual, na nossa hodierna sociedade mercantil, o recurso às chamadas letras/livranças em branco, por forma a facilitar o comércio, como forma de aumentar a garantia daqueles (vg. instituições financeiras ou outras) que vão creditando, ao longo certo período temporal, a favor de outrem, quantias em dinheiro cujo concreto montante não fica logo pré-definido (vg. contratos de abertura de créditos em conta-corrente) ou através de fornecimento de bens cujo pagamento (vg. através de prestações) se protela no tempo. A admissibilidade da letra ou da livrança em branco, apesar de não estar expressamente contemplada na respetiva Lei Uniforme (LULL), é indiscutida à luz do preceituado no artigo 10º da citada LULL. Segundo este inciso “Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave.” Como refere o prof. Ferrer Correia, é o próprio artigo 10º da LULL a admitir (ao menos, implicitamente) que a letra (ou a livrança – cfr. artigo 77º da LULL) possa ser emitida ou passada em branco, isto é, sem conter, desde logo, os requisitos essenciais previstos nos artigos 1º (letra) e 75º (livrança), desde que a mesma venha a ser posteriormente preenchida nos termos fixados no artigo 1º (e no artigo 75º, tratando-se de livrança), passando então, após o preenchimento desses elementos, a produzir os efeitos próprios do título de crédito. Em suma, como escreve o ilustre professor (in “Lições de Direito Comercial, Lex, Reprint, 1994, pág. 482/483”) “pode, deste modo, uma letra ser emitida em branco; é óbvio, porém, que a obrigação que incorpora só poderá efectivar-se desde que no momento do vencimento o título se mostre preenchido. Se o preenchimento se não fizer antes do vencimento, então o escrito não produzirá efeito como letra, de harmonia com os arts. 1º. e 2º..” Com efeito, nenhum obstáculo existe à perfeição da obrigação cambiária quando a livrança (ou letra), incompleta, contém uma ou mais assinaturas destinadas a fazer surgir tal obrigação, ou seja, quando as assinaturas nela apostas exprimam a intenção dos respetivos signatários de se obrigarem cambiariamente, quer se entenda que a obrigação surge apenas com o preenchimento, quer se entenda que nasce antes, ou seja, logo no momento da emissão, a ele retroagindo a efetivação constante do título por ocasião do preenchimento. Por conseguinte, como refere J. Engrácia Antunes (in “Títulos de Crédito – Uma Introdução”, Coimbra Editora, 2ª ed., 2012, pág. 65”), a letra (ou livrança) em branco corresponde ao documento (sujeito ao modelo normalizado de letra ou, ao menos, que contenha a palavra “letra” ou “livrança”) que, não contendo todas as menções obrigatórias essenciais previstas nos artigos 1º ou 75º da LULL, possua já a assinatura de, pelo menos, um dos signatários cambiários (com a consciência e a intenção de assumir uma vinculação cambiária), acompanhado de um acordo ou pacto de preenchimento futuro das menções em falta. (Vide, ainda Jorge Pinto Furtado, in “Títulos de Crédito, Almedina, 2000, pág. 144-145” e Ferrer Correia, in “Ob. cit., pág. 482”. Em sentido oposto, Carolina Cunha, in “Manual de Letras e Livranças”, Almedina, 2016, págs. 168, 170, 171 e 178”, para quem a letra em branco apenas exige a emissão voluntária de um título incompleto - com ou sem pacto de preenchimento -, com intenção de deixar o seu posterior preenchimento a outrem). Nestes termos, o pacto de preenchimento pode definir-se como o ato pelo qual as partes no negócio cambiário ajustam os termos ou as condições em que deve vir a ser posteriormente completado o título de crédito, definindo a obrigação cambiária, ou seja, as condições relativas ao seu conteúdo, como sejam o montante, o vencimento, o lugar de pagamento, etc. (cfr. Abel Pereira Delgado, in “LULL Anotada, Livraria Petrony, 6ª edição, pág. 7”), ou, nas expressivas palavras do Ac. do STJ de 25/05/2017 (proc. n.º 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), como “o contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário, no que respeita aos elementos que habilitam a formar um título executivo, ou que estabelece em que termos se torna exigível a obrigação cambiária.” Acordo de preenchimento que não está sujeito a forma, podendo ser expresso (por escrito ou acordo verbal) ou tácito (artº. 217º do CC), mormente quando resulta concludentemente do negócio ou relação subjacente à emissão do título (cfr., por todos, Ac. do STJ de 04/05/2004, disponível em www.dgsi.pt. De facto, como resulta do já expendido, a livrança (ou letra) em branco é um título de formação sucessiva, na estrita medida em que, enquanto não se mostrarem preenchidos os seus elementos essenciais previstos no artigo 75º da LULL, a mesma, não obstante a sua emissão, não produz ainda efeitos como livrança. A livrança em branco é, portanto, um documento que pode vir a ser um título de crédito, que aspira a sê-lo desde que os intervenientes hajam assumido essa intenção ou possibilidade futura, mas que no momento da sua emissão em branco não adquire logo essa qualidade e continua a não possuir enquanto aqueles elementos não forem preenchidos. Todavia, uma vez preenchidos esses elementos essenciais, a obrigação cambiária já incorporada no título considera-se constituída (deixando, pois, de ser um título incompleto, destituído de valor cambiário), sem prejuízo da questão atinente aos termos desse (posterior) preenchimento e da sua eventual desconformidade. Diga-se ainda, que existindo pacto/acordo de preenchimento o mesmo deve ser objeto de interpretação à luz dos critérios previstos nos artºs. 236º e ss. do Código Civil. Refira-se, por fim, que vem constituindo entendimento claramente prevalecente entre nós que, por um lado, intervindo no pacto de preenchimento e encontrando-se o título no domínio das relações imediatas, pode o executado/embargante/subscritor ou avalista opor ao exequente/beneficiário a violação desse preenchimento, ou seja, a exceção material (perentória) do preenchimento abusivo do título e que, por outro, é sobre ele que incumbe/incide (nos termos do artº. 342º, nº. 2, do CC), o ónus de alegação e prova desse abusivo preenchimento. Sobre matéria temática acabada de expandir, e no mesmo sentido, vide ainda, entre outros, os Acs. do STJ de 19/06/2019, proc. 1025/18.5T8PRT.P1.S1, - cujo pensamento seguimos de muito perto –; de 13/11/2018, proc. 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1; de 25/05/2017, proc. n.º 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1; de 20/10/2015, proc. 60/10.6TBMTS.P1.S1; e de 08/10/2009, proc. 475/09.2YFLSB, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Como explica Carolina Cunha (in “Ob. cit., págs. 184/186”), o preenchimento abusivo apresenta duas categorias fundamentais de desconformidade por referência à vontade manifestada pelo subscritor do título cambiário. A primeira compreende as discrepâncias consubstanciadas num preenchimento injustificado ou extemporâneo, com destaque para a falta de verificação da ocorrência à qual o completamento do título estava subordinado (tipicamente, a constituição, o vencimento ou o incumprimento de um crédito no seio da relação fundamental) e para a extinção satisfatória da relação fundamental garantida pelo título. A segunda abrange as discrepâncias relacionadas com a configuração das menções introduzida no título, com destaque para a inserção de uma quantia superior à que decorre dos acordos realizados. Além de facilitar a compreensão do fenómeno, esta divisão tem consequências práticas assinaláveis: só no primeiro grupo de hipóteses a invocação bem sucedida da exceção de desconformidade significa o afastamento da pretensão cambiária; já no segundo grupo apenas conduz à reconfiguração da pretensão cambiária de modo a contê-la dentro dos limites excedidos. (cfr, ainda, Ac. da RC de 14/01/2020, proc. 4211/11.5TBLRA-A.C1, disponível em www.dgsi.pt). Aqui chegados, e tendo presentes as considerações expostas sobre as livranças/letras e em branco e os termos gerais a que deve obedecer o seu preenchimento, voltemo-nos, agora, mais incisivamente para o caso em apreço, no sentido de dar resposta à questão acima colocada. A livrança dada à execução tem como relação causal ou subjacente um contrato celebrado entre o exequente e as executadas, através do qual o primeiro concedeu às segundas um crédito destinado a financiar a aquisição por parte destas de um veículo automóvel, o qual deveria ser pago, ao longo do tempo, em prestações mensais, sendo que nos termos do clausulado em tal contrato (por ocasião da celebração do mesmo e como garantia do cumprimento das obrigações nele assumidas), foi entregue então pelas executadas ao exequente a referida livrança, contendo apenas nelas apostas as assinaturas das mesmas. Todos os demais elementos dela insertos (vg. data de vencimento, e montante a pagar por ela titulada) foram preenchidos pelo exequente. É, assim, inolvidável que a livrança dada à execução foi entregue em branco ao ora exequente, na medida em que, não obstante se encontrar assinada (pelas executadas, emitentes/subscritoras), se apresentava então por preencher nos demais campos (vg referentes às datas da sua emissão e de vencimento e ao seu montante/valor). Como inolvidável é que quando foi dada à execução se encontrava já integralmente preenchida, nomeadamente naqueles seus restantes campos que se encontravam em branco aquando da sua entrega - o que foi levado a efeito pelo exequente -, e, portanto, com todos os elementos/requisitos essenciais descritos no artº. 75º da LULL, e como tal apta a produzir, na sua plenitude, os seus efeitos como título de crédito cambiário. Sendo igualmente inquestionável que - encontrando-se o referido título no domínio das relações imediatas e tendo sido estabelecido um pacto escrito quanto ao seu preenchimento – as executadas/embargantes podem invocar/opor contra o exequente a exceção material do seu preenchimento abusivo. Posto isso, será que, in casu, o exequente preencheu de forma abusiva a dita livrança? Vejamos (à luz das sobreditas considerações de cariz teórico-técnico e dos factos apurados, e do contrato junto aos autos). O referido contrato de crédito (relação causal/subjacente) foi celebrado em 19/12/2017, e através dele o banco exequente mutuou, para os sobreditos fins, às executadas a quantia de €21.954,31. Nele ficou, porém, acordado que o montante total a pagar pelas ora executadas/embargantes ao banco ora exequente/embargado seria de €30.035,88 (trinta mil e trinta e cinco euros e oitenta e oito cêntimos), o qual deveria ser liquidado em 108 (cento e oito) prestações de € 278,11 (duzentos e setenta e oito euros e onze cêntimos) cada, vencendo-se a primeira prestação em 20/02/2018 e a última em 20/01/2027. Para garantia (integral das obrigações decorrentes deste contrato, as executadas/embargantes entregaram ao exequente/embargado a sobredita livrança em branco, por si subscrita, e que se destinava a ser preenchida pelo último, no caso de incumprimento do sobredito contrato, ao abrigo da autorização de preenchimento constante da cláusula 9.ª das Condições Gerais do contrato (às quais no referiremos sempre que doravante sempre que doravante mencionarmos somente à clausula). - Dispõe-se na cláusula 12. (Mora). “1. Que o (s) Mutuário(s) fica(m) constituído(s) em mora caso não efetue(m) o pagamento de qualquer prestação de capital ou de juros vencidos e não pagos. (…) 7. Verificada a mora e duas prestações sucessivas, o Banco informará o(s) Mutuário(s), por qualquer modo escrito, de que possui um prazo suplementar de 15 (quinze) dias de calendário, contados da data de vencimento da 2ª. prestação, para proceder ao pagamento de todas as quantias em mora, acrescidas de taxa de juros moratórios e eventuais encargos ou indemnizações devidas.” - Dispõe-se na cláusula 15. (Incumprimento definitivo) “1. Verifica-se incumprimento por parte do(s) Mutuário(s) quando, cumulativamente: i) se encontrar em falta o pagamento de, pelo menos, duas Prestações sucessivas, desde que o valor em conjunto das prestações em falta exceda 10% do montante total do crédito; e II) o(s) Mutuário(s) não proceda(m) ao pagamento das Prestações em atraso, no prazo concedido para o efeito pelo Banco nos termos do nº. 7 da cláusula 12º. 2. Com o incumprimento definitivo do Contrato o Banco poderá resolver o Contrato e terá direito a conservar suas as Prestações vencidas e pagas, a receber as vencidas e não pagas, acrescidas de juros moratórios e eventuais encargos ou indemnizações devidas. (…).” - Dispõe-se na cláusula 16. (Resolução) “1. O Banco poderá resolver o Contrato no caso de incumprimento definitivo (…).” Por atrasos no cumprimento das prestações contratadas, as embargantes foram integradas em PERSI (Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento) o qual veio a ser encerrado por falta de resposta. - Por conta do referido contrato as executadas/embargantes apenas liquidaram 10 das 108 prestações contratadas, uma delas através do meio de pagamento acordado (débito direto) e as 9 restantes por multibanco, sem cumprimento pontual da data de vencimento contratualizada (dia 20). - Em face do não pagamento das prestações acordadas, o exequente/embargado interpelou as executadas/embargantes, por carta de 02-05-2019, para procederem, no prazo de 20 dias, (contados até à data limite 22-05-2019), ao pagamento de: (i) Parcial da prestação 11; (ii) Prestação 12; (iii) Prestação 13; (iv) Prestação 14; (v) Prestação 15, num total de € 1.199,28 (mil cento e noventa e nove euros e vinte e oito cêntimos), tendo as cartas sido recebidas no dia 03/05/2019. - Decorrido o prazo concedido sem liquidação daquele montante, o exequente/embargado enviou às embargantes, em 23/05/2019, carta registada a declarar o vencimento antecipado de todas as prestações e procedeu à resolução do contrato e ao preenchimento da livrança nos seguintes termos: “Em virtude do incumprimento descrito, o Banco P... irá proceder ao preenchimento da livrança n.º ..., entregue para garantia das obrigações pecuniárias emergentes do contrato, pela quantia de €20.960,01 (vinte mil novecentos e sessenta euros e um cêntimo).” legais). - As cartas de resolução foram recebidas no dia 25/05/2019. E foi nessas circunstâncias que o exequente preencheu a referida livrança dada à execução (nela apondo, nomeadamente, a data de emissão e de vencimento de 23/05/2019 e a quantia titulada de €20.960,01), após ter resolvido (relação causal/fundamental subjacente à entrega da livrança), com base no incumprimento das executadas, o contrato de crédito, provocando o vencimento imediato (antecipado) das prestações futuras ainda não vencidas, cujo montante total, bem como daquelas já vencidas, fez refletir naquela quantia que apôs na livrança (acrescidos dos legais juros e demais encargos estipulados no contrato). E poderia fazê-lo, nos termos em que o fez? Como decorre da alegada defesa das partes, e bem como da fundamentação da decisão recorrida, a resposta a essa questão passa, por dela estar com ela intimamente ligada e dependente, pela resposta que vier a ser dada à (sub)questão de saber se no caso o exequente poderia ter resolvido o contrato de concessão do crédito que celebrou com as executadas, e à antecipação imediata (vencimento imediato) das prestações futuras (com perda do benefício do prazo), com base no incumprimento (devido à mora no pagamento das prestações – num total de cinco seguidas, 4 integralmente e uma, a 11ª apenas parcialmente, e reportadas à data em que interpelou aquelas para o seu pagamento, sendo que na data em se concretizou a resolução já se encontravam em mora 6 prestações – que então se verificava) desse contrato por parte das executadas? Na verdade, conforme o acordado entre o ora exequente/embargada e as ora executadas/embargantes, aquando da celebração do referido contrato de crédito, a autorização concedida pelas últimas à primeira para preencher a livrança entregue na altura em branco (para garantia das obrigações nele assumidas pelas próprias) estava dependente do incumprimento pelas mesmas dessas obrigações. Vejamos. É incontroverso (mesmos entre as partes) que o contrato (que consubstancia a relação causal/fundamental que esteve subjacente à entrega da livrança em causa) configura um contrato de crédito ao consumo (ao consumidor), celebrado entre o exequente e as executadas, o qual, entre nós, se encontra disciplinado e se rege pelo DL nº. 133/2009, de 02/06, que transpôs para a nossa ordem jurídica interna a diretiva nº. 2008/48/CE, do Parlamento e do Conselho, de 23 de Abril, relativa a contratos de crédito aos consumidores. Com esse regime visa-se, além do mais, - e como se afirma no preâmbulo desse diploma - instituir “uma mais eficaz proteção do consumidor” (particularmente no que diz respeito aos contratos coligados, como sucedeu no caso sub júdice), e nessa sequência expressou-se ainda nesse mesmo preâmbulo, que “na linha do disposto nos artigos 934º a 936º do Código Civil, estabelecem-se novas regras aplicáveis ao incumprimento do consumidor no pagamento de prestações, impedindo-se que, de imediato, o credor possa invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato”. (sublinhado nosso). E nessa linha de orientação consignou-se no seu artº. 20º, nº. 1, que: “1- Em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, o credor só pode invocar a perda do benefício de prazo ou a resolução do contrato se, cumulativamente, ocorrerem as circunstâncias seguintes: a) A falta de pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10% do montante total do crédito. b) Ter o credor, sem sucesso, concedido ao consumidor um prazo suplementar mínimo de 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas da eventual indemnização devida, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato. 2- (…) (sublinhado e negrito nossos) Como decorre do artº. 26º desse mesmo diploma trata-se de uma norma de carater imperativo, que se sobrepõe à própria vontade das partes, sendo nula qualquer cláusula contratual que restrinja ou exclua o direito aí conferido ao consumidor contratante. Quer dizer que nessa matéria as partes contratantes podem outorgar no sentido de aumentar/reforçar os direitos aí conferidos ao consumidor, mas estão impedidas/proibidas de os excluir ou sequer de os restringir. Trata- se uma norma especial (o citado artº. 20º) que, nessa matéria, se sobrepõe (dele diferindo) ao regime geral consagrado nos artºs. 777º a 782º do C. Civil. Comentando tal normativo, no sentido que se deixou expresso, o prof. Gravato Morais (in “Crédito aos Consumidores, Almedina, julho 2009, pags. 89/90”) discorre do seguinte modo: « (…) Em primeiro lugar destaca-se o incumprimento do dever de pagamento das prestações relativas ao contrato de crédito, desde que tal inadimplemento seja imputável ao consumidor (…).” Seguidamente, a al. a) impõe dois ulteriores requisitos. Por um lado, é preciso que ocorra falta de pagamento de duas prestações sucessivas. O não cumprimento de prestação ou de duas prestações não consecutivas (portanto, alternadas) não permite ao credor acionar qualquer dos mecanismos citados. Por outro lado, determina-se que a falta de pagamento ultrapasse 10% do montante total do crédito, ou seja, que exceda 1/10 dessa quantia. Em relação aos (similares) requisitos do art. 934.º do CC duplica-se o número de prestações (de 1para 2) e aumenta-se o valor percentual em causa (de 1/8 para 1/10). Por fim, ainda se exige, verificado o condicionalismo descrito, uma interpelação do consumidor sujeitas a dados requisitos: (…).» Decorre, assim da leitura do citado preceito legal acima transcrito (artº 20º) que num contrato de crédito ao consumo, e em caso de incumprimento do mesmo pelo consumidor, o credor só pode invocar a perda do benefício do prazo ou resolver o contrato no caso de cumulativamente se verificarem os seguintes requisitos/pressupostos: a) A falta de pagamento de duas ou mais prestações sucessivas/consecutivas. b) Que o montante total dessas prestações em falta exceda 10% do total do crédito. c) Ter antes o credor interpelado, sem êxito, o consumidor devedor para cumprir, nas condições de tempo e modo (com advertência admonitória) referidas na al. b) do citado normativo legal. Da conjugação daqueles dois primeiros requisitos/pressupostos (em que se decompõe/desdobra a al. a) do citado normativo) ressalta que (como bem, a nosso ver, se assinalou no Ac. da RL de 03/05/2018, proc. 528/14.5T8AGH.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, e apontando no sentido que vimos defendendo) a proteção do devedor não se faz apenas pela via da consideração do número de prestações em falta, mas também pela consideração da proporção entre o valor pecuniário dessas prestações em falta e o valor total da obrigação, à semelhança do que já acontece (embora de forma não tão reforçada) no já referido artº. 934º do CC - citado, como vimos, no preâmbulo do aludido DL nº. 133/2009 - no qual, nas vendas a prestações (com reserva de propriedade), apenas se possibilita ao credor (vendedor) a invocação da perda do benefício do prazo pelo devedor (correspondente à exigibilidade da totalidade do preço da compra e venda) se a prestação não realizada exceder 1/8 do preço. E daí nos contratos de crédito ao consumo, em caso de incumprimento por parte do consumidor, o credor não pode invocar a perda do benefício do prazo (e resolver o contrato) quando o valor total das prestações não realizadas ou em falta não ultrapasse 10% do valor total do crédito, e ainda que haja mais de duas prestações não realizadas. Pelo que a posição defendida pelo exequente/apelante (louvando-se para o efeito ainda no acórdão da RL de 03/05/2018, proc. 528/14.5T8AGH.L1-2, disponível em www.dgsi.pt) no sentido de que, nessa matéria, a resolução do contrato pelo credor ou a invocação pelo mesmo da perda do benefício do prazo se basta com a falta de pagamento de três ou mais prestações, independente do quantum proporcional que representam em do total do crédito concedido, não colhe, salvo o devido respeito, qualquer apoio quer na letra lei – elemento gramatical - (por mínimo que seja), quer, como vimos, no seu elemento teleológico que conduziu à criação do aludido normativo, e bem como do diploma legal em que se insere, não se descortinando, assim, razões para o recurso a uma interpretação atualista do mesmo. Aqui chegados, e tendo presente o que se acabou de deixar expendido, reportando-nos ao caso em apreço, diremos: O convencionado pelas partes a tal respeito no sobredito contrato encontra-se em consonância com o estatuído citado artº. 20º, nº. 1 als. a) e b) do DL nº. 133/99 (cfr., nomeadamente, as acima transcritas cláusulas 12ª., nºs 1 e 7; 15ª., nºs 1, 2 e 3, e 16ª, nº. 1, que, na sua essência, constituem uma réplica do conteúdo daquele normativo legal, porventura ainda melhorado em termos de clarificação – cfr. cl. 15ª. nº. 1). Quando o exequente procedeu à interpelação a que alude a al. b) daquele citado artº. 20º (e bem assim na cl. 12ª. nº. 7) – e que corresponde, e diga-se desde já preenchido, ao 3º. requisito acima enunciado -, as executadas/embargantes apenas tinham pago integramente as primeiras 10 prestações das 108 que se tinham obrigado a pagar (no valor de € 278,11 cada, num total de € 30,035,88), encontrando-se então por realizar/pagar parte da prestação 11ª., e a integralidade das prestações 12ª, 13ª, 14ª e 15º, num total em débito de € 1.199,28. Sendo assim, é manifesto que o montante total (€1.199,28) das sucessivas/consecutivas prestações que se encontravam então em débito, isto é, por pagar/realizar pelas executadas/embargantes, não excedia (ficando mesmo muito aquém) a percentagem de 10% do total do crédito que o ora exequente tinha sobre elas no montante de € 30,035,88 (e nem mesmo do total da quantia efetivamente mutuada no valor de € 21,954,31). O que significa que não se verificava o 2º. requisito/pressuposto acima enunciado (em se decompõe/desdobra a al. a) do citado artº. 20º do DL nº. 133/2009, e é exigido também pela cláusula 15ª, nº. 1 do contrato celebrado), o que impedia/impossibilitava o exequente de ter procedido à resolução do contrato, e provocado o vencimento imediato (antecipação imediata) das prestações futuras (com perda do benefício do prazo por partes daquelas). E sendo assim, não poderia, a exequente preencher a referida livrança dada à execução, particularmente nela titulando a quantia do capital exequendo por não ser então devida. E ao fazê-lo o exequente fê-lo de forma injustificada e extemporânea, à luz do que havia sido convencionado pelas partes no aludido contrato que deu causa à entrega que lhe foi feita pelas executadas/embargantes da referida livrança em branco, mostrando-se, assim, abusivo o seu preenchimento, nos termos e moldes em que foi feito, o que conduz ao afastamento da pretensão executiva cambiária do exequente. Termos, pois, em que se decide julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença recorrida. III- Decisão Assim, em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença da 1ª. instância. Custas pelo exequente/embargante/apelante (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do CPC). *** Sumário: I- Uma letra ou livrança em branco corresponde ao documento (sujeito ao modelo normalizado de letra ou, ao menos, que contenha a palavra “letra” ou “livrança”) que, não contendo todas as menções obrigatórias essenciais previstas nos artigos 1º ou 75º da LULL, possua já a assinatura de, pelo menos, um dos signatários cambiários (com a consciência e a intenção de assumir uma vinculação cambiária), acompanhado de um acordo ou pacto de preenchimento futuro das menções em falta. 2. Por sua vez, o pacto de preenchimento pode definir-se como o ato pelo qual as partes no negócio cambiário ajustam os termos ou as condições em que deve vir a ser posteriormente completado o título de crédito, definindo a obrigação cambiária, ou seja, as condições relativas ao seu conteúdo, nomeadamente no que concerne ao montante, à data do seu vencimento ou ao lugar de pagamento. III- Acordo de preenchimento que não está sujeito a forma, podendo ser expresso (por escrito ou acordo verbal) ou tácito. IV- Intervindo no pacto de preenchimento e encontrando-se o título no domínio das relações imediatas, pode o executado/embargante/subscritor ou avalista opor ao exequente/beneficiário a violação desse preenchimento, ou seja, a exceção material (perentória) do preenchimento abusivo do título, sendo sobre o opoente que incumbe/incide o ónus de alegação e prova desse abusivo preenchimento. V- Como decorre da leitura do artº. 20º, nº. 1, DL nº. 133/2009, de 02/06, num contrato de crédito ao consumo, e em caso de incumprimento do mesmo pelo consumidor, o credor só pode invocar a perda do benefício do prazo ou resolver o contrato no caso de cumulativamente se verificarem os seguintes requisitos/pressupostos: a) A falta de pagamento de duas ou mais prestações sucessivas/consecutivas; b) Que o montante total dessas prestações em falta exceda 10% do total do crédito; c) Ter antes o credor interpelado, sem êxito, o consumidor devedor para cumprir, nas condições de tempo e modo (com advertência admonitória) referidas na al. b) daquele normativo legal. VI- E daí ressalta que nos contratos de crédito ao consumo, em caso de incumprimento por parte do consumidor, o credor não pode invocar a perda do benefício do prazo e resolver o contrato quando o valor total das prestações não realizadas ou em falta não ultrapasse 10% do valor total do crédito, mesmo que haja mais de duas prestações não realizadas/pagas. Coimbra, 2020/09/14
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