Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
168/24.0GCTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SARA REIS MARQUES
Descritores: APLICAÇÃO DA PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR
ARGUIDO NÃO DETENTOR DE CARTA DE CONDUÇÃO
PROPORCIONALIDADE ENTRE A PENA PRINCIPAL E A PENA ACESSÓRIA
Data do Acordão: 12/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TONDELA
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 69.º, 101.º, N.º 4, E 292.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL
ARTIGO 9.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 147.º, N.º 3, DO CÓDIGO DA ESTRADA
ARTIGO 18.º DO D.L. N.º 138/2012, DE 5 DE JULHO/REGULAMENTO DA HABILITAÇÃO LEGAL PARA CONDUZIR
Sumário: I - A condenação pela prática de um dos crimes previstos no art.º 69 do CP obriga à condenação na pena acessória, o que sucede mesmo que o arguido não possua carta de condução.

II - O elemento literal, o elemento histórico, o elemento teleológico e o elemento sistemático, referidos no art.º 9 do Cód. Civil (que é norma válida para todos os ramos do direito, incluindo o direito penal) apontam no sentido por nós propugnado

III - Havendo uma tendencial proporcionalidade entre a pena principal e a pena acessória - até porque os critérios da sua aplicação são tendencialmente os mesmos - estas não têm contudo de ser matematicamente equivalentes, desde logo, pela diversidade dos objetivos de política criminal e finalidades que lhes estão subjacentes, como acima salientado.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

I- Relatório:

-» No âmbito deste processo sumário e com intervenção do Tribunal Singular foi proferida por sentença oral, datada de 25 de junho de 2024, com o seguinte dispositivo,

“Pelo supra exposto, julga-se a acusação pública totalmente procedente e, consequentemente, decide-se: --

A) Condenar o arguido …, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artºs 292º e 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária € 5,00 (cinco), o que perfaz o montante de € 300,00 (trezentos euros);a que correspondem 40 (quarenta) dias de prisão subsidiária, caso o Arguido não proceda ao pagamento voluntário da mesma. --

B) Não condenar o Arguido …, em pena complementar de inibição de conduzir, nos termos do disposto no artigo 69.º/1, al. a), do Código Penal; --

C) Condenar o arguido …, no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC, em virtude da confissão - cfr. art. 513.º n.º 1 e 514.º n.º 1 e 344º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal e art. 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais.”

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            -» Interpôs recurso o Ministério Público, tendo apresentado motivações, das quais extraiu as seguintes conclusões (transcrição):

II. No entanto, apesar de o Ministério publico na imputação que faz ao arguido no libelo acusatório, pugna pela aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, nos termos do disposto no artigo69º, nº 1, alínea a), do Código Penal.

III. Resulta do artigo 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal, que a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados é sempre aplicada ao agente que seja condenado por condução de veículo em estado de embriaguez, não fazendo a lei depender tal condenação ao fato de o arguido conduzir velocípede com motor elétrico, ou mesmo, da titularidade ou não de licença ou carta de condução.

IV. Trata-se, pois, de uma ilegalidade da enunciada vertente decisória — omissão de imposição de pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados ao arguido, que agora se invoca.

V.Com o devido respeito por diversa opinião, afigura-se-nos como incontornável a obrigatoriedade de cominação de pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados a qualquer (judicialmente) reconhecido agente dalgum dos crimes enunciados sob as diversas alíneas do n.° 1 do artigo 69.° do Código Penal, designadamente — no que ora importa — do de condução de veículo em estado de embriaguez (previsto e punido pelo artigo 292º,nº 2,do Código Penal),conduza um velocípede, seja a motor ou não e se encontre ou não legalmente habilitado à respetiva tripulação.

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O recurso foi  admitido, com efeito suspensivo do processo, a subir imediatamente e nos próprios autos.

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Notificado do recurso, o arguido não respondeu.

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-» Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer

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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido oferecida resposta.

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Após os vistos, foram os autos à conferência.

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II- Questões a decidir no recurso:

O objeto do presente recurso, tal como se mostra delimitado pelas respetivas conclusões, reconduz-se à apreciação das seguintes questões:

- erro em matéria de direito, já que a sentença é omissa quanto à condenação na pena acessória.

- medida da pena acessória.

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III. Transcrição da factualidade provada e não provada constante da sentença recorrida, oralmente proferida:

            “Factos provados:
1- No dia 11 de junho de 2024, pela 01H20, o arguido …, conduzia o velocípede com motor elétrico, pela estrada principal em … quando foi mandado parar pelos militares da GNR.
2- O arguido foi submetido ao teste de alcoolemia através do aparelho quantitativo, marca DRAGER, ALCOTEST modelo 7510 PT, com o nº de séria ARSK-0228, tendo acusado pelo menos uma TAS de 2,081 g/l, depois de deduzida a margem de erro máxima admissível a que corresponde uma TAS de 2,19 g/l registada.
3- O arguido não requereu a realização da contraprova.

Factos não Provados:

…”

IV. Do mérito do recurso:

            4.1 Erro em matéria de direito:

Como acima se assinalou, a única questão trazida a este Tribunal de recurso prende-se com a condenação na pena acessória, assente que está o cometimento pelo arguido de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts 292º nº 1 e 69º nº 1 a), ambos do Código Penal, não vindo questionados pelo recorrente nem os factos fixados pelo Tribunal recorrido, nem  o respetivo enquadramento jurídico. Não cabe pois a este Tribunal da Relação pronunciar-se sobre tais aspetos, sendo certo que não se vislumbra que exista qualquer desconformidade na sentença que deva ser conhecida oficiosamente, mormente algum dos vícios elencados no artigo 410º do Código de Processo Penal.

Vejamos então se a não condenação do arguido na pena acessória encontra fundamento legal.

Estabelece o Artigo 69.º n.º 1 al. a) do CP, com a epígrafe “Proibição de conduzir veículos com motor”, o seguinte:

É aceite pela unanimidade da jurisprudência e a generalidade da doutrina o entendimento de que estamos aqui perante uma pena acessória e não de um efeito da pena.

Como se diz no Ac. do TC n.º 202/2000, DR 2.ª série de 11/10/2000:

As sanções penais acessórias são aquelas que só podem ser pronunciadas na sentença condenatória conjuntamente com uma pena principal. [...] De um ponto de vista puramente teorético distinguem -se, pois, tais sanções dos chamados efeitos das penas, que são consequências determinadas pela aplicação de uma pena, principal ou acessória; e, em particular, distinguem-se das penas acessórias por não assumirem a natureza de verdadeiras penas, por lhes faltar o sentido, a justificação, as finalidades e os limites próprios daquelas”.

A aplicação da pena acessória tem uma “função preventiva adjuvante da pena principal”, visa a satisfação de um interesse concreto, tem uma  duração variável e não é de aplicação automática estando, ao invés, submetida aos princípios gerais da pena, como os da legalidade, proporcionalidade e jurisdicionalidade.

Ensina Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, p. 43:

«As penas acessórias aplicam-se por referência ao conteúdo do ilícito típico; ligam -se, necessariamente, à culpa do agente, que é o seu pressuposto e limite; justificam -se de um ponto de vista preventivo; e são determinadas concretamente em função dos critérios gerais de determinação da medida da pena prevista no artigo 71.º do CP, a partir de uma moldura que estabelece os seus limites (mínimo e máximo) de duração.

Ou seja, a pena acessória não é  um efeito automático da prática do crime que a prevê, porque tem que ser decretada numa sentença condenatória, dependendo a sua aplicação da verificação de pressupostos autónomos, em função de cada crime, da existência de uma moldura abstracta privativa e da valoração dos critérios gerais de determinação das penas criminais.  Condição necessária da aplicação da pena acessória é, pois, a condenação do agente numa pena principal, mas esta não é  condição suficiente, uma vez que é ainda necessário que o juiz comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie da pena acessória (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 197).

A pena acessória prevista no art.º 69 do CP pressupõe, assim, que o agente tenha sido punido por um dos crimes previstos nas alíneas do n.º 1.

Quanto ao segundo pressuposto - ou seja, que o crime revele uma condução de veículos motorizados especialmente censurável ou uma violação ostensiva de regras rodoviárias impostas em ordem a assegurar a segurança do tráfego rodoviário - ele está implicitamente referido.

 A este respeito, escreve o STJ, no AFJ n.º 8/2023, de 21 de setembro, in Diário da República n.º 184/2023, Série I de 2023-09-21:

O legislador fez depender a aplicação desta pena acessória da condenação por certos crimes - o que revela o particular conteúdo do ilícito que determinou a sua aplicação -, ou seja, o legislador considerou, abstratamente, que o particular conteúdo de ilícito subjacente aos crimes elencados determina a aplicação da pena (15), sendo que caberá ao juiz determinar em concreto, em função do pressuposto e limite da pena e dos fundamentos de aplicação das penas, o período durante o qual deve ser aplicada a pena acessória. A ilicitude do comportamento aumenta o limite da culpa pelo facto (16).

E esclarece:

“A circunstância de ter sempre de ser aplicada essa medida, ainda que pelo mínimo da medida legal da pena, desde que seja aplicada a pena principal de prisão ou multa, não implica, ainda assim, neste caso, colisão com a proibição de automaticidade. A adequação da inibição de conduzir a este tipo de ilícitos revela que a medida de inibição de conduzir se configura como uma parte de uma pena compósita, como se de uma pena principal associada à pena de prisão se tratasse, em relação à qual valem os mesmos critérios de graduação previstos para esta última.

Com efeito, a aplicação da inibição de conduzir fundamenta-se, tal como a aplicação da pena de prisão ou multa, na prova da prática do facto típico e ilícito e da respectiva culpa, sem necessidade de se provarem quaisquer factos adicionais.» (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 53/97, de 23.01.1997, Relatora: Cons. Maria Fernanda Palma(19).

Ora, não vislumbramos nenhuma razão para discordar desta posição doutrinária adoptada pelo STJ, no sentido de a condenação pela prática de um dos crimes previstos no art.º 69 do CP obriga à condenação na pena acessória constante do art.º 69º do CP.

Tal sucede, acrescentamos, mesmo que o arguido não possua carta de condução.

Não se ignora a divergência existente na jurisprudência, .

Assim, há quem entenda que o entendimento supra exposto encerra uma contradição lógica, pois estamos a aplicar uma proibição a quem já está impossibilitado de o fazer, porque não tem título que o habilite.

Contudo, o elemento literal, o elemento histórico, o elemento teleológico e o elemento sistemático, referidos no art.º 9 do Cód. Civil (que é norma válida para todos os ramos do direito, incluindo o direito penal) apontam no sentido por nós propugnado, que é, de resto, o da maioria da jurisprudência.

Se não, vejamos.

A obrigatoriedade da aplicação da pena acessória prevista no artigo 69°, nº.1, do Código Penal, foi introduzida com a revisão operada pela Lei 48/95, de 15-3, e reflecte os ensinamentos do Prof. Figueiredo Dias, vertidos na obra acima referida, págs. 164 e 165, onde escreve:

deve, no plano de lege ferenda, enfatizar-se a necessidade e a urgência político-criminais de que o sistema sancionatório português passe a dispor - em termos de direito penal geral e não somente de direito penal da circulação rodoviária - de uma verdadeira pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados. Uma tal pena deveria ter como pressuposto formal a condenação do agente numa pena principal por crime cometido no exercício da condução, ou com utilização do veículo, ou cuja execução tivesse sido por este facilitada de forma relevante: e por pressuposto material a circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável. Uma tal pena - possuidora de uma moldura penal específica - só não teria lugar quando o agente devesse sofrer, pelo mesmo facto, uma medida de segurança de interdição da faculdade de conduzir, sob a forma de cassação da licença de condução ou de interdição da sua concessão”.

E a questão que nos ocupa no presente recurso foi até abordada, expressa e claramente, no decurso dos trabalhos da Comissão de Revisão de 1995 do Código Penal, ficando a constar das respectivas actas o seguinte (in "Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão", Ministério da Justiça, 1993, págs. 75 e 76):

"O Senhor Procurador-Geral da República anteviu uma dificuldade lógica no nº.3 para os não titulares de licença de condução. Vai-se proibir, com pena acessória, quem não tem licença de condução? O Senhor Professor Figueiredo Dias justificou a necessidade de tal pena acessória mesmo para os não titulares, para obviar a um tratamento desigual que adviria da sua não punição. A comissão, frisando que esta pena também se aplica aos não titulares, acordou na seguinte redacção para o nº.3 deste artigo (...)".

Da versão original deste normativo constava então, no n.º 3, o seguinte:

3 - A proibição de conduzir é comunicada aos serviços competentes e implica, para o condenado que for titular de licença de condução, a obrigação de a entregar na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial que a remeterá àquela. Tratando-se de licença emitida em país estrangeiro, com valor internacional, a entrega é substituída por anotação, naquela licença, da proibição decretada.

Ou seja, daqui decorria claramente, por interpretação a contrario, que o condenado podia não ser titular de carta de condução.

É certo que a Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho veio conferir nova redação a este normativo, que passou assim a prever que:

“3- No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.”

Esta alteração legislativa constitui um decalque do art.º 500º do CPP, não sendo reflexo de uma qualquer modificação de intencionalidade político criminal, no sentido de passar a excluir da condenação em pena acessória de proibição de conduzir os infractores que não estejam habilitados com carta de condução.

De facto, a ratio legis deste normativo mantém-se a mesma, que é a de a pena acessória aqui prevista desempenhar uma função preventiva adjuvante da pena principal, dado que que “a função preventiva não se esgota com a intimidação da generalidade mas se dirige também, ao menos em alguma medida à perigosidade do delinquente. Através da aplicação da pena acessória prevista no art.º 69 do CP, pretendeu de facto o legislador contribuir, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano” (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 96 e 165).

Ora, esta esperada eficácia da norma é válida, quer para condutores titulares de carta de condução, quer para condutores não habilitados, sendo até mais premente para estes as exigências de prevenção especial e geral positivas, já que tiveram um comportamento globalmente mais grave, praticando dois crimes.

Tal privilégio mostrar-se-ia até  violador do princípio constitucional da igualdade, constante do art.º 13º da CRP. Tal solução conduziria a que o condutor não habilitado legalmente a conduzir pudesse a obter licença ou carta de condução pouco depois da sentença condenatória e poderia então conduzir imediatamente, ao passo que o condutor já habilitado, cujo comportamento globalmente considerado é menos grave, estaria proibido de conduzir durante todo o período da pena acessória.

Aliás, nos crimes relacionados com o tráfego automóvel, à pena acessória de proibição de conduzir é, muitas vezes, associado um efeito mais penalizante do que à pena principal, de multa – que, sendo esta a imposta, os infratores pagam, normalmente, sem grande inconformismo – ou de prisão suspensa na sua execução – que é vista até como menos onerosa que aquela.

Mas há ainda que atentar no facto de a pena acessória se dever aplicar mesmo quando não é obrigatório possuir um documento habilitante para a condução do veículo motorizado (ex: bicicleta elétrica, trotineta), conforme resulta do teor do artigo 69.º, n.º 2 do CP e como é o caso dos autos.

Importa ainda referir que o condenado por crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º do Código Penal, poderá não ter carta ou licença de condução para o veículo que conduzia naquele estado, mas poderá ter para outra espécie de veículos com motor, exigindo-se assim a aplicação da pena acessória a que alude o art.69.º do Código Penal.

Depois, temos de ter em consideração a totalidade da Ordem Jurídica (elemento sistemático).

Assim, após a publicação da Lei n.° 77/2001, entrou em vigor o Regulamento da Habilitação legal para Conduzir,  aprovado pelo DL n.º 138/2012, de 05 de Julho, que estipula no Artigo 18.º, como uma das condições de obtenção do título de condução  “e) Não se encontrar a cumprir sanção acessória de proibição ou de inibição de conduzir ou medida de segurança de interdição de concessão de carta de condução determinada por autoridade judicial ou administrativa portuguesa;”

 Daqui decorre, evidentemente, a possibilidade de a proibição de conduzir ser aplicada a quem não for dela titular.

Acresce que, se o arguido - titular ou não de carta de condução - for condenado na pena acessória e conduzir no período em que estava proibido de o fazer, poderá incorrer na prática de um crime p. e p. pelo art.° 353.° do Código Penal.  Ora, é incompreensível e atentatório do princípio da igualdade que apenas o arguido titular de carta de condução pratique este crime.

Vejamos ainda que o Decreto-Lei n.º 98/2006 criou um registo de infracções de não condutores (infratores não habilitados), onde se prevê o registo das penas acessórias em que o condutor seja condenado relativa a crimes praticados no exercício da condução.

Mais: do confronto do artigo 69° n.ºs 1 e 7 com o artigo 101.°, n.º 4 do CP, resulta que, ao estabelecer a pena acessória, o artigo 69.° prevê a sua exclusão quando, pelo mesmo facto, tiver lugar a interdição da concessão do título de condução.

 Como esta interdição pressupõe que o agente não é titular de título de condução (artigo 101.°, n.º 4 do CP), conclui-se que é possível a condenação naquela pena acessória em relação ao condutor não habilitado.

Por fim, vejamos que não existe no Código Penal qualquer norma idêntica à agora prevista no art.° 147.°. n.° 3, do Código da Estrada, o que significa que o legislador não quis distinguir, em sede de punição, as situações em que o condutor seja ou não encartado, face a uma situação de condenação pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, nos termos do disposto nos artigos 69.°. n.° 1. al. a) e 292.°. n.° 1. ambos do Código Penal.

Seria mais gravoso para o agente não encartado ser condenado pela prática de uma contra-ordenação relacionado com o excesso de álcool no sangue do que pela prática de um crime (sem qualquer aplicação de pena acessória ou sanção acessória) apenas porque, face ao seu estado de embriaguez, não possuía carta de condução à data da prática dos factos.

Apelando, ainda, ao artigo 9.º do Código Civil, podemos acrescentar que não há nenhuma ambiguidade na interpretação apontada, atendendo "ao espírito do legislador, à unidade do sistema jurídico, às circunstâncias em que a Lei foi elaborada e ao contexto em que a mesma deverá ser aplicada".

No sentido aqui defendido depõe a jurisprudência maioritária, se que são exemplo os Acórdãos da RL de 24/01/2007, Proc. 7836/2007-3.L1 e de 14/10/2014, Proc. 16/14 OXELSB.L1-5, da Relação de Coimbra de 11-09-2013, Proc. 12/13.4GELSB.C1, de 12-10-2016, Proc.  34/15.0GANLS-A.C1  e de 18-03-2020, Processo: 854/19.7PCCBR.C1,  da Relação do Porto de 7/7/2010, Processo n.º 1/09.3PCMTS.P1 e da RE de 20-03-2018, Processo: 47/17.8GDSRP.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Na doutrina, Germano Marques da Silva (in Crimes Rodoviários, Pena Acessória e Medidas de Segurança, pág. 32 e nota 54) também entende que a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pode ser aplicada a agente que não seja titular de licença para o exercício legal da condução.

Em suma: a pena acessória de proibição de conduzir constante do art.º 69 do CP é aplicável a qualquer agente dos crimes previstos no preceito ainda que não legalmente habilitado a conduzir.

Assim, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 69.°, n.º 1, alínea a) do CP, que encerra a obrigatoriedade de condenação do agente na referida pena acessória.

Tendo ocorrido erro de julgamento quanto ao direito aplicável (artigo 412.º, n.º 2 do CPP) importa revogar, nesta parte, a sentença sob recurso e condenar o arguido na pena acessória que o Tribunal a quo não lhe aplicou, pelo que se passa a determinar a medida dessa pena acessória.

4.2. Medida concreta da pena acessória:

O art. 69º, nº 1 do C. Penal prevê um período de três meses a três anos para a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor.

O nosso Código Penal não estabelece um regime específico para a sua determinação.

Não obstante, tem-se entendido que, tratando-se de verdadeiras penas criminais e estando ligadas a considerações de culpa e de prevenção, como acima se referiu, a determinação da medida concreta das penas acessórias e concretamente da prevista no art.º 69 do CP, efectua-se segundo os critérios orientadores gerais contidos no artigo 71.º do Código Penal, que dispõe, no seu n.º 1, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

E diz o n.º 2 …

E deve, em princípio, ser observada uma certa proporcionalidade entre as medidas concretas da pena principal e da pena acessória, mas sem esquecer que a finalidade a atingir com a pena acessória é mais restrita, pois visa essencialmente, prevenir a perigosidade do agente, diferentemente da pena principal, que tem em vista a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, embora a ela não seja estranha a finalidade de prevenção geral (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, pág.165) e pese embora nada na lei imponha que as penas acessórias tenham de ter, no que respeita à sua duração, correspondência com as penas principais (Neste sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19.12.2017, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28.02.2018, ambos disponíveis in www.dgsi.pt).

Havendo uma tendencial proporcionalidade entre a pena principal e a pena acessória - até porque os critérios da sua aplicação são tendencialmente os mesmos - estas não têm contudo de ser matematicamente equivalentes, desde logo, pela diversidade dos objetivos de política criminal e finalidades que lhes estão subjacentes, como acima salientado.

As exigências de prevenção geral devem aqui ser entendidas no sentido da “necessidade  geral de manutenção da confiança da comunidade na segurança rodoviária” (cfr. Taipa de Carvalho, as Penas no Direito Português, Jornadas de Direito Criminal, vol. II, pag. 28).

No caso em apreço, para determinação concreta da medida da pena acessória há que considerar o seguinte:

- Os crimes de condução automóvel suscitam fortes imperativos de prevenção geral, sobretudo em razão da dificilmente interiorização pela sociedade da regra comportamental segundo a qual a condução de veículos e o consumo de bebidas alcoólicas não são conciliáveis. Como se lê no Ac RP de 19-04-2023, in www.dgsi.pt, “Os crimes rodoviários devem ser exemplarmente punidos (aqui no sentido de garantirem, pela aplicação da pena, da reafirmação das expectativas comunitárias na validade das normas penais rodoviárias), principalmente num país, como é o nosso, com os tristes números de sinistralidade nas estradas.”

- As exigências de prevenção especial são diminutas, uma vez que o arguido não tem antecedentes criminais, está profissional e socialmente inserido e confessou a prática dos factos;

- A ilicitude é média, já que, embora o grau de alcoolemia com que o arguido seguia seja quase o dobro daquele a partir do qual a conduta passa a ser punida como crime, o veículo que conduzia é um velocípede a motor, sendo por conseguinte reduzido o perigo posto em marcha com a condução.

- O crime foi cometido com dolo direto, ou seja, no grau mais elevado.

Dito isto, ponderada a culpa do arguido e valorada na sua globalidade todos os fatores indicados, entende-se que fixar a medida da pena acessória em 5 meses é proporcional e justo.

Em suma: procedendo a pretensão constante da motivação do recurso interposto pelo MP revoga-se nesta parte a sentença recorrida e condena-se o arguido na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor, pelo período de cinco meses, nos termos dos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1 alínea a) do CP.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam as Juízas da 5.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra em dar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em conformidade, decidem condenar o arguido , enquanto autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo artigo 292.º do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses.

Boletins ao registo criminal.

Comunique ao registo de infracções de não condutores- Decreto-Lei n.º 98/2006, de 6 de junho.

                                                           *

Sem tributação.

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                                     Coimbra, 11 de dezembro de 2024


     Sara Reis Marques

     (Juíza Desembargadora Relatora)


                                        Maria da Conceição Miranda

                                 (Juíza Desembargadora Adjunta)

                                               Cristina Branco

                                  (Juíza Desembargadora Adjunta)

    


(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)