I. Relatório
Por sentença proferida em 14/07/2008 no processo com o NUIPC 85.04.0TAGVA do Tribunal Judicial de Gouveia, foi o arguido … condenado pela prática de um crime de abuso de confiança agravado p. e p. pelo artº 205º, nºs 1 e 2, al. a), com referência ao artº 202º, al. a) do CP, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros); de quatro crimes de abuso de confiança p. e p. pelo artº 205º, nº1, do CP, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros) por cada um; e de um crime de simulação de crime, p. e p. pelo artº 366º, nº1, do CP, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros). Em cúmulo dessas penas, foi o arguido condenado na pena única de 520 (quinhentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros). Foi o arguido ainda absolvido da prática de três crimes de abuso de confiança. Por seu turno, o pedido de indemnização civil apresentado pela demandante … foi julgado parcialmente procedente e o arguido/demandado … condenado a pagar àquela a quantia de €10.295,13 (dez mil, duzentos e noventa e cinco euros e treze cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, desde a notificação para contestar.
Inconformado, o arguido apresentou recurso, extraindo das motivações a seguinte síntese conclusiva [[i]]:
1ª — O recorrente foi sócio gerente da assistente …, desde 1996, data da sua constituição, e deixou de o ser em 10/08/2004, data em que, por escritura pública, cedeu a sua quota correspondente a 75% do capital a …e outra, pelo preço, efectivamente acordado e pago, de 65.000 €.
2ª — Tal escritura foi precedida pela assinatura de um contrato promessa de cessão de quota de 27/03/2004, com assinatura reconhecida, no qual se fixou:
As obrigações recíprocas de ceder e adquirir, pelo preço referido, mediante a entrega de sinal de 10.000€.
A obrigação e direito do cedente, ora arguido, em manter a gerência até à data da cessão.
A obrigação do promitente cessionário … de substituir o arguido nas suas responsabilidades pelas garantias prestadas junto da C.G.D., de forma a que o arguido delas ficasse liberto.
A obrigação do outro sócio não cedente …, que se obrigou a não preferir na cessão, e nada opor ao negócio.
3ª — O recorrente, era credor da sociedade, em montantes não concretamente apurados, resultando o seu crédito, em resumo, de um ano de remunerações de gerência (950 € por mês), pagamentos por ele feitos à sua custa de dívidas da sociedade de valor não apurado e a entrega de um automóvel seu à mesma.
4ª — À data dos aludidos contratos, a sociedade assistente tinha débitos e créditos, estes últimos por fornecimentos aos clientes, com pagamentos em atraso, e entre aqueles, ao Senhor …, colaborador na empresa, no valor correspondente a um ano de remunerações (4.800 €) e aos empréstimos que o mesmo havia feito à empresa, em momentos de dificuldades de tesouraria, no valor global de 26.700 C.
5ª — Em condições e momento não concretamente apurados, o arguido assinou a declaração de fls. 1404, donde consta a data de 04/07/2004, da qual consta que "assume a responsabilidade de pagamento do empréstimo de 26.700 € de … à …".
6ª — O…era cunhado do arguido e, por isso, com a saída do seu cunhado da sociedade, iria sair também.
7ª - No período que decorreu entre 23/07/2004 e 10/08/2007, o arguido no exercício das suas funções, como gerente praticamente único (o outro funcionava como vendedor) da sociedade, procedeu à cobrança de alguns créditos junto dos clientes, e procedeu ao pagamento de dívidas e encargos da sociedade.
8ª — Assim, recebeu para a empresa, pelo menos as quantias descriminadas nos pontos 15 (507 €), 17 (861 €), 19 (4,491,13 €), 20 (1.000 €), 24 (1.1 10 €), 28 (2.000 €), 29 (1.000 €), 33 (754 €), 37 (1000 E) e entregou aos respectivos devedores os respectivos recibos.
9ª -- Desses valores referidos nos pontos 15, 17 e 24, no valor global de 2.478€, o arguido destinou-os a si próprio, para amortização (parcial) do seu crédito e as restantes no valor global de 10.285,13 €, entregou-as ao credor …, também para amortização do respectivo crédito.
10ª — Por todos esses recebimentos, acima enumerados, foi o arguido acusado de outros tantos — nada menos que 8 - crimes de abuso de confiança, considerando-se, porém, agravado, devido ao valor, o recebimento e entrega ao credor A.M.L. no mesmo momento, das duas quantias referidas nos pontos 19 e 20 da sentença, no valor global de 5.491,13€.
11ª - A sentença recorrida absolveu o arguido, no que respeita às quantias que recebeu e integrou ao seu próprio património (pontos 16, 17 e 24) com o fundamento de que subsistiram dívidas (que aproveitaram o arguido) quanto à legitimidade ou ilegitimidade da apropriação dessas quantias (fls. 21 da sentença), sendo que o argumento do arguido de que lhe eram devidos valores em atraso, foi confirmado pelo menos pelo outro sócio (Eduardo) e pela testemunha … — ver fls. 21 da sentença.
12ª — Já assim não concluiu, no que respeita às quantias entregues ao credor …, condenando, por isso, o arguido na prática de cinco crimes de abuso de confiança (um deles agravado) e a indemnizar a assistente na quantia de 10.285,13€ que, em nome da sociedade, entregou ao referido credor.
Ora,
13ª — Considera o recorrente, que as duas situações são iguais e devem ter tratamento igual, sendo, pelo menos no plano ético, mais censurável (se censura fosse devida) o pagamento a si próprio, de que o pagamento a terceiros.
14ª — Para fundamentar a condenação, a sentença recorrida interpretou a declaração de fls. 1404 (referida na conclusão 5ª) assinada pelo arguido, no sentido que este se obrigara pessoalmente a pagar ao A.M.L. a divida da sociedade para com este, e como tal, não podia nem devia ter pago com dinheiro da empresa.
15ª — Tal interpretação — no sentido da obrigação pessoal, à sua custa, com isenção da responsabilidade da devedora, é salvo o devido respeito, indevida, imoral, ilegal e abusiva, uma vez que foi feita à revelia das normas do direito cível relativo às obrigações e de integração e interpretação dos negócios jurídicos.
16ª — A declaração foi subscrita em data e condições não esclarecidas, não havendo qualquer prova objectiva sobre as intenções ou motivações que a determinaram, pelo que todas as interpretações são possíveis.
17ª — Ao assumir tal obrigação de pagar, o arguido fê-lo na sua qualidade de gerente, responsável pela gestão, e, por isso, assumiu um compromisso de, no exercício dessa função, providenciar a cobrança de créditos da sociedade e obrigar-se a pagar ao referido credor, em vez de deixar esse encargo para a nova gerência.
18ª — Do texto não consta a expressão pessoal, e muito menos, a expressão "pessoal, à sua custa exclusiva".
19ª — Quer o arguido, quer o credor, quer o gerente da C.G.D. — … (que acompanhou todas as negociações da cessão de quotas), foram elucidativos e peremptórios, quanto à interpretação de tal declaração, no sentido de que o arguido assumiu, como gerente, a especial obrigação da sociedade em dar preferência a este credor, o que se julgava legal e eticamente correcto, dado que havia ajudado a empresa em momento de crise e convinha a todos que ele saísse da empresa, com a sua situação, resolvida, evitando problemas à nova gerência.
20ª — Problemas que vieram a concretizar-se com a propositura pelo credor da acção sumária n" 230/OS para cobrança do seu crédito remanescente (deduzido que foi este pagamento de cerca de 10.285 €).
2lª — Podia e devia o julgador, nos termos do artigo 31 do C.P., proceder à verdadeira interpretação e alcance do sentido da declaração em causa, com base nos critérios dos artigos 220 e 221 do C. C., que lhe impunha a indagação da vontade real ou presumida das partes, e em última análise em caso de dívida, pela pesquisa do maior equilíbrio da prestação como impõe o art. 237.
Ora,
22ª — Não seria justo nem equitativo, que o arguido, tendo acordado receber o preço líquido de 65.000 € pela cessão da sua quota, viesse, afinal, ver deduzidas nesse preço quantias consideráveis que ele próprio não devia, deduções essas que anulariam ou reduziriam o valor real do preço para valores completamente diferentes do acordado, o que tornaria inviável a satisfação dos compromissos assumidos na aquisição de um café na zona da Amadora, pelo valor de 75.000,00€ (ver declarações de Raul — CGD e A.M.L. — cassete n.° 3 A e B e cassete 4 lado A).
23ª — Se o arguido quisesse de facto, assumir para si (e sua esposa) o encargo de pagar tal divida à sociedade, além de o declarar de forma expressa, literal e sem margem para dúvida, estaríamos na figura da transmissão de dívidas, prevista no artigo 595 do C.C.
Ora,
24ª — Para que essa transmissão se operasse e fosse válida, seria necessário o acordo expresso do credor, sem o qual a exoneração do primitivo devedor se não verificava — art. 595 n.° 1 a) e 2 do C.C.
Assim,
25ª — Mesmo que o arguido chamasse a si tal encargo, tal não poderia libertar a sociedade da divida que era sua, razão pela qual, ao pagar, satisfez compromisso e dívidas próprias dela (sociedade), não podendo considerar-se lesado.
Por outro lado,
26ª — A responsabilização unilateral de alguém pela divida de terceiro, não significa a assunção de obrigação principal, podendo configurar-se a mera prestação de fiança.
27ª — Fosse como gerente, fosse como fiador, a verdade é que a assinatura de tal declaração só poderia relevar em sede de obrigações civis, onde sempre haveria lugar à discussão prévia sobre a sua emissão de forma livre, séria e sem erro, dolo ou coacção.
28ª — Ciente dessa eventual responsabilização que pudesse vir a ser-lhe assacada, na hipótese, mais que provável, de não conseguir obter na empresa os meios de pagamento suficiente, para cumprir tal compromisso, e porque também estava confrontado com violações contratuais anunciadas pela outra parte, o arguido apôs uma assinatura diferente da habitual (usada no Bilhete de Identidade).
29ª - Assim pretendendo, à partida, criar dificuldades à outra parte, na utilização de tal declaração.
30ª — Assim se defendendo perante a evidência de incumprimento do sócio J. H. F. que, tendo assumido por escrito, no contrato promessa, a obrigação de substituir o arguido nas obrigações e responsabilidades que este prestara perante a C.G.D., vinha dando mostras que não cumpriria, como efectivamente não cumpriu, tal compromisso.
31ª — Na dúvida sobre a interpretação do sentido real de tal declaração, deveria o Tribunal ser favorável à posição do arguido.
32ª — A questão sub judice é, essencialmente uma questão do foro cível, de direito das obrigações, à margem do direito penal.
33ª — De tal forma que a actuação do arguido, relativamente a tais dinheiros da sociedade, já foi objecto da acção ordinária n° 79/05, que o J.A.F. moveu contra o recorrente, acção essa em que se julgou não haver incumprimento do Réu, que foi absolvido em todas as instâncias.
34ª — A assistente amortizou, através do seu legitimo gerente, uma divida que era sua, pelo que não fez mais do que a sua obrigação legal, da qual nunca fora exonerada, e, em consequência, viu o passivo reduzido, não ficou, por isso, prejudicada.
35ª — O recorrente não se locupletou com um cêntimo, nem deu aos dinheiros da sociedade, que recebera, destino diverso daquele a que se destinava.
Logo,
36 — Não cometeu o arguido qualquer crime de abuso de confiança, nem se constituiu, por isso, no dever de indemnizar.
37ª — Como questão académica e doutrinal, sempre se dirá que, se por absurdo, o pagamento de dívidas é crime, dúvidas não há que "sua determinação em pagar ao A.M.L. foi assumida de uma só vez, no momento em que resolveu restituir ao cunhado a quantia total por ele mutuaria".
Houve um só desígnio, embora realizável em sucessivas ocasiões, de acordo com os sucessivos recebimentos das verbas correspondentes, que constituíram as tais circunstâncias exteriores que facilitavam e impunham actuações repetidas.
38ª — Face às violações dos compromissos assumidos pelos outros dois outorgantes do contrato promessa, um ao não assumir as responsabilidades perante a C.G.D.,- J.H.F. - e outro — o Eduardo — ao fazer exigências de última hora (designadamente um cheque de 10.000 €, para amortizar o seu crédito perante a empresa), depois de se ter obrigado a nada opor à cessão), é compreensível e justificável, à luz do direito das cautelas, a atitude defensiva do recorrente, ao tentar criar-lhes dificuldades.
39ª — No que respeita à simulação de crime, o recorrente rejeita convicta e visceralmente a sua incriminação, por nunca imaginar que, pela sua defesa, pudesse estar a incorrer em qualquer crime.
40ª — Ao dizer, no seu interrogatório como arguido perante o M" P°, que determinada assinatura não era dele, que não coincidia com a que usava, que nem sequer se lembrava de ter assinado, o arguido procurou defender-se das consequências que, para si, poderiam ser lesivas.
41ª — Ao contrário do que se diz na sentença, o arguido também usava dois tipos de letra na sua assinatura, como acontece na ficha de assinaturas da C.G.D. — a fls.1220.
42ª — O arguido não é obrigado a dizer a verdade quanto aos factos que lhe são imputados, e por isso, tal como o seu defensor que o acompanhou, nunca lhe passou pela cabeça que poderia cometer um crime, ao ser incriminado na forma como se defendeu.
43ª — De resto, tendo-se retratado durante o mesmo interrogatório, e sendo essa, retratação eficaz, nos termos do artº 363º do CP, para retirar a testemunhas, peritos interpretes, etc., o crime de falso testemunho p. e p. no artº 360º do C. Penal, por maioria de razão, não é punível a actuação do recorrente, pela forma como entendeu – bem ou mal – esboçar a sua defesa.
44ª — A empresa …, constituída assistente, não foi lesada com a concreta actuação do seu gerente e legítimo representante legal, nem pelo facto de este se ter pago a si próprio de parte do seu crédito, nem pelo facto de ter pago a outro credor da sociedade, pelo que não tem que ser indemnizada.
45ª O tribunal não pode ficar insensível, como se não fosse uma realidade física e jurídica, merecedora de atenção, ao facto de a empresa só existir no papel, estar encerrada e sem qualquer actividade, não ter qualquer sede, escritório, gerência ou pessoal ou existência, sem sócios, nem instalações, podendo e devendo, por isso, intervir e obstar no sentido de não haver locupletamento e desvio a favor de terceiros.
46ª — Devem considerar-se nulos todos os actos dos Exmos. Mandatários da assistente, a partir do momento em que os representantes / gerentes da mesma, subscritores da procuração, deixaram de o ser, sem que tenha havido novo mandato, ou rectificação do anterior pela nova gerência.
49ª — Tal mandato deve considerar-se caduco e sem efeito, também no facto de a sociedade não ter existência real.
Respondeu a assistente e demandante civil …, Lda, concluindo nos seguintes termos:
1 — Por força da sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Gouveia, veio o arguido … condenado da prática de um crime de abuso de confiança agravada, quatro crimes de abuso de confiança e um crime de simulação de crime (e absolvido da prática de três crimes de abuso de confiança).
2 — O pedido de indemnização cível formulado pela assistente foi julgado parcialmente procedente e, consequentemente, veio o arguido condenado no pagamento àquela de 10.295,13 € a título de danos patrimoniais, acrescido de juros à taxa legal, devidos desde a notificação para contestar o pedido cível até integral pagamento.
3 — Não se conformando com a douta sentença proferida, por dela discordar, veio o arguido interpor recurso da mesma sustentando que o mesmo deveria ser absolvido de todos os crimes pelos quais veio condenado e, se assim não fosse, pelo menos quanto aos quatro crimes de abuso de confiança, ser condenado pela prática de um só crime continuado de abuso de confiança.
4 — Argumenta o arguido que na sua qualidade de gerente da sociedade … — Tintas, bricolage e derivados, Lda., se limitou a pagar um débito desta ao seu cunhado …, pelo que não cometeu os crimes de abuso de confiança pelos quais veio condenado.
5 — Rejeita que a declaração constante de fls. 1118 e 1404 configure uma assunção pessoal pelo arguido de dívida da … — Tintas, bricolage e derivados, Lda. ao seu cunhado …, no valor de 26.700,00€, tanto mais que não se pode dar qualquer relevância a essa declaração por configurar um mero documento particular, por confronto com o contrato-promessa de cessão de quotas e a escritura pública de cessão de quotas que constituem, respectivamente, documento autenticado e documento autêntico.
6 — Nesse sentido, invoca os depoimentos das testemunhas …, … e …, que depuseram acerca da intenção do arguido aquando da subscrição da referida declaração e sustenta que na interpretação da referida declaração negocial a decisão recorrida não só não cuidou de colher a intenção do arguido como violou os artigos 236° a 239° do Código Civil, tendo ignorado a problemática da transmissão de dívidas (artigo 595° e ss. do Código Civil) e da natureza principal ou de fiador da assunção de dívida (artigos 627° e ss. do Código Civil).
7 — Sustenta ainda que não deveria ter sido condenado pelo crime de simulação de crime, porquanto o arguido se limitou a defender da forma que achou mais adequada, sendo certo que o mesmo só é obrigado a responder com verdade às perguntas relativas à sua identidade e antecedentes criminais.
8 — Ainda que assim não fosse, porque o arguido oportunamente confessou ser sua a assinatura, isto é, retractou-se, defendeu ser de aplicar "por maioria de razão" o artigo 362° do Código Penal que estabelece a não punição do mesmo.
9 — O arguido sustenta que a assistente nenhum dano patrimonial sofreu porquanto as quantias pelo arguido entregues ao seu cunhado, o foram para pagamento de uma dívida daquela, pelo que não deve haver lugar à condenação no pedido de indemnização cível julgado parcialmente procedente.
10 — Finalmente, afirma que a assistente já não tem existência física para poder receber a referida indemnização, nem os mandatários da assistente têm competência para o efeito porquanto o mandato foi conferido pelos anteriores gerentes da assistente e, consequentemente, já caducou.
Ora,
11 — O recurso da matéria de facto apresentado pelo arguido está votado ao insucesso por incumprimento das exigências legais previstas artigo 412°, n°3, alínea a), b), c) e 4 do Código de Processo Penal, ou seja, não indica "os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados" nem efectua as "especificações (...) por referência ao consignado na acta, (...) indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação", limitando-se a remeter genericamente para os depoimentos das testemunhas …, … e ….
12 — Para apreciação do sentido da declaração de fls. 1118 e 1404 é, porém, essencial o depoimento da testemunha … (voltas 0636-0852 do lado "A" da cassete n° 1 e voltas 4017-4200, 4490-4538, 4600-4640 e 4830-4870 do lado “B" da cassete n° 1 das "Declarações para memória futura") já que foi a única que revelou ter conhecimento da referida declaração aquando da respectiva subscrição pelo arguido.
13 — A sentença recorrida interpretou correctamente a declaração de fls. 1118 e 1404 e não há na mesma qualquer dúvida na interpretação que reclame a aplicação do disposto no artigo 237° do C.C., nem qualquer lacuna que imponha a aplicação do disposto no artigo 239° do C.C., pelo que a mesma não violou os artigos 236° a 239° do Código Civil.
14 — Da interpretação dessa declaração, emitida a 4 de Julho de 2004, resulta que o arguido se responsabilizou a título pessoal pelo pagamento ao seu cunhado … da quantia (26.700,00 €) que este havia emprestado à… — Tintas, bricolage e derivados, Lda.
15 — Porque, no momento em que o arguido procedeu ao pagamento desse crédito do cunhado (cfr. pontos 19 a 23, 26 a 40 da matéria de facto provada) com dinheiro da …, já o mesmo havia assumido a responsabilidade pessoal pelo seu pagamento, verificaram-se todos os pressupostos de que depende o preenchimento dos crimes de abuso de confiança pelos quais o arguido veio condenado.
16 — Tampouco a decisão recorrida violou as regras legais previstas nos artigos 595° e ss. e 627° e ss. do Código Civil, referentes à assunção de dívida e à fiança: estas últimas não são aplicáveis in casu por ser manifesto, em face do teor da declaração de fls. 1118 e 1404, que o arguido assumiu a título principal a dívida da responsabilidade da …, e não a título acessório; aquelas disciplinam apenas os efeitos da assunção de dívida para com o credor.
17 — A falta de ratificação pelo credor … da assunção de dívida do arguido perante o co-gerente da … … tem como único efeito que a mesma não produz efeitos quanto àquele, não havendo fundamento legal para sustentar que a declaração de assunção de dívida emitida pelo arguido seja inválida nas relações …-arguido.
18 — A douta sentença recorrida também não violou o artigo 30°, n° 2 do Código Penal que disciplina o crime continuado, porquanto inexistiu in casu um "quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente ".
19 — A douta sentença recorrida bem andou ao condenar o arguido pela prática de um crime de simulação de crime, porquanto, aquele, tendo a possibilidade de nada dizer, sem que o silêncio o pudesse desfavorecer, quis falar e optou por negar a autoria da assinatura, assim, lançando sobre outrem a suspeita da falsificação da sua assinatura, quando sabia tal não corresponder à verdade.
20 — Não é aplicável “por maioria de razão" à situação sub judice o artigo 362° do Código Penal que entende não serem puníveis as falsas declarações quando haja retractação, porquanto inexiste qualquer lacuna na regulação do crime de simulação de crime que justifique o recurso àquele artigo por analogia ou interpretação analógica.
21 — É manifesto que a assistente sofreu um dano patrimonial correspondente às quantias de que o arguido se apropriou para pagamento de uma dívida cujo pagamento pessoalmente assumira, pelo que bem andou a douta decisão recorrida em condenar parcialmente o arguido no pedido cível formulado.
22 — É falso que a assistente já não tem existência física para poder receber a referida indemnização, nem os mandatários da assistente têm competência para o efeito porquanto o mandato foi conferido pela anterior gerência da assistente e, consequentemente, já caducou.
23 — Nos termos da procuração forense outorgada pela assistente aos seus mandatários, estes têm poderes especiais para "desistir, confessar ou transigir, substabelecer e ainda receber custas de parte ou quaisquer quantias devidas em juízo ".
24 — É igualmente falso que a mudança da gerência implique a caducidade do mandato legitimamente conferido: este continua perfeitamente válido porquanto a mandante não revogou a procuração nem a mandatária renunciou a ela.
25 — Em suma, no entender da assistente, a douta decisão recorrida não só valorou correctamente a prova produzida em sede de julgamento como interpretou e aplicou correctamente o direito aplicável, pelo que a mesma nenhuma censura merece, devendo em sede de recurso ser mantida in totum.
Respondeu igualmente o Ministério Público junto do Tribunal recorrido, sem conclusões, dizendo que não foi cumprido o estatuído no artº 412º, nºs 3 e 4 do CPP relativamente ao recurso sobre matéria de facto, o que impede a reapreciação da prova gravada, e, no plano do direito, que encontram-se reunidos os elementos típicos, objectivos e subjectivos, dos crimes de abuso de confiança e de simulação de crime. Considera ainda não se verifica execução das condutas subsumidas ao crime de abuso de confiança no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, o que afasta a figura do crime continuado, e considera que a conduta do arguido extravasou do seu direito de defesa, cometendo o crime tipificado no artº 366º do CP, ao qual não tem aplicação a retratação contemplada no artº 362º do mesmo código. Termina pela improcedência do recurso.
Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Ajunto emitiu parecer, no qual considera que foram inobservados na impugnação da decisão em matéria de facto os cuidados de forma impostos pelos nºs 3 e 4 do artº 412º do CPP e afirma o acerto da decisão em matéria de Direito, concluindo igualmente pela improcedência do recurso.
Notificado o arguido nos termos e para os efeitos do artº 417º, nº2, do CPP, veio o arguido dizer que, relativamente à matéria de facto «disse o suficiente para que outra seja a decisão» e reiterar a inexistência dos crimes em que foi condenado e improcedência do pedido cível.
Foram colhidos os vistos e realizou-se conferência.
Fundamentação
Âmbito do recurso
É pacífica a doutrina e jurisprudência [[ii]] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso [[iii]].
As questões colocadas pelo recorrente, com expressão nas conclusões, são as seguintes:
Impugnação da decisão em matéria de facto;
Ausência dos elementos essenciais dos crimes de abuso de confiança;
Subsidiariamente relativamente à questão anterior, cometimento de um único crime de abuso de confiança, na forma continuada;
Ausência dos elementos essenciais do crime de simulação de crime;
Nulidade dos actos praticados pelos mandatários da demandante civil …;
Ausência dos pressupostos da obrigação de indemnizar.
Apreciação
Da decisão recorrida (quanto aos factos)
A primeira aproximação às questões elencadas passa pela verificação dos termos da decisão recorrida, mormente dos seus fundamentos de facto. Os factos provados foram os seguintes:
O arguido … foi sócio-gerente, conjuntamente com o outro sócio-gerente …, da sociedade comercial … – T…, Lda., ora assistente, com sede em Gouveia, cujo objecto social era o comércio de retalho ou por grosso de tintas, bricolage e seus derivados, nos termos constantes de certidão da respectiva matrícula de fls. 67 a 69, desde, pelo menos, 08 de Março de 2002 até 10 de Agosto de 2004;
Data esta em que, por escritura pública de cessões, unificação de quotas e nomeação de gerente, constante de fls. 8 a 12, o ora arguido … dividiu, em duas partes, a sua quota naquela sociedade comercial e as cedeu, respectivamente, a …, que então foi nomeado gerente, e a …, nela renunciando o arguido à gerência;
Escritura em que também interveio o sócio-gerente …, como segundo outorgante, consentindo nessa cessão de quotas, em seu nome pessoal e como representante legal da … – Ti…, Lda.;
Para concretizar tal cessão de quotas, o arguido … e os indicados cessionários encetaram previamente negociações, que se iniciaram em data indeterminada, de finais do mês de Junho de 2004, e que levaram à assinatura, em 23 de Julho de 2004, de um contrato-promessa de cessão de quotas, nos termos constantes de fls. 222 a 227, que se dão por integralmente reproduzidos;
No qual igualmente interveio …, declarando não preferir na aquisição dessas quotas e nada ter a opor ao negócio;
Sucede que a essa data, a sociedade comercial … – T…, Lda., devia ao indicado sócio-gerente … diversas quantias, que ultrapassavam os € 35.000, resultantes de empréstimos que aquele, quando necessário, lhe fora efectuando, designadamente, em numerário e outras através dos cheques cujas cópias se encontram juntas a fls. 1044 a 1047 e 1214;
Assim como, por outro lado, …, cunhado do ora arguido, efectuara empréstimos à sociedade comercial assistente, no valor global de € 26.700, e nos montantes parciais, documentados a fls. 560 a 563, de € 23.000, de € 1.200 e de € 2.500;
Em face disso, antes da formalização daquele contrato-promessa, como forma de o indicado sócio-gerente … vir a consentir na prometida cessão da quota do arguido e assinar a respectiva escritura, acordaram ambos os sócios-gerentes, na sequência de exigência por aquele efectuada, que o arguido … daria ao primeiro € 10.000 no acto da escritura e ficava também com a obrigação de pagar pessoalmente a dívida total ao cunhado …;
Para esse efeito, em 04 de Julho de 2004, foi elaborada a declaração de fls. 1118 (cujo original consta agora de fls. 1404), cujo teor se dá integralmente por reproduzida, e nos termos da qual ficou a constar que «Eu, abaixo assinado, …, (…) Declara para todos os efeitos que assume a responsabilidade do pagamento de empréstimo, no montante de € 26.700,00 (vinte e seis mil e setecentos euros), que …, efectuou à firma … – T..., lda
Gouveia, 04 de Julho de 2004
O declarante “…”»
Que o arguido assinou;
Porém, ao assiná-la, e na perspectiva de futuramente se poder eximir ao cumprimento da obrigação assim pessoalmente assumida, pondo em causa a autenticidade da assinatura nela aposta como se fosse a sua e criando a suspeita de que essa declaração e assinatura fossem falsas, manuscreveu o seu nome com a utilização, a seguir às iniciais dos seus nomes e apelidos, de letras minúsculas, em divergência com a assinatura que habitualmente usava e constava do seu Bilhete de Identidade, toda ela em maiúsculas;
Assumindo idêntica conduta ao assinar o cheque, de fls. 1055 e 1056, no valor de € 10.000, que, conforme havia com ele acordado nos termos descritos, entregou a … em 10 de Agosto de 2004, a seguir à celebração da dita escritura pública, em que cedeu a sua quota, mas a que, e também para frustrar o seu pagamento, apôs a data de 15/08/04, indo seguidamente solicitar ao banco o seu não pagamento;
Acontece que, no período temporal situado entre o início das negociações, em finais de Junho de 2004, e a data em que veio a ser outorgada a referida escritura pública de cessão de quotas e renúncia à gerência, em 10 de Agosto de 2004, o arguido …, na perspectiva da efectivação desse negócio, aproveitando-se das suas funções de gerente e de, no seu âmbito, contactar e receber dos clientes da … – T…, Lda., valores monetários, em cheques ou numerário, para pagamento dos bens que esta sociedade comercial lhes fornecera, e bem assim de ser ele o gerente que se encontrava encarregue da gestão da empresa, v.g. processando facturas e recibos e controlando a tesouraria, foi fazendo suas, sem o conhecimento e consentimento do outro sócio-gerente, alguns dos valores monetários que, com a indicada finalidade, foi recebendo de clientes da assistente e que a esta eram devidos;
Alguns dos quais foi integrando directamente no seu património; e entregando outros ao seu cunhado … para cumprimento da obrigação que pessoalmente assumira em 04 de Julho de 2004, através da assinatura da declaração acima mencionada;
Assim, actuando sempre nos termos supra descritos, o arguido … foi recebendo de clientes da sociedade comercial … – T..., lda, ora assistente, para pagamento de créditos desta, resultantes de fornecimentos de bens, os seguintes valores, de que ilegitimamente se apropriou;
Em 29 de Junho de 2004, o arguido recebeu da cliente … – Construção Civil, Lda., o cheque n.º 2779125167, sobre a agência da Caixa Geral de Depósitos de Nelas, emitido ao portador, no valor de € 507,00, para pagamento parcial dos bens que a esta haviam sido fornecidos pela … – T..., lda, descritos na factura nº 3047, e de que veio a ser emitido posteriormente o correspondente recibo nº 1834, nos termos constantes de fls. 553 a 557;
Quantia que, porém, o arguido não entregou à sociedade comercial de que era sócio-gerente, antes a tendo integrado no seu património, apresentando, para esse efeito, o dito cheque a pagamento na agência da Caixa Geral de Depósitos de Aguiar da Beira, no dia seguinte, 30 de Junho de 2004, para crédito na sua conta bancária com o nº 0354019407500, de que o mesmo era titular na agência de Gouveia da mesma instituição bancária, onde veio a ser efectivamente creditado, nos termos constantes de fls. 521, 550 e 551;
Em 30 de Junho de 2004, recebeu do cliente … o cheque n.º 6477938911, sobre a agência da Caixa Geral de Depósitos de Celorico da Beira, emitido à ordem da “…”, no montante de € 861,00, para pagamento parcial dos bens que àquele tinham sido fornecidos pela … – T..., lda, descritos nas facturas nº 2936 e 2951, e de que veio a ser emitido posteriormente o correspondente recibo nº 1852, nos termos constantes de fls. 254 a 256;
Quantia que, porém, o arguido também não entregou à sociedade comercial de que era sócio-gerente, antes a tendo integrado no seu património, apresentando, para isso, o dito cheque a pagamento na agência da Caixa Geral de Depósitos de Aguiar da Beira, nesse mesmo dia, para crédito na sua conta bancária com o nº 0354019407500, de que o mesmo era titular na agência dessa instituição bancária de Gouveia, onde veio a ser efectivamente creditado, tendo-lhe aposto, previamente, e para esse efeito, a sua assinatura no respectivo verso, sobre o carimbo empresarial da …, com a menção “A Gerência”, nos termos constantes de fls. 482 e 483;
Em 19 de Julho de 2004, recebeu da cliente … & …, Lda., o cheque n.º 3778439147, sobre a agência da Caixa Geral de Depósitos de Seia, emitido à ordem da “…”, no montante de € 4.491,13, para pagamento parcial dos bens que àquela haviam sido fornecidos pela … – T…, Lda., descritos nas facturas nº 2931 e 2942, e de que veio a ser emitido posteriormente o correspondente recibo nº 1841, nos termos constantes de fls. 241 a 243;
Em 20 de Julho de 2004, recebeu da cliente … Construção, Lda., o cheque n.º 2860288433, sobre o BPI, emitido à ordem de “…, Lda.”, no valor de € 1.000,00, para pagamento parcial dos bens que àquela haviam sido fornecidos pela … – T…, Lda., descritos na factura nº 3132, e de que veio a ser emitido posteriormente o correspondente recibo nº 1842, nos termos constantes de fls. 246, 248 e 249;
Cheques que perfaziam o montante global de € 5.491,13 e que, no entanto, o arguido não entregou à sociedade comercial de que era sócio-gerente, antes os tendo utilizado para pagamento parcial da dívida ao seu cunhado …, de que antes, em 04 de Julho de 2004, aquando da emissão e assinatura da citada declaração de fls. 1118 (que consta agora a fls. 1404), e nos termos descritos, assumira a obrigação de pessoalmente a pagar;
A quem o arguido os entregou em 20 de Julho de 2004, tendo-lhes aposto, previamente, e para esse efeito, a sua assinatura no respectivo verso, sobre o carimbo empresarial da …, com a menção “A Gerência”, nos termos constantes de fls. 317 e 345;
E que o seu cunhado … veio a apresentar conjuntamente para pagamento, nesse mesmo dia, 20 de Julho de 2004, aos balcões da agência de Gouveia do Montepio Geral, para crédito na conta DO n.º 141-10.002568-5, de que o mesmo e sua esposa … eram titulares nessa agência bancária, e na qual vieram a ser creditados, nos termos constantes de fls. 290 a 294, de fls. 341 a 345 e de fls. 565;
Em 22 de Julho de 2004, o arguido recebeu de … o cheque n.º 6502481286, sobre a agência do BES de Sacavém, emitido por …, ao portador, no valor de € 1.110,00, para pagamento dos bens que a este último tinham sido fornecidos pela … – T…, Lda., descritos na factura nº 3150 e de que veio a ser emitido posteriormente o correspondente recibo nº 1839, nos termos constantes de fls. 244 e 245;
Quantia que, porém, o arguido não entregou à sociedade comercial de que era sócio-gerente, antes a tendo integrado no seu património, apresentando, para esse efeito, o dito cheque a pagamento aos balcões do BES de Gouveia, no dia seguinte, 23 de Julho de 2004, sendo-lhe pago por caixa nessa mesma ocasião, e no qual, e para isso, apôs no respectivo verso a sua assinatura e apresentou o seu Bilhete de Identidade, cujo nº 8647242 também foi anotado no verso desse título, nos termos constantes de fls. 484 e 485;
Em data não concretamente apurada mas próxima de 27 de Julho de 2004, ou nesse próprio dia, o arguido recebeu de …, enquanto representante da …a, Lda., a quantia de €2.000,00, em numerário, para pagamento parcial dos bens que a esta sociedade comercial haviam sido fornecidos pela … – T…, Lda., descritos na factura nº 3108, e de que veio a ser emitido posteriormente o correspondente recibo nº 1843, nos termos constantes de fls. 250 e 251;
Quantia monetária que, contudo, o arguido igualmente não entregou à sociedade comercial a que era destinada e de que era sócio-gerente, antes a tendo utilizado para pagamento parcial da aludida dívida ao seu cunhado …, de que antes, em 04 de Julho de 2004, aquando da emissão e assinatura da citada declaração de fls. 1118, e nos termos descritos, assumira a obrigação de pessoalmente a pagar;
A quem o arguido a entregou e que este depositou em 27 de Julho de 2004, aos balcões da agência de Gouveia do Montepio Geral, para crédito na aludida conta DO n.º 141-10.002568-5, de que o mesmo e sua esposa … eram titulares nessa agência bancária, nos termos constantes de fls. 565;
Em 30 de Julho de 2004, o arguido recebeu de … o cheque nº 7522242312, sobre a agência do BPN de Mangualde, emitido ao portador, no montante de € 1.000,00, para pagamento parcial dos bens que àquele haviam sido fornecidos pela … – T..., lda, descritos na factura nº 3073, e de que veio a ser emitido posteriormente o correspondente recibo nº 1850, nos termos constantes de fls. 252 e 253;
Cheque esse que, porém, o arguido não entregou à sociedade comercial a que era destinado e de que era sócio-gerente, antes o tendo utilizado para pagamento parcial da referida dívida ao seu cunhado …, de que antes, em 04 de Julho de 2004, aquando da emissão e assinatura da citada declaração de fls. 1118, e nos termos descritos, assumira a obrigação de pessoalmente a pagar;
E a quem o arguido o entregou nesse mesmo dia, 30 de Julho de 2004;
Sendo que este seu cunhado …, por seu turno, veio a apresentá-lo a pagamento, também nesse dia 30 de Julho de 2004, aos balcões da agência de Gouveia do Montepio Geral, para crédito na dita conta DO n.º 141-10.002568-5, de que o mesmo e sua esposa … eram titulares nessa agência bancária, e na qual veio a ser creditado, fazendo-o conjuntamente com um outro seu cheque no valor de € 162,00, nos termos constantes de fls. 639 e 640, 663 a 666 e 565;
Em 4 de Agosto de 2004, recebeu de … o cheque n.º 2563338057, sobre o BPI, emitido ao portador, no valor de € 794,00, para pagamento parcial dos bens que àquele tinham sido fornecidos pela … – T..., lda, descritos nas facturas nº 2998, 3002 e 3061, e de que veio a ser emitido posteriormente o correspondente recibo nº 1867, nos termos constantes de fls. 262 a 266;
Cheque que o arguido também não entregou à sociedade comercial a que era destinado e de que era sócio-gerente, antes o tendo utilizado para pagamento parcial da referida dívida ao seu cunhado …, de que antes, em 04 de Julho de 2004, aquando da emissão e assinatura da citada declaração de fls. 1118, e nos termos descritos, assumira a obrigação de pessoalmente a pagar;
E a quem o arguido o entregou nesse mesmo dia, 4 de Agosto de 2004;
Sendo que este seu cunhado …, por sua vez, veio a apresentá-lo a pagamento, também nesse dia 04 de Agosto de 2004, aos balcões da agência de Gouveia do Montepio Geral, para crédito na dita conta DO n.º 141-10.002568-5, de que o mesmo e sua esposa …eram titulares nessa agência bancária, e na qual veio a ser creditado, nos termos constantes de fls. 295 a 299, 334 e 565;
Em 4 de Agosto de 2004, o arguido recebeu da cliente Construinveste, Lda., a quantia de € 1.000,00, em numerário, para pagamento parcial dos bens que àquela tinham sido fornecidos pela …– T..., lda, designadamente, dos descritos nas facturas nº 3018, 3040, 3057 e 3104, e de que veio a ser emitido posteriormente o correspondente recibo nº 1866, nos termos constantes de fls. 257 a 261 e 547 a 549;
Quantia monetária que, todavia, o arguido igualmente não entregou à sociedade comercial a que era destinada e de que era sócio-gerente, antes a tendo utilizado para pagamento parcial da aludida dívida ao seu cunhado …, de que antes, em 04 de Julho de 2004, aquando da emissão e assinatura da citada declaração de fls. 1118, e nos termos descritos, assumira a obrigação de pessoalmente a pagar;
A quem o arguido a entregou em data não concretamente apurada, mas situada entre 04 de Agosto de 2004 e 10 de Agosto de 2004;
E de que o seu cunhado veio a depositar apenas o montante de € 900,00, ficando com os restantes € 100,00 em seu poder, em 10 de Agosto de 2004, aos balcões da agência de Gouveia do Montepio Geral, para crédito na aludida conta DO n.º 141-10.002568-5, de que o mesmo e sua esposa … eram titulares nessa agência bancária, nos termos constantes de fls. 566;
Sucede ainda que, em 19 de Abril de 2006, nos Serviços do Ministério Público deste Tribunal Judicial de Gouveia, ao ser interrogado nessa qualidade, em diligência presidida pelo Magistrado do Ministério Público a exercer funções na comarca, prestou o seu depoimento de fls. 1080 a 1087 (cujos originais se encontram agora a fls. 1415 a 1422), e depois de nele ter admitido a entrega a seu cunhado … dos cheques e quantias monetárias acima descritos e de alegar que o fizera para pagamento parcial da dívida cujo cumprimento dizia ser da responsabilidade da … – T..., lda, o arguido … foi confrontado com a cópia da aludida declaração datada de 04 de Julho de 2004, que fora junta aos autos pelo seu ex – sócio …, e cujo original veio a ser junto a fls. 1118 (que consta agora a fls. 1404), por si assinada e em que declarava “para todos os efeitos que assume a responsabilidade do pagamento de empréstimo, no montante de € 26.700,00 (vinte e seis mil e setecentos euros), que …, efectuou à firma … – T…, L.da”;
Então, em conformidade com o plano que anteriormente havia congeminado, contra a realidade e sem imputar esses factos a pessoa(s) determinada(s), o arguido … levantou a suspeita de que a assinatura nela aposta não fosse da sua autoria e tivesse sido efectuada por outrem, afirmando, para o efeito, que «não se recorda de ter assinado tal declaração e, analisando a assinatura que nela está aposta como se fosse sua, considera que “não assina assim”, bastando confrontar as suas assinaturas apostas quer na escritura de cessão de quotas quer na declaração de fls. 26 e 27», reiterando, de seguida, que «a letra dessa assinatura não corresponde à sua, desconhecendo quando e por quem foi efectuada, estando disponível para se submeter a recolha de autógrafos com vista a determinar a autoria dessa assinatura”;
De tal forma que foi determinada a imediata recolha de autógrafos do arguido, com vista à realização de exame pericial comparativo de escrita para determinação da autoria da assinatura aposta em tal declaração, conforme despacho de fls. 1087;
Sendo também subsequentemente determinada e efectuada, com o mesmo objectivo, a recolha de autógrafos do sócio…;
Tendo em vista apurar da eventual prática do crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º, nº 1, do Código Penal, de natureza pública, cuja suspeita o arguido criara nos autos, nos termos descritos;
E, determinada que foi nova recolha de autógrafos, com a assinatura em minúsculas, ao arguido, este, no interrogatório que se lhe seguiu, realizado em 29 de Maio de 2005, nos Serviços do Ministério Público desta comarca, em diligência presidida pelo Magistrado do Ministério Público, nos termos constantes de fls. 1159, reafirmou que não tinha sido ele a assinar a dita declaração, sustentando que a sua assinatura habitual era efectuada em maiúsculas e que, desde os tempos da instrução primária, deixou de escrever em minúsculas em documentos oficiais, para os fazer conferir com a assinatura do seu Bilhete de Identidade;
Então, ao ser confrontado com o facto de a assinatura do cheque de fls. 1055 se encontrar efectuada em minúsculas, declarou que pretendia esclarecer toda a verdade, acabando por admitir que a assinatura da declaração em causa era efectivamente da sua autoria;
Recolhidos os autógrafos nos termos descritos, veio a ser solicitado e realizado pelo Laboratório de Polícia Científica o respectivo exame comparativo de escrita, nos termos que constam do respectivo relatório pericial de fls. 1394 a 1401, de que resultou efectivamente ser muito provável que a assinatura em causa seja da autoria do arguido;
Agiu o arguido sempre livre, deliberada e conscientemente, bem querendo e sabendo, de cada uma das vezes descritas nos factos provados, com excepção dos vertidos nos pontos 2.1.15. a 2.1.18 e 2.1.24. e 2.1.25, que se apropriava ilegitimamente de coisas móveis (valores monetários), sendo, numa delas, de valor elevado, por superior a € 4.450,00, que lhe tinham sido entregues por título não translativo de propriedade, entregando-as a terceiros para satisfazer parcialmente uma obrigação a cujo cumprimento pessoalmente se obrigara; e bem assim que, sem o imputar a pessoa determinada, denunciava/fazia criar a suspeita da prática de crime de falsificação perante a autoridade competente para a investigação, não obstante ter perfeito conhecimento de que o mesmo não se tinha verificado;
Tinha ainda perfeito conhecimento de que a sua conduta era punida criminalmente;
O arguido é emigrante na Suíça há cerca de 1 ano, onde trabalha na construção civil;
Recebe € 25,00 à hora, trabalhando 9 horas por dia, embora tal não suceda todos os dias da semana;
É casado e tem 3 filhos de 21, 19 e 15 anos de idade, sendo dois deles estudantes e um deles trabalhador-estudante;
A mulher é funcionária do Centro de Saúde e aufere mensalmente a quantia de € 490,00;
O arguido paga mensalmente a quantia de € 1.900,00 de encargos bancários;
Tem a 4ª classe;
Ao arguido não são conhecidos quaisquer antecedentes criminais.
Por seu turno, o Tribunal consignou os seguintes factos não provados:
Relativamente aos factos constantes em 2.1.15. a 2.1.18 e 2.1.24. e 2.1.25 dos factos provados, o arguido tenha agido sempre livre, deliberada e conscientemente, bem querendo e sabendo, que se apropriava ilegitimamente de coisas móveis (valores monetários) que lhe tinham sido entregues por título não translativo de propriedade integrando-as directamente no seu património;
Tinha ainda perfeito conhecimento de que a sua conduta era punida criminalmente.
A decisão em matéria de facto foi assim fundamentada:
A convicção do tribunal no que respeita à factualidade dada como provada formou-se com base na apreciação global e crítica da prova produzida nos autos, mormente a ampla prova documental e a que foi produzida em sede de audiência de julgamento.
Assim, relativamente à prova documental, teve-se em consideração os de fls. 67 a 69, 8 a 12, 222 a 227, 1044 a 1047, 1214, 560 a 563, 1404, 1055, 1056, 553 a 557, 521, 550, 551, 254 a 256, 482, 483, 241 a 243, 246, 248 e 249, 317, 345, 290 a 294, 341 a 345, 565, 244, 245, 484, 485, 250, 251, 565, 252, 253, 639, 640, 663 a 666, 565, 262 a 266, 295 a 299, 334, 565, 257 a 261, 547 a 549, 566, 1080 a 1087, 1415 a 1422, 1087 e 1394 a 1401.
Teve-se ainda em consideração as declarações prestadas pelo arguido, o qual confessou praticamente todos os factos constantes da acusação, pese embora tenha oferecido, quanto aos factos relativos aos crimes de abuso de confiança, uma explicação para os mesmos não coincidente com aquela que se encontrava vertida na douta acusação pública e que teve tradução na matéria de facto dada como provada.
Assim, no que concerne à declaração de fls. 1404 (anteriormente a fls. 1118), o arguido confirmou tê-la assinado na qualidade de sócio-gerente da …, pois no seu entender, a dívida perante o cunhado era uma dívida da sociedade e não sua.
Quanto ao facto, também confessado de que utilizou uma assinatura divergente da que habitualmente usava, alegou tê-lo feito porque já adivinhava que as “coisas corressem mal”, muito embora fosse pouco esclarecedor quanto ao motivo pelo qual agiu dessa forma.
O mesmo se diga em relação ao cheque de fls. 1055 e 1556, no valor de € 10.000,00. Também aqui, o arguido, confessando ter nele aposto uma assinatura divergente daquela que habitualmente usava, disse também ter pressentido que as “coisas iam correr mal”, aqui concretizando que tinha combinado com o Eduardo que lhe passaria aquele cheque, mas que o Eduardo lhe teria que entregar outro, da …, do mesmo montante. Como imaginou que o Eduardo não o fosse fazer, ”falsificou” a assinatura e que também por isso foi imediatamente ao banco, após a realização da escritura pública de cedência da quota, solicitar o seu não pagamento.
Contudo, da conjugação da prova testemunhal produzida, designadamente dos depoimentos das testemunhas… (à época sócio-gerente da …) e … (a quem o arguido cedeu a sua quota), com o teor dos documentos dos autos e ainda com as regras de experiência comum, fica-nos a convicção da verificação dos factos dados como provados.
Pois que, por um lado, as explicações oferecidas pelo arguido acima referidas não lograram convencer o tribunal, mostrando-se até desconformes como o próprio teor do documento de fls. 1404, onde inequivocamente se lê: “Eu abaixo assinado, ………declara para todos os efeitos que assume a responsabilidade do pagamento….”.
Por outro lado, o arguido não apresentou uma explicação plausível e convincente quanto às razões por que tendo, alegadamente, subscrito esse documento na qualidade de sócio-gerente da …, “pressentiu” a necessidade de disfarçar a assinatura aposta nesse documento.
Relativamente aos antecedentes criminais considerou-se o C.R.C. do arguido junto aos autos a fls. 1947.
Quanto à situação patrimonial e pessoal do arguido considerou-se as suas próprias declarações.
Quanto aos factos constantes dos pontos 2.2.1. e 2.2.2, que não resultaram provados, teve-se em consideração a circunstância de o arguido ter alegado ser credor das quantias que fez suas, por ordenados em atraso, sendo tal facto do conhecimento do outro sócio-gerente.
Este, muito embora quando ouvido, tenha dito não ter conhecimento de que o arguido fizera suas as indicadas quantias, referiu que, de facto, estavam em dívida por parte da sociedade alguns meses de vencimentos. Facto esse que foi também confirmado pela testemunha ….
Assim, sendo certo que não foi possível afastar as suspeitas que sobre o arguido recaíam, permanece em dúvida a verificação ou não desses factos, mormente quanto à legitimidade ou ilegitimidade da apropriação dessas quantias.
Dúvida que é insanável, razoável e objectivável.
E, “A persistência da dúvida razoável (que mantendo-se) após a produção de prova, tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido” (DIAS, Figueiredo, Direito Processual Penal, 1974, p. 211-9), como impõe o princípio do in dubio pro reo, fundado no princípio da presunção da inocência, consagrado no artigo 32º n.º 2 da CRP.
Assim sendo, tal dúvida irá necessariamente aproveitar ao arguido, conduzindo à sua absolvição nessa parte.
Da impugnação da decisão em matéria de facto
A primeira questão a apreciar prende-se com a impugnação da decisão em matéria de facto pelo arguido, considerando os demais sujeitos processuais que a evocação das provas gravadas não pode ser conhecida, por desrespeito das especificações impostas pelo artº 412º, nºs. 3 e 4, do CPP. Vejamos se assim acontece ou, ao invés, como referiu na resposta ao parecer do Sr. Procurador-Geral Adjunto, o recorrente fez o «suficiente».
Nos termos do artº 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do artº 412º, nº3 do mesmo código.
Tem sido salientado a uma voz pelos Tribunais Superiores que o recurso em matéria de facto é de fulcral importância para a salvaguarda dos direitos constitucionais de defesa e, para tanto, deve a Relação proceder a efectivo controlo da matéria de facto provada na 1ª instância, por confronto desta com a documentação em acta da prova produzida oralmente na audiência. Porém, essa dimensão do recurso não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas sim, e apenas, remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente [[iv]].
Assim, para atingir a completa delimitação do objecto do recurso e obstar à utilização do recurso apenas para sobrepor uma nova apreciação àquela formulada em 1ª instância, veio o legislador processual penal da revisão operada pela Lei 48/2007, de 29/8, a par da eliminação da exigência da transcrição dos depoimentos [[v]], impor ao recorrente em matéria de facto que na motivação proceda a uma tríplice especificação: concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e ainda, quando o solicitar, concretas provas a renovar.
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: deve o recorrente ter como referência o consignado na acta quanto ao registo áudio ou vídeo das prova prestadas em audiência mas também indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nºs 4 e 5 do artº 412º do CPP).
Tais exigências constituem «ónus que se justificam no quadro do dever de colaboração das partes com o tribunal, e que facilitam e, consequentemente, possibilitam que seja mais célere, como é preocupação saliente do processo penal, o julgamento do recurso pelo tribunal superior» [[vi]], levando ainda o legislador, para acomodar esse esforço acrescido, a aumentar o prazo de recurso de 20 para 30 dias [[vii]].
Compulsada a motivação apresentada, verifica-se que o recorrente concretiza minimamente os pontos de facto que reputa de incorrectamente julgados. Sendo certo que a compreensão das conclusões é dificultada pela sua prolixidade, compreende-se do referido nas conclusões 10ª e 11ª, em conjunto com o referido na pág. 16 do corpo das motivações, que a impugnação é dirigida à decisão constante dos factos provados com os nºs 8 a 11, designadamente quanto a três factos: que a declaração de fls. 1404 foi assinada antes do contrato promessa; que esse documento traduz vontade do arguido de se obrigar pessoalmente; que a assinatura divergente da habitual foi efectuada com o propósito de se exonerar de responsabilidade pessoal.
Nessa medida, afigura-se respeitado o dever emergente da al. a) do nº3 do artº 412º do CPP – especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados.
Ultrapassada essa primeira apontada deficiência, que não existe, cumpre tomar a segunda exigência delimitadora. Importa perceber se o arguido inscreveu no recurso, como exigido, não só a referência ao início e final das provas gravadas que pretende ver reapreciadas por esta Relação, em termos similares ao exigido pelo nº2 do artº 362º do CPP, como se concretizou minimamente as parte do que foi dito em que se funda a impugnação (artº 412º, nº4, do CPP). Sublinhe-se que não se trata de exigir que o recorrente transcreva os depoimentos mas sim que aponte detalhadamente a concreta actividade probatória que determina, na sua óptica, a existência de erro judiciário. Para tanto, incumbe-lhe individualizar esses segmentos, não lhe sendo mesmo exigível que consigne tais indicações tanto no corpo da motivação como nas conclusões, bastando, no entendimento que vimos seguindo, que constem em qualquer momento da motivação do recurso [[viii]].
Ora, tomando o corpo das motivações e as conclusões, verifica-se que o recorrente escolhe, em relação a todos as provas gravadas, efectuar alusões genéricas à sua valoração do sentido desses depoimento, o que incumpre claramente a exigência legal de indicação especificada das passagens a apreciar.
Por outro lado, e como refere a demandante, tendo a acta de julgamento consignado, como impõe o nº2 do artº 364º do CPP, o ponto do registo em cassete áudio das declarações e depoimentos [[ix]], o recorrente limita-se a indicar a numeração desses suportes, sem o menor esforço delimitador.
Importa referir que, porque estamos perante inteira omissão de cumprimento das referidas exigências, e que não se reduz ao plano formal da ausência de referência delimitadora aos suportes técnicos [[x]], não deve ter lugar convite ao aperfeiçoamento.
De acordo com o disposto nos nºs. 3 e 4 do artº 417º, do CPP, o aperfeiçoamento pode ter lugar quando a motivação não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs. 2 a 5 do artº 412º do mesmo código, mas sempre sem modificar o âmbito do recurso. Então, quando o corpo das motivações não contém especificações exigidas por lei já não encontramos insuficiência das conclusões mas sim insuficiência do recurso, com a cominação de não poder a parte afectada ser conhecida.
A situação em presença é inteiramente similar àquela que levou o Supremo Tribunal de Justiça a referir que o «convite ao aperfeiçoamento conhece limites, pois que se o recorrente no corpo da motivação do recurso se absteve do cumprimento daquele ónus, que não é meramente formal, antes com implicações gravosas ao nível substantivo, não enunciou as especificações, então o convite à correcção não comporta sentido porque a harmonização das conclusões ao corpo da motivação demandaria a sua reformulação, ao fim e ao cabo, contas direitas, inscreveria um novo recurso, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo a peremptoriedade do prazo de apresentação do direito ao recurso» [[xi]].
Por outro lado, a conformidade constitucional deste entendimento, relativo à ausência de cumprimento do disposto no artº 412º, nº3, do CPP nas motivações e conclusões, e não apenas nas conclusões [[xii]], face à norma do artº 32º, nº1, da CRP, tem sido unanimemente reconhecida pelo Tribunal Constitucional [[xiii]].
Face a tais deficiências substantivas, não pode este Tribunal conhecer da impugnação fundada na apreciação – audição - dos depoimentos das referidas testemunhas.
Aqui chegados, importa considerar que a parte fundamental da argumentação apresentada no recurso centra-se na análise de prova documental, ou seja, em prova abrangida pelo artº 431º, al. a) do CPP, mormente da declaração de fls. 1404, o qual é convocado pelo recorrente como demonstração da sua vontade real na declaração.
Porém, em boa verdade, o arguido não indica qual foi, exactamente, a sua vontade na emissão dessa declaração e o padrão de comportamento determinado bem como o sujeito que lhe ficou adstrito, como emerge da referência na conclusão 16ª que «todas as interpretações são possíveis». Ao certo, resulta da motivação do recurso a indicação de a declaração não antecedeu a cessão de quotas e que, ao emiti-la, no arguido não teve vontade de assumir obrigação pessoal nem de exonerar a sociedade do pagamento ao credor António Madeira Lopes, propugnando pela consideração de tais factos como não provados.
Cabe, antes de mais, referir que apenas o apuramento da vontade real dos intervenientes numa declaração constitui matéria de facto [[xiv]]. Já a interpretação e integração das declarações negociais, na ausência desse apuramento e por recurso às regras consignadas nos artºs 237º a 239º do CC, integra matéria de direito, pelo que não podem ser equacionadas neste plano de análise, como não foram pelo Tribunal a quo, face ao exarado na fundamentação da decisão em matéria de facto.
Nessa parte, a decisão estribou-se na conjugação dos depoimentos de … e …, no teor do documento de fls. 1404 e nas regras de experiência comum, salientando especialmente a desconformidade das explicações oferecidas pelo arguido com o teor daquele documento.
Verifica-se, por outro lado, que o arguido assaca à decisão violação das regras dos artºs 371º, 377º e 393º do CC, quanto ao valor probatório dos documentos autênticos ou autenticados, mas não se compreende, nem o recorrente indica, em que medida foram desaplicadas ou aplicadas de forma deficiente pelo Tribunal a quo.
Na valoração probatória em processo penal, rege o princípio geral da livre apreciação, como decorre do artº 127º do CPP (Salvo quando a lei dispuser diferentemente a prova é apreciada segundo das regras da experiência e a livre convicção da entidade competente).
Como excepção a essa regra surge exactamente a valoração dos documentos autênticos ou autenticados, na medida em que o artº 169º do mesmo código estabelece: Consideram-se provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa. Trata-se, no entanto, tão-somente da comprovação material do conteúdo do documento, o que não significa conformidade ideológica entre os termos da declaração e vontade do declarante.
Percorrendo o corpo das motivações e as conclusões, verifica-se que o recorrente alude a certo passo à escritura de cessão de quotas e ao contrato promessa mas omite qualquer desenvolvimento argumentativo relativamente a essa pretérita violação, não se encontrando no texto da sentença qualquer sinal de desrespeito das regras de apreciação probatória de documentos autênticos ou autenticados.
Relativamente aos documentos particulares não autenticados, não têm força probatória legal plena no âmbito do processo penal, incluindo-se na livre apreciação do tribunal (art. 127º e CPP).
Como se disse, o primeiro aspecto da decisão de facto relativamente ao qual o arguido manifesta discordância prende-se com a data de emissão da declaração de fls. 1404. Sucede que a data indicada nos factos provados para sua elaboração coincide com aquela constante do documento – 4 de Julho de 2004 – sem que se encontre qualquer motivo para apontar a sua desconformidade com a realidade.
A segunda discordância é dirigida à decisão de ter-se dado como provado que «o arguido quisesse chamar a si uma responsabilidade pessoal de uma dívida que não era sua e isentar a verdadeira devedora, a sociedade» mas esse sentido não decorre inteiramente dos factos provados.
Vejamos.
Nos termos provados, o arguido assumiu a qualidade de sócio-gerente da sociedade …, Lda mas, no decurso do ano de 2004, decidiu ceder a sua quota e renunciar à gerência. Porque a cedência defrontava o obstáculo da preferência legal conferida a outro sócio-gerente – … – foram mantidas negociações com este e que culminaram com acordo contratual. Os termos desse acordo de vontades atingido entre o arguido e … encontram-se identificados no ponto 8 dos factos provados: … comprometeu-se a não exercer a preferência e consentir na cessão, intervindo em conformidade na escritura; em contrapartida, o arguido pagar-lhe-ia no acto da escritura a quantia de €10.000 (dez mil euros) e obrigava-se a pagar pessoalmente a dívida total da sociedade … a …, no montante de €26.700 (vinte e seis mil e setecentos euros). Nada se diz relativamente à desoneração da sociedade nem relativamente à vontade do credor de eximir a mesma da responsabilidade por esse pagamento.
Nos dois pontos seguintes dos factos provados vem referido o teor da declaração de fls. 1404 e indicação da sua assinatura pelo arguido, fazendo-o de forma diferente do que habitualmente usava e constava do bilhete de identidade, criando aparência de falsidade com propósito de se poder eximir ao cumprimento das obrigações assumidas na declaração. Novamente, nada se diz relativamente à liberação da sociedade ou ao padrão de comportamento esperado pelo credor ….
Na definição de Isay, citado por Teixeira de Sousa [[xv]], «declaração de vontade de uma pessoa é aquele comportamento que segundo a experiência e consideração de todas as circunstâncias permite concluir por uma vontade determinada e de cuja conclusão ela esteja ou devesse estar consciente». Por outro lado, uma declaração, incluindo as declarações negociais, configura, antes de mais, uma acção humana e deve ser entendida como acto de comunicação, ou seja, como acção que releva por dela se depreender uma opção volitiva (interior) do declarante e também como acto de validade, na medida que manifesta – exterioriza - uma adstrição da própria vontade, que a origina, a um padrão de comportamento determinado, pré-indiciado por ela própria [[xvi]].
Ora, enquanto acto de comunicação, a declaração de fls. 1404 assume um conteúdo claro e que não comporta, nem sequer em termos imperfeitos, sentido alternativo.
De acordo com a experiência comum o teor do documento de fls. 1404 corresponde, segundo a experiência comum, à emissão de declaração em nome próprio e não em representação de terceiro, mormente no exercício da gerência. Esse é o sentido que um qualquer destinatário retira da expressão «Eu, abaixo assinado, …..», conjugada com a indicação que «... declara para todos os efeitos que assume a responsabilidade do pagamento de empréstimo...». Aliás, só assim se compreende tal declaração pois, sendo a dívida reconhecida por todos como passivo da sociedade …, a declaração de responsabilidade pelo seu pagamento em representação da pessoa colectiva seria de todo redundante e inútil, para mais tendo como destinatário principal o outro sócio-gerente (…).
Não colhe aqui a indicação de que o propósito seria de conferir preferência àquele credor, ou a impor especial diligência ao arguido perante esse credor até à cessão, pois a declaração não contém qualquer disposição com esse sentido, limitando-se a referir secamente o montante do crédito sobre a sociedade (€26.700,00), a sua origem (empréstimo) e titular (…). Aliás, repete-se, mesmo essa explicação é avançada pelo recorrente em termos hipotéticos [[xvii]].
Novamente, importa alertar que a conformação jurídica das declarações negociais e dos feixes obrigacionais que delas decorrem não integra a decisão de facto, pelo que a referência nos factos provados à assunção de «obrigação pessoal» não é mais do que a afirmação de que o arguido acordou e emitiu a declaração em seu nome pessoal e não em representação da sociedade … em conformidade com a literalidade do documento. Ou seja, dizendo de outro modo, a decisão recorrida transmite a indicação que o arguido pretendeu exteriorizar exactamente o sentido normal da declaração, e não comunicar vontade com contornos distintos, porque além ou aquém do declarado.
Por fim, insurge-se o recorrente quanto à prova de que, ao assinar da forma provada – conduta que eufemisticamente descreve como «de forma a criar dificuldades à outra parte» – tenha tinha consciência de que estava a reconhecer responsabilidade obrigacional.
Todavia, também aqui, a ponderação exclusiva do teor da prova documental não consente diferente entendimento, sem violentar as regras da experiência comum. Quem assina declaração a título pessoal e que chama para si a responsabilidade do pagamento de empréstimo não pode ignorar que as obrigações jurídicas emergentes da declaração incidem sobra a sua pessoa e esfera patrimonial e, logicamente, encontra nessa consciência a motivação para o recurso ao sórdido estratagema de inscrever assinatura diferente da normalmente empregue para, assim, poder negar a sua autoria. Recorde-se que foi essa a postura assumida inicialmente nos presentes autos pelo arguido, quando confrontado com o documento.
Face ao exposto, improcede a impugnação da decisão em matéria de facto.
Dos crimes de abuso de confiança
A segunda questão colocada no recurso incide sobre o cometimento dos crimes de abuso de confiança, tipificados no artº 205º do C.P. Nos termos desse preceito, comete o crime quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade, com o que se protege o bem jurídico propriedade alheia, no contexto de uma relação de fidúcia entre o agente e o proprietário [[xviii]].
A essência típica do ilícito encontra-se na inversão do título de posse, o que acontece quando o agente adquire por título não translativo da propriedade uma relação fáctica de domínio sobre a coisa para lhe dar um certo destino mas dá-lhe outro, passando a comportar-se como seu proprietário, agindo com animo domini.
O arguido não discute ter utilizado quantias recebidas no âmbito da sociedade para pagamento de quantias mutuadas à … por … e a que se refere a declaração de fls. 1404, mas sustenta que a sua actuação foi justificada e lícita, limitando-se a reduzir o passivo da sociedade de que era gerente, sem se locupletar por qualquer forma. Evoca, para o efeito, o regime da assunção de dívida constante do artº 595º do C.C. e a ausência de acordo ratificativo do credor, sem o qual não se opera a exoneração do primitivo devedor.
Em contraponto, considera o Ministério Público que os dois únicos sócios gerentes – o arguido e … – acordaram, antes da cessão de quotas, na solução de todas as dívidas, desonerando a sociedade do respectivo pagamento, vindo o arguido a utilizar as entregas de quantias à sociedade para satisfazer obrigações pessoais.
Por seu turno, a assistente …, lda, admite que a assunção de dívida não produz efeito perante o credor …, por falta da sua ratificação, mas que tal não impede que produza efeitos nas relações …-arguido.
Ora, na tarefa de qualificação jurídica dos negócios jurídicos, importa considerar que a declaração negocial constante do documento de fls. 1404 não pode ser desligada do contrato celebrado e a que deu execução.
Com efeito, e como já se referiu, os factos provados referem a existência de acordo entre os dois sócios gerentes, nos termos do qual o arguido assumiu a obrigação de pagar uma dívida da sociedade a um seu cunhado e de pagar a … a quantia de €10.000,00. Na economia do programa contratual acordado, a declaração emitida em 4/07/2004 e o cheque fls. 1055 e 1056 dão execução a esse acordo e não constituem fontes de vinculação exteriores ao mesmo.
Como se disse, o arguido suscita a interpretação das declarações negociais, cujos princípios gerais constam dos artºs 236º a 238º do CC. O grande princípio da interpretação negocial, consagrando a doutrina da impressão do destinatário, encontra-se no artº 236º do CC.
Ensinam os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela a este respeito [[xix]]:
«(…) A regra estabelecida no n.º 1 do art. 236.º é esta: o sentido da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (n.º1), ou de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (n.º2)
(...) Consagra-se assim uma doutrina objectivista da interpretação, em que o objectivismo é, no entanto, temperado por uma salutar restrição de inspiração subjectivista.
(…) A ressalva contida na parte final do n.º 1 tem plena aplicação naqueles casos, por exemplo, em que o sentido razoavelmente atribuído pelo declaratário a determinados vocábulos da declaração seja completamente ignorado do círculo de pessoas em que vive o declarante, e muito diferente do sentido em que este o empregou. A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos, que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante».
Escreve, por seu turno, Calvão da Silva[xx], sobre as circunstâncias atendíveis para a interpretação:
«De entre as várias circunstâncias atendíveis para a interpretação merecem realce os termos do negócio e os termos da lei, devendo o contrato ser interpretado conforme os seus termos, sentido e fim, e ainda conforme a lei não arredada pelas partes. De facto, nada mais natural, na fixação do conteúdo decisivo do negócio jurídico, do que tomar o declaratário efectivo, presumir que ele teve conhecimento e em contra a própria lei, tal qual o faria uma pessoa razoável, posta na sua situação».
Aplicando esse regime ao caso em apreço, afigura-se-nos claro que um qualquer destinatário, dotado de razoável inteligência e colocado na posição do destinatário da declaração, não tem dúvida em considerar que o arguido emitiu uma declaração em que assumiu como obrigação pessoal uma dívida da sociedade para com terceiro.
O arguido avança com um conjunto de questões, procurando criar cenários e, com o devido respeito, gerar dúvidas sem qualquer razoabilidade. Questiona porque não ficou mais claro que a obrigação era pessoal quando, na realidade, isso mesmo decorre, como se disse, da conformação concreta da declaração. Pergunta ainda porque o contrato promessa não lhe faz referência, o que de facto acontece, sem que daí resulte qualquer estranheza ou elemento relevante de interpretação, pois os contraentes são distintos e diferente o objecto contratual. Interroga, também, se fazia sentido pagar do seu bolso uma dívida que não era sua mas essa ponderação nada tem de interpretação da declaração, remetendo antes para o enquadramento negocial geral e o peso relativo de cada uma das partes, conducente a um determinado exercício da autonomia privada.
Todo esse esforço argumentativo, conflui na indicação de que persiste dúvida sobre o sentido da declaração, conduzindo à aplicação do disposto no artº 237º do CC. Então, porque, na sua opinião, se tratou de contrato com prestações desequilibradas, não sendo «justo e equitativo» que o arguido recebesse o preço da cessão - €65.000,00 - deduzido de quantia consideráveis que ele próprio não devia, haveria que decidir a seu favor, evocando a seu favor o princípio in dubio pro reo.
De acordo com o disposto no artº 237º do CC, em caso de dúvida sobre o sentido da declaração negocial, prevalece, nos negócios gratuitos para o disponente e nos onerosos o sentido que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.
Porém, no caso em apreço não persiste qualquer dúvida sobre o sentido da declaração, i.e. sobre o que nela se quer dizer – o arguido chamou a si a obrigação de pagar dívida da … para com … – pelo que não existe fundamento para lançar mão da justiça comutativa.
Note-se ainda que esse preceito deve entendido com cautela, na medida «... a lei não quer, a todo o custo, um equilíbrio de prestações que, assim, se apresentaria como regra limitativa da autonomia privada. A melhor demonstração desse estado de coisas reside na admissibilidade dos negócios gratuitos»[xxi].
Por seu turno, o princípio in dubio pro reo constitui, em primeira linha, princípio probatório e postula que uma dúvida positiva e racional que impeça um juízo de certeza condenatória, ou seja, que não exclua a possibilidade de as coisas se passarem num dado sentido mas não afaste a consistente hipótese do contrário, deve ser ultrapassada em favor do arguido [[xxii]].
Ora, mesmo que fosse aqui de aplicar aquele preceito civilista – e não é - nenhuma influência nessa operação teria o aludido principio processual penal. É que a regra do artº 237º do CC impõe a procura do equilíbrio, enquanto o princípio processual penal impõe exactamente o desequilíbrio em favor do arguido.
Conclui-se, então, que o arguido emitiu declaração com o sentido de se obrigar pessoalmente pelo pagamento de dívida da sociedade ….
Estamos, no entanto, longe de esgotar o problema. Ao invés, aproximamo-nos do seu cerne, a saber, a caracterização desse negócio jurídico e os efeitos produzidos na esfera jurídica do declarante e declaratário bem como o grau de afectação de terceiros, com destaque para a sociedade, aqui assistente.
Neste plano, a posição do recorrente no corpo da motivação foi a de questionar se se trata de uma assunção de dívida, sujeita ao regime do artº 595º do CC, ou de uma fiança, nos termos do artº 627º do CC.
Novamente, trata-se quase de pergunta retórica, de sobreposição de cenários, e que não encontra no texto da declaração qualquer suporte. Não se encontra alusão ou fiança ou sequer a garantia pelo que as regras interpretativas supra enunciadas apontam decisivamente para a assunção de obrigação principal e não simplesmente acessória.
Afastada a liminarmente a constituição de fiança, deparamos, então, com a exteriozação de transmissão singular de dívida.
Prevista no artº 595º do CC, como o próprio nome indica, a assunção de uma dívida é um acto jurídico pela qual um terceiro (assuntor) se obriga a efectuar a prestação devida por outrem, em que se opera uma mudança na pessoa do devedor mas sem que haja alteração do conteúdo nem da identidade da obrigação. Para tanto, exige-se que seja feita por contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificada pelo credor (al a) do nº1 do artº 595º do CC) ou então por contrato entre o novo devedor e o credor, com o sem consentimento do antigo devedor (al. b) do nº1 do artº 595º do CC).
Logo aqui se encontra a primeira dificuldade: o contrato de assunção de dívida teve intervenção do arguido, como assuntor, e de …, sem que seja claro se a sua intervenção no contrato ocorreu exclusivamente a título pessoal ou em representação da sociedade …. Uma vez que o referido preceito exige para a transmissão de dívida a intervenção no contrato ou do credor ou do primitivo devedor, a ausência de um ou de outro conduz à verificação de outra figura jurídica, a saber, o contrato a favor de terceiro (artº 443º, nº 1 e 2 do CC).
Porém, como se verá de seguida, em ambos casos, a tipicidade penal encontra-se excluída.
Com efeito, dando de barato que … acordou com o arguido em representação da sociedade, ou em seu nome pessoal e em representação da sociedade, ainda assim importa saber se estamos perante assunção liberatória, exclusiva ou privativa da dívida ou, ao invés, perante assunção cumulativa da dívida, acessão ou adjunção à dívida, assunção multiplicadora ou reforçativa da dívida. Para o efeito, rege nº2 do artº 595º do CC: A transmissão só exonera o antigo devedor havendo declaração expressa do credor, de contrário, o antigo devedor responde solidariamente com o novo obrigado.
Tomando os factos provados, não se encontra indicação de qualquer declaração emitida pelo credor no sentido de exonerar o antigo devedor – a ….
Mais, como se disse, mesmo na declaração de fls. 1404 nada se diz expressamente quanto à liberação do primitivo devedor.
Cumpre, então, com nitidez, considerar que estamos perante assunção cumulatória, em que o credor pode exigir o cumprimento da obrigação seja ao primitivo devedor, seja ao novo obrigado (assuntor).
Contrapõe a assistente que essa circunstância não impede que o contrato produza efeitos entre os declarantes e, de facto, assim acontece. São, porém, efeitos contratuais, de respeito pelo princípio pacta sunt servanta, e que não comportam, face ao artº 595º, nº2, do CC, o efeito de retirar a exigibilidade da dívida para com a ….
Assim, quando o arguido utilizou proventos da sociedade para pagar a dívida para com … não procedeu ao pagamento de obrigação que apenas sobre si incidia. Antes satisfez, no exercício pleno dos seus poderes de gerência, uma dívida líquida e exigível também sobre a sociedade, a qual poderia ser a única accionada pelo credor. Nessa medida, agiu licitamente, não dando às quantias destino diverso do devido, ou seja, à regularização do passivo societário.
Por fim, mesmo a integração do acordo na figura do contrato a favor de terceiro não altera a conclusão de ausência de tipicidade penal pois, independentemente de obrigações contratuais emergentes (artº 444º do CC), não ocorre qualquer efeito liberatório da …, permanecendo inalterada a possibilidade do credor exigir judicialmente o pagamento.
Face ao exposto, cumpre concluir pela inverificação de qualquer dos crimes de abuso de confiança e pela absolvição do arguido.
Do crime de simulação de crime
Prosseguindo, a terceira dimensão do recurso prende-se com a condenação pelo crime de simulação de crime p. e p. pelo artº 366º do CP. Para o efeito, salienta que, na sua qualidade de arguido, não estava obrigado a responder com verdade.
O Ministério Público reconhece que o arguido não tem o dever de prestar depoimento com verdade mas contrapõe que quando levanta suspeita da prática por outrem de crime de falsificação de documento extravasa o âmbito do seu direito de defesa.
O tipo penal previsto no artº 366º do CP pune a conduta de quem, sem o imputar a pessoa determinada, denunciar crime ou fizer criar suspeita da sua prática à autoridade competente, sabendo que ele não se verificou. Inscreve-se no âmbito da tutela da realização da Justiça, aqui na dimensão da eficácia funcional ou de preservação de todo o potencial de perseguição criminal, evitando a dispersão por investigações sem fundamento [[xxiii]].
A conduta ponderada para a condenação prende-se a circunstância do arguido, ouvido em interrogatório realizado por magistrado do Ministério Público nestes autos, ter negado a autoria da assinatura da declaração de fls. 1404, referindo que desconhecia quando e por quem fora efectuada. Após essa diligência, foi ordenado e realizado exame pericial, pese embora o arguido tenha aceite a autoria na altura em que lhe foram colhidos autógrafos.
Porém, não se pode desligar essa conduta da condição de arguido e da salvaguarda constitucional das garantias de defesa e o privilégio contra a auto-incriminação -nemo tenetur se ipsum accusare -, em que se inscreve o direito ao silêncio sobre os factos imputados [[xxiv]], a ausência de incriminação relativamente às falsas declarações e o direito elementar de negar a prática do facto que lhe é imputado. Não se confunda, porém, a inexigibilidade do dever de colaborar e falar verdade, reduzidos a simples deveres morais, com a consagração de um direito a mentir [[xxv]].
No seu conjunto, e por contraponto com outros sistemas jurídicos que consideram o arguido como verdadeira testemunha, mesmo que beneficiando da prerrogativa de recusar-se a responder a perguntas, o sistema jurídico-constitucional português vigente procurou reunir garantias de que quem responde criminalmente não fica envolvido numa situação de conflito, representativo de um qualquer «estado de coacção» prejudicial ao exercício do direito de defesa [[xxvi]].
Ora, em substância, a decisão recorrida impõe ao arguido um dever de colaboração com a realização da Justiça e uma alternativa dilemática que não é compatível com o seu estatuto e garantias constitucionais. Confrontado com a questão sobre a autoria da declaração, e tendo decidido responder, ou bem que reconhecia o facto, podendo contribuir para a sua incriminação, ou então afirmava algo distinto e, invariavelmente, na tese sufragada pelo Ministério Público, levava à abertura de inquérito por crime de falsificação, sujeitando-se a perseguição criminal por simulação de crime.
E nem se diga que o direito de defesa se esgota com a afirmação de que a assinatura não era sua pois, na verdade, a indicação da autoria do facto por outro é apenas o reverso da negativa da prática do facto imputado e não pode ser desligado desse direito. A simples refutação já contém implícito o sentido de que, existindo o documento e a assinatura, alguém que não ele havia procedido à sua elaboração.
Por outro lado, verifica-se que, não obstante esse comportamento, o inquérito manteve-se sempre orientado exclusivamente contra o arguido, sem a verdadeira criação na autoridade judiciária responsável pela investigação de suspeita contra desconhecido e, inerentemente, de actividade processual determinada unicamente pelas declarações falsas em interrogatório.
Reconhece-se razão ao arguido quando salienta o exame pericial à escrita teve lugar mesmo depois de reconhecer a genuinidade da assinatura, o que demonstra que essa prova foi reputada necessária, independentemente das suas declarações. E, de acordo com a experiência judiciária, compreende-se plenamente que assim tenha sucedido, garantindo a existência de prova pericial autónoma para a eventualidade do arguido voltar a negar o facto em julgamento ou simplesmente remeter-se ao silêncio.
Diga-se, por fim, que, como nota Simas Santos [[xxvii]], mesmo mentirosas, as declarações do arguido podem ser úteis às investigações, enquanto expressão livre da sua personalidade.
Assim, ao que nos parece por redução teleológica da área de tutela da incriminação, entendemos não tem tipicidade penal a conduta de arguido que, ouvido nessa qualidade, negue a conduta imputada e declare a sua prática por outrem não identificado, sabendo que tal não se verificou, mesmo que dessa forma gere suspeita na autoridade competente da prática de crime de natureza pública [[xxviii]].
Procede o recurso, também quanto a esta questão.
Do pedido de indemnização civil
Apreciada a vertente criminal do objecto do recurso e decidida a absolvição do arguido, cumpre passar a apreciar a vertente relativa ao pedido de indemnização civil.
A primeira questão colocada pelo recorrente prende-se com a indicação de que a sociedade só «existe no papel» e de que o mandato conferido nos autos pela … caducou com a cessação de funções da gerência que conferiu tais poderes.
A ausência de fundamento nesse plano do recurso é manifesto. As sociedades comerciais não se extinguem de jure pela cessação de actividade, persistindo até à sua dissolução, nos termos do artº 141º do Código das Sociedades Comerciais, pelo que é indiferente saber do modo como subsiste. Por outro lado, de acordo com o artº 1174º do CC, o mandato apenas caduca por morte ou interdição do mandante ou do mandatário bem como por inabilitação do mandante, equivalendo à morte da pessoa física a dissolução da pessoa jurídica, o que não aconteceu. Nessa medida, o mandato mantém-se válido. E, mesmo que assim não fosse, não estaríamos perante qualquer nulidade, antes perante falta de procuração, a determinar o cumprimento do disposto no artº 40º, nºs 1 e 2 do CPC.
No caso em apreço, subsistindo, como se viu, tendo o arguido pago uma dívida que não deixara de integrar o passivo da sociedade …, e, portanto, determinar qualquer diminuição patrimonial indevida – ilícita - na esfera jurídica da sociedade, impõe-se concluir pela ausência dos pressupostos da obrigação de indemnizar, tal como definidos no artº 483º do CC.
Sustenta a assistente/demandante que a … contava legitimamente que o arguido pagasse a dívida pela qual assumira responsabilidade pessoal e reclama ter sofrido «prejuízo correspondente às quantias que, cumprido o acordado, teriam antes ingressado na esfera do seu património». Trata-se, porém, de pretensão indemnizatória fundada exclusivamente em cumprimento contratual, a qual não pode ser aqui conhecida. Nos termos do assento do STJ nº 7/99, de 17/6/99 [[xxix]]:
«Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artº 377º, nº1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade contratual».
Falece igualmente a condenação do arguido no pagamento de indemnização à demandante …, Lda.
Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:
Julgar procedente o recurso;
Revogar a sentença recorrida e absolver o arguido … dos crimes de abuso de confiança – um agravado, p. e p. pelo artº 205º, nº1 e 2, al. a) do CP e quatro p. e p. pelo artº 205º, nº1, do CP - e de simulação de crime, p. e p. pelo artº 366º, nº1, do CP bem como julgar totalmente improcedente o pedido de indemnizatório e dele absolver o mesmo arguido.
[i] Levam-se em conta as rectificações indicadas a fls. 2080 e mantém-se a numeração, apesar da ausência das conclusões 47ª e 48ª.
[ii] Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 99/03/24, in CJ (STJ), ano VII, tº 1, pág. 247.
[iii] Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/95, publicado sob o n.º 7/95 em DR, I-A, de 28/12/95.
[iv] Ac. do S.T.J. de 17/05/2007, Pº 071397, relatado por Santos Carvalho, acessível em www.dgsi.pt. Cfr., ainda, dentre a jurisprudência mais recente do nosso mais Alto Tribunal, acessível no mesmo sítio internet, os Acs. de 23/05/2007, Pº 07P1498 (relator Henriques Gaspar), 14/03/2007, Pº 07P21 (relator Santos Cabral) e de 15/03/2007, Pº 07P610 (relator Pereira Madeira).
[v] O que foi justificado na proposta de Lei nº 109X da seguinte forma: «No âmbito da motivação, para pôr cobro a uma das principais causas da morosidade na tramitação do recurso, elimina-se a exigência de transcrição da audiência de julgamento. O recorrente pode referir as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida indicando as passagens das gravações; não é obrigado a proceder à respectiva transcrição (artigo 412.º). O tribunal ad quem procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que, porventura, considere relevantes».
[vi] Cfr. Ac. do TC nº 485/2008, de 7/10/2008
[vii] Sem elaborar sobre a necessidade para o exercício da defesa de tal prazo, não pode deixar de se confrontar o mesmo com o prazo concedido pelo legislador para a prolação de sentença nos casos de especial complexidade – 10 dias, nos termos do artº 373º do CPP – e para a elaboração de projecto de acórdão ou elaboração da decisão nesta Relação – 15 dias, nos termos do artºs. 417º, nº9 e 425º, nº3, do CPP.
[viii] Assim aponta o Ac. do TC referido na nota 6, em que se decidiu «Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 412.º, n.ºs 2, alínea b), 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a inserção apenas nas conclusões da motivação do recurso das menções aí referidas determina a imediata rejeição do recurso».
[ix]Tal não aconteceu, porém, relativamente ao registo efectuado através das ferramentas informáticas proporcionadas pelo sistema habilus, o que não encontra justificação legal nem sequer dificuldade técnica, sabido que a aplicação respectiva facilita fortemente a indicação temporal de cada um dos registos autónomos.
[x] Cfr. Ac. do STJ de 04-12-2008, Pº 08P1886, relator Rodrigues da Costa.
[xi] Ac. do STJ de 31/10/2007, P07P3218, relator Cons. Armindo Monteiro.
[xii] Cfr. Ac. do TC nº 485/2008, de 7/10/2008, também referido na nota 6.
[xiii] Ac.do TC nº 140/2004, de 10/3 e decisão sumária nº274/06, de 22/05.
[xiv] Sobre a evolução da questão, cfr. Teixeira de Sousa, ”Tratado de Direito Civil Português”, I, Almedina, 2007, pág.s 743 e segs.
[xv] Ob. cit., pág. 539-540.
[xvi] Teixeira de Sousa, ob, cit., pág. 541.
[xvii] Apesar da natureza aparentemente assertiva da conclusão 17ª, verifica-se no corpo da motivação que esse propósito é apresentado como mera pista ou exemplo. Escreve-se na pág. 18 do recurso «3º Mesmo que o compromisso fosse pessoal ele seria no sentido de se obrigar, como gerente/responsável pela empresa, a obter recursos para pagar àquele credor especial (que ia sair e merecia ser pago pela empresa devedora, ou, pelo contrário, no sentido de pagar do seu bolso uma dívida que não era sua?».
[xviii] Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense”, Tomo II, Coimbra Ed., 1999, págs. 94-97 e Norberto Barranco, “Tutela Penal de la Propriedad y Delitos de Apropriación”, PPE Ed., Barcelona, 1994, págs.. 39 e segs.
[xix] “Código Civil anotado”, vol I, Coimbra Ed., 3ª ed. 1982, págs. 222 e 223.
[xx] “Estudos de Direito Civil e Processo Civil”, Almedina, 1996, pág. 125.
[xxi] Teixeira de Sousa, ob. cit., pág. 765.
[xxii] Ac. do STJ de 11/7/2007, Pº 07P1416, relator Pereira Madeira, www.dgsi.pt.
[xxiii] Assim Manuel da Costa Andrade, “Comentário Conimbricense”, tomo III, Coimbra Ed., 2001, pág. 562.
[xxiv] Não cuidaremos aqui da questão conexa das declarações relativas aos antecedentes criminais.
[xxv] Sobre a questão, cfr. os Acs. do STJ de 03/09/2008, Pº 08P2044, relator Cons. Santos Cabral, www.dgsi.pt e da Relação de Coimbra de 6/3/2002, C.J. ano XXVII, tomo II, pág. 45.
[xxvi] Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, Coimbra Ed., 1981, pág. 438.
[xxvii] Simas Santos e Leal Henriques, “Código de Processo Penal anotado”, 3ª edição, 2008, pág. 1000.
[xxviii] No mesmo sentido, ainda que a propósito do crime de denúncia caluniosa, Manuel da Costa Andrade, “Comentário Conimbricense”, tomo III, Coimbra Ed., 2001, pág. 533.
[xxix] Publicado no DR, I série, de 3/8/99.