Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
440/21.1T8CVL-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: REGIME DE BENS
APLICABILIDADE DA LEI INGLESA
COMPROPRIEDADE
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DA COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 53.º, 1 E 3, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: Sendo aplicável a lei inglesa e não estando assegurada uma convenção pelos ex-cônjuges sobre o regime de bens, não lhes pode ser imposto o regime de comunhão, podendo apenas haver situações de compropriedade.
Decisão Texto Integral: *

Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

AA, inglesa, veio pedir uma partilha de bens comuns, sendo requerido BB, inglês, alegando, em síntese:

 Os requerentes foram casados segundo o regime de comunhão geral de bens.

Do dissolvido casal existem bens a partilhar.

O Requerido veio contestar, em síntese:

A certidão de casamento nada diz quanto ao regime de bens ou se os nubentes celebraram convenção antenupcial.

Tendo contraído matrimónio no Reino Unido, o regime jurídico aí vigente é diverso, permitindo a fixação de regime de bens posterior ao casamento.

Não existe no Reino Unido um regime jurídico supletivo à semelhança de Portugal.

No acordo de divórcio, a requerente declarou não existirem bens comuns.

AA veio insistir que existem bens a partilhar, nomeadamente, a então casa de morada da família, melhor descrita na certidão predial junta pelo requerido.

Não havendo fixação do regime de bens, a questão tem que ser integrada juridicamente no sistema judicial português, dado que é o país do foro do bem imóvel do dissolvido casal.

Entendeu o Tribunal recorrido:

O Direito internacional privado, enquanto ramo de Direito, é o complexo normativo que regula situações transnacionais mediante um processo conflitual. A cada Estado soberano corresponde um sistema jurídico e nos sistemas internacionais temos áreas de correspondência e de divergência; assim, por exemplo, pode e acontece que exista um sistema que atribua um direito que outro proíbe, ou um sistema que tenha requisitos de validade mais rígidos do que outros. Estas diferenças entre sistemas devem-se a opções diferentes quanto aos valores ou finalidades a alcançar. Outras vezes, usam-se técnicas diferentes.

“In casu A. e R. são ingleses e contraíram casamento em Inglaterra, o R. mora em Portugal.

“Nos termos do prescrito no artigo 53.º do Código Civil “1. A substância e efeitos das convenções antenupciais e do regime de bens, legal ou convencional, são definidos pela lei nacional dos nubentes ao tempo da celebração do casamento. (…)3. Se for estrangeira a lei aplicável e um dos nubentes tiver a sua residência habitual em território português, pode ser convencionado um dos regimes admitidos neste código.

“Não resulta da certidão de casamento junta aos autos ou de qualquer outro documento que tenha sido celebrada convenção antenupcial, ou que após o casamento, os cônjuges tenham acordado quanto ao regime de bens, o que a lei inglesa prevê, ou que tenham convencionado um dos regimes admitido no Código Civil Português.

“Contrariamente ao que refere o requerido, o documento que juntou – escritura pública de compra e venda – não prova o regime de bens. É certo que ali é mencionado que é o da separação, mas os documentos exibidos pelas partes aquando da celebração da escritura, não tinham força probatória para o comprovar, pelo que só pode ter resultado da declaração dos intervenientes. (art.º 371º, nº 1 do C. Civil).

(…)

“Não está, pois, provado nos autos, que as partes tenham celebrado o casamento com um regime de bens, ou que o tenham fixado posteriormente.

“A lei inglesa não prevê um regime jurídico similar ao português, nomeadamente, com um regime legal supletivo quando não seja estabelecido entre os cônjuges regime de bens.

“Não se encontra, salvaguardo o devido respeito, por contrário entendimento, fundamento para aplicar a lei portuguesa, ou como escreve a requerente no seu requerimento inicial entender que os cônjuges contraíram casamento no regime de comunhão geral, ou como parece pretender no seu 2.º articulado, aplicando o regime legal português supletivo, entender que contraíram casamento no regime de comunhão de adquiridos.

“O inventário destina-se à partilha de bens comuns do casal, o que pressupõe desde logo que esteja definido o regime de bens do casamento, o que, como se anotou, não sucede in casu.

“Não pode, pois, prosseguir a presente ação, com processo especial de inventário, para partilha de bens após o divórcio.

(…)

“Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no citado regime legal, declara-se extinta a presente lide por impossibilidade superveniente.”


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            Inconformada, a Requerente recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

I – Não existiu fixação do regime de bens pelos ex-cônjuges no casamento celebrado em Inglaterra.

II –Existem bens a partilhar em território nacional, sendo a legislação nacional, a única que, é competente para o inventário.

III – Por falta de fixação do regime de bens, aplica-se o regime supletivo do artigo 1717º do CC - Comunhão de bens adquiridos.

Nestes termos e nos demais de Direito, que Vossas Excelências doutamente se dignarão suprir, deverá a Apelação da recorrente ser julgada procedente e, consequentemente a Sentença de que se recorre ser revogada ou substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos de inventário com a fixação do regime de comunhão de bens adquiridos.


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           O Requerido contra-alegou, defendendo a deficiência das conclusões da Requerente e a correção do decidido.

           Não concordamos com a primeira alegação, pois que é claramente compreensível o objeto do recurso.


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As questões ainda a decidir são as seguintes:

A lei aplicável;

A conferência da existência de bens comuns a partilhar.


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           Os factos a considerar são os que resultam do relatório antecedente e das considerações infra exaradas.

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            As partes estão de acordo quanto ao seguinte:

            Pela previsão do art.53 do Código Civil (CC), a lei aplicável na definição do regime de bens é a inglesa;

            Esta lei não impõe um regime de bens, mesmo supletivamente;

           Estando o Requerido em Portugal, as partes podiam convencionar um dos regimes da lei portuguesa, o que não fizeram;

Do assento de casamento ou outro documento visando especificamente a questão não encontramos o acordo sobre o regime de bens.

Quanto ao mais, as partes divergem, entendendo a Requerente que, estando o imóvel em Portugal, deve ser aplicada a lei portuguesa para preencher a lacuna.

É muito duvidoso que exista uma lacuna, pois estará no espírito da lei inglesa a não fixação de uma comunhão, exceto se os cônjuges a declararem.

Depois, na escritura de compra do imóvel, pelo Requerido, foi declarado pelas partes que estavam casados segundo o regime de separação de bens, o que foi levado ao registo.

Se se entender que a escritura pública de compra e venda, onde declaram o regime de separação de bens, não é o meio adequado para a fixação do regime, como nós entendemos, então o correto será entender que os cônjuges não desejaram um regime de comunhão.

Sendo aplicável a lei inglesa, não se pode, no silêncio dos cônjuges (art. 53, n.º 3, do CC), impor-se um regime de comunhão.

(Não terá aplicação o invocado acórdão do STJ, de 10.10.2023, proc. 1149/22, em www.dgsi.pt, pois que, neste outro caso, os nubentes eram portugueses tendo celebrado casamento no estrangeiro.)

Assim, não existem bens comuns, podendo existir apenas casos de compropriedade.

O único bem assinalado (458, ..., ...) está registado em nome do Requerido, na sequência da escritura de compra em que ele foi o adquirente, “casado com AA, no regime de separação”.

Por fim, também no divórcio, as partes declararam que não existiam bens comuns.

Sendo aceitável o decidido, a única correção que entendemos fazer diz respeito à formal decisão, não sendo caso de “impossibilidade superveniente”, mas de absolvição do pedido de partilha.


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            Decisão.

           Julga-se o recurso improcedente e, confirmando o sentido da decisão recorrida, absolve-se o Requerido do pedido de partilha.

           Custas pela Recorrente, vencida, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.

            2024-06-04


(Fernando Monteiro)

(Carlos Moreira)

(Alberto Ruço)