Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
86/23.0GCSRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: DESCONSIDERAÇÃO DE FACTOS INVOCADOS PELA ARGUIDA EM JULGAMENTO
NULIDADE POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 12/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE OLEIROS
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: DECLARADA A NULIDADE DA SENTENÇA RECORRIDA E DETERMINADA A PROLAÇÃO DE NOVA SENTENÇA QUE SUPRA AS NULIDADES INDICADAS
Legislação Nacional: ARTIGOS 122.º, N.º 1, 374.º, N.º 2, E 379.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - Padece de nulidade por falta de fundamentação, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do C.P.P., geradora da invalidade do acto, a sentença que desconsidera factos invocados pela arguida nas declarações prestadas em audiência justificadores da sua actuação, não os dando nem como provados, nem como não provados.
Decisão Texto Integral:


I.

RELATÓRIO


1.Por sentença datada de 21 de junho de 2024, proferida pelo Juízo de Competência Genérica de Oleiros, comarca de Castelo Branco, no processo comum singular n.º 86/23.0GCSRT, foi decidido, nomeadamente:

3.1. Condenar a arguida pela prática (a 25/05/2023), em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, n.º 1, 182.º e 183.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de €5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos).

3.2. Condenar a arguida … pela prática (a 25/05/2023), em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação agravada, previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º 1, 182.º e 183.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de €5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos).

3.3. Em cúmulo jurídico de penas de multa, condenar a arguida … na pena única de 130 (cento e trinta) dias de multa à taxa diária de €5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos).

3.5. Condenar a arguida/demandada … no pagamento ao assistente/demandante … da quantia de €700,00 (setecentos euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora contabilizados à taxa de 4 % desde a data da prolação desta sentença, absolvendo-a do demais peticionado


*

2. Inconformada com a decisão, da mesma recorre a arguida , formulando as seguintes conclusões (que se transcrevem na parte relevante):

1. A Sentença proferida pelo Tribunal a quo, com o devido respeito, enferma de erro de julgamento, porquanto fez uma errada apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, assim como fez uma errada aplicação e interpretação das normas de direito substantivo, relativamente às circunstâncias concretas do caso.

3. A arguida, ora recorrente, em sede de julgamento declarou prestar declarações sobre os factos constantes da acusação. …
4. Em face das declarações prestadas pela arguida, em sede de julgamento, aquela confessou perante o Tribunal a publicação que fez na sua página do Facebook, relativamente ao ora assistente.
5. Esclareceu que aquilo que publicou na sua página do Facebook foi a forma que teve de se poder defender das ofensas e injúrias que o assistente lhe causou nos comentários que aquele lhe fez numa publicação sua no Facebook, a respeito da aqui arguida.

7. Portanto, o assistente é que provocou toda esta situação dos autos, porquanto foi ele que inicialmente injuriou a aqui arguida e esta, em jeito de defesa (animus retorquiendi), fez a publicação que fez na sua página do Facebook.
8. Daí que, mal andou o Tribunal a quo ao não dar como provado na matéria de facto as injúrias e ataques pessoais feitos pelo assistente à arguida, nomeadamente: “és uma doente mental” “tu é que precisas de tratamento”.
9. Pois, se tais factos tivessem sido dados como provados, a Sentença a proferir seria, com todo o respeito, necessariamente diferente. Ou seja, que a arguida não fosse condenada tal como o foi.

12. Mais, a arguida não pretendeu de todo atingir a honra, consideração, que são devidas ao assistente. O que a arguida pretendeu, e isso ficou demonstrado em julgamento foi que aquilo que fez foi uma forma de igualmente se defender das injurias que aquele lhe tinha primeiramente feito, ou seja, conforme disse a arguida, “desci ao nível dele”.
13. Em suma, a conduta da arguida foi provocada por atuação ilícita do ofendido!
14. Estabelece o n.º 2 e n.º 3, do art. 186º do CP que:
“2- O tribunal pode ainda dispensar de pena se a ofensa ter sido provocada por uma conduta ilícita ou reprovável do ofendido.
3- Se o ofendido ripostar, no mesmo ato, com uma ofensa a outra ofensa, o tribunal pode dispensar de pena ambos os agentes ou só um deles, conforme as circunstâncias.
(…)
16. Das declarações prestadas pela arguida em sede de julgamento resulta que as imputações injuriosas e difamatórias, pelas quais a arguida foi condenada, decorreram no âmbito de uma troca de acusações no Facebook e como reação ilícita a injúrias que também a arguida sofreu do aqui arguido.
17. Pelo que, deveria o Tribunal a quo ter lançado mão do instituto da dispensa de pena, porquanto tal circunstância tem respaldo no n.º 3, do art. 186º do CP.

19. O n.º 3, do art. 186º do CP reporta-se àquelas situações típicas de retorsão, em que na sequência de uma ofensa injuriosa, se responde com uma outra semelhante.

22. Pelo que, encontram-se assim verificados os requisitos específicos para os crimes contra a honra para a dispensa de pena.

24. À luz de tal normativo, a dispensa da pena implica a reparação efetiva do dano (al. b), n.º 1, do art. 74º do CP).
25. Todavia, atentas as circunstâncias concretas do caso não se justifica sujeitar o pressuposto da reparação da indemnização a uma compensação de créditos.
26. Porquanto, quer a função reparadora, por um lado, quer a função preventiva, por outro lado, não se justifica quando igualmente tenha havido culpa do lesado. O de facto sucedeu in casu.
(…)

29. Nesta conformidade, a culpa do assistente tem sempre um carácter mais gravoso do que aquela demonstrada pela arguida, justificando-se plenamente que os eventuais danos não patrimoniais sofridos pelo primeiro não mereçam qualquer tipo de tutela cível, devendo, por isso, ser excluída a obrigação da arguida em indemnizar o assistente.

31. Não resulta da acusação quaisquer elementos, nem tão pouco se mostra preenchidos os requisitos legais para que a arguida fosse condenada por um crime de injúria agravada e por um crime de difamação agravada, conforme sentenciado pela Sentença, que ora se recorre.

34. Ora, no caso dos autos nenhuma destas circunstâncias referidas no art. 184º do CP, conjugado com a al. l), do n.º 2, do art. 132º do CP se verifica, conforme resulta dos presentes autos.


*

3. o Ministério Público e o assistente responderam ao recurso, …


*

4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer …  


*


5. Respondeu o assistente, …

Bem como a arguida/recorrente, …


*

6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal.

**

II.

SENTENÇA RECORRIDA


(transcrição das partes relevantes para o conhecimento do recurso)

«(…) Com relevo para a causa, provou-se que:

2.1.1. No dia 25 de maio de 2023, a arguida … publicou na página do assistente … na rede social «facebook», o seguinte:

«… ó rapaz tu precisas de tratamento, as pessoas vem aqui para te dar conselhos e ainda são mal tratadas? Vou mesmo à minha vida, aliás tenho nojo de homens que batem em mulheres. Faz te ao rego e nunca mais me dirijas a palavra. A educação faz te muita falta.».

2.1.2. Nessa sequência, no mesmo dia, a arguida faz uma cópia, além do mais, de tal publicação (referida em 2.1.1.) e republica-a na sua própria página da referida rede social, tecendo ainda os seguintes comentários, igualmente a respeito do assistente, ainda que sem se dirigir diretamente ao mesmo:

a) «já está a carregar. Vou editar as fotos, foi o “nervo”, há coisas que me deixam doida: então eu vou na paz, a por lhe bom senso nas mãos e levo com isto?! Mas pior foi estar mais de meia hora para perceber o texto, isso deixou-me irada, e o meu nervo… olha, armo o barraco, ponho as mãos à cintura, agarro no teclado e vai disto. Aqui para nós já não fazia uma “pexeirada” à muito tempo».

b) «que volte para França que não faz aqui falta nenhuma. Bandalho».

c) «Já não é a primeira vez que vem para as redes sociais ofender as pessoas, levantar suspeitas. Hoje deparei-me com esta publicação e que confesso nem ter percebido muito bem. E lá lhe disse que não havia necessidade de andar a lavar roupa suja nas redes sociais. Estudei com a pessoinha pelos vistos mudou muito, deve ter sido os ares de France, porque lá é tudo melhor, e aqui é só merda. Vai, levo esta resposta a um comentário que lhe escrevi. Veio marrar com a pessoa errada. E levem o homem ao psiquiatra, porque ele não está bem de certeza ou prendam-no, porque violência doméstica é crime público».

2.1.3. Ao proceder a tais publicações, a arguida utilizou meios que facilitaram a respetiva divulgação, recorrendo à publicação no perfil do facebook do assistente, por referência ao ponto 2.1.1., e no seu próprio perfil do facebook, por referência ao ponto 2.1.2..

2.1.4. As supra aludidas publicações estiveram acessíveis a qualquer pessoa nos perfis do facebook do assistente e da arguida, não existindo dúvidas sobre a identidade da declarante e do visado em tais publicações.

2.1.5. Tanto mais que, além do conhecimento pessoal de tais publicações, o assistente foi contactado por terceiras pessoas, mormente amigos e conhecidos, que o alertaram para o teor das mesmas.

*

2.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

»


***

III.

QUESTÕES A DECIDIR


… ([1]).

            Assim, as questões a decidir no recurso interposto prendem-se com as seguintes matérias:

a) Erro de julgamento/Nulidades da Sentença;

b) Qualificação dos crimes de injúria e difamação; e

c) Dispensa da pena.


*

IV.

APRECIAÇÃO DO RECURSO


A) NULIDADES DA SENTENÇA

            Dispõe o art. 379º, n.º 1, do Código de Processo Penal:

1 - É nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;

b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Invoca o recorrente padecer a sentença de erro de julgamento, por violação do princípio da apreciação da prova, ao não ter considerado a justificação declarada pela arguida que determinou a sua atuação dada como provada.

O Exmo. Procurador-geral Adjunto, concordado com a falha em que incorreu o tribunal a quo na desconsideração da defesa da arguida invocada em julgamento, integra tal omissão na nulidade da sentença prevista na al. c) do n.º 1 do art. 379º transcrito.

Vejamos:

Como é sabido, no processo penal vigora o princípio da vinculação temática do tribunal, intimamente ligado às garantias de defesa do arguido, pois impede que sejam efetuadas alterações significativas do objeto do processo que possam prejudicar, ou mesmo inviabilizar, a defessa. Deste modo, este princípio básico do nosso sistema processual penal impõe que o objeto do processo, balizado pela acusação, se mantenha na essência idêntico até que seja proferida a decisão final no processo (princípio da identidade).

Na verdade, o objeto do processo penal é fixado na acusação (ou pronúncia, caso exista). É a acusação que fixa os limites da atividade cognitiva (thema probandum) e decisória (thema decidendum) do tribunal, que não pode ultrapassar os limites traçados pela acusação, sob pena de nulidade – art. 379º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal -, salvo em certas situações permitidas por lei em que, respeitadas certas condições, se pode proceder a uma alteração daqueles factos (arts. 303.º, 358.º e 359.º do Código de Processo Penal).

O princípio da identidade significa ainda que ao tribunal cabe conhecer e julgar o objeto que lhe foi proposto na sua totalidade, de forma unitária e indivisível. O objeto do processo, delimitado pela acusação, é constituído pelos factos concretos que da mesma constam integradores de um ou vários crimes, imputados a um concreto arguido, limitando a atividade cognitiva e decisória do tribunal. A decisão do tribunal pronuncia-se, a final, sobre se aqueles concretos factos devem ser tidos como provados ou não provados, nas suas dimensões objetiva e subjetiva, subsumindo-os ou não ao tipo ou tipos legais de crime correspondentes (os indicados na acusação), eventualmente com as alterações permitidas nos termos dos indicados artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, e extraindo as consequências jurídicas correspondentes, a saber, condenando ou absolvendo o arguido ([2]).

Por último, importa atentar que o art. 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal impõe a enumeração dos factos provados e dos não provados que foram alegados pela acusação e pela defesa, e ainda os que resultarem da discussão da causa e sejam relevantes para a sua decisão, como de forma unânime tem sido entendido.

Encontrando-se em causa, no caso concreto, determinados factos que resultam da discussão da causa e poderão ser relevantes para a sua decisão, a nulidade de que a sentença possa padecer respeita à respetiva falta de fundamentação, por incumprimento daquela parte exigida no n.º 2 do mencionado art. 374º, que nos remete para o art. 379º, n.º 1, al. a), o Código de Processo Penal.

Sucede que a arguida, nas suas declarações em julgamento, revelou factos relevantes para a decisão que foram totalmente desconsiderados pelo tribunal a quo, e que, como bem refere o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto desta Relação, poderão relevar quer em sede de qualificação jurídica/causa de justificação quer em sede de determinação do tipo e medida da pena.

Assim, conforme se encontra transcrito na motivação recursiva da arguida, por esta foi referido o seguinte:

05:53ss a 08:48ss de 32:15ss

Juiz: Querendo falar, então vai explicar aqui a este Tribunal se tais factos são verdade, no fundo qual é que é a sua posição a respeito desta matéria, peço-lhe no fundo que seja específica quanto às circunstâncias de tempo, modo e lugar, uma vez que estamos aqui apenas a retratar esta situação quer por referência à frase primordial referida no dia 25 de Maio de 2023, quer por referência às fases seguintes e que lhe sucederam no fundo. Tenha a bondade.

Arguida: Então, a troca de palavras começou não com essa primeira frase, mas sim com uma primeira intervenção na publicação que ele fez na página dele em que lhe digo que ali não era sítio nem lugar para ele estar a tratar de assuntos pessoais e a lavar roupa suja, penso que foi qualquer coisa assim. E disse-lhe que ele devia falar com as pessoas pessoalmente e não vir para uma rede social fazer esse pode acusações no texto em que ele escreveu. De seguida, o Sr. … então ofendeu-me, começou por me tratar por doente mental e por aí a baixo. E houve sim, uma troca de conversa entre nós na publicação dele, em que ele me continuou a destratar e chamou-me os nomes que quis e que lhe apeteceu e eu não continuei a conversa na página dele. Fiz realmente sim, prints da conversa que tive com ele e da publicação que deu origem a essa conversa, tive o cuidado de tapar a fotografia dele, para ele não ser identificado na fotografia, deixei o nome e fiz sim essa publicação na minha página a dar conta daquilo que  tinha acontecido e que se tinha e pronto…

08:49ss a 19:45ss de 32:15ss

Juiz: Pergunto-lhe apenas se está a confessar na íntegra todos os factos que lhe são acusados ou designadamente quer quanto aos elementos objetivos que já percebi no fundo estar a confessar, quer quantos aos elementos subjetivos, ou seja, que ao proferir tais expressões de forma livre, deliberada e consciente, no fundo tendo consciência que tais expressões eram idóneas, que estavam a ofender a honra e consideração.

Arguida: Não! Eu nunca pensei que o fosse ofender dessa maneira ao ponde dele vir apresentar uma queixa em tribunal. Longe de mim…

Juiz: Mas independentemente da queixa, pensou que tais expressões eram suscetíveis de o ofender?

Arguida: Não, porque ele também me ofendeu a mim!

Juiz: Certo. Mas isso é uma questão, ou seja, se se sentiu ofendida no fundo poderá intentar os meios necessários e falar com o seu Advogado para o efeito. Aqui estamos no fundo a tratar no fundo da queixa apresentada contra si, pelas expressões que foram por si proferidas numa rede social. Pergunto-lhe, diz que se sentiu ofendida, ao sentir-se ofendida considerou que tais expressões no findo proferidas pela outra parte a ofenderam. Nesse sentido pergunto-lhe se ao proferir expressões como as que estão aqui em causa, não sentiu que isso pudesse no fundo vir a prejudicar e a ofender gravemente a honra e a integridade mora, a consideração que são devidas ao assistente e no fundo que lhe estava a imputar factos falsos.

Arguida: Não, porque, eu peço desculpa daquilo que vou dizer, mas eu desci ao nível em que ele estava também. Não achei que o fosse ofender, que lhe fosse provocar assim um dano tão grande, uma vez que ele me estava a ofender a mim, eu desci ao nível dele.

Juiz: Mas não achou que fosse provocar um dano tão grande, mas que dano achou que ia provocar?

Arguida: Nenhum!

Juiz: Eu compreendo o que me diz, mas pergunto-lhe apenas porque de facto olhando para algumas destas expressões designadamente a imputação de que no fundo prendam-no porque violência doméstica é crime público. No fundo, do que se depreende estava a dizer no fundo que ele, aqui o assistente … praticou um crime de violência doméstica.

Arguida: Sim!

Juiz: É isso que estava a afirmar?

Arguida: Sim, é verdade!

Juiz: E a imputar todos estes factos, no fundo não achou que pudesse ficar publicamente ressentido, a prejudicar a sua consideração social.

Arguida: Sinceramente não! Porque é assim, nós vivemos num meio muito pequeno e as coisas sabem-se todas. E em relação ao Sr. … consta e em meios pequenos isso sabe-se, consta todos os processos e sabem-se todos os processos tem, inclusivamente de violência doméstica.

Juiz: E sabia o resultado desses processos?

Arguida: Não. Alguns nem têm ainda desfecho.

Juiz: (…) Por isso é que eu lhe pergunto no fundo se estava a imputar já, talvez pergunto eu, a prática de um crime sem saber se o mesmo se verificou ou não. E se perante isso não lhe passou pela cabeça… Isto porquê? Porque obviamente resulta das suas declarações a confessar parte dos factos. O que o Tribunal pretende saber é se no fundo essa confissão é apenas parcial, já percebi que será e que não engloba a segunda metade da acusação. Ou seja, que a arguida sabia que a sua conduta, ao proferir aquelas expressões era proibida por lei, tinha consciência, plena consciência que estavam o ofender a honra e a integridade moral, consideração social devidas ao assistente e sabia que estava a imputar-lhe factos falsos. Esta parte então não confessa. É isso?

Arguida: Não.

Juiz: E agiu então com que propósito e com que considerações?

Arguida: O meu propósito foi que na publicação inicial que ele fez, ele estava a ofender gravemente duas pessoas que são minhas amigas e isto era uma constante, todos os dias nas páginas, o Sr. … era uma constante. E, eu achei que alguém lhe tinha que chamar à razão para isso. Daí a minha primeira intervenção com ele, de lhe dizer se aquilo era, se ele não achava que deveria ser assuntos daqueles deveriam ser tratados fora das redes sociais e a seguir a resposta dele foi logo és uma doente mental, tu é que precisas de tratamento, pronto e eu a partir daí desci ao nível dele. Confesso que desci ao nível dele.

Juiz: (…) Mas esta primeira expressão aqui referida no dia 25 de Maio de 2023 em que realmente já se refere a … nos termos já referidos nessa segunda parte que diz que copiou o print é que diz esta expressão. E copiou o print, diga-se onde é que estava a ter essas conversas?

Arguida: Na página dele.

Juiz: Mas a 7tulo de Messenger, conversa privada?

Arguida: Não, não, não.

Juiz: Página dele, perfil do Facebook.

Arguida: Exato! Na publicação que ele fez em que me ofendeu.

Juiz: Muito bem, e então copiou e colocou onde?

Arguida: Na minha página.

Juiz: Na sua página pessoal . No seu perfil de Facebook.

Arguida: Exato.

Apesar de estas afirmações não se encontrarem alegadas na contestação, foram invocadas pela arguida nas declarações prestadas em sede de audiência de julgamento, sobre as quais se não pronunciou o Tribunal a quo, não as dando nem como provadas, nem como não provadas.

E interessa para a decisão do pleito que considere a motivação e os prévios escritos do ofendido que, na alegação da arguida, motivaram a sua resposta, passando os mesmos a constar da fundamentação de facto da sentença, cabendo após extrair o tribunal a quo a relevância ou não da sua prova ou não prova. O que não pode é ignorá-las, em violação do n.º 2 do art. 374º citado.

Neste sentido, Sérgio Poças ([3]) refere o seguinte:

«ainda que para a solução de direito que o tribunal tem como adequada para o caso, se afigure irrelevante a prova de determinado facto, o tribunal não pode deixar de se pronunciar sobre a sua verificação/ não verificação — o que pressupõe a sua indagação —, se tal facto se mostrar relevante num outro entendimento jurídico plausível.»; «relativamente aos factos que resultarem da discussão da causa relevantes para a decisão, o tribunal também se deve pronunciar expressamente sobre eles quando resultam não provados e como tal devem ser enumerados. Outro entendimento não permite, salvo melhor entendimento, o disposto nos artigos 339.º, n.º 4, e 368.º, n.º 2, do CPP. Se o presidente submete a deliberação e votação os factos que resultarem da discussão da causa relevantes para a decisão, é obvio que nesse momento — antes da deliberação e votação — não se pode falar em factos provados e não provados; se depois, alguns daqueles factos, sujeitos a deliberação e votação, resultam não provados, é evidente que devem ser declarados não provados e como tal enumerados na matéria de facto. Vejamos este caso: o arguido está acusado da prática de um crime contra a integridade física e não apresenta contestação. No entanto, em audiência de julgamento invoca factos concretos integradores de uma causa justificativa da conduta, no que é acompanhado por uma testemunha. O tribunal na sentença não enumera tais factos, seja na matéria de facto provada, seja na matéria de facto não provada. Como nos parece claro, trata-se de um procedimento ilegal. Se aqueles factos resultaram provados, ainda que de acordo com o princípio do in dubio pro reo, o tribunal estava obrigado a enumerá-los na matéria de facto provada; se não resultaram provados, necessariamente, tinham de ser enumerados na matéria de facto não provada. Sendo, como são, tais factos inquestionavelmente relevantes para a decisão, o tribunal tinha de expressamente pronunciar-se sobre eles, e não é pelo facto de não terem sido expressamente alegados na contestação que altera a substância das coisas. Como é óbvio, o tribunal não tem que se pronunciar sobre uma qualquer alegação, uma qualquer expressão, uma qualquer verbalização de inconformismo proferidas pelo arguido (ou por uma testemunha, adiante-se) em audiência de julgamento, mas tem de se pronunciar quando o que é invocado constitui matéria relevante para a decisão

Na mesma senda, refere Germano Marques da Silva: «A fundamentação consta da enumeração dos factos provados e não provados. Bem como de uma exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (…) No que se refere à indicação dos factos provados e não provados não se suscitam dificuldades: eles são todos os constantes da acusação e da contestação, quer sejam substanciais quer instrumentais ou acidentais, e ainda os não substanciais que resultarem da discussão da causa e que sejam relevantes para a decisão e também os substanciais que resultarem da discussão da causa…» ([4]).

Decorre do exposto não ter o tribunal a quo cumprido o dever de fundamentação na vertente da enumeração dos factos provados e não provados que constituem o objeto do processo, nos sobreditos termos, omitindo a sua pronúncia relativamente a factos que resultam da discussão da causa e são relevantes para a sua decisão.

No caso, os prints das mensagens estão juntos aos autos, apenas tendo sido considerado o que foi escrito pela arguida; a arguida “justificou” a sua conduta como uma resposta a prévios “insultos” que lhe teriam publicamente sido dirigidos pelo assistente; negou a intenção dada como provada, constando da fundamentação o seguinte: “a mesma não poderia deixar de ter como intenção atingir o bom nome, honra, consideração e dignidade pessoal do assistente (mormente face à explicação que deu no sentido de se ter rebaixado ao nível do assistente, após ter referido expressamente que é prática comum o assistente ofender pessoas na rede social facebook e, ainda, que a própria se sentiu ofendida pelos escritos realizados pelo assistente nas mesmas circunstâncias)”, facto a considerar no âmbito do objeto do processo resultante da discussão da causa.

A omissão da enumeração dos factos objeto do processo e do exame crítico das provas, imposto pelo art. 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, gerador da insuficiência de fundamentação, constitui fundamento de nulidade da decisão/sentença, nos termos do art. 379º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, tornando inválido apenas o ato processual decisório apreciado (sentença) – art. 122º, n.º 1, do Código de Processo Penal -, devendo o mesmo julgador de primeira instância proceder à elaboração e leitura de nova sentença.

Para o efeito, deverá o tribunal a quo, caso o entenda necessário ou conveniente, reabrir a audiência de julgamento para eventual produção de prova suplementar relativa aos factos mencionados cuja pronúncia omitiu, procedendo às consequentes alterações da parte jurídica da sentença, sendo caso disso.

Fica, desta forma, prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo reconhecimento da nulidade da sentença.


*

V.

DECISÃO


Pelas razões expostas, declara-se nula a sentença recorrida que, em consequência, deverá ser substituída por outra que supra as apontadas nulidades, reabrindo a audiência de julgamento, caso necessário, nos termos supra expostos.

Sem tributação.

Coimbra, 11 de dezembro de 2024

Ana Carolina Cardoso (relatora – processei e revi)

Sandra Rocha Ferreira (1ª adjunta)

Sara Reis Marques (2ª adjunta)


[1] neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336.
[2] cf., sobre o objeto do processo penal e a vinculação temática, entre outros, Mário Tenreiro, Considerações sobre o objeto do processo penal, em Revista da Ordem dos Advogados, ano 47º, III, dez. 1987, pág. 997 e ss.; e ainda, por esclarecedor, o Acórdão do STJ de 13.10.2011, proc. 141/06.0JALRA.C1.S1, em www.dgsi.pt
[3] In “Da Sentença Penal - Fundamentação de Facto”, Revista Julgar, nº 3, 2007, igualmente referido no douto parecer do Exmo. Procurador-geral Adjunto nesta Relação
[4] In “Direito Processual Penal Português – Do Procedimento”, Univ. Católica, pág. 272.