Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ANA CAROLINA CARDOSO | ||
Descritores: | CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL TÍTULO DE CONDUÇÃO CADUCADO TÍTULO DE CONDUÇÃO CANCELADO CONTRA-ORDENAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 10/16/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA – J2) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 3.º, N.ºS 1 E 2, DO DL N.º 2/98, DE 03-01; ART. 130.º DO CÓDIGO DA ESTRADA (REDACÇÃO DO DL 138/2012, DE 05-07); ART. 2.º, N.º 1, DO RHLC (DL N.º 138/2012) | ||
Sumário: | I – Enquanto a caducidade do título de condução é automático, o cancelamento desse título só determina a inabilitação de conduzir os veículos para qual o título fora emitido e, consequentemente, a verificação do crime de condução sem habilitação legal, após ter sido declarado pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP. II – O titular de título de condução caducado, mas não cancelado através do dito formalismo legal, incorre tão só na contra-ordenação prevista no artigo 130.º, n.º 7, do Código da Estrada. | ||
Decisão Texto Integral: | Acórdão deliberado em conferência na 5ª seção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra O Ministério Público interpôs recurso da sentença proferida no processo sumário n.º 27/19.9GABBR, do juízo local criminal das Caldas da Rainha, Tribunal da Comarca de Leiria, que absolveu o arguido A. da prática de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, n.ºs 1 e 2, do Dec.-Lei n.º 2/98, de 3.1, e declarar o mesmo arguido autor de uma contraordenação p. e p. pelo art. 130º, n.º 1, al. a), e n.º 7 do Código da Estrada, ordenando a sua notificação para, no prazo de 15 dias úteis após trânsito, efetuar o pagamento voluntário da coima, a liquidar pelo mínimo (€ 120,00), para o que deverá solicitar a emissão das respetivas guias. 1.1. Sentença recorrida (transcrição da parte relevante para a apreciação do recurso): “Nos presentes autos de Processo Sumário, o Ministério Público acusa A., (…) pela prática de factos susceptíveis de integrarem a autoria material e consumada, de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, previsto e punido pelo art.3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº2/98 de 3/1. (…) FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO: A - Factos Provados 1. No dia 11.02.2019, pelas 11h45, na Estrada Municipal (…), o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula (…). 2. O arguido é titular da carta de condução n.º (…), emitida em (…) para as categorias B e B1 e com data de validade até 14.09.2012. 3. O arguido não procedeu à revalidação da carta de condução identificada em 2) quando perfez 60 anos de idade, em 15.09.2012, nem quando perfez 65 anos de idade, em 15.09.2017. 4. Não foi proferida qualquer decisão de cancelamento pelo IMT.IP. 5. O arguido não é titular de qualquer outro título de condução. 6. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que só podia conduzir um veículo automóvel na via pública se estivesse legal e validamente habilitado para o efeito e que o seu título de condução estava caducado há mais de 5 anos e, não obstante, conduziu nas circunstâncias referidas. 7. Mais sabia que a sua conduta era proibida por lei. 8. O arguido confessou os factos supra descritos sob os números 1), 3), 5), 6) e 7). 9. O arguido conduziu nas circunstâncias acima descritas para submeter o veículo automóvel à revisão agendada para aquela data com vista à respetiva inspeção. 10. O arguido é reformado de comerciante, auferindo reforma mensal no valor de 400,00€. 11. A esposa é igualmente reformada, auferindo reforma mensal no valor de 212,00€. 12. Vivem em casa arrendada, com renda mensal no valor de 310,00€. 13. O arguido tem o 12.º ano de escolaridade. 14. O arguido não tem antecedentes criminais. (…) C - Convicção do Tribunal O Tribunal, para formar a sua convicção e considerar provada a factualidade atrás descrita, valorou criticamente a prova produzida em sede de audiência de julgamento segundo as regras da experiência comum e a sua livre convicção, bem como os documentos juntos aos autos. Desde logo, relativamente à matéria da culpabilidade, o tribunal considerou as declarações do arguido, o qual admitiu a prática dos factos acima descritos sob os números 1), 3) e 5), bem como que sabia que a sua carta de condução estava caducada e, como tal, não era titular de título válido que lhe permitisse exercer a condução. Com referência aos factos descritos sob os números 2) e 4), o Tribunal relevou o teor de fls. 22 e do ofício remetido pelo IMT, constante de fls. 43. Quanto à sua situação pessoal e económica, o Tribunal atendeu igualmente às declarações prestadas pelo arguido. Para prova dos antecedentes criminais do arguido, o Tribunal considerou o certificado do registo criminal junto a fls. 12, emitido em 11.02.2019.
SUBSUNÇÃO DOS FACTOS ÀS NORMAS JURÍDICAS: A - Enquadramento Jurídico dos Factos (…). Juiz: O senhor já teve carta de condução. NESTES TERMOS, deve o presente recurso ser julgado procedente revogando-se, consequentemente, a douta sentença ora recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra que: - altere o facto dado como provado no ponto 6. dos factos provados aí se fazendo constar o elemento subjetivo tal como constava descrito na acusação, sem referência à expressão e conceito jurídico “caducada”, e consequentemente, no ponto 8. que confessou (entre os demais aí mencionados) o facto descrito no ponto 6.; A impugnação da matéria de facto em recurso pode efetuar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício do texto da própria decisão, os termos do art. 410º, n.º 2, do CPP, ou através de recurso amplo da matéria de facto, nos temos previstos no art. 412º, n.º 3, 4 e 6 do CPP. Neste último caso, o recorrente pretende que sejam corrigidos erros de julgamento e/ou procedimento, de forma devidamente fundamentada, devendo cumprir no recurso os seguintes requisitos: Estas exigências recursivas resultam da competência jurisdicional atribuída ao tribunal de recurso: o julgamento da matéria de facto em primeira instância é efetuado segundo o princípio da imediação, sendo assegurado um contato direto e pessoal entre o julgador e a prova, encontrando-se o juiz de primeira instância em melhores condições que o tribunal de recurso para apreender a verdade histórica e, assim, a verdade material. Os princípios da oralidade e da imediação permitem um maior contacto entre o julgador e as provas, que “virão a ser apreciadas por quem assistiu à sua produção, sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de certos elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas” (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português – Do Procedimento, Univ. Católica Ed., pág. 212). Esta apreensão não é comparável à que pode ser efetuada pelo tribunal de segunda instância, que procede à audição das provas registadas que lhe forem sugeridas no recurso, e sem visualização, ou seja, ficando inibido de verificar as manifestações físicas e expressões das pessoas inquiridas. Por estas razões, a reapreciação da prova em recurso nunca pode constituir um segundo julgamento, garantindo o duplo grau de jurisdição ao interessado o controlo de eventuais erros da decisão da matéria de facto, através de reexame parcial da prova. Acresce que a primeira instância julga a matéria de facto segundo o princípio da livre apreciação da prova, estabelecido no art. 127º do CPP, ou seja, o julgador aprecia os meios de prova segundo a sua valoração e convicção pessoal. O que significa que a Relação controla a existência de eventuais erros de julgamento de acordo com o exame crítico da prova efetuado em primeira instância, que se encontra naturalmente vinculado a critérios objetivos jurídico-racionais e às regras da lógica, da ciência e da experiência comum. “Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o beneficio da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum”, tornando-se “necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação das regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a incorreção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção” (Ac. desta Relação de 4.5.2016, no proc. 721/13.8TACLD.C1; cf. ainda o Ac. RC de 12.9.2012, no proc. 245/09.8GBACB.C1, em www.dgsi.pt).
Assim, só poderá a Relação concluir pelo erro de julgamento da matéria de facto nos casos em que o recorrente demonstre que a convicção do tribunal de primeira instância sobre determinado facto concreto é inadmissível, porque não foi sustentada por quaisquer dados objetivos, ou porque existem hipóteses decorrentes da prova produzida que impõem resposta diversa à adotada na decisão recorrida.
No caso dos autos, defende o Ministério Público a alteração do facto provado em 6, a saber: “O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que só podia conduzir um veículo automóvel na via pública se estivesse legal e validamente habilitado para o efeito e que o seu título de condução estava caducado há mais de 5 anos e, não obstante, conduziu nas circunstâncias referidas”. Para o efeito, alega que o arguido confessou integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusado, e que na factualidade provada o tribunal recorrido, nesse facto 6., acrescentou que o arguido sabia “que o seu título de condução estava caducado há mais de cinco anos e, não obstante, conduziu nas referidas circunstâncias”. É contra a prova deste segmento que o recorrente se insurge, invocando, para o efeito, que nas declarações prestadas em julgamento, entre o minuto 3.22 e 4.38, o arguido confessou que sabia que não tinha título que o habilitasse a conduzir o veículo, que deixou caducar a carta de condução, sabia que era como se a não tivesse, e estar ciente dessa realidade – a instância da Exma. Juiz a quo. Compulsada a ata da sessão de julgamento que teve lugar a 28.2.2019, consta da mesma o seguinte: “Dada a palavra à Digna Procuradora-Adjunta e ao ilustre advogado presente, pelos mesmos foi dito nada terem a opor à confissão do arguido. Concedida a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público, no seu uso disse prescindir da prova testemunhal, atenta a confissão integral e sem reservas por parte do arguido. Seguidamente, pela Mmª Juiz de Direito foi decidido, nos termos do disposto no art. 344º, n.º 2, do CPP, não deve ter lugar a produção de prova quanto aos factos confessados, passando-se de imediato às alegações orais”. Ora, a confissão não atribui força probatória plena às declarações do arguido, relevando nos termos conjugados dos arts. 344º, n.º 1, do CPP, e 353º do Código Civil, ou seja, valendo como reconhecimento de facto que é desfavorável ao arguido (cf. Ac. da RC de 18.11.2015, no proc. 449/13.9PBCTB.C1, em www.dgsi.pt). Através das declarações prestadas pelo arguido, e do consignado na ata, confirma-se que o arguido confessou a prática dos factos que lhe vinham imputados, bem como a consciência da ilicitude dos mesmos. Porém, nada obsta a que se considerem provados outros factos para além dos constantes da acusação que se incluam no objeto da prova. Na verdade, o art. 124º, n.º 1, do CPP declara que “Constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis”. E sem dúvida que o facto em causa é relevante para a decisão relativa à existência de crime, e à punibilidade da conduta do arguido. O arguido confessa factos, e não a prática do crime que o Ministério Público lhe imputa na acusação – cabendo a decisão sobre a qualificação jurídica dos factos apurados ao julgador. Tendo em conta que os factos apurados em julgamento, cuja veracidade o recorrente não coloca em crise, têm relevo manifesto para a decisão da causa, não contrariando a confissão do arguido, não se vislumbra qualquer fundamento para a pretendida alteração da matéria de facto provada. Nem se diga, como pretende o recorrente, não poder nos factos provados constar a expressão “caducada”, pois independentemente da relevância jurídica que tal conceito poderá implicar, é antes de mais o particípio passado do verbo caducar, na forma singular feminina, um verbo intransitivo da língua corrente portuguesa que significa “ir a acabar, declinar, ser anulado, deixar de estar em vigor, prescrever, cair de velho” (em https://dicionario.priberam.org/caducada). O relevo jurídico do verbo em causa, de uso comum, é questão que importará apurar na decisão da questão de direito – não decorrendo do facto, por si só, qualquer ilação jurídica. Mantém-se, assim, inalterada a factualidade dada como provada na sentença recorrida. Encontra-se provado que o arguido é titular da carta de condução n.º C-323075 4, emitida em 18.2.2002, com data de validade até 14.9.2012; que o arguido perfez 60 anos de idade em 15.9.2012, e 65 anos de idade em 15.9.2017, sem que tenha procedido à revalidação da carta de condução; e que o IMT, IP, não proferiu decisão de cancelamento da carta de condução do arguido (até à data dos factos, a saber, 11.2.2019). O tribunal a quo entendeu que a conduta do arguido não preenche o elemento referido na al. b), supra, mas a contraordenação prevista no art. 130º, n.º 7, do Código da Estrada. E com razão. O Dec.-Lei n.º 138/2012, de 5 de julho, que aprovou o Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir (RHLC), no seu art. 9º, impõe a obrigação aos titulares de revalidarem as suas cartas de condução quando perfizeram 50 ou 60 anos, consoante o caso, após a entrada em vigor do diploma – pelo que deveria o arguido ter revalidado a sua carta de condução até15.9.2012. A validade dos títulos de condução está prevista no art. 16º, n.º 3, do RHLC, publicado em anexo ao Dec.-Lei 138/2012, da seguinte forma: “Quando o condutor perfizer 60 anos, o prazo de validade é de cinco anos, e, a partir dos 70 anos, de dois em dois anos”. Assim, o arguido deveria ter ainda procedido à revalidação da sua carta de condução aos 65 anos de idade, o que igualmente não fez. O art. 130º do Código da Estrada, na redação do Dec.-Lei mencionado (n.º 138/2012), distingue os casos de caducidade do título de condução, que se verifica se não for revalidado nos prazos fixados no RHLC, dos casos de cancelamento, que ocorre se tiverem passado mais de 5 anos sobre a data em que a carta de condução deveria ter sido revalidada. Esta distinção é essencial para qualificar a conduta do agente como contraordenação, prevista no art. 130º, n.º 7, do Código da Estrada, no caso de conduzir com a carta caducada, ou cancelada, caso em que o agente não está já habilitado a conduzir, incorrendo assim no crime previsto no art. 3º do Dec.-lei n.º 2/98 (cf. Ac. da Rel. de Lisboa de 25.11.2015, no proc. 495/14.5GCALM.L1-3, em www.dgsi.pt). E não suscita qualquer dúvida a interpretação da lei neste sentido, uma vez que se encontra tal expressamente previsto nos n.ºs 1, al. a), 3, 5 (Os titulares de título de condução cancelados consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido) e 7 (Quem conduzir veiculo com titulo caducado é sancionado com coima de e 120 a € 600) do citado art. 130º do Código da Estrada. Mas quando é que a carta de condução se poderá considerar cancelada? É que, no caso, o arguido não revalidou por duas vezes consecutivas (aos 60 e aos 65 anos de idade) a sua carta de condução, conduta que manteve por mais de 5 anos, sendo fundamento para cancelamento da carta de condução, conforme previsto no art. 130º, n.º 3, al. d), do CE. No entanto, o cancelamento da carta de condução não é automático, ao contrário da sua caducidade, conforme decorre da diferença de redação dos n.ºs 1 (O título de condução caduca…) e 3 (O título de condução é cancelado…). Na verdade, o art. 2º, n.º 1, do RHLC dispõe que “Os títulos de condução (…) são emitidos, revogados e cancelados pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP (IMT, IP), nos termos do Código da Estrada e do presente Regulamento”. Ou seja, esta norma atribui a competência para cancelar os títulos de condução ao IMT, IP, nos casos previstos quer no RHLC, quer no Código da Estrada – como é o caso do fundamento para cancelamento em causa nos autos, previsto no art. 130º, n.º 3, al. d), do CE. Ora, encontra-se provado, sob o ponto 4 (que não foi objeto de impugnação no recurso), que o IMT, IP não proferiu decisão de cancelamento da carta de condução do arguido. Assim, e para todos os efeitos, não se pode considerar que o arguido não esteja habilitado a conduzir, nos termos do n.º 5 do art. 130º do CE, caso em que preencheria a sua conduta o elemento objetivo do tipo legal de crime de condução sem habilitação legal acima enunciado em b) (cf. Acs. da RE de 17.10.2017, no proc. 316/14.9GTABF.E1, e desta Relação de Coimbra, de 30.4.2019, no proc. 320/18.8PARGR.L1-S, em www.dgsi.pt). Em consonância, nenhuma censura merece a sentença recorrida.
2. Decisão Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso, e confirma-se integralmente a sentença recorrida. Sem tributação.
Coimbra, 16 de Outubro de 2019
Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora)
João Bernardo Peral Novais (adjunto) |