Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
992/19.6T9GRD.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: INSTRUÇÃO
IN DUBIO
INDÍCIOS
FALSIFICAÇÃO
BURLA
Data do Acordão: 01/22/2025
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: GUARDA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA GUARDA - JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTS. 308º, N.º 1, CPP
Sumário: I - O MP tem a direcção exclusiva do inquérito, findo o qual, no processo comum e relativamente a crimes públicos, como é o presente caso, deve tomar uma de três posições: ou arquiva, ou propõe/determina a suspensão provisória do processo, ou acusa.

II - Em caso de arquivamento, o Assistente, e em caso de acusação, o Arg., podem requerer a abertura de instrução.

III - Existem indícios suficientes quando é maior a probabilidade de o Arg. vir a ser condenado do que a de vir a ser absolvido.

IV - O princípio in dubio pro reo aplica-se quer na instrução, quer no julgamento, devendo o tribunal em caso dúvida, razoável e fundada em razões adequadas, quanto à ocorrência de determinado facto, daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido.

V - Mas, havendo prova de que, na data em que foi feito o termo de autenticação da assinatura da Assistente, em Portugal, esta se encontrava fora do país, há que concluir que, pelo menos, o termo de autenticação em causa é falso.

VI - Os factos indiciados poderiam integrar, ainda, a prática, em co-autoria, de um crime de burla qualificada, na forma tentada, mas, como não consta do RAI que os Arg. tivessem previsto a possibilidade de o crédito não ser pago pelos outros obrigados e, nessa medida, causarem prejuízo à Assistente, com a execução da fiança, não podem os Arg. ser pronunciados pelo mesmo.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Relator: João Abrunhosa
Adjuntos: Rosa Pinto
Cândida Martinho

*

Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

No Juízo Local Criminal da Guarda, por despacho de 04/11/2024, decidiu-se não pronunciar os Arg.[1] AA, BB e Banco 1..., com os restantes sinais dos autos, nos seguintes termos:

“... Folhas 621 a 638:

Vi o douto acórdão antecedente proferido pelo Colendo Tribunal da Relação de Coimbra.[2]

Notifique a sua baixa.

Em obediência ao decidido, passa-se a proferir a seguinte;

DECISÃO INSTRUTÓRIA

Declaro encerrada a instrução.

            I. Relatório:

A assistente CC, não concordando com o despacho de arquivamento nos presentes autos, veio requerer abertura de instrução contra:

AA,

Dr. BB e

Banco 1...

Todos melhor identificados nos autos, pugnado que sejam pronunciados, pela prática dos seguintes factos:

1 – No dia 18 de Junho de 2019, a Assistente foi citada pelo Consulado Geral de Portugal em Estrasburgo, lugar onde mantinha residência, da acção executiva com o Processo n.º 284/19...., que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – JL Cível – Juiz ..., contra si movida pela Instituição Bancária Banco 1.... Conf. Doc. n.º 1 que se junta para os devidos efeitos legais.

2 – Ao proceder à análise do processo referido, constatou que tinha sido celebrado um contrato de mútuo com fiança, com o n.º ...91, com a Banco 1..., no qual os contratantes eram a sociedade A..., LDA, o seu sócio e gente de facto, da referida sociedade, AA,  e ela própria, Assistente.

3 – Mais constatou que o montante do Mútuo com Fiança era no valor de €53.500,00 (cinquenta e três mil e quinhentos euros ).

4 – Que o seu sócio e gerente de facto, AA, tinha agido por si, em representação da sociedade  A..., LDA, e em representação da Assistente, tendo para o efeito usado uma procuração, com poderes de representação da Assistente, com data de 24/01/2014, naquele acto, em representação da sociedade de que também era sócia e gerente apenas de direito.

5 – AA no dia 24 de Junho de 2014 pelas 9horas e 44minutos usou a procuração  no escritório do Advogado BB, para que aquele a pudesse utilizar à confirmação dos outorgantes no Contrato de Mútuo com Fiançada.

6 – Tais factos decorrem do documento Termo de Autenticação emitido pelo Dr.º BB, Advogado, com escritório na Rua ... ... ..., conforme doc. n.º1 já supra junto.

7 – Onde no mesmo se lê que:

a) "AA,  casado, residente na Rua ... ..., por confronto do bilhete de identidade n.º ... em ../../2008 pela ..., do qual é portador e me foi exibido, individualmente e também na qualidade de procurador e em representação de CC, contribuinte Fiscal n.º ...02, portadora do Passaporte n.º ...78, residente em ..., n.º ..., ...29 ..., conforme Procuração Autenticada, datada de 24.01.2014, que lhe conferiu todos os poderes da mesma constantes, cujo original me foi igualmente exibido no presente acto, intervindo, por si e como mandatário, na qualidade de gerentes, e em representação, com poderes para o acto, da sociedade comercial denominada A..., LDA, com sede social na  Edifício ..., Zona Industrial ..., freguesia ..., concelho ..., NIPC ...86, qualidade e poderes que constam da certidão permanente com o código de acesso ...57, com validade até 11/12/2014, que nesta data consultou;"

"b) AA,  casado, residente na Rua ... ..., por confronto do bilhete de identidade n.º ... em ../../2008 pela ..., do qual é portador e me foi exibido, individualmente e também na qualidade de procurador e em representação de CC, contribuinte Fiscal n.º ...02, portadora do Passaporte n.º ...78, residente em ..., n.º ..., ...29 ..., conforme Procuração Autenticada, datada de 24.01.2014, que lhe conferiu todos os poderes da mesma constantes, cujo original me foi igualmente exibido no presente acto, (...)"

8 – A Assistente, na datas da outorga da procuração, 24/01/2014, não se encontrava no nosso país, estava a trabalhar para a empresa denominada B..., na morada em ... – ... – ... ... ..., na Alemanha e nesse mesmo dia 24 ausentou-se  em viagem para a República Checa na morada sita em  ... – ...81 ..., morada nesse país da empresa onde trabalhava C... S.R.O. lugar onde permaneceu até ao dia seguinte. Con. Doc. n.º 3 que se junta para os devidos efeitos.

9 – A Assistente nunca elaborou/emitiu a referida Procuração supra identificada datada de 24/01/2014, nunca sequer a assinou e desconhece completamente todos os factos que envolveram o modo e os meios utilizados para o contrato de mútuo com fiança, celebrado com a Banco 1..., apenas com a citação da acção supra referida se deu conta do que vem a dizer.

10 – O documento que foi usado, Procuração datada de 24/01/2014, é um documento falso, bem como a assinatura que nela está aposta, assim como a assinatura que está aposta no termo de autenticação que também é falsa.

11 – AA entre o dia 24/01/2014 pelas 18:00horas e o dia 18/02/2014 pelas 10horas:47minutos, deslocou-se ao escritório do Dr.º  BB, Advogado, com escritório na Rua ... ... ... e em conjugação de esforços com o identificados Advogado elaboraram o documento Procuração, a qual com o seu próprio punho assinaram e de seguida o Dr.º BB procedeu ao seu registo por termo de autenticação da mesma na página da Ordem dos advogados, o que fizeram em conjugação de esforços e no uso abusivo dos elementos de identificação da Assistente, falsificaram a assinatura desta na referida procuração, apesar de cientes que assi m estavam a viciar o documento em causa a fé pública e a confiança geral que tal procuração gozava, visto com aquela poder contrair empréstimos.

12 – AA sabia que a procuração era falsa e ainda assim, no seu uso dirigiu-se à Instituição Bancária, Banco 1... na ... e aí chegado contraiu um empréstimo bancário, no valor de €53.500,00 (cinquenta e três mil e quinhentos euros) a favor da sua representada A..., vindo mais tarde como sucedeu, no uso da procuração a celebrar o contrato de mútuo com fiança.

13 – AA, sem conhecimento e consentimento da Assistente, usou de modo ilegítimo documento falso, que lhe permitiu contrair um empréstimo no valor de €53.500,00 (cinquenta e três mil e quinhentos euros), junto da identificada Instituição de Crédito Banco 1..., S.A.

14 – AA e o Advogado Dr.º BB, sabiam que a sua conduta era proibida por lei, e mesmo assim levaram a cabo de forma deliberada, livre e consciente aquela conduta.

15 – Tal comportamento é integrador do tipo de crime de falsificação de documento  p.p. pelo n.º 1 alínea a), c), d), e) e f), n.º 3.º e 4.º do artigo 256.º do Código Penal, bem como do crime de Burla p.p. Pelo artigo 217.º do Código Penal.

16  – A Instituição Bancária Banco 1... omitiu-se de conferir os documentos que servem à celebração do contratos de Mútuo com Fiança e nomeadamente o termo de autenticação que serviu ao reconhecimento das assinaturas no contrato de mútuo.

17 – A Banco 1... não salvaguardou os direitos da Assistente, ao omitir-se do seu dever, lesou a Assistente, que não esteve presente, nem assinou qualquer tipo de documento, nomeadamente o Contrato de Mútuo com Fiança.

18 -  A inobservância dos deveres que são conferidos às Instituições Bancárias e ao caso à Banco 1..., fez com que houvesse facilitismo para a prática do crime, pelo que agiu em co-autoria material.

19 – A Banco 1... não agiu com transparência e não soube garantir a segurança do comércio jurídico e não agiu sequer em cumprimento das regras impostas pela Lei de Branqueamento de Capitais.

20 – A Banco 1... ao omitir-se dos seus deveres sem observar os deveres de diligência e zelo que sobre si impendiam, são responsáveis pelos danos que lhes advieram da descrita atuação.

Pelo exposto:

21 – AA e o Senhor DR.º BB, em conjugação de esforços agiram livre, deliberada, concertada e conscientemente, cientes de que não podiam elaborar, assinar e usar o documento, Procuração datada de 24/01/2014, que é falso, fazer constar falsamente facto juridicamente relevante.

22 – AA agiu livre, deliberada, concertada e consciente, ciente de que não podia usar a procuração falsa para obter de terceiros, junto da Banco 1..., proveitos para si ou para a sua representada.

23 – Estas condutas criaram prejuízo à Assistente, sabendo que as atrás descritas condutas eram ilícitas e causadoras de prejuízo e que eram proibidas e puníveis por lei.

24 – AA e o Dr.º BB em co-autoria material cometeram um crime de Falsificação de Documento p.p. nas disposições combinadas pelo n.º 4.º, n.º 3 e n.º 1 alínea a), c), d), e) e f) do artigo 256.º do Código Penal, bem como o crime de Burla p.p. Pelo artigo 217.º do Código Penal.

Os actos de instrução:

Por despacho de fls. 438 a 439 foi declarada aberta a instrução.

Em instrução procedeu-se à realização do debate instrutório, com observância do devido formalismo legal.

II. Saneamento:

O Tribunal é competente em razão da matéria e hierarquia.

Não há nulidades que cumpra conhecer.

III. Fundamentação:

A) Considerações gerais sobre a Instrução:

Nos termos do artigo 286º do CPP a instrução visa, designadamente, a comprovação judicial da decisão final do inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, mediante a verificação (ou não verificação) de indícios suficientes.

Os indícios são suficientes, na perspectiva do normativo invocado, quando, em face dos mesmos, seja em termos de prognose, muito provável a futura condenação do arguido ou esta seja mais provável que a sua absolvição (cfr. art.º. 283º, n.º. 1 ex vi do art.º. 308º, n.º. 2, ambos do Cód. Proc. Penal)[3]. Dito de outro modo, por «indícios suficientes» para efeitos da decisão instrutória, deve entender-se a possibilidade razoável de que o arguido tenha praticado os factos que lhe são imputados e de que lhe será aplicada uma pena ou medida de segurança, devendo o juiz, nas palavras de Germano Marques da Silva, (Curso de Processo Penal III, 2000, p.179), pronunciar o arguido apenas e só “quando pelos elementos constantes dos autos forme a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido” .

A decisão instrutória, no sentido da pronúncia, depende, assim, da existência de indícios suficientes, obtidos por via do inquérito e/ou da instrução, que preencham os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. art.º. 308º, n.º. 1 do Cód. Proc. Penal).

A concretização do que sejam “indícios suficientes” assume fulcral importância nos ulteriores desenvolvimentos e metodologia empregue na apreciação do processado. Assim, referia-se Cavaleiro Ferreira aos indícios, por aproximação às presunções naturais civis, nos seguintes termos: “A prova indiciária é prova indirecta. Os factos probatórios indiciários são os que permitem concluir pela verificação ou não verificação de outros factos por meio de raciocínio em regras da experiência comum, ou da ciência, ou da técnica”[4].

A instrução não é, contudo, constituída apenas por prova indiciária. Como refere Germano Marques da Silva[5], o indício é um meio de prova e todas as provas são indícios “enquanto são causas, ou consequências morais ou materiais, recordações e sinais do crime”. É neste sentido e segundo este autor que se deve interpretar o disposto no art.º 308º do Cód. Proc. Penal.

De todo o modo, nesta fase preliminar do processo, não se visar “alcançar a demonstração da realidade dos factos[6].

Como conclui ainda Germano Marques da Silva[7], “As provas recolhidas nas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento “(sublinhado nosso).

Assim, de acordo com o art. 308º do CPP se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, haverá decisão de pronúncia pelos respectivos factos, no caso contrário, haverá despacho de não pronúncia.

O objecto da instrução está delimitado pelos factos constantes do despacho de acusação proferida nos autos ou pelo RAI, sem prejuízo do disposto no artigo 303º do CPP


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B) Os factos resultantes do inquérito:

No final do inquérito o Ministério Público arquivou os autos, com os fundamentos vertidos a folhas 299 e ss, sendo que é desse arquivamento que o assistente requereu a abertura de instrução.


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C) Resultado das diligências realizadas na Instrução quanto aos factos imputados:

Em sede de instrução foi solicitado ao Laboratório de Polícia Científica da PJ a viabilidade de realização de perícia à assinatura constante numa cópia, tendo tal Laboratório respondido que “não é tecnicamente viável a execução de análise pericial da escrita manual com recurso a reproduções”.

Mais referiu que, mesmo na presença do documento original, e apenas com o material agora enviado para comparação, não seria possível obter resultados conclusivos.

Por fim realizou-se o debate instrutório.


*

D) Ponderação global dos Indícios, por referência ao crime imputado:

(Do crime de falsificação de documento):

Decorre do disposto no artigo 256.º, que:

1 Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:

a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;

b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;

c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;

d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;

e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou

(…)

3 - Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.

O bem jurídico protegido com este tipo legal de crime é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório, (neste sentido, Helena Moniz, O crime de Falsificação de Documentos – da Falsificação Intelectual e da Falsidade em Documento, 2.ª reimpressão, Coimbra Editora, 1999, página 41 e ss).

A actividade do “falsário”, na medida em que quebra a relação que se interpõe entre a aparência e a realidade, atenta contra o crédito de que goza o documento, isto é, contra a confiança que a generalidade das pessoas deposita em que a sua aparência corresponde à realidade.

O crime de falsificação de documento é um crime de perigo abstracto, pois o perigo não constitui elemento do tipo, mas apenas a motivação do legislador. Nesta medida, para que a conduta do agente integre este tipo legal de crime basta que o documento seja falsificado, independentemente de o utilizar ou o colocar no tráfico jurídico (vide Helena Moniz, in Comentário Conimbricense do Código Penal, volume II, página 681).

Nos termos do artigo 255.º, alínea a) do Código Penal, documento é “a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar o facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.”

Trata-se assim de uma noção bastante mais ampla do que a inscrita no âmbito do direito civil e que permite desde logo considerar como documento qualquer meio técnico que integre uma declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante. Segundo Helena Moniz, “(…) aquilo que constitui a falsificação de documento é, não a falsificação do documento enquanto objecto que incorpora uma declaração, mas a falsificação da declaração enquanto documento” – in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, página 676.

Esta concepção reporta-nos a uma outra, designadamente, a modalidade que o acto de falsificação pode assumir, distinguindo-se a falsificação material da falsificação ideológica. “Enquanto na falsificação material o documento não é genuíno, sendo falsificado na sua essência material, na falsificação ideológica o documento é inverídico” (ob. cit. página 676). 

Helena Moniz toma a falsificação ideológica em sentido amplo e nela distingue a falsidade intelectual propriamente dita («desconformidade entre o documento, no sentido de declaração documentada, e a declaração») e a falsidade em documento («o documentado, embora conforme com a declaração, incorpora, porém, um facto falso juridicamente relevante, pois o facto declarado não corresponde à realidade»), considerando que a da alínea b) por remissão da alínea e) do artigo 256.º, n.º 1, contempla a primeira - além da ideológica (O crime de Falsificação  de Documentos – da Falsificação Intelectual e da Falsidade em Documento, 2.ª reimpressão, página 227-230).

Para o preenchimento deste ilícito é indispensável que a falsidade do documento se apresente, nas circunstâncias concretas e segundo as regras da experiência comum, idóneo à produção do perigo, ou seja, tem de ser idóneo a iludir a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório documental.

No tocante ao elemento subjectivo, é de realçar que estamos em face de um crime intencional, isto é, para o preenchimento do tipo legal em questão, para além do dolo genérico, ou seja, a consciência e vontade de praticar o acto de falsificação, é ainda necessário que o agente tenha actuado com a intenção de obter para si ou para outra pessoa um benefício ilegítimo ou com a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado. “Entendendo-se por intenção de alcançar um benefício ilegítimo a vontade de acção do autor orientada para a obtenção de uma vantagem ilícita ou injusta, isto é, não protegida pelas leis em vigor e por intenção de causar prejuízo ou querer provocar um dano de natureza patrimonial ou moral.” (Acórdão do S.T.J., processo 01P4459, disponível no site www.dgsi.pt).

Por último prescreve o artigo 202.º, alínea a), do CP que:

Para efeito do disposto nos artigos seguintes considera-se:

a) Valor elevado: aquele que exceder 50 unidades (5.120€) de conta avaliadas no momento da prática do facto;


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(Do crime de burla):

Pratica este crime todo aquele que “ (…) com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial” – cfr. art. 217º, n.º1, do Código Penal.

E refere o art. 218º, n.º 1, também do Código Penal, que “Quem praticar o facto previsto no n.º 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.

2 - A pena é a de prisão de dois a oito anos se:

a) O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado;

b) O agente fizer da burla modo de vida;

c) O agente se aproveitar de situação de especial vulnerabilidade da vítima, em razão de idade, deficiência ou doença; ou…”.

Com este tipo legal de crime visa-se a protecção do património, entendido numa acepção jurídico-económica e, neste sentido, coincidente com um conjunto de utilidades económicas cuja disponibilidade e fruição o ordenamento jurídico tutela ou, pelo menos, não desaprova.

A protecção ao património coloca-se no momento em que evento danoso ocorre, em que o prejuízo patrimonial se verifica - sob a forma de dano emergente ou de lucro cessante -, sendo esse, justamente, o momento da consumação do crime.

Ora, os elementos do crime de burla são os seguintes:

a) A “astúcia” empregue pelo agente;

b) O “erro ou engano” da vítima devido ao emprego da astúcia;

c) A “prática de actos” pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida;

d) O “prejuízo patrimonial” – da vítima ou de terceiro – resultante da prática dos referidos actos;

e) Nexo causal: é necessário que entre os elementos acima descritos existam sucessivas relações de causa e efeito, nomeadamente que: da astúcia resulte o erro ou engano; do erro ou engano resulte a prática de actos pela vítima; da prática desses actos resulte o prejuízo patrimonial;

f) Intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo: é necessário que se verifique a existência de dolo.

Quanto à conduta do agente, o artigo 217º nº 1 do Código Penal determina que o erro do sujeito passivo tem de ser provocado astuciosamente.

“É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou são referidos pelo burlão factos falsos ou este altere ou dissimule factos verdadeiros, e actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado, de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro” (Ac. do STJ de 20/03/2003, processo nº 03P241 disponível em www.dgsi.pt).

Por sua vez, o erro deve ser considerado como a falsa ou nenhuma representação da realidade concreta, que funcione como vício do consentimento da vítima.

Já no caso do engano, “o burlão terá que ter cometido a mentira adequada a lograr o burlado” (Marques Borges, citado in Código Penal Anotado, Leal-Henriques e Simas Santos, Editorial Rei dos Livros, Vol. II, pág. 839).

No entanto, não basta qualquer erro ou engano; é ainda necessário que ele tenha sido provocado ou aproveitado astuciosamente, nos termos supra referidos.

Sendo certo que o erro pode ser provocado pelo agente quando este descreve a outrem, por palavras ou declarações expressas, sob a forma oral ou escrita, uma falsa representação da realidade.

“A burla por palavras ou declarações expressas pode ocorrer, conforme se assinalou, sob a forma oral ou escrita; (…) Na modalidade de execução em apreço incluem-se, também, a apresentação de documento falso ou de documento que, não sendo falso, não fundamenta (ou não fundamenta ainda) determinada pretensão 1), a solicitação de subsídios ou comparticipações para despesas não efectuadas 2) ou o acto de invocar meios de prova falsos, desde que se observem os restantes pressupostos do delito 3)” (Almeida Costa, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Coimbra Editora, Tomo II, pág. 302).

Além disso, a vítima tem que praticar actos em consequência do erro ou engano em que foi induzida. Os actos de disposição são o elemento do tipo que em pertinente relação causal estão em contacto, dum lado, com o elemento intelectual que é o erro ou engano de quem os pratica; do outro, com a consequência exterior — patrimonial — da burla, que é o prejuízo do enganado ou de terceiro.

O desenho da burla, que é crime de relação, envolve dois comportamentos, mas só se pune o do burlão. A figura da vítima é certamente imprescindível no iter criminis da burla mas nunca se assume como punível. A própria actividade do enganado não se segue de modo necessário à actividade do burlão: este pode ter praticado todos os actos tendentes ao fim em vista, sem que rigorosamente se possa afirmar que vai ter lugar o acto de disposição pretendido, ou que este vai gerar, de forma inelutável, um prejuízo patrimonial.

Quanto ao prejuízo patrimonial, enquanto requisito da consumação do delito, adoptado pela opinião dominante na actualidade consiste num conceito objectivo-individual de dano patrimonial e de acordo com o qual “o prejuízo deverá determinar-se através da aplicação de critérios objectivos de natureza económica à concreta situação patrimonial da vítima, concluindo-se pela existência de um dano sempre que se observe uma diminuição do valor económico por referência à posição em que o lesado se encontraria se o agente não houvesse realizado a sua conduta” (cfr. Almeida Costa, in ob. cit. pág. 284/285). Daqui decorre que o crime de burla é um crime de dano.

Saliente-se que nem sempre a pessoa que foi induzida em erro ou engano é a mesma que foi lesada (titular do património lesado), pois, “Sujeito passivo, portanto, é o que vem a sofrer, realmente o prejuízo. Se o enganado é titular de direito real sobre a res captada, o sujeito passivo tanto será ele quanto o titular da propriedade” (in Código Penal Anotado, Leal-Henriques e Simas Santos, Ed. Rei dos Livros, 2º Volume, pág. 838, citando Nelson Hungria).

Como já se referiu, é necessário que em consequência da astúcia resulte o erro ou engano; do erro ou engano resulte a prática de acto(s) pela vítima; da prática de acto(s) resulte, finalmente, o prejuízo patrimonial. Em sede de imputação objectiva do evento à conduta do agente, a burla é, assim, um crime complexo, que comporta um triplo nexo de causalidade.

É precisamente por isso que o crime de burla constitui um crime material ou de resultado, pois a sua consumação verifica-se com a saída dos bens ou valores da esfera do legítimo detentor dos mesmos ao tempo da infracção, sendo que para a sua consumação é necessário a verificação de um duplo nexo de imputação objectiva:

1) Entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património próprio ou alheio;

2) Entre os actos tendentes a uma diminuição do património próprio ou alheio e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial.

Trata-se de um delito de execução vinculada, pois é em consequência de uma específica forma de comportamento que ocorre a lesão do bem jurídico.

No que concerne ao tipo subjectivo, para o preenchimento do crime de burla, é necessário que a conduta do agente seja dolosa. O dolo tem de ser específico, pois “Para que se verifique o preenchimento do tipo subjectivo não basta, contudo, o dolo de causar um prejuízo patrimonial ao sujeito passivo ou a terceiro, exigindo-se, de outra parte, que o agente tenha a “intenção” de conseguir, através da conduta, um enriquecimento ilegítimo próprio ou alheio. A burla consubstancia, portanto, um delito de intenção (Absichtsdelikt) – categoria que exprime, do lado do tipo subjectivo, a mesma ideia que, no plano do tipo objectivo, preside à sua qualificação como um “crime de resultado parcial” ou “cortado” (kupiertes Erfolgsdelikt): não obstante se requeira que o sujeito actue com aquela intenção de enriquecimento, a consumação do crime não depende da efectivação do último, verificando-se logo que ocorra o prejuízo patrimonial da vítima” (cfr. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Ed., Tomo II, pág. 309).

O enriquecimento ilegítimo deve ser entendido como enriquecimento ilícito, ou seja, ao qual não corresponde, objectiva ou subjectivamente, qualquer direito, pois só este é relevante como elemento constitutivo do crime aqui em causa.

O crime de burla caracteriza-se por ser um tipo legal de crime de execução vinculada, ou seja, a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. De facto, torna-se imprescindível, para a sua verificação, que o agente, utilizando do erro ou engano que astuciosamente provocou em outrem, i.e., usando de um “ meio engenhoso para enganar ou induzir em erro”, determinar essa outra pessoa (ou pessoas) a praticar actos que lhe causem, ou que causem a outro indivíduo, um certo e determinado prejuízo patrimonial. E exige-se, ainda, que o enriquecimento por parte do agente (ou de terceiro) seja ilegítimo.

A burla constitui, de facto, um crime de dano, que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro. O agente, “ através da indução em erro de um sujeito passivo, faz com que este lhe entregue (ou a terceiro) um valor ou coisa, em ordem a obter um benefício patrimonial ilegítimo” – In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 290, por A. M. Almeida Costa.

Para que este tipo legal de crime se consume, não basta o simples emprego de um meio enganoso; ele tem de ser a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o sujeito passivo da infracção. E este erro requer, ainda, que nele resida a causa da prática, pelo “burlado”, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais. Trata-se, assim, de um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo sujeito passivo da infracção, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e, posteriormente, entre estes e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial.


*

E) Indícios recolhidos em sede de inquérito.

Uma vez que, em sede de instrução inexistiu qualquer produção de prova, somos a transcrever as concussões retiradas pelo Ministério Público a folhas 299 e ss:

Iniciaram-se os presentes autos com uma queixa-crime junta a fls. 3 e ss., nos termos da qual e em apertada síntese, CC deu a conhecer de que, AA, no dia 24-6-2014 e nas demais circunstâncias de tempo, lugar e modo que constam de tal queixa (cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais), teria outorgado um contrato de mútuo com fiança com a Banco 1..., no valor de €53.500,00, em que aquele, para obter como obteve tal quantia, utilizou uma procuração datada de 24-1-2014 alegadamente falsificada, a qual permitiu que, em representação da queixosa, a fizesse assumir a qualidade de fiadora.

Esclareceu a queixosa que apenas veio a obter conhecimento da celebração de tal contrato e da existência da referida procuração quando, no dia 18-6-2019, foi citada, pelo Consulado Geral de Portugal em Estrasburgo, lugar onde reside, no âmbito do processo de ação executiva n.º 284/19.... do Juízo Local Cível da Guarda, instaurada contra a ora queixosa pela Banco 1....

Foram juntos aos autos, pela denunciante, para além do mais, cópias das referidas nota de citação, requerimento executivo, contrato de mútuo, termo de autenticação.

Tais factos participados, abstratamente considerados, seriam suscetíveis de consubstanciar a prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256º n.º 1 al. a) c) e n.º 2, bem como um crime de burla, p. e p. pelo art.º 217º, ambos do Código Penal.

No decurso do inquérito foram tomadas declarações aos funcionários da Banco 1... DD e EE, os quais confirmaram e celebração do referido contrato de mútuo com fiança, sendo que a procuração, aparentemente passada pela ora denunciante, que lhes foi exibida teria sido autenticada pelo advogado Dr. BB.

O Dr. BB, advogado com escritório nesta cidade ..., escudando-se no respetivo sigilo profissional, não prestou declarações sobre a matéria em apreciação nos presentes autos.

Notificada a Banco 1... e o denunciado AA, além do mais, para juntarem aos autos a referida procuração, a primeira veio esclarecer que tal documento não ficou na Banco 1.... em arquivo (cfr. fls. 184), enquanto que o segundo disse que deixou ficar o documento em causa no banco Banco 1... (cfr. fls. 142).

Por outro lado, consta do “Termo de Autenticação” junto a fls. 152, anexo ao contrato de mútuo com fiança junto a fls. 146, que o original da procuração onde a ora queixosa teria conferido poderes ao ora participado, datada de 24-1-2014, teria sido exibido ao Dr. BB, no dia 24-6-2014, aquando da celebração do referido contrato de mútuo.

Nessa sequência, foi o participado AA constituído como arguido, sendo que, em sede de interrogatório, recusou-se a prestar declarações.

Conjugando-se todos os meios de prova produzidos resultou, em nosso entendimento, que a procuração em causa, que habilitou o arguido a outorgar o contrato de mútuo em causa em nome da denunciante, poderia estar em poder do próprio arguido.

Foram realizadas buscas domiciliárias à residência do arguido AA e buscas na sede da empresa pelo mesmo titulada – “A..., Lda”, ao mesmo tempo que determinamos a inquirição da denunciante e que à mesma fossem recolhidos autógrafos para realização de prova pericial por comparação entre a escrita da mesma e aquela que constaria na procuração em causa.

Cumpridos os mandados de busca emitidos, resultou que na residência do arguido foram recuperadas reproduções da procuração em causa e que, por motivos de insolvência, no local onde funcionou a sede da sociedade do arguido já se encontrava em funcionamento uma outra empresa.

Efetivamente, apesar das diligências de inquérito desencadeadas, não foi possível recuperar o documento alegadamente falsificado, de forma a que o mesmo fosse submetido a prova pericial.

Na verdade, só através de exame pericial poderiam ser dissipadas as dúvidas quanto à veracidade ou falsificação do mesmo, sendo certo que tal tipo de prova só pode ser conclusiva através de análise ao documento original.

Em suma, cumpre reconhecer que, realizadas as diligências de inquérito possíveis, até ao momento, não foi possível apurar se a procuração em causa foi, efetivamente, obtida por meio de falsificação e, logo, se o contrato de mútuo em causa, nomeadamente no que diz respeito à constituição da denunciante como fiadora, padece de algum tipo de vício.

F) Subsunção dos factos aos referidos elementos do tipo legal do crime em causa

Concatenando as declarações supra referidas, das mesmas se estrai que a assistente veio apresentar uma queixa contra os aqui arguidos, pela eventual falsificação de uma procuração, sendo este o crime meio, para chegar ao crime resultado. (AA, no dia 24-6-2014 e nas demais circunstâncias de tempo, lugar e modo que constam de tal queixa, teria outorgado um contrato de mútuo com fiança com a Banco 1..., no valor de €53.500,00, em que aquele, para obter como obteve tal quantia, utilizou uma procuração datada de 24-1-2014 alegadamente falsificada, a qual permitiu que, em representação da queixosa, a fizesse assumir a qualidade de fiadora).

Ora é este o cerne da questão inicial: a procuração é ou não falsificada, ou seja, não foi a assistente quem a outorgou?

A tal ponto essencial não foi possível obter resposta, pois o LPC veio referir que era inviável o exame à escrita. Logo não poderemos dizer que a procuração foi ou não forjada, uma vez que inexistem elementos que o possam afirmar, ou desmentir.

Assim, por efeito de projeção, não se poderá afirmar que o mútuo tenha sido contraído com uma procuração falsificada, ou verdadeira, afastando-se, desde já, qualquer imputação, indiciária, ilícita à comissão de tal crime, ou seja, não se poderá dar como indiciado que:

A assistente, na data da outorga da procuração, 24/01/2014, não se encontrava no nosso país, estava a trabalhar para a empresa denominada B..., na morada em ... – ... – ... ... ..., na Alemanha e nesse mesmo dia 24 ausentou-se  em viagem para a República Checa na morada sita em  ... – ...81 ..., morada nesse país da empresa onde trabalhava C... S.R.O. lugar onde permaneceu até ao dia seguinte. Con. Doc. n.º 3 que se junta para os devidos efeitos, - e isto porque, se atentarmos ao Doc 3, entregue pela assistente, a mesma refere que esteve de 24/1/2014 a 28/1/2014, no mesmo local, não se tendo ausentado para a República Checa, nem tal é motivo para não ter outorgado a referida procuração).

Mais, não se poderá dar sequer, como indiciado que:

A Assistente nunca elaborou/emitiu a referida Procuração supra identificada datada de 24/01/2014, nunca sequer a assinou e desconhece completamente todos os factos que envolveram o modo e os meios utilizados para o contrato de mútuo com fiança, celebrado com a Banco 1..., apenas com a citação da acção supra referida se deu conta do que vem a dizer.

O documento que foi usado, Procuração datada de 24/01/2014, é um documento falso, bem como a assinatura que nela está aposta, assim como a assinatura que está aposta no termo de autenticação que também é falsa.

AA entre o dia 24/01/2014 pelas 18:00horas e o dia 18/02/2014 pelas 10horas:47minutos, deslocou-se ao escritório do Dr.º  BB, Advogado, com escritório na Rua ... ... ... e em conjugação de esforços com o identificados Advogado elaboraram o documento Procuração, a qual com o seu próprio punho assinaram e de seguida o Dr.º BB procedeu ao seu registo por termo de autenticação da mesma na página da Ordem dos advogados, o que fizeram em conjugação de esforços e no uso abusivo dos elementos de identificação da Assistente, falsificaram a assinatura desta na referida procuração, apesar de cientes que assi m estavam a viciar o documento em causa a fé pública e a confiança geral que tal procuração gozava, visto com aquela poder contrair empréstimos.

Quanto a estes acontecimentos a motivação do tribunal, para os dar como não indiciados, resulta do facto de não existir qualquer prova que os possa comprovar, mesmo que indiciariamente, e, sendo os mesmos os que poderiam ter factos que enformam os crimes referidos no RAI, teremos que referir, como supra que são o cerne da questão: a procuração é ou não falsificada, ou seja, não foi a assistente quem a outorgou?

A tal ponto essencial não foi possível obter resposta, pois o LPC veio referir que era inviável o exame à escrita. Logo não poderemos dizer que a procuração foi ou não forjada, uma vez que inexistem elementos que o possam afirmar, ou desmentir.

Assim, por efeito de projeção, não se poderá afirmar que o mútuo tenha sido contraído com uma procuração falsificada, ou verdadeira, afastando-se, desde já, qualquer imputação, indiciária, ilícita à comissão de tal crime, ou seja, inexistem indícios suficientes da prática de tais factos, uma vez que nada se consegui comprovar, no que concerne à procuração, a qual, nem se quer foi encontrada, logo não se sabe se a mesma foi ou não forjada, em que termos e a ter sido por quem.

Assim, por efeito de projeção, não se encontrando os factos supra referido como indiciados, os restantes factos, por não se poder afirmar que o mútuo tenha sido contraído com uma procuração falsificada, ou verdadeira, terão que ser dados como não indiciados, nomeadamente que:

AA sabia que a procuração era falsa e ainda assim, no seu uso dirigiu-se à Instituição Bancária, Banco 1... na ... e aí chegado contraiu um empréstimo bancário, no valor de €53.500,00 (cinquenta e três mil e quinhentos euros) a favor da sua representada A..., vindo mais tarde como sucedeu, no uso da procuração a celebrar o contrato de mútuo com fiança.

AA, sem conhecimento e consentimento da Assistente, usou de modo ilegítimo documento falso, que lhe permitiu contrair um empréstimo no valor de €53.500,00 (cinquenta e três mil e quinhentos euros), junto da identificada Instituição de Crédito Banco 1..., S.A.

AA e o Advogado Dr.º BB, sabiam que a sua conduta era proibida por lei, e mesmo assim levaram a cabo de forma deliberada, livre e consciente aquela conduta.

Tal comportamento é integrador do tipo de crime de falsificação de documento  p.p. pelo n.º 1 alínea a), c), d), e) e f), n.º 3.º e 4.º do artigo 256.º do Código Penal, bem como do crime de Burla p.p. Pelo artigo 217.º do Código Penal.

A Instituição Bancária Banco 1... omitiu-se de conferir os documentos que servem à celebração do contratos de Mútuo com Fiança e nomeadamente o termo de autenticação que serviu ao reconhecimento das assinaturas no contrato de mútuo.

A Banco 1... não salvaguardou os direitos da Assistente, ao omitir-se do seu dever, lesou a Assistente, que não esteve presente, nem assinou qualquer tipo de documento, nomeadamente o Contrato de Mútuo com Fiança.

 A inobservância dos deveres que são conferidos às Instituições Bancárias e ao caso à Banco 1..., fez com que houvesse facilitismo para a prática do crime, pelo que agiu em co-autoria material.

A Banco 1... não agiu com transparência e não soube garantir a segurança do comércio jurídico e não agiu sequer em cumprimento das regras impostas pela Lei de Branqueamento de Capitais.

20 – A Banco 1... ao omitir-se dos seus deveres sem observar os deveres de diligência e zelo que sobre si impendiam, são responsáveis pelos danos que lhes advieram da descrita atuação.

Assim, e em jeito de conclusão, desde já se afasta qualquer imputação, indiciária, ilícita à comissão de tais crimes, pois, inexiste prova indiciária da prática dos factos e de quem foi o seu autor, não havendo nada, nem ninguém que refira quem terá (dos arguidos) “forjado a procuração e muito menos existe qualquer prova que venha indiciar, de forma suficiente, que a mesma forjada.

Neste caso, a dúvida que assalta o Tribunal é insanável, porque a própria situação fáctica não foi propícia, ou pelo menos assim não o aconteceu, a depoimentos claros; razoável e uma perícia que viesse dissipar as dúvidas, porque ambos os cenários opostos se afiguram como possíveis, em face do material probatório carreado para o processo; e objetivável, porque sustentada em meios de prova, de credibilidade (ou falta dela) idêntica, que apontam, alguns, em sentidos divergentes.

Ora, tendo o Tribunal dúvidas insanáveis acerca da verificação dos factos constantes do RAI, impõe-se a aplicação ao caso concreto do princípio “in dubio pro reo”.

 O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito.

O princípio “in dubio pro reo” respeita à decisão da matéria de facto, constituindo uma regra legal de decisão em matéria de facto, segundo a qual o tribunal deve decidir a favor do arguido se não se encontrar convencido da verdade ou falsidade de um facto, isto é, se permanecer em estado de dúvida sobre a realidade do mesmo (non liquet).

Assim, o princípio não constitui uma regra probatória em sentido próprio, i.e. uma regra relativa à produção ou valoração da prova, nomeadamente à dúvida sobre credibilidade de um dado meio de prova individualmente considerado, reportando-se, antes, às consequências da não realização de prova suficiente sobre a verdade ou falsidade de um facto, depois de concluído o processo de valoração da prova produzida.

Por sua vez, este princípio fundamental do processo penal é uma emanação ou corolário da garantia constitucional da presunção de inocência consagrada no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, no artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

A materialização de tal princípio, dirigido à apreciação dos factos objeto de um processo penal, desdobra-se em dois vetores essenciais: primo, o ónus probatório da imputação de factos ou condutas que integram um ilícito criminal cabe a quem acusa; secundo, no caso de dúvida razoável e insanável sobre os factos descritos na acusação ou na pronúncia, o Tribunal deve decidir a favor do arguido (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de Janeiro de 2006, processo n.º JTRP00038687, disponível em www.dgsi.pt).

Face ao exposto, e atendendo ao conteúdo perceptivo do princípio in dubio pro reo, e atento o supra exposto, os indícios apurados não se mostram idóneos e suficientes para garantir, com qualquer probabilidade, que ao arguido, venha a ser aplicada uma pena à final, devendo, em consequência, ser proferido despacho de não pronúncia quanto à prática, pelo arguido, dos crimes que lhes são imputados no RAI.

Como escreve Figueiredo Dias[8], «... os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.» E continua o citado Mestre dizendo: «tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação».

Vale por dizer, a final e em súmula, que constitui indiciação suficiente o conjunto de elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo vingar a convicção de que este virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado.

Ora, no caso dos autos é incontornável, pelas razões supra aduzidas, que, de acordo com um juízo de prognose, não se pode concluir que os arguidos, face aos elementos de prova disponíveis no inquérito, a renovarem-se em sede de julgamento, sejam, com elevada segurança, condenados.

Assim, consideram “suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança” (artigo 283º, n.º2, do Código de Processo Penal).

O Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16 de Outubro de 2012, do Relator ANTÓNIO JOÃO LATAS estabelece que: “1. A existência de indícios suficientes significa que os indícios, com o sentido de conjunto da prova recolhida nas fases preliminares, são suficientes para submeter o arguido a julgamento, o que se verifica quando deles resultar uma possibilidade razoável de o arguido vir a ser condenado. 2. O juízo ou convicção a estabelecer na fase de instrução, como no termo da fase de inquérito, há-de ser equivalente ao de julgamento, designadamente no que respeita à apreciação do material probatório e ao grau de convicção, que não se compadece com a ideia de verosimilhança ou de admissão da margem “razoável” de dúvida. A prova suficiente há-de corresponder à que “… em julgamento levaria à condenação, se aquele ocorresse com o quadro probatório, no tempo e nas circunstâncias que determinam o libelo acusatório” ou o despacho de pronúncia. (…)” (sublinhado nosso) (disponível em www.dgsi.pt).

Por outro lado, prevê o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, do Relator ARTUR OLIVEIRA, de 20 de Janeiro de 2010, que “Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito democrático e da presunção da inocência impõem que a expressão indícios suficientes (308º/1CPP) seja interpretada no sentido de exigir uma probabilidade particularmente qualificada de futura condenação, fruto de uma avaliação dos indícios tão exigente quanto a contida na sentença final.” (disponível em www.dgsi.pt).

Ora, conforme já se referiu anteriormente, nos termos do artigo 308.°, n.º 1 do Código de Processo Penal, o juiz de instrução profere despacho de pronúncia sempre que se tenham recolhido indícios suficientes de que se praticou um crime e de quem foram os seus autores.

O processo está ao serviço, como direito adjectivo, da aplicação do direito, que, por sua vez, só tem significado por se dirigir á realidade factual, isto é, a norma jurídica corresponde a uma hipótese de facto, tornada geral e abstracta, para a qual se indica uma panaceia, um tratamento jurídico.

A decisão judicial é a meta do processo e, essa decisão haverá que reflectir, com certeza e segurança, a verificação de uma realidade factual (um fenómeno social concreto) á qual o direito concede tutela e, daí, o tratamento que o direito dá a essa realidade (já transformada em fenómeno jurídico).

Se a decisão parte de uma realidade concreta, significa que a factualidade que se vê transporta para a decisão corresponde ao conjunto de factos que real e efectivamente aconteceram na realidade social – os factos juridicamente relevantes são os que se passaram efectivamente na realidade social – há coincidência entre o ser social e o ser jurídico - não restando dúvidas sobre tal coincidência; é a questão da verdade que tem de ser absoluta enquanto espelho do que se passou, mas relativa, por estar sujeita a relatividade do conhecimento humano; quer dizer, a verdade que a decisão contém, só possui de relativo o que não pode deixar de ser relativo no conhecimento humano, no mais, exige-se certeza e segurança sobre o que foi, tal como foi.

A certeza é, portanto, um acto intelectual pelo qual se reconhece sem reservas a verdade de uma realidade factual objectiva.

Para a busca da certeza o processo penal propõe dois métodos, (no sentido de caminho para o conhecimento da verdade dos factos): um primeiro juízo de probabilidade seguido de um juízo de comprovação.

O juízo de probabilidade é aquele que já propunha o direito romano: provável era aquilo que, segundo as aparências pode ser declarado como verdadeiro ou certo. Esta visão de probabilidade tem de ser gradualista, ter vários graus, consoante a sua maior ou menor proximidade da certeza, conforme se vai estabelecendo a comprovação das aparências.

Se atentarmos que o juízo que o art. 308º, citado, é um juízo de probabilidade – de no futuro se verificar os pressupostos para a aplicação, ao arguido de uma pena ou medida de segurança – teremos que os indícios são as aparências, tidas estas, numa concepção indutiva confirmativa de Carnap, como um conjunto de dados de facto cuja comprovação se afigura como seguramente verificável [leia-se também Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 1956, Reimp., II, 279 e ss].

A comprovação para que tende o juízo de probabilidade não será assim uma intuição da verdade, uma mostração, mas outrossim, uma revelação de evidências, uma demonstração da certeza das aparências, dos indícios.

Por tal o art. 308º, citado, nos refere indícios suficientes, enquadrando o grau de probabilidade numa noção quantitativa – suficiente como o que chega, o que basta – e também qualitativa – o que está apto, o que tem potencialidade.

Mas, os factos da realidade que o direito releva quer como aparências ou indícios quer como comprovados ou demonstrados, são os juridicamente relevantes, o que significa que dos factos sociais haverá que dar relevo àqueles que estão normatizados, os que são tidos como fenómenos jurídicos.

No direito penal os factos juridicamente relevantes são os que permitem integrar o fenómeno social definido, previamente, como crime. Como ensina Cavaleiro Ferreira, (ob. cit. paga. 287 e ss) os factos sociais juridicamente relevantes são factos principais (condicionantes da decisão), factos concretos (que se referem a uma determinada situação da vida real), factos internos (que se referem á formação da vida psíquica, como a intenção, a previsibilidade, o erro, a propensão), factos próximos (os que se encontram em imediata conexão com a situação concreta), factos típicos (os que se encontram descritos na norma e sem os quais a situação não se caracteriza como relevante para o direito penal).

Se todos os factos acima indicados são importantes quer para encontrar os indícios quer para a comprovação desses indícios, nunca poderão ser suficientes os indícios se não forem encontradas aparências (cujo termo inglês evidences torna tão expressivo) dos factos típicos, sem as quais não pode haver crime.

Consequentemente, o juiz para poder pronunciar, nos termos do disposto no art. 308º do Código de Processo Penal, terá de ver recolhidos factos que pertencentes aos elementos típicos do crime sejam os suficientes para permitir um juízo de que estes factos serão comprovados e levarão á aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.

Impõe-se, por tal, a quem tem de fazer este juízo de probabilidade, encontrar na norma os factos que, abstractamente, descrevem a conduta tida como crime, isto é, os elementos fundamentais do crime.

Atento o supra exposto, os indícios apurados não se mostram idóneos e suficientes para garantir, com qualquer probabilidade, que aos arguidos, venha a ser aplicada uma pena à final, devendo, em consequência, ser proferido despacho de não pronúncia quanto à prática, pelos arguidos, dos crimes que lhe foram imputados no RAI.

IV. Decisão:

Face ao exposto, decide-se proferir DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA dos arguidos:

AA,

Dr. BB e

Banco 1...

Todos melhor identificados nos autos, pela prática. em co-autoria material e na forma consumada, de:

- (1) um crime de falsificação de documento, p. e p.  pelo artigo 256º, n.º 1, alíneas a), c), e) e f), e n.ºs 3 e 4, do Código Penal.

- (1) um crime de burla, p. e p.  pelo artigo 217º, do Código Penal e outros que se venham a apurar, pois em sede de instrução, requerida por assistente, terá que o mesmo imputar crimes concretos e não será o Juiz de instrução a descobrir outros.

*

Condena-se o assistente nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça devida pela constituição de assistente em 2 (duas) UC e a taxa de justiça devida pela abertura da instrução em 2 (duas) UC – cfr. artigos 515º/1-a) e 8º/1 e 2 do Regulamento das Custas Processuais. ...”.


*

Não se conformando, a Assistente CC, interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação, com as seguintes conclusões:

(...)


*

Neste tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, em suma, pugnando pela improcedência do recurso.

*

É pacífica a jurisprudência do STJ[9] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[10], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.

Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no presente recurso são as seguintes:

I – Falta de fundamentação do despacho recorrido;

II – Suficiente indiciação da prática, pelos Arg., dos crimes que lhes foram imputados.


*

Cumpre decidir.

I – A Recorrente imputa ao despacho recorrido o vício de falta de fundamentação, qualificando-o como nulidade, porque decidiu “... sem enunciar, como devia, todos os factos e elementos de prova existentes nos autos, o Mmo. JIC passou por decima de elementos probatórios que sobre eles tinha o dever de se pronunciar, sob pena de falta de fundamentação decisória. ...” (XVIII conc.), pelo que “... foi cometida nulidade insanável, ...” (XIX conc.).

Quanto à falta de enunciação dos factos indiciados e não indiciados, cremos tratar-se de um lapso, uma vez que o despacho recorrido os enuncia, ainda  que deficientemente, por referência ao RAI[11].

Os actos decisórios devem ser sempre fundamentados, especificando-se os motivos de facto e de direito da decisão (art.º 97º/5 do CPP)[12].

A falta de fundamentação dos actos decisórios, com excepção das sentenças, acórdãos (art.º 379º do CPP) e dos despachos de aplicação de medidas de coacção (art.º 194º/4 do CPP), constitui mera irregularidade[13].

Esta irregularidade tem de ser arguida no próprio acto a que que se refere, se for caso disso, ou nos três dias seguintes a contar daquele em que o interessado dela tiver tido conhecimento (art.ºs 123º/1 CPP) e perante o tribunal que a cometeu, cabendo, então, recurso do despacho que recair sobre essa arguição.

Ora, o Recorrente só suscitou esta questão em sede de recurso, muito depois de decorridos os referidos três dias, pelo que a irregularidade, a existir, estaria sanada, ainda que como veremos, pudesse ter outras consequências.


*

II – Entende a Recorrente que os autos contêm indícios suficientes da prática, pelos Arg., dos crimes que lhes foram imputados no RAI[14].

O MP tem a direcção exclusiva do inquérito (art.º 263º/1 do CPP[15]).

Findo este[16], no processo comum e relativamente a crimes públicos, como é o presente caso, o MP deve tomar uma de três posições: ou arquiva, ou propõe/determina a suspensão provisória do processo, ou acusa (art.ºs 276º/1, 277º e 283º do CPP) [17]. Perante isso, respectivamente, o Assistente ou o Arg. podem requerer a abertura de instrução (art.º 287º/1 do CPP)[18],[19],[20].

No presente caso, o MP, por despacho de 05-09-2022 (fls. 299/300), arquivou os autos, porque “... Em suma, cumpre reconhecer que, realizadas, as diligências de inquérito possíveis, até ao momento, não foi possível apurar se a procuração em causa foi, efectivamente, obtida por meio de falsificação e, logo, se o contrato de mútuo em causa, nomeadamente no que diz respeito à constituição da denunciante como fiadora, padece de algum tipo de vício. ...”.

Perante isso a Assistente veio, em 06-10-2022,  requerer a abertura da instrução[21], finda a qual o tribunal recorrido proferiu o despacho de não pronúncia ora em crise.


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O actual CPP, no art.º 283º/2, considera "… suficientes os indícios sempre que deles resultar a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.".

A definição do que deve entender-se por suficientes indícios contida neste preceito, bem como no art.º 308°/1 do CPP, é idêntica à que, no âmbito do CPP de 1929, havia sido colhida pela Jurisprudência e pela Doutrina, que por indícios suficientes entendia vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele. Porém, para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado.

Por outro lado, e como é sabido, a prova tem por função a demonstração da realidade dos factos (art. 341°/1 CC[22]) e é, normalmente apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (art. 127° CPP).

Ela não pressupõe, como vem afirmando a melhor jurisprudência que aqui se segue de perto, uma certeza absoluta, lógico-matemática ou apodíctica nem, por outro lado, a mera probabilidade de verificação de um facto.

E assenta na certeza subjectiva, relativa ou histórico-empírica do facto, ou dito de outro modo:

a) No alto grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida (cfr. Manuel de Andrade, "Noções Elementares de Processo Civil" p. 191; Antunes Varela, "Manual de Processo Civil", p. 421);

b) No grau de certeza que as pessoas mais exigentes da vida reclamariam para dar como verificado o facto respectivo (Anselmo de Castro, "Direito Processual Civil Declaratório, III", p. 345);

c) Na consciência de um elevado grau de probabilidade - convicção – assente no raciocínio lógico do juiz e não em meras impressões (Castro Mendes, "Do Conceito de Prova em Processo Civil" p. 306 e 325);

d) Na convicção - objectivável, raciocinada (baseada na intuição e na reflexão e motivável - para além de toda a dúvida razoável, não qualquer dúvida, mas apenas a dúvida fundada em razões adequadas (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I," p. 205).

Donde poder concluir-se que a ausência de dúvida razoável pressuposta na condenação, consiste na exclusão da verosimilhança da inocência: não há motivos afirmativos da inocência ou, havendo-os, são afastados pelo julgador por falta de credibilidade racional.

Divide-se actualmente a doutrina entre três posições sobre o que são indícios suficientes: a que entende que o juiz deve pronunciar o Arg. quando pelos elementos de prova recolhidos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que tenha cometido o crime do que não o tenha feito e que, portanto, a lei não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento, bastando-se com um juízo de indiciação (Germano Marques da Silva); a que entende que não basta a maior probabilidade de condenação do que de absolvição, mas antes “… deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação. [23], e a que equipara a convicção de quem acusa ou pronuncia com a convicção de quem julga e condena (Carlos Adérito Teixeira)[24].

Não tomando nós posição definitiva sobre esta questão, adoptamos para já a primeira destas posições, isto é, a de que existem indícios suficientes quando é maior a probabilidade de o Arg. vir a ser condenado do que a de vir a ser absolvido.

O Arg. AA enviou carta ao processo informando que entregou o original da procuração autenticada aqui em causa à Banco 1... (doc. de fls. 142).

A Banco 1... informou que só ficou com cópia da referida procuração (doc. de fls. 184).

Apesar de se terem realizado buscas (docs. de fls. 214 e 221/222), não foi possível encontrar o original da referida procuração.

Não foi, pois, possível, examinar a assinatura nela aposta (doc. fls. 450).

No entanto, a Assistente afirmou (cf. fls. 286/287) que, na data em que foi autenticada a procuração (docs. de fls. 302/305) se encontrava fora do país e juntou um documento da sua entidade patronal que o confirma (docs. de fls. 205/209).

Isto constitui prova positiva de que o termo de autenticação e causa é falso.

Estas provas não foram contrariadas por qualquer outro meio de prova, até porque os Arg. AA e BB não prestaram declarações (fls. 101/102 e 160).

Podemos, pois, concluir que, não havendo indícios suficientes de que a assinatura aposta na procuração seja falsa, há indícios de que o respectivo termo de autenticação o é.

Na verdade, a procuração até poderia ter sido assinada pela Assistente, como podia esta ter deixado folhas de papel assinadas em branco, como acontece com frequência, mas, se a autenticação for falsa, a procuração não podia ter sido usada.
Quanto à aplicação do princípio in dubio pro reo[25] ao caso, diremos, em síntese que o que resulta do princípio citado é que quando o tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido, quer na instrução, quer no julgamento[26]. Mas para que a dúvida seja relevante para este efeito, há-de ser uma dúvida razoável, uma dúvida fundada em razões adequadas e não qualquer dúvida[27],[28].

A violação deste princípio tem sempre que ser aferida em concreto, porque só em concreto pode acontecer que no final da produção da prova no tribunal permaneça alguma dúvida importante e séria sobre o acto externo e a culpabilidade do arguido. Tal aferição não pode ser feita em abstracto, dizendo-se que a admissão deste ou daquele tipo de prova viola este princípio. Existem provas proibidas e provas cuja valoração é proibida, em determinadas circunstâncias, mas isso é outro problema. Se as provas levadas em conta forem legais, só em concreto se pode aferir se o tribunal ficou, ou devia ter ficado, com dúvidas relevantes.

E, no caso concreto, como supra expusemos, existem suficientes indícios de que o termo de autenticação é falso, pelo que não é de aplicar este princípio.


*

Importa, antes do mais, consignar que, contrariamente ao que transparece da decisão instrutória em crise, da leitura atenta do RAI resulta claramente que neste se pretendeu imputar os crimes tão-só aos Arg. AA e BB e não à Banco 1....

As condutas indiciadas integram a prática, em co-autoria, de 1 crime de falsificação de documento autenticado, p. e p. pelos art.ºs 255º/a) e 256º/1-d)/3/4 do CP, na forma consumada.

Para além disso, os factos praticados poderiam integrar a prática, em co-autoria, 1 crime de burla qualificada, p. e p. pelos art.ºs 202º/b), 217º/1 e 218º/2-a) do CP, na forma tentada.

No entanto, não consta do RAI que os Arg. tivessem previsto a possibilidade de tal crédito não ser pago pela “A...” nem pelo Arg. AA e, nessa medida, causarem prejuízo à Assistente, com a execução da fiança, pelo que não os pronunciaremos por tal crime.

Procede, pois, parcialmente o recurso.


*****

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos parcialmente procedente o recurso e julgamos parcialmente procedente o recurso, consequentemente, revogamos o despacho recorrido e pronunciamos os Arg. AA e BB, com os restantes sinais dos autos, pela prática, em co-autoria, de 1 crime de falsificação de documento autenticado, p. e p. pelos art.ºs 255º/a) e 256º/1-d)/3/4 do CP, na forma consumada, porquanto praticaram os factos descritos nos art.ºs 1º a 15º e 21º a 24º do RAI, que aqui damos por inteiramente reproduzidos.

Prova:

- A documental constante dos autos;

- As declarações da Assistente;

- Os depoimentos das testemunhas funcionários da Banco 1..., já ouvidas nos autos.


*

O tribunal de 1ª instância fixará aos Arg. as medidas de coacção que entender adequadas, devendo, em qualquer dos casos, tomar TIR ao Arg. BB.

*

Custas pela Assistente/Recorrente (art.º 515º/1-b) do CPP), com taxa de justiça que se fixa no mínimo legal.

*

Notifique.

D.N.


*****

(Elaborado em computador e integralmente revisto pelo subscritor (art.º 94º/2 do CPP).

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Declaração de voto da Senhora Dr.ª Rosa Pinto:

“Concordo com a decisão, mas não que a falta de fundamentação do despacho de não pronúncia, mormente a falta de factos indiciados e não indiciados, se enquadre na irregularidade prevista no artigo 123º, nº 1, do Código de Processo Penal.

Questão que não se desenvolve por se traduzir em acto inútil, uma vez que, como se disse:

Quanto à falta de enunciação dos factos indiciados e não indiciados, cremos tratar-se de um lapso, uma vez que o despacho recorrido os enuncia, ainda que deficientemente, por referência ao RAI.”


[1] Arguido/a/s.
[2] Esse acórdão, datado de 24-04-2024, decidiu: “... Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, revogamos o despacho recorrido e determinamos que seja substituído por outro, que explicite os factos que considera indiciados e não indiciados, por referência ao RAI. ...”.
[3] Cfr. também José Mouraz Lopes, Garantia Judiciária no Processo Penal – Do Juiz e da Instrução, Coimbra, 2000, pág. 68 v. e ss..
[4] Curso de Processo Penal, vol. II, pág. 237.
[5] Do Processo Penal..., pág. 347.
[6] João de Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, citado por Germano Marques da Silva, op. e loc. cit.
[7] Op. e loc. cit..
[8] 3 Direito Processual Penal, 1.º vol., 1974, pág. 133. 
[9] Supremo Tribunal de Justiça.
[10]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
[11] Requerimento para a abertura da instrução.

[12] Cf. nesse sentido o acórdão da RP de 11/01/2012, relatado por Joaquim Gomes, in JusNet 595/2012, do qual citamos: “… o dever de fundamentar uma decisão judicial é uma decorrência, em primeiro lugar, do disposto no art. 205.º, n.º 1 da C. Rep., segundo o qual "As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma previstas na lei".

Esta injunção constitucional de fundamentação das decisões é transversal a qualquer jurisdição ou ordem de tribunais, enquanto pilares essenciais e partes integrantes do Estado de Direito Democrático (2.º Constituição), caracterizado, entre outras coisas, pela garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, bem como pela separação e independência dos poderes.

Por sua vez e muito embora a CEDH não faça referência expressa a um dever de motivação, tal exigência tem sido encontrada no seu artigo 6.º, onde se consagra o direito a um processo equitativo, conforme é jurisprudência do TEDH [Ac. Van de Hurk/Holanda, de 1994/Abr./19; Hiro Balani/Espanha, de 1994/Dez./09, Hirvisaari/Finlândia, de 2001/Set./27; Albina/Roménia, de 2005/Abr./28; Taxquet/Bélgica de 2009/Jan./13].

E sabido que o direito a um processo equitativo estabelecido no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição (JusNet 7/1976), teve nítida influência da Declaração Universal dos Direitos do Humanos (DUDH) (4) , através do seu artigo 10.º, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) (5) , por via do artigo 14.º, e muito particularmente da referida Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) (6) , face ao seu citado art. 6.º.

Também o TJUE quando confrontado com a questão prejudicial de interpretação do artigo 234.º, n.º 3 do Tratado da União Europeia no sentido de esclarecer se a inexistência da possibilidade de recurso na organização judiciária nacional comportava a declaração liminar dessa inadmissibilidade proferida pelo tribunal superior, sentiu a necessidade de alertar para a exigência de fundamentação dessa decisão [Caso Lyckeskog C-99/00, de 2002/Jun./04]. (Nota: De tal modo o fez, que o Appeal Committee da House of Lords sentiu a necessidade de inverter a sua posição tradicional de não fundamentar as decisões de inadmissibilidade do "leave to appeal", conforme consta do seu 38.º relatório intitulado "Petitions for leave to appeal: Reasons for the refusal of leave", aprovado na sua sessão de Março de 2002.)

Acresce ainda, que esse dever de fundamentação, no âmbito do processo penal e na perspectiva do arguido, surge, igualmente, como uma das suas garantias constitucionais de defesa, expressas no art. 32.º, n.º 1, da C. Rep..

É isso que também decorre expressamente do disposto no art. 97.º, n.º 4 do Código Processo Penal, ao estabelecer que "Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão".
Por isso, a motivação de uma decisão judicial é não só um elemento de transparência democrática e de qualidade da justiça, intrínseco a todo o acto jurisdicional decisório, como acaba por lhe conferir a correspondente legitimidade constitucional, sendo a partir dessa motivação que se afere a razoabilidade da argumentação do direito que foi decidido. …”.
[13] Neste sentido, cf. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, II, Verbo, 2008, p. 55, e Vinício Ribeiro, in “CPP Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2ª edição, 2011, pp. 277.
[14] Requerimento para abertura da instrução.
[15] Código de Processo Penal.
[16] Para o caso de o MP não realizar diligências de inquérito, veja-se o importante acórdão da RE de 20/12/2012, relatado por António João Latas, in www.gde.mj.pt, processo 642/12.1TASTB.E1, de cujo sumário citamos: “I. A nulidade insanável de falta de inquérito ou de instrução prevista no art. 119.º, al. d) do CPP é perspetivada em função da obrigatoriedade legal de realização de inquérito ou instrução, conforme se menciona no próprio preceito. II. A notícia de um crime a que se reporta o n.º2 do art. 262.º do CPP não se confunde com a enunciação clara, completa e precisa dos elementos da infração eventualmente em causa, pois o inquérito serve para apurar os factos relevantes com toda a amplitude, definindo-se o objeto do processo apenas na acusação. III. Incorre na nulidade de falta de inquérito, o titular deste que, podendo fazê-lo, não enceta quaisquer diligências para melhor concretização e esclarecimento da factualidade imprecisamente apresentada na queixa, com vista à concreta configuração factual e jurídica do que se apresenta como notícia de crime. IV. O requerimento de abertura da instrução constitui meio idóneo para o ofendido, já constituído assistente, sindicar a decisão do Ministério Público de não proceder a inquérito. V. Não é admissível a pronúncia dos denunciados por factos que não tenham sido objeto de inquérito, mesmo que se encontrassem exemplarmente descritos no RAI, pois nestes casos visa-se sujeitar o arguido a julgamento por factos relativamente aos quais o MP se decidira pelo arquivamento após inquérito efetivamente realizado e não a substituição de inquérito materialmente inexistente pela integral investigação e pronúncia judicial.”.
[17] Mas e se o MP não acusa, nem arquiva, nem propõe a suspensão provisória do processo?
Do nosso ponto de vista, não tem outra alternativa: imaginemos um caso em que o MP, no despacho que declara encerrado o inquérito, arquiva relativamente a uns factos, acusa relativamente a outros, mas nada diz sobre um outro conjunto de factos que foram investigados no inquérito. Entendemos que nestes casos, relativamente a esses factos, o inquérito continua pendente.
Por isso, se o MP demora a pronunciar-se sobre tais factos, a única forma de reacção será pedir a aceleração do processo ao Sr. Procurador-Geral da República, nos termos do disposto nos artºs 108º e ss. do CPP. Só depois de o MP se ter pronunciado sobre esses factos, arquivando ou acusando, é que o Assistente e o Arg., conforme os casos, poderão requerer a abertura de instrução, para a comprovação judicial de tal decisão (art.º 286º/1 do CPP).
Nesse sentido, cf. acórdão da RC de 13/09/2017, relatado por Alice Santos, no proc. 577/15.6T9CTB.C1, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: “I - Na falta de despacho de arquivamento pelo MP sobre determinado crime denunciado não pode ser requerida a abertura de instrução [pelo assistente]. II - Só depois de provocado um despacho do MP no sentido de acusar ou arquivar é que pode ser apresentado o RAI, ou seja só perante um despacho do MP expresso de arquivamento, pode reagir-se través do RAI. III - Como tal não aconteceu, não é admissível a instrução, e como tal deve ser rejeitado o RAI apresentado pelo assistente recorrente.”.
[18] Nesse sentido, cf. acórdão da RP de 30/01/2008, relatado por Francisco Marcolino, in www.gde.mj.pt, Processo 0716298, do qual citamos: “…A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – n.º 1 do art.º 286º do CPP. Objecto da instrução seria, pois, in casu, a decisão de arquivar o inquérito em ordem a não submeter a causa a julgamento. Ora, não tendo havido inquérito, logicamente, não houve decisão de o arquivar.
Consequentemente, a instrução requerida não tem objecto. Não se pode comprovar o que não existe. Também por esta razão se considera que, no caso em análise, há uma situação de inadmissibilidade legal da instrução – n.º 3 do art.º 287º do CPP[8]. No sentido do texto cfr. o Ac da RE de 1/03/2005[9]: “É essencial que os factos do crime pelos quais o assistente pretende a pronúncia tenham sido objecto do inquérito, sob pena de nulidade processual e consequente inadmissibilidade legal da instrução (artigo 287.º, n.º 3), em razão da nulidade prevista no artigo 119.º, alínea d), do Código de Processo Penal”. Ainda no mesmo sentido o Ac. desta Relação de 9/5/2007[10], que assim fundamentou: “Conforme se afirmou no Ac. da R.P. de 23 de Janeiro de 2001 publicado na C.J. 2002, Tomo I, pág. 229 e 230 «A decisão de abstenção do Ministério Público de deduzir acusação, findo o inquérito dirigido contra pessoa(s) certa(s), é assim, um pressuposto do requerimento do assistente para a abertura de instrução. Caso contrário, como é obvio, ficaria frustrada a razão de ser desta fase processual, ou seja, a de comprovar judicialmente a decisão do Mº Pº de não acusar arguido(s) previamente determinado(s) por factos que, no decurso do inquérito foram objecto de investigação». (…) A «falta de inquérito», refere-se à falta do conjunto de diligências ou actos compreendidos no art. 262º n.º 1 do C.P.P. Tal vício ocorre quando se verifique ausência absoluta ou total de inquérito ou falta absoluta de actos de inquérito - cfr. também Souto de Moura in Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 118 e Maia Gonçalves in C.P.P. Anotado, 1996, pág. 250”. …”.

[19] Sobre a instrução, ver ainda Vinício Ribeiro, in “CPP – Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2008, p. 581 e 582, donde citamos: “… Da análise da doutrina e da jurisprudência, e tendo em atenção o disposto nos textos legais, nomeadamente no presente normativo, temos de concluir que a instrução é uma instância de controlo e não de investigação, embora no seu âmbito possa ser feita investigação (cfr., v. g., artigo 288.", n.º 4). O juiz investiga autonomamente, mas dentro do acervo factual que lhe é apresentado no requerimento de abertura de instrução. Tal requerimento delimita os poderes de actuação do Juiz.

A investigação é toda feita no inquérito (fase investigatória por excelência do processo - v, artigo 262., n.º1).

No CPP de 1929, os processos eram tramitados. de acordo com a pena prevista para o respectivo crime, como inquérito preliminar, pelo MP, ou como instrução preparatória, pelo JIC (v. artigo 1.° do DL 605/75, de 3 de Novembro), e a instrução contraditória era obrigatória nos processos de querela.

A investigação, maxime nos processos urgentes (os prazos de prisão preventiva sem culpa formada eram apertados - v. artigo 308.° do CPP 1929) era muitas vezes completada na instrução contraditória, de acordo com o que dispunha o artigo 327." («Nos processos de querela haverá sempre instrução contraditória para esclarecer e completar a prova indiciaria da acusação, e para realizar as diligências requeridas pelo arguido destinadas a ilidir ou enfraquecer aquela prova e a preparar ou corroborar a defesa»).

A filosofia do actual CPP é radicalmente diferente: a instrução é facultativa, não pode ser requerida pelo MP, destina-se a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento e não a completar, ampliar ou prolongar o inquérito ou à feitura de uma outra investigação dos factos, levada a cabo pelo juiz, diferente da do MP.

Aliás a instrução pode ter apenas como finalidade o debate da qualificação jurídica (a questão pode colocar-se em relação ao requerimento do arguido ou ao requerimento do assistente; cfr. Ivo Miguel Barroso, Estudos sobre o objecto do processo penal, cit., págs. 117 a 120, que nos fornece uma panorâmica da doutrina, quer em sentido positivo, quer em sentido negativo; Ac. RP de 23 de Fevereiro de 2005, Proc.0446133, Rel. Pinto Monteiro; Ac. RP de 9 de Março de 2005, Proc. 0446204. Rel. José Adriano, referenciados na secção de jurisprudência) e não pode ser requerida contra incertos ou desconhecidos (cfr. Raul Soares da Veiga, O Juiz de Instrução e a Tutela de Direitos Fundamentais, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, cit., pág. 195; Ac. RE de 5 de Maio de 1998, CJ.XXIII, T. III, pág. 281; Ac. RL de 25 de Junho de 2002, CJ, XXVII.T. 111, pág. 143:Ac. RL de 16 de Novembro de 2004, CJ, XXIX, T. V, pág. 132; Ac. RL de 8 de Julho de 2005.Proc. 4018/2005-3.ª, Rel. Carlos Almeida Ac. RG de 19 de Setembro de 2005, Proc. 436/05-2.ª, Rel. Ricardo Silva; Ac. RL de 19 de Setembro de 2006, Proc.554912006-5ª, Rel. Vieira Lamim, os quatro últimos abaixo sumariados).
Como se escreve no Ac.TC27/2001, DR, II Série, de 23 de Março de 2001, que se debruçou sobre uma determinada interpretação do artigo 287.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2. do CPP (questão do prazo para requerer a instrução e sobre a eventual renovação do respectivo requerimento), a «instrução não é um suplemento de investigação e nem tem em vista a substituição do MP pelo juiz na investigação. Tudo quanto em sede de instrução se faça no sentido de investigar terá de ter sempre como horizonte o vir ou não a comprovar-se judicialmente a decisão acusatória ou de agravamento, que esse é sim o escopo legal da instrução. Posto isto, dir-se-á que se a requerente entende que o inquérito foi insuficiente, ou mal conduzido, no sentido de terem sido desastradas as diligências de recolha de prova, mas sem que se ache habilitada a, contrariamente ao MP, fundar (inclusivamente) a imputação de factos concretos à arguida (não podendo se não limitar-se a dela suspeitar, mais ou menos fundadamente), então o mecanismo correcto e próprio (para isso a lei o prevê) teria sido o recurso à intervenção hierárquica, nos termos do artigo 278.º do CPP». …
[20] Sobre o uso dos mecanismos de intervenção hierárquica ou de abertura da instrução, ver o parecer P000312009 do Conselho Consultivo do MP, de 08/11/2012, in www.dgsi.pt, relatado por Pimentel Marcos, com as seguintes conclusões: “1. O Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia em relação aos demais órgãos do poder central, regional e local, mas os seus magistrados são hierarquicamente subordinados, consistindo essa hierarquia na subordinação, nos termos da lei, dos de grau inferior aos de grau superior e na consequente obrigação de acatamento das directrizes, ordens e instruções recebidas (nºs 1 e 3 do artigo 76.º do Estatuto do Ministério Público e nºs 2 e 4 do artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa), e os despachos por eles proferidos são passíveis de reapreciação, estando sujeitos ao controlo do seu imediato superior hierárquico, em conformidade com o disposto nos artigos 278.º e 279.º do Código de Processo Penal; 2. No prazo de 20 dias a contar da data em que já não puder ser requerida a abertura da instrução, o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público que tiver proferido o despacho de arquivamento do inquérito nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 277.º do Código de Processo Penal pode, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir nessa qualidade, determinar que seja formulada a acusação ou que as investigações prossigam, devendo, neste caso, indicar as diligências que reputa necessárias e o prazo para a sua realização; 3. O assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir nessa qualidade só podem requerer a intervenção do imediato superior hierárquico, ao abrigo do n.º 1 do artigo 278.º do Código de Processo Penal, no prazo (de vinte dias) em que podiam ter requerido abertura da instrução nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 287.º do mesmo código; 4. O prazo referido na conclusão n.º 2 (e no n.º 1 do artigo 278.º) é sempre contado a partir do dia seguinte àquele em que tiver terminado o prazo em que podia ser requerida a abertura da instrução, independentemente de a intervenção hierárquica ser oficiosa ou ter sido requerida pelo assistente ou pelo denunciante com a faculdade de se constituir nessa qualidade; 5. Este prazo é peremptório, quer nos casos em que a intervenção hierárquica é oficiosa, quer quando é requerida por quem tenha legitimidade para o efeito, pelo que o imediato superior hierárquico não poderá decidir após o seu decurso; 6. O assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir nessa qualidade não podem requerer cumulativa ou sucessivamente a abertura da instrução e a intervenção hierárquica, tendo que optar por uma delas.”.
E o acórdão da RE de 06/11/2012, relatado por Ana Brito, in www.gde.mj.pt, processo 427/09.2TAABF.E1, de cujo sumário citamos: “1. No modelo do Código de Processo Penal o controlo da decisão do Ministério Público de arquivamento é um controlo duplo: ele pode exercer-se pelo juiz de instrução criminal e pela via da intervenção hierárquica. 2. A escolha de cada uma destas vias é da exclusiva responsabilidade do assistente e não se apresenta como indiferente já que inexiste similitude total do pedido (de abertura de instrução ou de intervenção hierárquica) bem como da decisão que se visa obter. …”.
Importa ter em conta o decidido pelo Tribunal Constitucional no acórdão 713/2014, de 28/10/2014, relatado por João Cura Mariano, que decidiu: “Não julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos artigos 278.º, n.º 2, e 287.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, optando por suscitar a intervenção hierárquica, o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente, vê, sempre e irremediavelmente, precludido o direito de requerer a abertura de instrução ou renuncia a uma apreciação judicial do despacho de arquivamento do titular do inquérito;…”.
[21] Esse requerimento tem, para além do mais, o seguinte teor:
“... II. DA ACUSAÇÃO
1             - No dia 18 de Junho de 2019, a Assistente foi citada pelo Consulado Geral de Portugal em Estrasburgo, lugar onde mantinha residência, da acção executiva com o Processo n.º 284/19...., que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca da Guarda - JL Cível - Juiz ..., contra si movida pela Instituição Bancária Banco 1.... Conf. Doc. n.º 1 que se junta para os devidos efeitos legais.
2            - Ao proceder à análise do processo referido, constatou que tinha sido celebrado um contrato de mútuo com fiança, com o n.º ...91, com a Banco 1..., no qual os contratantes eram a sociedade A..., LDA, o seu sócio e gente de facto, da referida sociedade, AA, e ela própria, Assistente.
3             - Mais constatou que o montante do Mútuo com Fiança era no valor de €53.500,00 (cinquenta e três mil e quinhentos euros ).
4            - Que o seu sócio e gerente de facto, AA, tinha agido por si, em representação da sociedade A..., LDA, e em representação da Assistente, tendo para o efeito usado uma procuração, com poderes de representação da Assistente, com data de 24/01/2014, naquele acto, em representação da sociedade de que também era sócia e gerente apenas de direito.
5            - AA no dia 24 de Junho de 2014 pelas 9horas e 44minutos usou a procuração no escritório do Advogado BB, para que aquele a pudesse utilizar à confirmação dos outorgantes no Contrato de Mútuo com Fiançada.
6            - Tais factos decorrem do documento Termo de Autenticação emitido pelo Dr.º BB, Advogado, com escritório na Rua ... ... ..., conforme doe. n.º 1 já supra junto.
7             - Onde no mesmo se lê que:
a)           "AA, casado, residente na Rua ... ..., por confronto do bilhete de identidade n.º ... em ../../2008 pela ..., do qual é portador e me foi exibido, individualmente e também na qualidade de procurador e em representação de CC, contribuinte Fiscal n.º ...02, portadora do Passaporte n.º ...78, residente em ..., n.º ..., ...29 ..., conforme Procuração Autenticada, datada de 24.01.2014, que lhe conferiu todos os poderes da mesma constantes, cujo original me foi igualmente exibido no presente acto, intervindo, por si e como mandatário, na qualidade de gerentes, e em representação, com poderes para o acto, da sociedade comercial denominada A..., LDA, com sede social na  Edifício ..., Zona Industrial ..., freguesia ..., concelho ..., NIPC ...86, qualidade e poderes que constam da certidão permanente com o código de acesso ...57, com validade até 11/12/2014, que nesta data consultou;"
"b) AA, casado, residente na Rua ... ..., por confronto do bilhete de identidade... ... em ../../2008 pela ..., do qual é portador e me foi exibido, individualmente e também na qualidade de procurador e em representação de CC, contribuinte Fiscal n....02, portadora do Passaporte n.º ...78, residente em ..., n.º ..., ...29 ..., conforme Procuração Autenticada, datada de 24.01.2014, que lhe conferiu todos os poderes da mesma constantes, cujo original me foi igualmente exibido no presente acto, (...)"
8            - A Assistente, na datas da outorga da procuração, 24/01/2014, não se encontrava no nosso país, estava a trabalhar para a empresa denominada B..., na morada em ... - ... - ... ... ..., na Alemanha e nesse mesmo dia 24 ausentou-se em viagem para a República Checa na morada sita em ... - ...81 ..., morada nesse país da empresa onde trabalhava C... S.R.O. lugar onde permaneceu até ao dia seguinte. Con. Doc. n.º 3 que se junta para os devidos efeitos.
9            - A Assistente nunca elaborou/emitiu a referida Procuração supra identificada datada de 24/01/2014, nunca sequer a assinou e desconhece completamente todos os factos que envolveram o modo e os meios utilizados para o contrato de mútuo com fiança, celebrado com a Banco 1..., apenas com a citação da acção supra referida se deu conta do que vem a dizer.
10          - O documento que foi usado, Procuração datada de 24/01/2014, é um documento falso, bem como a assinatura que nela está aposta, assim como a assinatura que está aposta no termo de autenticação que também é falsa.
11          - AA entre o dia 24/01/2014 pelas 18:00horas e o dia 18/02/2014 pelas 10horas:4?minutos, deslocou-se ao escritório do Dr.º BB, Advogado, com escritório na Rua ... ... ... e em conjugação de esforços com o identificados Advogado elaboraram o documento Procuração, a qual com o seu próprio punho assinaram e de seguida o Dr.º BB procedeu ao seu registo por termo de autenticação da mesma na página da Ordem dos advogados, o que fizeram em conjugação de esforços e no uso abusivo dos elementos de identificação da Assistente, falsificaram a assinatura desta na referida procuração, apesar de cientes que assi m estavam a viciar o documento em causa a fé pública e a confiança geral que tal procuração gozava, visto com aquela poder contrair empréstimos.
12           - AA sabia que a procuração era falsa e ainda assim, no seu uso dirigiu-se à Instituição Bancária, Banco 1... na ... e aí chegado contraiu um empréstimo bancário, no valor de €53.500,00 (cinquenta e três mil e quinhentos euros) a favor da sua representada A..., vindo mais tarde como sucedeu, no uso da procuração a celebrar o contrato de mútuo com fiança.
13          - AA, sem conhecimento e consentimento da Assistente, usou de modo ilegítimo documento falso, que lhe permitiu contrair um empréstimo no valor de €53.500,00 (cinquenta e três mil e quinhentos euros), junto da identificada Instituição de Crédito Banco 1..., S.A.
14           - AA e o Advogado Dr.º BB, sabiam que a sua conduta era proibida por lei, e mesmo assim levaram a cabo de forma deliberada, livre e consciente aquela conduta.
15          - Tal comportamento é integrador do tipo de crime de falsificação de documento p.p. pelo n.º 1 alínea a), c), d), e) e f), n.º 3.º e 4.º do artigo 256.º do Código Penal, bem como do crime de Burla p.p. Pelo artigo 217.º do Código Penal.
16           - A Instituição Bancária Banco 1... omitiu-se de conferir os documentos que servem à celebração do contratos de Mútuo com Fiança e nomeadamente o termo de autenticação que serviu ao reconhecimento das assinaturas no contrato de mútuo.
17           - A Banco 1... não salvaguardou os direitos da Assistente, ao omitir-se do seu dever, lesou a Assistente, que não esteve presente, nem assinou qualquer tipo de documento, nomeadamente o Contrato de Mútuo com Fiança.
18         - A inobservância dos deveres que são conferidos às Instituições Bancárias e ao caso à Banco 1..., fez com que houvesse facilitismo para a prática do crime, pelo que agiu em co-autoria material.
19         - A Banco 1... não agiu com transparência e não soube garantir a segurança do comércio jurídico e não agiu sequer em cumprimento das regras impostas pela Lei de Branqueamento de Capitais.
20           - A Banco 1... ao omitir-se dos seus deveres sem observar os deveres de diligência e zelo que sobre si impendiam, são responsáveis pelos danos que lhes advieram da descrita atuação.
Do Direito
21          - AA e o Senhor DR.º BB, em conjugação de esforços agiram livre, deliberada, concertada e conscientemente, cientes de que não podiam elaborar, assinar e usar o documento, Procuração datada de 24/01/2014, que é falso, fazer constar falsamente facto juridicamente relevante.
22          - AA agiu livre, deliberada, concertada e consciente, ciente de que não podia usar a procuração falsa para obter de terceiros, junto da Banco 1..., proveitos para si ou para a sua representada.
23          - Estas condutas criaram prejuízo à Assistente, sabendo que as atrás descritas condutas eram ilícitas e causadoras de prejuízo e que eram proibidas e puníveis por lei.
24           - AA e o Dr.º BB em co-autoria material cometeram um crime de Falsificação de Documento p.p. nas disposições combinadas pelo n.º 4.º, n.º 3 e n.º 1 alínea a), c), d), e) e f) do artigo 256.0 do Código Penal, bem como o crime de Burla p.p. Pelo artigo 217.º do Código Penal.
Pelo que
TERMOS EM QUE
A)            Requer a V. Ex.ª se digne receber a presente INSTRUÇÃO a mesma venha a merecer DESPACHO DE PRONUNCIA, a fim de que os ora identificados arguidos, venham a ser submetidos a julgamento, o que para os devidos efeitos também requer,
B)           Os arguidos deverão ser julgados pelos crimes de Falsificação de Documento p.p. nas disposições combinadas pelo n.ºs 4.º, 3.º e n.º 1 alínea a), c), d}, e) e f) do artigo 256.º do Código Penal, bem como o Crime de Burla p.p. Pelo artigo 217.ºdo Código Penal e outros que se venham a apurar.
Assim em termos de Instrução Requer:
A)            A Declaração do arguido AA, reinquirição sobre toda a matéria.
B)            Acareação entre os arguidos AA e Dr.0 BB sobre toda a matéria deste requerimento.
C)           DA PROVA PERÍCIA
CI)          A Perícia à letra e assinatura
a) - Como mencionado nesta requerimento, em questão previa indicam-se os quesitos à prova pericial, ou outros que V.ª Ex.ª considere pertinentes:
Quesitos que a Assistente apresenta à peritagem grafológica:
1 - A letra e assinatura constante na procuração (cópia da procuração) datada de 24 de Janeiro de 2014.
1 - Foi feita pelo punho da Assistente?
PROVA DOCUMENTAL
Documento n.0 1 (Cópia da Citação ) já junta à queixa crime que se avoca.
Documento n.0 2 (Cópia da Procuração já junta aos autos)
Documento n.º 3 ( Cópia ausência da Assistente ) já junto à queixa crime que se avoca.
Documento n.º 4 (Cópia não certificada da matrícula da sociedade A..., LDA) Já junta à queixa crime que se avoca. ...”.
[22] Código Civil.
[23] Ver neste sentido o acórdão da RE de 02/06/2015, relatado por Fernando Pina, no processo 1.083/13.9GDSTB, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “…A doutrina e a jurisprudência têm-se pronunciado abundantemente sobre o que deve entender-se por “indícios suficientes”.
Assim, ensina o Prof. Figueiredo Dias, em “Direito Processual Penal”, vol. I, Coimbra Ed., 1984, pág. 133, que “(…) os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável que a absolvição.”.
No mesmo sentido vai o ensinamento do Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, Verbo, 1994, pág. 182 e 183, ao afirmar que “(…) o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido (…). A lei não se basta, porém, com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação (…). Para a pronúncia, como para acusação, a lei não exige, pois, a prova no sentido de certeza moral da existência de um crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido (…).”.
Note-se, até, que alguma doutrina recente – entre outros, Jorge Noronha e Silveira, “O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coordenação Prof. Fernanda Palma, Almedina, 2004, pág. 171 – vem defendendo uma maior exigência quanto à suficiência dos indícios, sustentando que esta não se basta com a maior possibilidade de condenação do que de absolvição, mas antes “(…) deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação.”.
A jurisprudência tem considerado, de modo que se nos afigura maioritário, que “indícios suficientes” correspondem à persuasão ou à convicção de que, mediante o debate amplo da prova em julgamento, se poderão provar em juízo os elementos constitutivos da infracção – cfr. entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 25-06-1988, no B.M.J. nº 378, pág. 787, do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-1992, no processo nº 427747, cit. em “Código de Processo Penal Anotado”, Simas Santos e Leal Henriques, vol. II, 2ª ed., e do Tribunal da Relação de Évora de 22-06-1993, no B.M.J. nº 428, pág. 706.
Isto é, os indícios suficientes correspondem a um conjunto de factos que, relacionados e conjugados entre si, conduzam à convicção de culpabilidade do arguido e de lhe vir a ser aplicada uma pena.
Na consideração do que se deixa exposto, não pode deixar de se ter presente que a sujeição de alguém a julgamento é, no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa, Anotada”, vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Ed., 2007, pág. 522, “(…) já de si, um incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes um vexame.”.
Ou, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-06-2006, no Processo 06P2315, disponível em www.dgsi.pt.jstj, “a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame.
Por isso, no juízo de quem acusa, como no de quem pronúncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (artº 3º daquela Declaração e 27º da Constituição da República).
E por isso é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido» ou os indícios são os suficientes quando haja «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição» (…).”. …”.
[24] Quanto a esta questão cf. a informação doutrinal e jurisprudencial feita por Vinício Ribeiro, in “CPP - Notas e Comentários”, Quid Juris, 3ª edição, 2020, págs. 668/671.

[25]A presunção de inocência é identificada por muitos autores como princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de um ónus de prova a seu cargo, baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o princípio contrário ao da presunção de inocência.” (Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, I, 5ª ed., 2008, p. 83 e 84).

Ou, como dizem Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 356, “A presunção de inocência é também uma importantíssima regra sobre a apreciação da prova, identificando-se com o princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a culpabilidade do acusado é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado o esforço processual para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de ónus de prova a seu cargo baseado na prévia presunção da sua culpabilidade. Se a final da produção da prova permanecer alguma dúvida importante e séria sobre o acto externo e a culpabilidade do arguido impõe-se uma sentença absolutória (D. 48.19,5: Satius enim esse impunitum relinqui facinus nocentis quam innocentem dainnare).”.
[26] Neste sentido, ver o acórdão n.º 439/02 do Tribunal Constitucional de 23/10/2002, relatado por Fernanda Palma, do qual citamos: “... 9.  Em face do exposto, impõe-se a conclusão de que a interpretação normativa dos artigos citados que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no artigo 32º, nº 2, da Constituição. ...”.
No mesmo sentido se pronunciou Maia Costa, in “A presunção de inocência do arguido na fase de inquérito”, publicado na Revista do Ministério Público, n.º 92, a pág. 71, donde citamos:
“... Assim, e resumindo, a regra in dubio pro reo é uma das manifestações do princípio da presunção de inocência. Regra esta que tem como momento mais relevante a apreciação da prova em julgamento, evidentemente. Mas que também se manifesta no momento do encerramento do inquérito, quando o Ministério Público, valorando as provas recolhidas, tem de tomar posição, arquivando-o ou formulando acusação.
Fala o Código de Processo Penal da necessidade de «indícios sufi­ cientes» para a dedução da acusação, definindo-os como aqueles que apontam para a possibilidade razoável de o arguido vir a ser condenado em julgamento (art. 283.º, n.º 1 e 2). Este enunciado normativo demonstra uma inquestionável similitude entre a posição do magistrado do Ministério Público que aprecia a prova do inquérito e a do juiz que analisa a prova da audiência de julgamento: em qualquer dos momentos, cada um daqueles magistrados, caso se confronte com uma dúvida inultrapassável sobre as provas produzidas, deve fazer funcionar a (mesma) regra (in dubio pro reo), arquivando o inquérito o Ministério Público, proferindo sentença absolutória o juiz.
Considerações idênticas são válidas evidentemente para o juiz de instrução, após o debate instrutório,  devendo  portanto  lavrar  despacho de não pronúncia, imposto pela regra in dubio pro reo, no caso de se encontrar perante idêntica situação de dúvida quanto às provas. ...”.
[27] Nesse sentido, Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, I, p. 205.

[28] Sobre as possibilidades de aplicação do princípio in dubio pro reo, ver o importante Ac. do STJ de 27/05/2009, relatado por Raul Borges, in www.gde.mj.pt, Proc. 09P0484, do qual citamos: “…O princípio in dubio pro reo funda-se constitucionalmente no princípio da presunção da inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória – artigo 32º, nº 2, da CRP - , impondo este que qualquer non liquet na questão da prova seja valorado a favor do arguido, apresentando-se aquele, na fase de decisão, como corolário daquela presunção – acórdão do Tribunal Constitucional nº 533/98, DR, II Série, de 25-02-1999.

O princípio in dubio pro reo - fórmula condensada por Stubel - que estabelece que, na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, é um princípio de prova que vigora em geral, isto é, quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário.

A violação do princípio in dubio pro reo tem sido entendida sob diversas perspectivas, como a de respeitar a matéria de prova e, pois, tratar-se de matéria de facto e como tal insindicável pelo STJ (por todos, acórdão de 18-12-1997, processo n.º 930/97, BMJ 472, 185), ou enquanto princípio estruturante do processo penal, podendo ser suscitada perante o Tribunal de revista, mas o Supremo vem afirmando que isso só é possível se a violação resultar do próprio texto da decisão recorrida, designadamente da fundamentação da decisão de facto – acórdão de 29-11-2006, processo n.º 2796/06-3ª, in CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 235 (239).

Contrariamente à posição de Figueiredo Dias, expressa in Direito Processual Penal, volume I, pág. 217, que defende que o princípio se assume como um princípio geral de processo penal, não forçosamente circunscrito a facetas factuais, podendo a sua violação conformar também uma autêntica questão de direito plenamente cabível dentro dos poderes de cognição do STJ, a jurisprudência maioritária tem repudiado a invocação do princípio em sede de interpretação ou de subsunção de um facto à lei, não valendo para dúvidas nessas matérias.

Para o acórdão de 06-04-1994, processo n.º 46092, BMJ 436, 248, o princípio não tem aplicação apenas quanto à matéria de facto, começando, logo, por poder ser aplicado na própria interpretação da matéria de direito, esclarecendo que “nada impede que, em via de recurso penal interposto para este Supremo Tribunal, os julgadores se socorram do princípio in dubio pro reo, quando, esgotados todos os meios de interpretação dos factos ou das disposições legais, surgirem dúvidas justificadas quanto ao sentido dos factos ou relativamente à norma aplicável”.

E de acordo com o acórdão de 11-02-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 210, o princípio in dubio pro reo é multifacetado e a sua força omnímoda e dinamismo podem e devem aplicar-se mesmo dentro dos processos lógicos que interessam à interpretação e integração da lei.

Este acórdão foi objecto de comentário na RPCC, 2003, ano 13, n.º 3, págs. 433 e ss., onde se diz que o STJ adoptou uma tese errónea em relação à aplicabilidade do princípio, defendendo-se que o alcance do in dubio pro reo restringe-se a dúvidas sobre a prova da matéria de facto e não tem aplicação na resolução de dúvidas quanto à interpretação de normas penais, cuja única solução correcta reside em escolher, não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que se revele juridicamente mais exacto.

Em sentido oposto pronunciaram-se, i. a., os acórdãos de 06-12-2006, processo n.º 3520/06-3ª; de 20-12-2006, processo n.º 3105/06-3ª; de 23-04-2008, processo n.º 899/08, supra citado, onde se refere que «O princípio vale apenas em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito; aqui, a única solução correcta residirá em escolher não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto» e no acórdão de 30-04-2008, processo n.º 3331/07-3ª, diz-se que «O princípio in dubio pro reo não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais. Em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance destas, o problema deve ser solucionado com recurso às regras de interpretação, entre as quais o princípio do in dubio pro reo não se inclui, uma vez que este tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto – sejam os pressupostos do preenchimento do tipo de crime, sejam os factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa».

A eventual violação do princípio in dubio pro reo só pode ser aferida pelo STJ quando da decisão impugnada resulta, de forma evidente, que tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto, que tenha chegado a um estado de dúvida “patentemente insuperável” e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido, optando por um entendimento decisório desfavorável ao arguido, posto que saber se o tribunal recorrido deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto que exorbita os poderes de cognição do STJ enquanto tribunal de revista.

Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do artigo 127º do CPP, que escapa ao poder de censura do STJ enquanto tribunal de revista – neste sentido acórdãos de 20-06-1990, BMJ 398, 431; de 04-07-1991, BMJ 409, 522; de 14-04-1994, processo n.º 46318, CJSTJ 1994, tomo 1, pág. 265; de 12-01-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 181; de 06-03-1996, CJSTJ 1996, tomo 2 (sic), pág. 165;de 02-05-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 177; de 25-02-1999, BMJ 484, 288; de 15-06-2000, processo n.º 92/00-3ª, CJSTJ 2000, tomo 2, pág. 226 e BMJ 498, 148; de 02-05-2002, processo n.º 599/02-5ª; de 23-01-2003, processo n.º 4627/02-5ª; de 15-10-2003, processo n.º 1882/03-3ª; de 27-05-2004, processo n.º 766/04-5ª, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 209 (a alegada violação do princípio só poderá ser sindicada se ela resultar claramente dos textos das decisões recorridas); de 21-10-2004, processo n.º 3247/04-5ª, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 198 (com recensão de jurisprudência sobre o tema e em concreto sobre a temática das conclusões que as instâncias retiram da matéria de facto e o recurso às presunções naturais); de 12-07-2005, processo n.º 2315/05-5ª; de 07-12-2005, processo n.º 2963/05-3ª; de16-05-2007, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 182; de 20-02-2008, processo n.º 4553/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 210/08-3ª, CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 243; de 09-04-2008 processo n.º 429/08-3ª; de 23-04-2008, processo n.º 899/08-3ª; de 15-07-2008, processo n.º 1787/08-5ª.

Noutra perspectiva, o STJ poderá sindicar a aplicação do princípio, quando a dúvida resultar evidente do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do artigo 410º, n.º 2, do CPP, ou seja, quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal tendo ficado em estado de dúvida, decidiu contra o arguido – cfr. acórdãos de 30-10-2001, processo n.º 2630/01-3ª; de 06-12-2002, processo n.º 2707/02-5ª; de 08-07-2004, processo n.º 1121/04-5ª, SASTJ, n.º 83; de 24-11-2005, processo n.º 2831/05-5ª; de 07-12-2006, processo n.º 3137/06-5ª; de 18-01-2007, processo n.º 4465/06-5ª; de 21-06-2007, processo n.º 1581707-5ª; de 13-02-2008, processo n.º 4200/07-5ª; de 17-04-2008, processo n.º 823/08-3ª; de 07-05-2008, processo n.º 294/08-3ª; de 28-05-2008, processo n.º 1218/08-3ª; de 29-05-2008, processo n.º 827/08-5ª; de 15-10-2008, processo n.º 2864/08-3ª; de 16-10-2008, processo n.º 4725/07-5ª; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª;de 04-12-2008, processo n.º 2486/08-5ª; de 05-02-2009, processo n.º 2381/08-5ª (A apreciação pelo Supremo da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio).

Na perspectiva, mais concreta - e que data de finais da década de 90 do século passado - de análise do princípio in dubio pro reo, como figura próxima do vício decisório - erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, n.º 2, alínea c), do CPP - , e, pois, da sua sindicabilidade pelo Supremo Tribunal, podem ver-se os acórdãos de 15-04-1998, processo n.º 285/98-3ª, in BMJ 476, 82; de 22-04-1998, processo n.º 120/98-3ª, BMJ 476, 272; de 04-11-1998, processo n.º 1415/97-3ª, in CJSTJ 1998, tomo 3, pág. 201 e BMJ 481, 265, com extensa informação acerca do princípio em causa e da livre apreciação da prova; de 27-01-1999, no processo nº 1369/98-3ª, in BMJ 483º, 140; de 24-03-1999, processo n.º 176/99-3ª, in CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 247, todos do mesmo relator, Exmo. Conselheiro Leonardo Dias, em que a tónica do entendimento sufragado nos citados arestos é o seguinte: “o erro na apreciação da prova só existe quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, resulta por demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal. Nesta perspectiva, a violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência também só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, se extrair, por forma mais do que evidente, que o colectivo, na dúvida, optou por decidir contra o arguido”; e ainda os acórdãos de 20-10-1999, processo n.º 1475/98 -3ª, in BMJ 490º, 64 (em que aquele relator intervém como adjunto); de 04-10-2006, processo n.º 812/2006-3ª; de 11-04-2007, processo n.º 3193/06-3ª.

Como referimos no acórdão de 05-12-2007, processo n.º 3406/07, parece-nos que esta possibilidade de abordagem de eventual violação do princípio será balizada pelos parâmetros de cognoscibilidade presentes numa indagação dos vícios decisórios, por um lado, com o consequente alargamento de possibilidade de incursão de exame no domínio fáctico, mas simultaneamente, como ali ocorre, operando de uma forma mitigada, restrita, que se cinge ao texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum.

O que significa que, tal como ocorre na análise e exame de verificação dos vícios, quando se perspectiva indagação de eventual violação do princípio in dubio pro reo (em ambos os casos diversamente do que ocorre com a avaliação de nulidades da sentença), há que não esquecer que se está sempre perante um poder de sindicância de matéria fáctica, que é limitado, restrito, parcial, mitigado, exercido de forma indirecta, dentro do condicionalismo estabelecido pelo artigo 410º do CPP, em suma, que o horizonte cognitivo do STJ se circunscreve ao texto e aos vícios da decisão, não incidindo sobre o julgamento, isto é, que o objecto da apreciação será sempre a decisão e não o julgamento. …”.

Também no sentido de que este princípio não tem aplicação em sede de interpretação ou de subsunção de um facto à lei, não valendo para dúvidas nessas matérias, se pronuncia Benjamim Silva Rodrigues, in “Da Prova Penal”, Tomo I, Rei dos Livros, 3ª ed., 2010, pág. 221.