Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
127/20.2T8FIG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
NOVO REGIME
AVALIAÇÃO DE BENS
INADMISSIBILIDADE DE SEGUNDA PERÍCIA
Data do Acordão: 06/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA FIGUEIRA DA FOZ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1114.º E 487.º A 489.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: Com a reforma do processo de inventário, constante da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, as alterações introduzidas ao regime da “avaliação” de bens, previsto no artigo 1114.º do CPC, estabelecendo uma disciplina específica e eliminando a anterior remissão que, quanto a esta matéria, era feita para a parte geral do código, leva-nos a negar a admissibilidade de realização de uma segunda “perícia”, nos termos previstos nos artigos 487.º a 489.º do CPC.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo nº 127/20.2T8FIG-A.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias
1º Adjunto: Paulo Correia
2º Adjunto: Helena Melo
                                                                                               
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):
I – RELATÓRIO
Nos presentes autos de inventário, a que se procede a requerimento de AA, e em que desempenha as funções de cabeça de casal, BB,
Notificada da avaliação efetuada ao prédio urbano que constituiu a verba nº1 da relação de bens, a Cabeça de Casal, alegando discordar dos métodos de avaliação, veio apresentar reclamação, pedindo que se ordenasse ao Perito avaliador que apresentasse: i) avaliação do imóvel com base no método comparativo, mas com utilização da tabela de comparação homogénea ao prédio em avaliação; ou, em alternativa; 2º avaliação do imóvel com base nos critérios do CIMI.
Notificado para o efeito, o Sr. Perito veio prestar esclarecimentos, reiterando a metodologia por si utilizada, bem como valor constante do relatório.
Notificada de tais esclarecimentos, a Cabeça de casal vem requerer que se determine a realização de uma segunda perícia ao imóvel, ao abrigo do disposto nos arts. 487º e ss. do CPC, nos termos e com os fundamentos já invocados na Reclamação.
Pelo juiz a quo foi proferido o seguinte Despacho, de que agora se recorre:
“REF":44383319:
Considerando os esclarecimentos do Sr. Perito a Fls. 96 e ss., no qual explicita cabalmente quais os fatores/critérios que determinaram a sua avaliação a fim de aferir o seu valor real de mercado e tendo em consideração o disposto no art. 1114.º do CPC, entendemos que a lei não admite segunda avaliação.
Conforme entendimento sufragado no Ac. da RC de 15.05.2022 (consultado in www.dgsi.pt): "A letra do art.o 1114" do CPC que excluiu a remissão para o "preceituado na parte geral do Código" ou para o "disposto no Código de Processo Civil quanto à prova pericial" deve ser interpretada no sentido restritivo de aplicação exclusiva do regime de uma única avaliação".
Pelo exposto, indefiro segunda avaliação requerida.”
*
Não se conformando com tal decisão, o Cabeça de Casal dela veio interpor recurso de Apelação, o qual concluiu com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem por súmula, face ao nítido incumprimento do dever de sintetizar os fundamentos do recurso, nos termos do artigo 639º, nº1 do CPC:
“1º (…)
 (…)
8º Por Despacho tirado em 08.02.2023, o Tribunal indeferiu o pedido de 2º perícia, efetuado pelo cabeça de casal, nos termos e com os fundamentos aí constantes. Decisão que a cabeça de casal muito respeita, mos não concorda, nem se conforma, motivo porque apresenta o presente recurso.
10. Com efeito, no referido Despacho, o Tribunal, indeferiu a segunda avaliação, defendendo que o artigo no 1114 do CPP não admite uma segunda avaliação e exclui o preceituado na parte geral do Código de Processo Civil|, nomeadamente quanto à prova pericial.
(…)
12. Ora, da leitura da referida disposição legal não resulta que a mesmo, não admita uma segunda avaliação, nem tão pouco exclui o preceituado no porte geral do Código de Processo Civil, nem o aí disposto quanto à prova pericial.
13. E nem poderia ser de outro modo, já que a parte geral do CPC, foi elaborada com o propósito especifico de nortear os regimes específicos aí previstos, evitando o repetição e/ou contradição de regras gerais, pelo que, salvo o devido respeito, defender a posição assumida no douto despacho, é o mesmo que dizer que não seria necessário a existência da parte geral do CPC.
14. Ou, é defender que as normas da parte geral se aplicam a uns regimes específicos e a outros não, mas sem estabelecer critérios, ou ao sabor da interpretação de cada jurista, o que não se coaduna com os princípios da interpretação geral da legislação, entre nós existentes.
15. A decisão tirado em tal despacho, foi suportada na posição assumida, pelo Relação de Coimbra, no Acórdão tirado em 05.05.2022, no qual sé defendido que:
"A letra do art.º 1114º do CPC que excluiu a remissão paro o "preceituado na parte geral do Código" ou para o "disposto no Código de Processo Civil quanto à prova pericial" deve ser interpretada no sentido restritivo de aplicação exclusivo do regime de uma única avaliação.
Ademais, o facto de se prever que a avaliação deve ocorrer, em regra, num prazo limitado de 30 dias, constitui um elemento que converge para a ideia de que só existe uma única avaliação no processo de inventário.
De harmonia com a letra da lei como do seu espírito, entendemos que não é admitida uma segunda avaliação no processo de inventário."
16. Ora, o que o cabeça de casal conseguiu apurar, esta é a única decisão jurisprudencial sobre a questão de saber se o regime de provo pericial previsto no porte geral do CPC se aplica ou não ao inventário, pelo que, salvo o devido respeito, não pode ser usada como jurisprudência norteadora ou dominante, numa matéria tão jovem do nosso CPC, como a que aqui se discute.
17. Salvo o devido respeito, entende o cabeça de casal que a interpretação jurídica ora defendida é uma interpretação inversa à natural, pois que o princípio básico será o de aplicar a parte geral do CPC, só não se aplicando se o corpo do norma legal assim dispuser.
18. Com efeito, no modesto entender do cabeça de casal, seria precisamente o contrário, para que não se aplicasse a parte geral do CPC, este teria de ser expressamente excluído no corpo da norma legal, o que não é o caso,
logo
Pelo que, s.m.o, entende a cabeça de casal que o Tribunal deveria ter aplicado o regime da parte geral do CPP, relativamente à prova pericial, previsto nos artigos 487o e ss do CPP, ordenando uma 2ª perícia, não o tendo feito violou tal regime, devendo por isso o douto despacho ser revogada e em seu lugar ser proferida outra que ordene a elaboração de uma 2ª perícia,
Termos em que,
E no mais de direito, que V. Exo. doutamente suprirá, deve o presente recurso ser recebido e julgado procedente, em função do supra exposto e consequentemente ser revogada a douta decisão proferida e substituída por outro que ordene a elaboração de 2ª perícia.
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpridos que foram os vistos legais, ao abrigo do artigo 657º, nº2, in fine, do CPC, há que decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 684º, nº3 e 685º-A, do antigo CPC e 635º e 639º, do Código de Processo Civil, a questão a decidir é uma só:
1. Se podia haver lugar a uma segunda perícia
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
1. Se no atual processo de inventário é facultada a realização de uma segunda perícia nos termos gerais dos artigos 487º a 489º do CPC.
A única questão a decidir no âmbito da presente Apelação reside em determinar se o disposto no artigo 1114º do Código de Processo Civil – norma introduzida pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, através da qual o inventário voltou a ser regulado no Código de Processo Civil, com um regime inovatório relativamente ao consagrado no anterior código – consente a realização de uma 2ª perícia, tal como se encontra prevista na parte geral do código (arts. 487º e ss.).
A decisão recorrida veio a negar a possibilidade de realização de uma 2ª perícia, sustentando ser o que resulta da lei e do seu espírito, com base nos seguintes elementos interpretativos:
- A letra do art.º 1114º do CPC, ao excluir a remissão para o "preceituado na parte geral do Código" ou para o "disposto no Código de Processo Civil quanto à prova pericial", deve ser interpretada no sentido restritivo de aplicação exclusivo do regime de uma única avaliação.
- Ademais, o facto de se prever que a avaliação deve ocorrer, em regra, num prazo limitado de 30 dias, constitui um elemento que converge para a ideia de que só existe uma única avaliação no processo de inventário.
Insurge-se a Apelante contra o decidido, sustentando que a avaliação no processo de inventário se encontra sujeita às regras gerais do código de processo, nomeadamente ao que nele se prevê nos arts. 487º e ss. do CPC:
- a interpretação jurídica defendida na decisão recorrida é uma interpretação inversa à natural, pois que o princípio básico será o de aplicar a parte geral do CPC, só não se aplicando se o corpo do norma legal assim dispuser, o que não é o caso.
- tal decisão foi suportada na posição assumida, pelo Relação de Coimbra, no Acórdão tirado em 05.05.2022, segundo o qual “De harmonia com a letra da lei como do seu espírito, entendemos que não é admitida uma segunda avaliação no processo de inventário." Ora, o que o cabeça de casal conseguiu apurar, esta é a única decisão jurisprudencial sobre a questão de saber se o regime de provo pericial previsto no porte geral do CPC se aplica ou não ao inventário, pelo que, salvo o devido respeito, não pode ser usada como jurisprudência norteadora ou dominante, numa matéria tão jovem do nosso CPC, como a que aqui se discute.
Não é de dar razão ao Apelante pelas razões que passamos a explicitar.
No regime do inventário constante do Código de Processo Civil de 1961, havia lugar àquilo a que, então, se chamava primeira avaliação, a realizar após decisão das eventuais reclamações à relação de bens – avaliação por um louvado dos bens cujo valor não devesse ser indicado pelo cabeça de casal ou determinado pela secretaria (artigo 1347º, nº1) – e em operação prévia à descrição de bens por parte da secretaria.
Facultando as regras gerais o recurso a uma segunda avaliação (art. 609º), e face à sugestão de se alargar tal sistema ao processo de inventário, a opção do legislador foi clara no sentido de que “hoje como ontem, não há em regra, segunda avaliação em inventário. Parte-se do princípio de que os valores da primeira ficarão suficientemente corrigidos em virtude da reclamação contra o excesso da avaliação, quando avaliados em valor superior, ou pelas licitações no caso contrário[1]”.
Contudo, tal regra comportava várias exceções, prevendo expressamente a a possibilidade de uma segunda avaliação relativamente a bens indivisos (artigo 1364), a bem doados (1365º), bem legados (1366º), e nos casos dos arts. 1389º e 1408º (art. 1369º, nº1).
“Na segunda avaliação, observam-se as mesmas formalidades e adotam-se as fases da primeira avaliação, regendo-se pelas disposições a esta aplicáveis, nos termos do artigo 610º do Cód. Proc. Civil. Há simplesmente que considerar que o louvado que interveio na primeira avaliação não pode ter interferência na segunda”.
Ou seja, a doutrina equiparava esta “segunda avaliação” ao segundo arbitramento previsto nas regras gerais do código sobre a avaliação de bens (art. 610º).
Considerava-se então que a segunda avaliação era definitiva, por não ser admissível terceira avaliação[2].
A reforma do processo de inventário introduzida pelo Dec. Lei nº 227/94, de 08 de setembro, eliminou a pretérita “primeira avaliação”, impondo ao cabeça de casal a obrigação de atribuir o valor a ada um dos bens da herança (artigo 1346º, nº1).
Passou a prever-se, assim, tão só, o que anteriormente se denominava de 2ª avaliação, alargando a possibilidade deem momento prévio à composição dos quinhões ou sorteio, a mesma ser requerida pelos interessados ou oficiosamente determinada pelo juiz, destinado a possibilitar a repartição igualitária e equitativa dos bens pelos vários interessados (artigo 1353º, nº2).
A avaliação de bens da herança, fosse na sequência de reclamação contra o valor atribuído pelo cabeça de casal (nº4 do artigo 1362º), fosse por se tratar de bens indivisos (artigo 1364º, nº3) ou de bens doados ou legados em que se suscitasse a questão da inoficiosidade (artigos 1365º, nº1, e 1366º, nº1), passou a estar prevista nos seguintes termos:
Artigo 1369º
Realização da Avaliação
A avaliação dos bens que integram cada uma das verbas da relação é efetuada por um único perito, nomeado pelo tribunal, aplicando-se o preceituado na parte Geral do Código, com as necessárias adaptações.
A remissão para o regime geral contida no artigo 1369º, do CPC, relativo à realização da avaliação de bens em processo de inventário, levou a doutrina e a jurisprudência a pronunciarem-se no sentido da admissibilidade de uma “segunda avaliação” nos termos previstos no artigo 589º, nº1 do CPC[3].
Remetendo o artigo 1369º do CPC para a parte geral do código, ter-se-iam de aplicar às eventuais reclamações o disposto no artigo 587º do CPC (reclamações contra o relatório pericial) e bem assim o disposto no artigo 589º do CPC relativo à realização de segunda perícia, sendo esta admissível e a realizar nos termos do artigo 590º.
Com a reforma do regime do processo de inventário, introduzida com a Lei nº 23/2013, de 15 de março – efetuando uma desjudicialização parcial de tal processo e retirando o seu regime do Código de Processo Civil –, tendo sido impugnado o valor dos bens, igualmente se previa que “a respetiva avaliação é efetuada por um único perito, nomeado pelo notário, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Civil quanto à prova pericial.” (artigo 33º, nº 2).
Assim se entendia que o resultado da perícia era expresso em relatório, podendo as partes dele reclamar, nos termos do artigo 485º, podendo ainda haver lugar a uma segunda perícia nos termos gerias previstos no artigo 487º do CPC[4].
Chegados ao atual regime do processo de inventário, que a Lei nº 117/2019, de 13 de setembro veio de novo integrar no Código de Processo Civil, dispõe agora o artigo 1114º do CPC:
 Artigo 1114.º
Avaliação
1 - Até à abertura das licitações, qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído.
2 - O deferimento do requerimento de avaliação suspende as licitações até à fixação definitiva do valor dos bens.
3 - A avaliação dos bens é, em regra, realizada por um único perito, nomeado pelo tribunal, salvo se:
a) O juiz entender necessário, face à complexidade da diligência, a realização de perícia colegial;
b) Os interessados requererem perícia colegial e indicarem, por unanimidade, os outros dois peritos que vão realizar a avaliação dos bens.
4 - A avaliação dos bens deve ser realizada no prazo de 30 dias, salvo se o juiz considerar adequada a fixação de prazo diverso.
Tendo o novo regime do processo de inventário sido publicado sem qualquer preâmbulo explicativo para as suas opções, a atividade de interpretação da norma deverá iniciar-se pela análise do anteriormente estipulado quanto à realização da avaliação em processo de inventário, com as alterações que ao mesmo foram sendo introduzidas desde a reforma de 1994, da qual ressaltam as seguintes alterações:
- até à atual reforma, as especificidades da avaliação a efetuar no processo de inventário limitavam-se a determinar que a mesma era efetuada “por um único perito”, a nomear pelo tribunal (ou pelo notário), remetendo, quanto ao mais ao disposto na lei geral do processo quanto à prova pericial;
- no atual regime, prevendo que a avaliação é, em regra, realizada por um único perito, admite a realização de perícia colegial, nas seguintes situações: a) o juiz entender necessário, face à complexidade da diligência, a realização de perícia colegial; b) os interessados requererem perícia colegial e indicarem, por unanimidade, os outros dois peritos que vão realizar a avaliação dos bens (afastando-se, não só do regime anterior de perito único, com do regime geral relativamente às hipóteses em que é admissível a perícia colegial);
- é eliminada a anterior remissão geral para a parte geral do código, alteração que os dois únicos acórdãos[5] até agora publicados sobre qual questão, vêm interpretando no sentido de a possibilidade de realização de uma 2ª perícia se encontrar afastada da avaliação em processo de inventário;
- é fixado um prazo geral de 30 dias para a realização da “avaliação” o que também aponta no sentido da inviabilidade de realização de uma 2ª perícia, cuja realização se mostraria completamente incompatível com a observância de tal prazo.
Como já afirmava Armando Simões Pereira, quanto à forma de proceder à avaliação em processo de inventário, “dizer que o valor dos bens se determina por avaliação não tem como inevitável consequência a aplicação dos preceitos sobre avaliação, dado que o sentido comum da palavra não pressupõe necessariamente essa aplicação. Por outra forma: dizer que o valor dos bens se determina por avaliação não significa necessariamente que ela tenha de fazer-se nos termos da subsecção que tem esse título (a subsecção III, da secção V, do capítulo III, do subtítulo II, título II, do Livro III – arts. 607º a 612º), visto que se pode bem conceber uma avaliação em moldes diferentes. Há pois que fazer referência, direta ou indireta a esses preceitos[6]”.
Ora, o legislador de 2019, relativamente a tal matéria, optou por eliminar a remissão, anteriormente adotada, para a parte geral do código. E se, relativamente ao que não se encontra aqui especificadamente prescrito, se terá, ainda assim, de recorrer às regras gerais (nomeadamente quanto aos impedimentos dos peritos, possibilidade de reclamação contra o relatório, pedido de comparência dos peritos em tribunal), devidamente adaptadas – arts. 478º a 486º, CPC –, não podemos sem mais aplicar as regras previstas na Secção V do capítulo IV, relativamente à realização de uma 2ª perícia.
Quanto à previsão de um prazo de 30 dias para a realização da avaliação, a redação desta norma inculca a ideia de que, ao contrário do que se acha disposto no artigo 483 º1, a propósito da realização da 1ª perícia – quando a perícia não possa logo encerrar-se com a imediata apresentação do relatório pericial, o juiz fixa prazo dentro do qual a diligencia  há de ficar concluída –, não se trata do prazo concedido ao perito para concluir a perícia no caso de não puder de imediato apresentar o relatório pericial, mas de um prazo para a realização da avaliação.
Por outro lado, a interpretação de tal norma haverá de ser efetuada à luz do novo paradigma do processo de inventário, em que se pretende evitar o carater arrastado, sinuoso e labiríntico da anterior tramitação, que sempre produziu resultados insatisfatórios[7]”, modelo dominado pelos princípios da concentração (assente na definição de fases perfeitamente estanques) e da preclusão.
E a esta luz, sai reforçada a interpretação que aqui atribuímos à fixação de tal prazo, embora de natureza meramente ordinatória, bem como a assunção de inexistência de uma 2ª perícia.
E se a integração do processo de inventário no código de processo torna aplicáveis a este processo especial os princípios gerais do processo civil (art. 549º, nº1), só na ausência de regulamentação própria serão aplicáveis as disposições comuns.
Por outro lado, haverá que ter em conta a natureza desta avaliação, sendo que, enquanto a realização da perícia na parte geral do código é vista como um meio de prova, a apreciar juntamente com os demais elementos de prova existentes nos autos, prevendo-se aí a possibilidade de uma 2ª segunda perícia, esta “segunda perícia não invalida a primeira, sendo uma e outras apreciadas livremente pelo tribunal” (artigo 498º)[8], o que, a ser aplicável em processo de inventário, nos deixaria um novo problema em mãos: assim sendo, qual o valor a atender pelo tribunal, quando a tal avaliação não se seguirá qualquer fase de julgamento para fixação do valor do bem objeto de avaliação?
Quanto à doutrina, a única obra[9] que, por ora, encontrámos a referir-se a tal questão, embora sem qualquer explicação quanto a tal opção, foi no sentido oposto ao aqui defendido:
À diligência de avaliação de bens é aplicável o regime estabelecido no processo declarativo comum acerca da prova pericial (arts. 467º e ss), pelo que os ns. 3 e 4 se limitam a definir algumas especificidades no domínio do inventário:
a) Mantém-se a regra segundo a qual a avaliação é realizada por um único perito nomeado pelo juiz (art. 1369º CPC/61; art. 33ºRJPI), ressalvando-se todavia a possibilidade de realização de perícia colegial, seja, perante a complexidade da diligência, por determinação do juiz, seja por deliberação unanime dos interessados, desde que também acordem nos outros dois peritos.
b) O prazo normal para a realização da avaliação dos bens pelo perito é de 30 dias (nº4)”.
Os respetivos autores fazem uma leitura de tal prazo como tendo uma natureza semelhante ao disposto no artigo 483º, ou seja, como sendo um prazo concedido ao perito para apresentar o seu relatório, sendo que, a ser assim, não se vê a necessidade de aqui prescrever o que já resultaria do regime geral.
Por outro lado, desvalorizam a alteração respeitante à possibilidade de realização da avaliação por perícia colegial, a nosso ver, como meio garantir uma justa e correta avaliação dos bens, e de compensar os interessados da eliminação da possibilidade de uma segunda perícia.
Veremos, assim, como evolui a doutrina e a jurisprudência após reflexão mais aturada sobre a questão em apreço, sendo que, por ora, entendemos ser de confirmar a decisão recorrida.
A Apelação é de improceder.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar improcedente a Apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas a suportar pela Apelante.
                                                                                                27 de junho de 2023

V – Sumário elaborado nos termos do art. 713º, nº7, do CPC.
(…)





[1] João António Lopes Cardoso, “Partilhas Judiciais”, Volume II, Livraria Almedina – 1990, p.204.
[2] Acórdão do TRC de 31-03-1981, Colectânea de Jurisprudência, Ano VI, T2, p.29.
[3]cfr., Embora do teor do respetivo preâmbulo não houvesse qualquer referencia à possibilidade de recurso a uma segunda perícia – “No que respeita às avaliações, prevê-se a sua realização, em regra, por um único perito, designado pelo tribunal, já que a estrutura do processo de inventário torna particularmente complexa a designação de peritos pelas partes - uma vez que no inventário não existem, com frequência, partes em directo contraditório - e sendo certo que as possibilidades de contraditório face aos resultados da avaliação pelo perito judicialmente designado serão suficientes para assegurar os legítimos direitos dos interessados na partilha.”
entre outros, o Acórdão de 26.04.2016, relatado pela aqui relatora, e acórdãos do TRC de 31.01.2012, relatado por Teles Pereira, de 12-06-2012, relatado por Fonte Ramos e 20.06.2012, relatado por Sílvia Pires, disponíveis in www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, Eduardo Sousa Paiva e Helena Cabrita, “Manual do Processo de Inventário, à Luz do Novo Regime aprovado pela Lei nº 23/2013, de 5 de março e regulamentado pela Portaria nº 278/2013 de 26 de agosto”, Coimbra Editora, p. 102.
[5] Acórdão do TRC de 13-12-2022, relatado por Luís Cravo, no qual se afirma que “tendo deixado de existir a remissão legal para a parte geral do código respeitante à prova perícia, tal significa que se quis disciplinar a temática de forma autónoma e específica, mormente quanto ao aspeto de nela só ter lugar uma única avaliação”; em igual sentido já se havia pronunciado o Acórdão do TRC de 10-05-2022, relatado por Mário Rodrigues da Silva, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[6] “Processo de Inventário e Partilhas, Esboço de um Anteprojecto”, Lisboa 1962, pp.
[7] Carlos Lopes do Rego, “A recapitulação do inventário”, Julgar Online, dezembro de 2019, p. 9. Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, “O Novo Regime do Processo de Inventário e outras Alterações na Legislação Processual Civil”, Almedina, p. 8.
[8] Já no âmbito do regime antecedente, José António Lopes Cardoso chamava a atenção para o facto de que a perícia não é aqui usada como um meio de prova pois não se inscreve no objeto de qualquer contenda para que tal meio seja preciso. “Pelo contrário, é a própria avaliação que é fiada de um perito que sabe o suficiente para a fazer e fixar o valor. Por essa mesma razão seria absurdo aplicar aqui velho princípio, segundo o qual a “segunda perícia não invalida a primeira, sendo, uma e outra livremente apreciadas pelo tribunal” – “Partilhas Judiciais, Vol. II, 6ª ed., Almedina, ppp.238-239.
[9] Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, “O Novo Regime do Processo de Inventário e outras Alterações (…), Almedina, pp. 114-115.