Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
319/14.3TAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: FALSIDADE DE TESTEMUNHO
Data do Acordão: 07/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (SEC. COMP. GEN. DA INST. LOCAL DA MARINHA GRANDE – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 360.º, N.º 1, DO CP
Sumário: A circunstância de não se ter provado o momento em que o agente, então na qualidade de testemunha, faltou à verdade – no âmbito do inquérito ou no decurso de audiência de julgamento – não impede a conclusão de a prestação de depoimentos divergentes nas duas fases processuais referidas integrar, ainda assim, todos os elementos do tipo de crime previsto no artigo 360.º, n.º 1, do CP (falsidade de testemunho).
Decisão Texto Integral:








Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo comum com intervenção do tribunal singular 319/14.3TAMGR da Comarca de Leiria, Instância Local da Marinha Grande, Secção de Competência Genérica, J2, em que é arguido A... , devidamente identificado nos autos, após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença em 27 de Outubro de 2016 com o seguinte dispositivo:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal julga parcialmente procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, consequentemente, decide:

1 - Condenar o arguido A... pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à razão diária de € 6 (seis euros), perfazendo a quantia de € 720 (setecentos e vinte euros).

2 - Condenar o arguido nas custas do processo, fixando-se em 2UC a taxa de justiça devida.

Inconformado, recorreu o arguido, extraindo da motivação do recurso as seguintes conclusões:

1. Da douta sentença sob recurso resultam factos dados como provados que deveriam ter sido dado como não provados, a saber:

a. O arguido agiu com o propósito concretizado de faltar à verdade, prestando declarações falsas, e dessa forma dificultar a acção da justiça e o apuramento da verdade material, o que quis e conseguiu.

b. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

2. Para dar como provados os factos constantes da acusação, o Tribunal fundou a sua convicção:

a) Na certidão extraída do processo n.º 3/12.2PAMGR, designadamente na certidão do auto de inquirição de testemunha (fls. 19);

b) E na certidão da acta de audiência de julgamento (fls. 2), bem como na transcrição das declarações do arguido, prestadas em sede de audiência de julgamento no âmbito do referido processo (fls. 130 do apenso).

3. Salvo melhor opinião, da audiência de julgamento não existe prova que permita concluir em que circunstâncias mentiu o arguido, se em Audiência de Discussão e Julgamento, se na fase de inquérito.

4. Nesse aspecto sempre se dirá que a acusação é dúbia porque não define em que circunstância é que o arguido mentiu.

5. Retira-se do texto da sentença que o arguido terá prestado depoimento desconforme quando prestou depoimento em sede de audiência de discussão e julgamento e em sede de investigação.

6. Da fundamentação da decisão o Tribunal "a quo" socorreu-se em abstracto de duas certidões, que acima se referiram, inexistindo prova complementar ou acessória que permitisse sustentar o julgamento da matéria de facto dada como provada.

7. Ou seja, o Tribunal "a quo" concluiu que havia uma desconformidade entre os dois depoimentos, todavia seria necessário demonstrar a realidade subjacente aos mesmos, para apurar em qual dos dois se afastou o arguido da realidade dos factos.

8. O Tribunal "a quo" deu como provado que o arguido mentiu mas não demonstrou ou identificou em que ocasião o fez, pelo que a absolvição é o único caminho a seguir.

9. Em audiência de discussão e julgamento não se lograram consolidar indícios que permitissem uma condenação, ficando-se numa eterna dúvida.

10. Dir-se-ia que a prova produzida não é inabalável nem bastante, tem várias zonas cinzentas e várias presunções não demonstradas de forma inequívoca.

11. Salvo o devido respeito e melhor opinião, existe clara divergência na douta sentença sob recurso, entre o que foi dado como provado e aquilo que não foi dado provado, traduzindo-se tal divergência em claro erro de julgamento da matéria de facto sindicável pelo tribunal superior (Art°,412° do CPP).

12. A invocação do citado vício desencadeia a reapreciação da matéria de facto à luz da prova produzida em audiência de julgamento e pode conduzir à alteração da factualidade provada.

13. Por outro lado, não se provou e devia ter provado, em face das suas circunstâncias, que a divergência preconizada pelo arguido é dolosa, ou seja, que foi produzida uma afirmação contrária à verdade, com intenção de enganar, de mentir.

14. Conclui, assim, o recorrente que os pontos concretos de facto acima apontados foram incorrectamente julgados, sendo que as provas concretas apuradas, impunham por si, decisão diversa e que determinaria sempre a absolvição do arguido.

15. Caso não se entenda o que se defendeu no que à impugnação da matéria de facto concreta respeita, sempre se dirá que a sentença contém vícios, vícios esses que se reconduzem à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

16. Entende o recorrente que não foi feita prova dos factos dados como provados.

17. Por outro lado, também nada se esclarece quanto aos não provados, como acima se expos.

18. No fundo não fez mais o Tribunal "a quo" do que valorar apenas dois documentos, ainda que tratando­-se de certidões.

19. O arguido, por outro lado, remeteu-se ao silêncio, desconhecendo-se as suas motivações, as suas razões e efectivas intenções ao tecer dois depoimentos diversos, resultantes de inquirições diferentes, em espaços temporais diferentes e em meios processuais e fases diferentes.

20. Entende o recorrente que as duas certidões juntas aos autos, enquanto prova documental, só por si, não são suficientes para a prova de determinados factos desfavoráveis ao mesmo, tendo para esse efeito o tribunal "a quo" violado expressamente o artigo 410° n02 b) do CPP, o que impõe a respectiva absolvição.

21. Mais apraz dizer que não se encontram preenchidos os elementos típicos do crime de falsidade de testemunho, pp. pelo art. 360°, n.º 1 do Código Penal.

22. Para este efeito atente-se o entendimento perfilhado no Acórdão da Relação do Porto, no processo 7 49/13.8TAPFR.P1, de 11.03.2015 (publicado em www.dgsLpt), que aqui seguimos.

23. Ou seja, em momento algum se alcança a intenção do arguido aquando da produção dos seus dois depoimentos, desconhecendo-se efectivamente se o mesmo teve a intenção de enganar ou não a justiça.

24. Aceitou o Tribunal "a quo" que o arguido numa determinada ocasião havia mentido, sem se saber em qual, tendo com isso violado a interpretação a dar ao artigo art. 360°, n.º 1 do CP e consequente aplicação.

25. Conforme melhor se explanou no douto acórdão que acima se invocou e que seguimos, violou o tribunal "a quo", ao seguir a interpretação dada, "os princípios da legalidade, que impõe a descrição da conduta proibida e de todos os requisitos de que dependa em concreto a punição tem de ser efectuada de modo a que se tornem objectivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objectivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos"; "e da tipicidade, o qual implica que a lei deve especificar suficientemente os factos que constituem o tipo legal de crime e impede as formas vagas ou incertas. "

26. Com isso violou-se ainda o princípio da presunção de inocência.

27. Neste aspecto dúvidas não há que o recurso tem que ser julgado procedente, devendo o arguido ser absolvido.

28. Entende ainda o recorrente e arguido que o tribunal a quo, ao entender que o arguido praticou os factos em causa, violou o princípio in dubio pro reo.

29. Impunha-se ir mais além por forma a removerem-se dúvidas fundadas que a audiência de discussão e julgamento não dissipou.

30. Assim, "o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu. quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa" (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa Anotada", 3a ed., pág. 203).

31. Este princípio tem aplicação na apreciação da prova, impondo que, em caso de dúvida insuperável e razoável sobre a valoração da prova, se decida sempre a matéria de facto no sentido que mais favorecer o arguido.

32. A fundamentação da decisão de facto constante da sentença recorrida evidencia a existência de dúvidas que tenha sido solucionada em desfavor do arguido, e, por outro lado, face à prova produzida em audiência de discussão e julgamento, resulta, também para nós, a falta de certeza da prática pelo arguido dos ilícitos pelos quais foi condenado.

33. Por conseguinte, violou assim o tribunal "a quo" o disposto no artigo 127° do CPP e art°. 32° n02 da CRP, pelo que o Tribunal devia ter pugnado pela aplicação do princípio in dubio pro reo.

Termos em que deve ser dado provimento ao ora recurso revogando-se a douta sentença recorrido, fazendo-se desse modo JUSTIÇA!

O recurso foi objecto de despacho de admissão.

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:

1 ° - O arguido A... foi condenado pela prática de um crime de falsidade de testemunho numa pena de 120 dias de multa, à razão diária de €6,00.

2° - Tal como o juiz de julgamento valora a prova produzida de acordo com a sua livre convicção e com as regras da experiência comum, também pode utilizar qualquer meio de prova para dar como provados os factos juridicamente relevantes.

3° - Para que o Tribunal recorrido fosse obrigado a produzir outra prova para além da prova documental para dar como provado o elemento subjectivo do crime tal teria de estar expressamente consagrado na legislação nacional, o que não sucede.

4° - A prova documental junta aos autos é suficiente, quando conjugada com as regras da experiência comum, para fundamentar a prova do elemento subjectivo e dar como provados os factos n.º 7 e 8 do elenco de factos provados.

5° Resulta dos factos não provados que a sentença recorrida não deu como provado que o arguido faltou à verdade quando prestou declarações em sede de audiência de discussão e julgamento, mas em momento algum do elenco de factos provados tal é afirmado.

6° - A sentença recorrida não tem qualquer contradição, não tendo o Tribunal a quo incorrido em nenhum erro (erro de julgamento da matéria de facto).

7° - Para que o crime de falsidade de depoimento se encontre preenchido e fundamente uma condenação, basta que se prove que o arguido prestou, em dois momentos diferentes, declarações díspares e inconciliáveis entre si; ainda que não se logre provar em que momento concreto o arguido faltou à verdade nem qual era a verdade subjacente ao depoimento falso realizado.

  8° Não existe fundamento para aplicar o princípio in dubio pro reo, não tendo a sentença recorrida violado o princípio da presunção de inocência nem os art.ºs 127° CPP e 32°, n. 2 CRP.

9° - Pelo exposto, entendemos que a sentença recorrida valorou adequadamente a prova produzida e fez uma adequada subsunção jurídica, pelo que deve o recurso apresentado pelo arguido ser julgado totalmente improcedente e, consequentemente, deve a sentença recorrida ser confirmada e mantida nos seus precisos termos, nomeadamente quanto ao elenco de factos provados e não provados e quanto à condenação do arguido pela prática de um crime de falsidade de depoimento.

V. Ex.as, porém, Decidirão, como sempre, Como for de Justiça!

Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, acompanhando a antecedente resposta, emitiu parecer no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

  II. Fundamentos da decisão recorrida

A decisão recorrida contém os seguintes fundamentos de facto e de direito:

II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

2.1. - Matéria de Facto Provada

Da audiência de discussão e julgamento resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:

1 - No dia 28 de Fevereiro de 2014, o arguido A... prestou depoimento, na qualidade de testemunha, na audiência de discussão e julgamento que teve lugar, entre as 9hOO e as l2h35, nas instalações do Tribunal da Marinha Grande, no âmbito do Processo Comum Colectivo n." 3/12.2PAMGR, que correu termos no 2.° Juízo do Tribunal Judicial da Marinha Grande e no qual era arguido, entre outros, B... .

2 - No momento do seu depoimento, o arguido A... foi advertido de que era obrigado a responder, e com verdade, a todas as perguntas que lhe iam ser feitas, sob pena de, não o fazendo, incorrer em responsabilidade criminal, advertência que o arguido compreendeu.

3 - Após a referida advertência, o arguido prestou juramento no sentido de que iria responder com verdade às perguntas que lhe fossem colocadas.

4 - O arguido, quando prestou depoimento na referida audiência de discussão e julgamento, afirmou que comprou 4/5/6 maços de tabaco da marca SG Filtro, pelo preço de €3, no café "Jade", à empregada de B... .

Afirmou ainda o arguido que sempre comprou apenas à referida empregada e que não sabia se o referido tabaco pertencia a B... nem qual a proveniência do dito tabaco.

Afirmou também o arguido que nunca lhe foi solicitado que não contasse a ninguém que era vendido no referido estabelecimento comercial tabaco mais barato.

5 - Em sede de inquirição realizada pela Polícia Segurança Pública a 9 de Setembro de 2013, o arguido A... , também aqui ouvido na qualidade de testemunha, afirmou que comprou cerca de 10 vezes tabaco da marca Chesterfield Azul, pelo preço de €3, no café

"Jade".

Mais referiu o arguido, nessa ocasião, que o tabaco lhe era vendido por B... ou pela sua empregada, sendo que o arguido, quando pretendia adquirir tabaco, dirigia -se ao balcão, pedia um café e perguntava a B... se ele tinha daquele tabaco mais barato.

Referiu também o arguido, na mesma ocasião, que viu muitos indivíduos comprar tabaco, a um preço inferior ao preço de custo, a B... .

Referiu ainda o arguido, na mesma ocasião, que não sabia a proveniência do referido tabaco, embora suspeitasse que podia ser roubado ou de contrabando.

Por fim, na mesma ocasião, referiu o arguido que B... lhe tinha dito que se ele quisesse lhe vendia o tabaco mais barato, mas que o arguido não podia comentar tal facto com ninguém.

6 - O arguido A... , aquando do seu depoimento em sede de audiência de discussão e julgamento, prestou juramento legal e sabia que estava obrigado a responder ao que lhe fosse perguntado e a fazê-lo com verdade.

7 - O arguido agiu com o propósito concretizado de faltar à verdade, prestando declarações falsas, e dessa forma dificultar a acção da justiça e o apuramento da verdade material, o que quis e conseguiu.

8 - Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

9 - Do Certificado do Registo Criminal do arguido nada consta.

10 - O arguido é pedreiro e encontra-se desempregado, fazendo uns biscates dos quais retira mensalmente cerca de € 500/600 (quinhentos/seiscentos euros).

11 - Vive com a companheira, que não exerce actividade profissional remunerada, e um filho maior, que se encontra a seu cargo, em casa própria, pela qual paga mensalmente de empréstimo bancário o montante de € 120 (cento e vinte euros).

 

2.2. - Matéria de Facto Não Provada

Não resultaram provados quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa, nomeadamente que:

- Nas circunstâncias descritas em 2) e 3), o arguido mentiu e faltou à verdade;

- Quando, na referida audiência de discussão e julgamento, o arguido Vítor Sousa

prestou declarações, o mesmo faltou à verdade, porquanto a verdade dos factos tinha sido declarada pelo arguido nas circunstâncias descritas em 5);

- Nas circunstâncias descritas em 6), apesar disso, ao prestar o seu depoimento, o arguido faltou à verdade, sabendo que o que afirmava não era verdadeiro;

- O arguido agiu com o propósito de favorecer B... .

*

2.3. - Motivação da Decisão de Facto

Nos termos do disposto no artigo 374.°, n.º 2 do Código de Processo Penal, o Tribunal deve indicar os motivos de facto e de direito que fundamentam a sua decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção.

Em sede de valoração de prova, dispõe o artigo 127.º do Código de Processo Penal que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do Tribunal.

A convicção do Tribunal sobre a factualidade considerada provada e não provada baseou-se na análise crítica e ponderada dos seguintes elementos de prova:

Para dar como provados os factos constantes da acusação, o Tribunal fundou a sua convicção na certidão extraída do processo n.º 3/12.2PAMGR, designadamente na certidão do auto de inquirição de testemunha (fls. 19) e na certidão da acta de audiência de julgamento (fls. 2), bem como na transcrição das declarações do arguido, prestadas em sede de audiência de julgamento no âmbito do referido processo (fls. 130 do apenso).

A conjugação destes documentos foi fundamental na formação da convicção do Tribunal pois do seu confronto é possível concluir que o arguido prestou, sobre os mesmos factos, nas duas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação - inquirição na PSP de 9 de Setembro de 2013 e audiência de julgamento de 28 de Fevereiro de 2014 - depoimentos absolutamente contraditórios entre si.

Quanto aos antecedentes criminais, o Tribunal baseou-se no Certificado do Registo Criminal do arguido e relativamente à sua situação pessoal, familiar e económica, mereceram crédito as suas declarações.

Relativamente aos factos não provados, quanto aos mesmos não foi feita qualquer prova. A este propósito, cumpre referir que a prova produzida em audiência de julgamento foi insuficiente para que o Tribunal pudesse dar como provado que o depoimento falso foi o que foi prestado em audiência de julgamento. Assim, apurou-se apenas que o arguido prestou um depoimento falso sem ter sido possível aferir em qual dos momentos a mesmo faltou à verdade: se perante o órgão de polícia criminal ou em sede de audiência de julgamento.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

3.1. - Enquadramento jurídico-penal

Com base na matéria de facto provada, procederemos de seguida ao respectivo enquadramento jurídico-penal.

O arguido vem acusado da prática, em autoria material, de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.°, n.º 1 e 3, do Código Penal.

Prevê a referida disposição que:

"1 - Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias. 

3 - Se o facto referido no n." 1 for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, a pena é de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias."

O bem jurídico protegido pelo crime em apreço é, essencialmente, a realização ou administração da justiça como função do Estado, sendo elementos objectivos do tipo (enquanto modelo de comportamento proibido por lei), no que concerne ao caso que ora nos ocupa, (i) o agente se encontrar investido num dada função processual (a de testemunha) e (ii) prestar uma declaração falsa, (iii) após ter prestado juramento e sido advertido das consequências penais a que se expõe por autoridade com competência I.

1 A. Medina de Seiça, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, 2001, Coimbra Editora.

Quanto ao tipo subjectivo de ilícito, trata-se de um tipo doloso, que exige a verificação de dolo genérico em qualquer das suas modalidades.

Ora, da matéria de facto dada como provada resulta que o arguido, quando foi inquirido na qualidade de testemunha, prestou dois depoimentos absolutamente contraditórios entre si, donde se retira a falsidade de um dos mesmos.

Contudo, não foi possível determinar que a falsidade tenha sido cometida em sede de audiência de julgamento, ou seja, após ter sido advertido de que se faltasse à verdade na qualidade de testemunha incorreria na prática de um crime de falsas declarações.

Assim, facilmente se constata que a conduta do arguido não preenche o tipo objectivo do crime de falsidade de testemunho na sua forma qualificada, prevista no n.º 3 do artigo 360.° do Código Penal, pelo que, não se encontrando preenchido o elemento qualificativo do tipo de ilícito pelo qual o arguido vem acusado, deverá o mesmo ser condenado pelo tipo de ilícito base (constante do n.º 1 do artigo 360.° do Código Penal), cujos elementos típicos estão preenchidos.

Com efeito, conforme se considerou no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30/01/2008, "preenche o tipo objectivo do crime de falsidade de testemunho a testemunha que, sobre a mesma realidade, presta dois depoimentos antagónicos, ainda que não se apure qual deles é o falso" (in www.dgsi.pt). Também o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18/05/2011 considerou que: "1. É irrelevante para a verificação do tipo a circunstância de se não ter apurado em qual das ocasiões o ora recorrente faltou à verdade, se quando prestou declarações em inquérito, se quando prestou depoimento em audiência. 2. O requisito material ou objectivo que condiciona a verificação do tipo legal previsto no art. 360°, n° 1, do Código Penal, na vertente do depoimento testemunhal, é a prestação de depoimento falso, elemento que está indesmentivelmente comprovado, já que tendo o recorrente prestado declarações díspares naquelas duas ocasiões, não restam dúvidas de que num dos depoimentos faltou à verdade.

3. Esta determinação alternativa dos factos constitui uma excepção ao funcionamento do princípio in dubio pro reo, sofrendo apenas os limites decorrentes do princípio da legalidade e os decorrentes da eventual verificação da prescrição relativamente a uma das incriminações (não necessariamente a mais antiga), já que no caso de factos temporalmente distanciados, a determinação alternativa nos termos preconizados não poderá funcionar em desfavor do arguido" (in www.dgsi.pt).

Resultam, portanto, inequivocamente preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, n.º 1, do Código Penal.

Desta forma, uma vez que não se verificam quaisquer causas que justifiquem a ilicitude dos factos ou excluam a culpa do agente, importa concluir que o arguido incorreu na prática deste crime.

3.2. - Da Medida Concreta da Pena

Feito o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, importa determinar a natureza e medida da sanção a aplicar.

O crime de falsidade de depoimento é punido com pena de prisão de seis meses a três anos ou com pena de multa de 60 a 360 dias (artigos 41.°, n.º 1, 47.°, n.º 1 e 360.°, n.º 1, do Código Penal).

Quanto à escolha da pena, dispõe o artigo 70.º do Código Penal que "se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição": a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (artigo 40.°, n.º 1 do Código Penal). Nestes termos, são essencialmente razões de prevenção geral e especial, e não de culpa, que devem reger a escolha da pena.

Relativamente às necessidades de prevenção geral, é de salientar que as mesmas são acentuadas, atendendo ao elevado e crescente aumento de falsas declarações prestadas perante órgãos de polícia criminal e autoridades judiciais que actualmente se faz sentir, sendo que as necessidades de prevenção especial são mais reduzidas, tendo em conta que o arguido não regista antecedentes criminais e encontra-se socialmente inserido.

Deste modo, consideramos que, no presente caso, a pena de multa realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que damos preferência à mesma.

Quanto à medida da pena, esta há-de ser determinada "em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção, no caso concreto, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra ele, conforme resulta das disposições conjugadas dos artigos 40.º e 71.º do Código Penal.

Identificados os normativos que nos hão-de orientar na determinação concreta da pena e tendo em conta as necessidades de prevenção geral e especial, cumpre determinar a medida da pena no caso concreto, para o que cumpre valorar as seguintes circunstâncias:

- O grau de ilicitude do facto é médio, tendo em conta a natureza, conteúdo, circunstâncias e importância das falsas declarações prestadas pelo arguido, bem como o objectivo visado pelas mesmas;

- O dolo do arguido é directo, porquanto voluntaria e conscientemente quis prestar um depoimento que sabia ser falso;

- Quanto às condições pessoais do arguido, apurou-se que o mesmo é pedreiro e encontra-se desempregado, fazendo uns biscates dos quais retira mensalmente cerca de € 500/600; vive com a companheira, que não exerce actividade profissional remunerada, e um filho maior, que se encontra a seu cargo, em casa própria, pela qual paga mensalmente de empréstimo bancário o montante de € 120;

- O arguido não regista antecedentes criminais.

Deste modo, ponderando a culpa do arguido, bem como as necessidades de prevenção geral e especial, o Tribunal considera adequado e suficiente fixar a pena de multa a aplicar ao arguido em 120 dias, cabendo agora determinar o quantitativo diário da mesma.

A este propósito, refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/11/2002, em que é relator Cid Geraldo, que "se a aplicação concreta da pena de multa, quanto ao seu quantitativo diário, não deve representar uma disfarçada forma de absolvição ou isenção da pena, não é legítimo cair em uma atitude de sinal contrário, sendo certo que terá de (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/0312007, em que é relator Simas Santos, in www.dgsi.pt.) constituir um sacrifício real para o condenado, de modo a criar-lhe um sentimento de segurança, utilidade, punibilidade e justiça" (in www.dgsi.pt).

No mesmo sentido, também o Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão de 24/02/2016 (disponível na mesma base de dados), defendeu que "a variação da taxa diária visa assegurar o princípio da igualdade de ónus e sacrifícios e consequente eficácia preventiva da pena de multa, de forma a esbater a crítica de que o impacto desta pena nos condenados não é homogéneo, variando em função dos meios económicos de cada um (…). A multa, enquanto pena criminal, deve sempre representar um sacrifício para o condenado, porém, não pode retirar-lhe o mínimo necessário e indispensável à satisfação das suas necessidades básicas e às do seu agregado familiar".

Assim, face à situação económica do arguido que resulta da matéria de facto provada, mostra-se adequado fixar o quantitativo diário em € 6, perfazendo a quantia de € 720.


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  III. Apreciação do Recurso

A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (cfr. artigos 363° e 428º nº 1 do Código de Processo Penal).

Mas o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso.

Vistas as conclusões do recurso, as questões a apreciar são as seguintes:

- Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto;

- Se a sentença padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

- Se ocorre violação do princípio in dubio pro reo;

- Se a factualidade provada não integra a prática do imputado crime.

Apreciando:

Da impugnação da matéria de facto

O recorrente impugna a decisão proferida sobre matéria de facto no seguinte segmento dos factos provados que, no seu entendimento, devem ser considerados não provados:

- O arguido agiu com o propósito concretizado de faltar à verdade, prestando declarações falsas, e dessa forma dificultar a acção da justiça e o apuramento da verdade material, o que quis e conseguiu.

- Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Configura o recorrente como erro de julgamento o que denomina de divergência entre o que foi dado como provado e não provado, parecendo ser sua tese que a prova dos factos que impugna apenas seria possível caso se houvesse provado em qual dos dois momentos em causa prestou o arguido depoimento falso, prova que não resulta dos meios de prova analisados e que foram apenas as certidões das declarações prestadas em dois diferentes momentos processuais.

Do ponto de vista puramente fáctico, e só esse neste momento interessa, os factos provados que o recorrente não impugna e que se extraíram das certidões mencionadas, são elucidativos no sentido de que em duas ocasiões diferentes do mesmo processo o arguido prestou depoimentos de conteúdo diferente e com afirmações antagónicas, o que segundo as regras da experiência, indica sem qualquer dúvida que pelo menos num dos referidos momentos o arguido faltou à verdade.

Ou seja, a própria formulação do princípio de livre apreciação de prova no sentido de que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (artigo 127º do Código de Processo Penal) permite que do confronto entre factos objectivos analisados segundo as regras da experiência se extraiam outros, quer objectivos quer subjectivos, como ocorreu no caso em relação aos factos subjectivos impugnados, no pressuposto que nos parece indesmentível de que o arguido sabia que num dos referidos momentos faltou à verdade querendo actuar como actuou e sabendo das implicações da mesma para a realização da justiça.

A prova da subjectividade da conduta tal como se encontra descrita e provada não dependia da concretização de qual dos depoimentos não corresponde à verdade, não ocorrendo qualquer contradição ou incompatibilidade entre factos provados e não provados.

Não vislumbramos, pois, a existência do apontado erro de julgamento da matéria de facto.

Do alegado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

Preceitua o artigo 410º, nº 2, a) e b) do Código de Processo Penal que «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da sentença recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

Imediatamente importa reter que estamos perante vícios que se evidenciam através do texto da própria decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência, sem apelo a elementos a ela externos como o conteúdo da prova produzida.

Alega o recorrente a existência do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada porque, segundo o seu entendimento, as duas certidões juntas aos autos não são suficientes para a prova dos factos desfavoráveis ao arguido.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal) ocorrerá, como ensinam Simas Santos e Leal-Henriques, em Código de Processo Penal Anotado, quando exista “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.

Porventura, melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito porque o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final, sendo tal patente da leitura da decisão.

Não vislumbramos resultar da decisão recorrida que o Tribunal tenha deixado de investigar qualquer facto relevante e que o mesmo esteja em falta como pressuposto da decisão de direito proferida. Aliás, manifesto é que o recorrente confunde o vício de insuficiência com o que, no seu entendimento, se traduz em insuficiência da prova produzida.

Não padece a decisão recorrida do alegado vício.

Da alegada violação do princípio in dubio pro reo

O recorrente alega que o Tribunal ao dar como provada a intenção do arguido no contexto em que o fez violou o princípio in dubio pro reo e o princípio da presunção de inocência de que deriva.

Duas vias recursivas existem para o reconhecimento da invocada violação:

- a impugnação da matéria de facto, destinada ao reconhecimento de um erro de julgamento através do confronto do teor concreto da prova produzida, quando se constate que esta não permite juízo de certeza sobre o facto desfavorável ao arguido;

- a ocorrência de vício de erro notório na apreciação da prova, quando tal violação resulta do próprio texto da decisão recorrida porque foi exposto raciocínio de dúvida sobre determinado facto, resolvido em desfavor do arguido.

Como já resulta do exposto a propósito do invocado erro de julgamento, a falta de prova de qual dos depoimentos não corresponde à verdade não implicava a falta de prova sobre o facto de o arguido ter faltado à verdade numa das ocasiões e de o ter feito de modo deliberado e consciente, pelo que não ocorre violação do princípio em causa.

Por outro lado, o erro notório na apreciação da prova, é aquele que é de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum, na leitura do texto da decisão recorrida ainda que conjugada com as regras da experiência comum e pode traduzir-se na violação do princípio contido no artigo 127º do Código de Processo Penal (o tribunal dá como provado facto que afronta ostensivamente as regras da experiência) como na violação do princípio in dubio pro reo (quando o tribunal expressa juízo de dúvida sobre determinado facto desfavorável ao arguido e, não obstante, considera-o provado).

Ora, encontra-se exposto na decisão recorrida um juízo de certeza sobre a ocorrência dos factos que as provas analisadas permitem. Do texto da decisão recorrida não se extrai a existência de violação do princípio in dubio pro reo com assento constitucional no artigo 32º invocado ou de qualquer outro princípio probatório.

Estando a decisão recorrida isenta de qualquer vício e perante a improfícua impugnação de facto realizada, importa considerar assente a matéria de facto que dela consta.

Do crime de falsidade de testemunho

Entende o recorrente que a factualidade provada não é susceptível de integrar a imputada prática do crime de falsidade de depoimento p. e p. pelo artigo 360º, nº 1 do Código Penal porque não preenche os respectivos elementos típicos.

Certo é que comete o crime de falsidade de depoimento quem como testemunha perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova depoimento, prestar depoimento falso.

A circunstância de não se ter provado em que momento o arguido faltou à verdade não pode afastar a conclusão de que a prestação de depoimentos divergentes em dois momentos distintos integra, ainda assim, todos os elementos do tipo de crime em causa, como já nos pronunciámos no Acórdão desta Relação de 29.2.2012, proferido no processo 910/09.0TACTB.C1, publicado em www.dgsi.pt por adesão ao Acórdão desta Relação de 28.9.2011, proferido no processo 157/10.8TAMMV.C1, relatado pelo Exmº Desembargador Paulo Guerra (publicado em www.dgsi.pt) a propósito de questão semelhante, onde se expendeu o seguinte:

"O que se passa é que o arguido mentiu num dos dois momentos processuais.
Com efeito, é inquestionável que o arguido mentiu, sendo tal mentira relevante em termos penais e resultando despiciendo pesquisar em que momento o fez.

Não se diga que tal indagação é necessária: é certo que o momento será importante para se aferir, por exemplo, de uma prescrição; mas por outro lado, o que interessa pesquisar é a razão da mentira, como foi proferida, como ocorreu e quando existiu (sendo lícito deixar em aberto o momento concreto, pois que de uma das vezes foi o crime cometido).

O arguido prestou, em dois momentos processuais distintos, depoimentos contraditórios e antagónicos.

Só que o tribunal não logrou apurar em qual dos dois momentos o arguido mentiu; porém, esse hiato só releva, como já se viu, para a determinação do momento da consumação do crime, sendo porém certo que este está consumado: com efeito, num dos momentos o arguido preencheu os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual está acusado, assim prestando depoimento falso, dolosamente.

Neste caso concreto, a falta de determinação do momento da prática e da consumação do ilícito não tem qualquer consequência processual ou substantiva, tendo-se por assente que o crime foi realmente cometido.

Também nesta vertente, não é caso de se usar do princípio in dubio pro reo, nem há lugar à conclusão de existência de insuficiência para a matéria de facto provada, no sentido de se não lograr obter um juízo seguro que permita a condenação do arguido. Como defendeu o Acórdão da Relação do Porto de 22/11/2006 «A questão que, antes de mais, tem de ser colocada consiste em saber qual a consequência jurídica que deve decorrer do facto de não ter sido possível ao tribunal apurar em que momento o recorrente cometeu uma falsidade de testemunho.

Com efeito, e como já dissemos, não subsistem dúvidas em face dos factos dados por provados de que em dois momentos processuais distintos, o recorrente, sujeito a um dever processual de verdade e de completude, prestou depoimentos divergentes e até antagónicos sobre a mesma realidade.

A realidade sobre que recaíram os dois depoimentos é só uma, mas os depoimentos prestados, nos dois momentos processuais, são discrepantes, entre si, e relatam realidades distintas. Por isso, em algum desses momentos processuais ocorreu uma contradição entre o depoimento prestado e a verdade histórica objectiva.

A narração do recorrente, em algum desses momentos, afastou-se da verdade objectiva, dele conhecida, violando, desse modo, o bem jurídico protegido: a realização da justiça como função do Estado, a qual requer a contribuição de todos os intervenientes processuais para o esclarecimento da factualidade relevante em ordem à correcta decisão.

O tribunal não conseguiu apurar em que momento processual o recorrente prestou o depoimento falso, mas tal falta de determinação, apenas releva para a determinação do momento de consumação do crime.

A consumação existe sempre que a declaração diverge da realidade objectiva.
Apurado que num dos momentos processuais o recorrente com a sua conduta preencheu os elementos objectivo (falsidade do depoimento) e subjectivo do tipo (sabendo que o conteúdo do seu depoimento era objectivamente falso – dolo), o tipo de ilícito está perfeitamente preenchido.

O facto de não se ter apurado se o crime foi cometido ou no dia 9 de Junho de 2003 ou no dia 26 de Outubro de 2001 não acarreta, como consequência, que não se possa ter por assente que o crime foi cometido. O crime foi, efectivamente, cometido, só não se sabe em que data o foi.

A não fixação da data de consumação do crime não impõe nem a absolvição da recorrente, por apelo ao princípio in dubio pro reo, nem traduz uma qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, no sentido de tornar impossível um juízo seguro de condenação.

O juízo seguro de condenação decorre da prova de que o recorrente, sujeito a um dever processual de verdade e de completude, prestou, em dois momentos processuais, depoimentos divergentes sobre a mesma realidade. O facto de o tribunal não ter logrado apurar a verdade objectiva, conhecida do recorrente (e, daí, não ter conseguido determinar em que momento foi cometida a falsidade) não prejudica uma convicção de certeza sobre a acção típica).

A certeza sobre a data de consumação do crime não é um requisito indispensável ao preenchimento do tipo-de-ilícito.

A incerteza sobre a data de consumação do crime só poderá relevar para certos efeitos jurídicos, v.g., de consideração de uma eventual prescrição do procedimento criminal ou de aplicação de uma hipotética lei de amnistia, devendo, para esses efeitos, a incerteza sobre a data de consumação sempre ser valorada a favor do recorrente, pela aceitação daquela que lhe seja mais favorável».

- no recurso nº 4016/04-4 -, «a certeza sobre a data de consumação do crime não é requisito indispensável ao preenchimento do tipo-de-ilícito», contrariando-se assim a doutrina explanada por Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário ao CP (fls 848). Também esta Relação de Coimbra assim decidiu em decisão sumária datada de 18/5/2011 (Pº 195/09.8T3AVR.C1):

«Por outro lado, é irrelevante para a verificação do tipo a circunstância de se não ter apurado em qual das ocasiões o ora recorrente faltou à verdade, se quando prestou declarações em inquérito, se quando prestou depoimento em audiência. O requisito material ou objectivo que condiciona a verificação do tipo legal previsto no art. 360º, nº 1, do Código Penal, na vertente do depoimento testemunhal, é a prestação de depoimento falso, elemento que está indesmentivelmente comprovado, já que tendo o recorrente prestado declarações dispares naquelas duas ocasiões, não restam dúvidas de que num dos depoimentos faltou à verdade. E nem se diga, como o faz o recorrente, que nestas circunstâncias deveria ter sido absolvido em homenagem ao princípio in dubio pro reo. Este é um daqueles casos “em que o juiz não logra esclarecer, em todas as suas particularidades juridicamente relevantes, um dado substrato de facto, mas em todo o caso o esclarece suficientemente para adquirir a convicção de que o arguido cometeu uma infracção, seja ela em definitivo qual for (…). Nestes casos ensina-se ser admissível, dentro de certos limites, uma condenação com base em uma comprovação alternativa dos factos”. Esta determinação alternativa dos factos constitui uma excepção ao funcionamento do princípio in dubio pro reo, sofrendo apenas os limites decorrentes do princípio da legalidade e os decorrentes da eventual verificação da prescrição relativamente a uma das incriminações (não necessariamente a mais antiga), já que no caso de factos temporalmente distanciados, a determinação alternativa nos termos preconizados não poderá funcionar em desfavor do arguido».

Ou seja, mentiu numa das vezes o arguido, sendo falsa toda a declaração que respeita a matéria sob dever de verdade e não corresponde à verdade histórica – e só isso releva para a perfectibilização do crime, para a conclusão de que o arguido violou o bem jurídico que se pretende proteger, ou seja, a realização da Justiça!"

(fim de transcrição)

Continuamos a acolher esta argumentação que expressa o entendimento que tem sido seguido nesta Relação (veja-se ainda o Acórdão de 30/10/2013, relatado pelo Exmº Desembargador Fernando Chaves) pelo que concluímos ter o arguido cometido o crime por que foi condenado, importando manter a sua condenação.


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IV. Decisão

Nestes termos acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo integralmente a sentença recorrida.

Pelo seu decaimento em recurso condena-se o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça devida em 3,5 UC (cfr. artigos 513º, nº 1 do Código de Processo Penal e 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais).


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Coimbra, 12 de Julho de 2017

(Texto elaborado e revisto pela relatora)

(Maria Pilar de Oliveira – relatora)

(José Eduardo Martins - adjunto)