Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA PILAR DE OLIVEIRA | ||
Descritores: | TIPICIDADE FALTA FACTOS ACUSAÇÃO ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO | ||
Data do Acordão: | 04/27/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | VISEU (SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA INSTÂNCIA LOCAL DE MANGUALDE - J1) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 32.º, N.º 5, DA CRP; ARTS. 283.º, N.º 3, AL. B), E 359.º, DO CPP | ||
Sumário: | I - Se a descrição fáctica da acusação não integra ilícito penal, está inexoravelmente afastada a possibilidade de o julgador suprir a falta de factos integradores do tipo - no caso, subjectivo - de qualquer crime, com recurso às normas dos artigos 358.º e 359.º do CPP. II - Na referida situação, torna-se impossível a imputação de crime diverso, porque estaríamos então perante a imputação ao arguido de um crime “ex novo” e não diverso. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Relatório No processo comum singular 42/13.6TARSD da Comarca de Viseu, Instância Local de (...) , Secção Criminal, J1, após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença em 15 de Julho de 2015 com o seguinte dispositivo: Por todo o exposto, julgo a acusação pública totalmente procedente, por provada, e em consequência, decido: Condenar o arguido A... , pela prática em autoria material e na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança qualificado, previsto e punido pelos artigos 14º nº 1, 26º, 30º nº 2 e 205°, n.ºs 1 e 4 al. b) do C. Penal pena de prisão de 3 (três) anos, a qual decido suspender na sua execução por igual período de 3 (três) anos, de acordo com o disposto nos artigos 50º nºs 1, 2 e 5, C. P. e subordinada ao dever de o arguido pagar ao Banco C... , S.A. pelo menos metade do valor pelo mesmo peticionado a título de indemnização civil, ou seja, € 22.000,00 (vinte e depois mil euros), o que deverá ocorrer durante o prazo da suspensão (3 anos), comprovando tal pagamento nos autos, de acordo com o disposto no artigo 51 º nº 1 alínea a) do C. Penal. Condenar o arguido A... , no pagamento das custas do processo e individualmente no pagamento da taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UC (artigos 513º nºs 1 a 3, 514º e 524º do Código de Processo Penal e artigo 8º nº 9 do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-lei n° 34/2008 de 26/02 por referência à tabela III).
Mais decido: Julgar o pedido de indemnização civil totalmente procedente por provado e em consequência condenar o arguido A... a pagar ao demandante Banco C... , S.A. a quantia de 44.000,00 (quarenta e quatro mil euros), a título de indemnização civil pelos danos patrimoniais perpetrados com a prática do crime referido em a), a que deve ainda acrescer o valor dos juros vencidos, calculados à taxa legal de 4%, desde a notificação ao arguido do pedido de indemnização civil (artigos 805° n° 2 alínea b) e 3 e 806° do C. Civil e Portaria n° 291/03, de 08.04) e vincendos até efectivo e integral pagamento. Custas do pedido cível pelo arguido A... (artigos 523° do CPP e 527° nOs 1 e 2 do CPC).
Inconformado com esta decisão dela recorreu o arguido A... , rematando a correspondente motivação com as seguintes conclusões: 1 - Enquanto funcionário bancário do “Banco C... , S.A.”, o arguido foi condenado no crime de abuso de confiança qualificado alegadamente por ter efetuado três transferências bancárias não autorizadas nem motivadas, entre as seguintes contas bancárias, todas elas sediadas no identificado “Banco C... , S.A.”: • Transferência no valor de 3.000,00€ da conta n.º (...) de D... para a conta n.º (...) de E... ; • Transferência no valor de 28.500,00€ da conta n.º (...) de D... para a conta n.º (...) de H... ; • Transferência no valor de 8.331,37€ da conta n.º (...) da conta de D... para a conta n." (...) de " J... , Lda."; 2 - Do ponto de vista da análise dos pressupostos do crime em questão resulta evidente que não resultou provado que o cliente D... ou o “Banco C... , S.A.” tenham entregue ao arguido qualquer coisa móvel, nomeadamente dinheiro, por título não translativo da propriedade, daí que nesta parte não se verifica o pressuposto de que a lei penal faz depender a verificação do crime de abuso de confiança; Sendo que, e apesar disso, 3 - O Tribunal a quo considerou que o proprietário do dinheiro transferido (39.831,37€) era o “Banco C... ”, o qual confiou ao arguido por este ter domínio funcional e poder de disposição sobre os fundos correspondentes aos saldos das contas do cliente D... , tendo assim o arguido, enquanto funcionário bancário, e mercê das transferências processadas, violado a relação de fidúcia existente entre o Banco seu empregador; No entanto, 4 - Não resulta da matéria de facto provada quais as concretas funções e atribuições laborais que estavam adstritas ao arguido, nem sequer que o “Banco C... , S.A.” lhe confiou os fundos das contas do cliente D... , e muito menos que lhas entregou nos termos e para efeitos previstos no artigo 205º, n.º 1, do Código Penal; Aliás, 5 - Da matéria de facto considerada provada também não resulta que o “Banco C... , S.A.” tenha conferido ao arguido domínio funcional e poder de disposição sobre as identificadas contas bancárias, não se sabendo nem descortinando sequer a que título; Daí que, 6 - Em face da matéria de facto considerada provada não resultou demonstrado os pressupostos de que a lei penal faz depender a verificação do crime de abuso de confiança correspondente à entrega de coisa móvel por título não translativo da propriedade; Além disso, 7 - Da matéria de facto considerada provada também não se poderá concluir que o arguido se apropriou das quantias em questão, pois que desde logo não resultou provado com que motivação é que o arguido terá alegadamente processado as transferências em causa, nem muito menos que tenha transferido os valores em causa para a sua disponibilidade e património, inexistindo nos autos qualquer facto provado de onde se possa extrair qualquer enriquecimento ou benefício ilegítimo do arguido; Mas mais importante, 8 - Se a apropriação se revela através do ato ou atos de apropriação dos quais se verifique uma deslocação da propriedade, o certo é que as alegadas e imputadas três transferências foram todas elas processadas para as identificadas contas ( (...) , (...) e (...) ) todas do “Banco C... , S.A.”, enquanto proprietário dos respetivos dinheiros; Ou seja, 9 - Os dinheiros saíram das contas de D... , sendo o Banco o proprietário do dinheiro, e entraram nas contas de E... , H... e " J... , Lda.", continuando o "Banco C... , S.A." como proprietário dos dinheiros aí existentes e, por isso, nenhuma deslocação de propriedade se verificou; 10 - O que se deixa exposto reveste manifesta pertinência em face do depoimento de I... , legal representante da empresa “ J... , Lda.”, o qual no depoimento que prestou em audiência no dia 02 de Junho de 2015, declarou inequivocamente que apesar da identificada transferência ter sido processada, o "Banco C... , S.A.", enquanto proprietário do dinheiro, lhe retirou da conta a indicada quantia de 8.331,37€, com a argumentação de que tal transferência fora indevidamente processada, tal como resulta da seguinte passagem do seu depoimento: • Passagem com início ao minuto 07:06 e termo ao minuto 08:03; 11 - Resulta assim evidente que o “Banco C... , S.A.” ao reter/retirar a quantia que foi transferida para a firma “ J... , Lda.” atuou como proprietário do dinheiro das contas, inexistindo qualquer deslocação da propriedade mercê das transferências alegadamente processadas pelo arguido; Desta forma, 12 - Não se poderá também concluir como se afirma na sentença recorrida, que o arguido se apropriou das quantias derivadas das identificadas transferências, integrando-as no seu património, o que fez comportando-se como se fosse o proprietário do dinheiro; trata-se de uma mera conclusão que não se mostra alicerçada em factos concretos, sendo que da factualidade provada não resulta que o arguido tenha praticado qualquer ato objetivamente idóneo e concludente, nos termos gerais - “uti dominus”, sendo exatamente nesta realidade objetiva que se traduz a “inversão do título de posse ou detenção” e é nela que se traduz e se consuma a apropriação; 13 - Porque assim não decidiu, o Tribunal a quo violou o preceituado no artigo 205º, n.º 1, do Código Penal; Por outro lado, 14 - Apesar do arguido ter negado a prática dos factos, na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, e mediante o recurso a prova indireta e indiciária, considerou o Tribunal a quo que foi o arguido que efetuou as identificadas transferências bancárias através da utilização do seu “user”, ou seja do código que lhe permitia o acesso ao sistema informático interno do “Banco C... , S.A.”; Neste enquadramento, 15 - O arguido negou a prática dos factos, sendo que tal como foi reconhecido na motivação processada pelo Tribunal a quo não foi produzida qualquer prova direta nos autos, nomeadamente testemunhal, donde se pudesse extrair que foi o arguido que processou as identificadas transferências mediante a utilização da sua “user”; 16 - Por outro lado, e também como foi reconhecido na motivação processada pelo Tribunal a quo, não resulta da matéria de facto considerada provada, ou de qualquer outro elemento do processo, com que motivação e intenção terá agido o arguido, sendo certo que também não resultou provado que o arguido tenha integrado no seu património as quantias referentes às transferências bancárias; Além disso, 17 - Também não resultou sequer provado que o arguido tenha tido qualquer benefício com a realização das transferências, nomeadamente e a título exemplificativo, recebendo contrapartidas dos beneficiários das transferências; Outrossim, 18 - Resulta da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto que o Tribunal a quo formou a sua convicção no sentido de que foi o arguido que efetuou as transferências por as mesmas terem sido efetuadas com o seu código pessoal, por o arguido ter tido de alguma forma participação ou contacto com os beneficiários, e tendo por referência e suporte os depoimentos das testemunhas D... , H... e I... ; Isto posto, 19 - Atenta a falta de prova da motivação com que o arguido terá agido, e a completa ausência de prova no que respeita a benefícios ilegítimos pelo mesmo auferidos com as identificadas transferências bancárias, haverá que conceder que a prova indiciária indicada pelo Tribunal a quo não é suficientemente firme, segura e sólida para através dela se estabelecer a conclusão considerada provada de que foi efetivamente o arguido que procedeu às transferências em questão; 20 - É certo que as transferências foram efetuadas com a “user” do arguido, traduzido num código pessoal e intransmissível, tal como por este foi aceite em audiência de julgamento, mas daí não se poderá retirar a conclusão de que tal código, mercê da sua utilização diária, não é suscetível de ser visionado, decifrado e/ou apreendido por outrem; 21 - Note-se que, e tal como se reconheceu na motivação processada, com o arguido trabalhavam mais três funcionários, em agência de reduzidas dimensões, existindo entre todos uma relação de confiança, e sendo certo que era frequente e constante a utilização diária por cada um deles da sua “user”, e entre 5, 20 ou 30 vezes por dia, tal como resultou do depoimento da testemunha B... , na seguinte passagem: • Passagem com início ao minuto 27:30 e termo ao minuto 31:15; 22 - Sendo, pois, de conceder, segundo as regras da experiência comum que a “user” do arguido pudesse ser visionada e decifrada, atenta a sua frequente utilização em conjugação com as descritas condições de trabalho; Por outro lado, 23 - Se nos debruçarmos sobre cada uma das transferências processadas, em conjugação com a falta de prova no que respeita à motivação do arguido e à ausência de benefícios com a realização das mesmas, é de conceder segundo as regras da experiência comum que resultem sérias dúvidas de que tenha sido o arguido o respetivo autor; 24 - É que não se poderá olvidar que durante mais de 10 (dez) anos, o "Banco C... , S.A." confiou ao arguido as funções de diretor comercial do balcão de (...) , sem qualquer antecedente semelhante conhecido; 25 - Não se justificando à luz das regras da experiência comum que o arguido, ocupando há largos anos um cargo bancário de responsabilidade, tenha efetuado a identificada transferência bancária (3.000,00€) a favor de E... e mulher F... , pois que nem sequer os conhecia, nem nunca com eles tratou qualquer assunto bancário, por os mesmos se dirigirem apenas ao funcionário G... , sendo que até foi este funcionário G... que lhes prometeu a reposição dos juros relativos ao resgate antecipado, tal como resulta das seguintes passagens do depoimento de E... : • Passagem com início ao minuto 06:12 e termo ao minuto 08:01; E do depoimento de F... : • Passagem com início ao minuto 00:57 e termo ao minuto 01:37; • Passagem com início ao minuto 05:38 e termo ao minuto 06:34; • Passagem com início ao minuto 12:22 e termo ao minuto 13:04; Outrossim, 26 - Também não é de todo crível segundo as regras da experiência comum que o arguido, na qualidade de diretor de balcão, tenha efetuado a identificada transferência bancária a favor de H... no avultado montante de 28.500,00€, com o qual não tinha qualquer relação de amizade, sem qualquer contrapartida de juros, e em altura em que esta testemunha, segundo declarou, já tinha crédito bancário hipotecário aprovado pelo "Banco C... , S.A."; Mas mais, 27 - É de todo antagónico com as regras da experiência comum que esta testemunha com problemas de restruturação de dívidas bancárias por virtude de incumprimentos, declare ao Tribunal que pretendia contratar com o Banco um empréstimo no montante de 28.500,00€, que se propunha pagar o mesmo em largo decurso temporal superior a 10 (dez) anos, e que por virtude da identificada transferência, aliás não solicitada pelo mesmo, tenha pago esse exato valor ao arguido no prazo de 1 (um) ano, sem juros, e em 4 (quatro) prestações, e sem qualquer documento de suporte que sustente tal contratação ou pagamentos alegadamente processados, tal como resulta das seguintes passagens do seu depoimento: • Passagem com início ao minuto 00: 19 e termo ao minuto 00:32; • Passagem com início ao minuto 04:25 e termo ao minuto 05:34; • Passagem com início ao minuto 01:03 e termo ao minuto 03:12; • Passagem com início ao minuto 05:35 e termo ao minuto 07:55; • Passagem com início ao minuto 11:10 e termo ao minuto 14:23; • Passagem com início ao minuto 16:20 e termo ao minuto 19:07; • Passagem com início ao minuto 23:59 e termo ao minuto 25:30; • Passagem com início ao minuto 26:07 e termo ao minuto 26:45; De facto, 28 - Este depoimento revelou-se manifestamente contra a lógica das coisas, e do senso comum, sendo que por não ter o mínimo de sustentação, nomeadamente documental, são variadas as ocasiões em que o Tribunal a quo também manifestou a estranheza do respetivo relato, pelo que não poderá ser minimamente valorado; Por fim, 29 - Resta-nos a transferência a favor de “ J... , Lda.” no indicado valor de 8.331,37€, suportado no depoimento do seu legal representante I... , sendo que, nesta parte, haverá também que atentar que o empréstimo a título pessoal no exato valor de 8.331,37€ que o identificado I... refere ter processado ao arguido não encontra expressão em qualquer prova, nomeadamente documental, nem sequer se apurou a proveniência e o destino desse exato montante de 8.331,37€, pelo que o Tribunal a quo apenas e só deveria ter considerado o alegado mútuo como inexistente, é o que resulta do seu depoimento, nas seguintes passagens: • Passagem com início ao minuto 11:32 e termo ao minuto 12:29; • Passagem com início ao minuto 13: 11 e termo ao minuto 13:36; • Passagem com início ao minuto 15:02 e termo ao minuto 15:30; • Passagem com início ao minuto 16:16 e termo ao minuto 18: 17; Aliás, 30 - Ao contrário do referido por esta testemunha não resulta sequer do documento a que faz referência, e constante de fls. 1355 dos autos que o arguido aí tenha confessado a existência de qualquer mútuo que lhe tenha sido processado; Acresce que, 31 - Para além de decorrer da experiência comum que são os particulares que solicitam os empréstimos aos Bancos, e não o contrário, o certo é que também não se poderá desassociar do depoimento desta testemunha a circunstância que é suscetível de condicionar o seu depoimento inerente ao facto do Banco lhe ter retirado o dinheiro da conta ( os 8.331,37€), na sequência do que procedem à instauração de processo judicial (n.º 84/13.1 TARSD), tal como resulta, nesta parte, da fundamentação da decisão da matéria de facto; Além disso, 32 - Quanto a esta identificada transferência, haverá que notar que a mesma foi primitivamente autorizada pelo funcionário B... no uso da respetiva “user”; Sendo que, nesta parte, 33 - A motivação processada pelo Tribunal a quo não afasta a possibilidade de ter sido o funcionário B... a processar a transferência a favor da sociedade “ J... , Lda.”, ainda que no uso da “user” do arguido, pois que não faz sentido de acordo com a gravidade dos factos que esta testemunha que teve intervenção nesta identificada transferência se limite a declarar ao Tribunal, assim se defendendo, que não se recordava da mesma; 34 - E esta testemunha foi insistentemente indagada sobre esta situação, remetendo-se a um singelo desconhecimento, alegando desconhecer a documentária de suporte, tarefa que estava a seu cargo no fecho do dia, tal como resulta da seguinte passagem do seu depoimento na seguinte passagem: • Passagem com início ao minuto 20:49 e termo ao minuto 26:28; Acresce que, 35 - No que se reporta ao depoimento de D... , haverá que notar que o mesmo apenas meses depois, teve participação no sucedido mediante apresentação de reclamação junto do "Banco C... , S.A.", não sendo de conceder que do “empate da situação” por parte do arguido, e a não participação do sucedido aos seus superiores hierárquicos se possa retirar a conclusão segura e sólida de que foi o arguido que de facto efetuou as transferências, até porque é inegável e facto assente que as mesmas foram operadas mediante utilização da sua “user” e alegadamente com o desconhecimento deste e sem possibilidade de demonstração do contrário; Daí que, 36 - Através do recurso a prova indireta e indiciária, não poderia o Tribunal a quo ter dado como assente a factualidade vertida nas alíneas 7), 9), 10) e 11) da matéria de facto considerada provada no sentido de que foi o arguido que procedeu à realização das identificadas transferências, sendo tal conclusão duvidosa e sem suporte probatório, e tal como processou nos identificados pontos da matéria de facto, o que expressamente se impugna requerendo-se a sua valoração “ex novo”; 37 - Desta forma, e nesta parte, deveria o Tribunal a quo ter dado prevalência ao princípio "in dubio pro reo" que assim se mostra violado, pois que os meios probatórios supra descritos e em que o Tribunal alicerçou a sua convicção não suportam a conclusão de que foi o arguido que procedeu às transferências bancárias; 38 - Porque assim não decidiu, o Tribunal a quo violou o princípio da presunção de inocência e do “in dubio pro reo” previsto no artigo 32º, n.º 1, 1ª parte da Constituição da República Portuguesa, e artigos 127º, e 355º, n.º1, ambos do Código de Processo Penal; E, assim, 39 - No que se reporta à parte criminal, o reconhecimento do supra exposto conduzirá inevitavelmente à não verificação dos elementos objetivos e subjetivos típicos do crime de abuso de confiança, pelo que se impõe a absolvição do arguido; E, 40 - A absolvição do arguido da prática do crime de abuso de confiança, por não se verificarem os elementos/pressupostos do tipo, determina também necessariamente a absolvição do arguido do pedido de indemnização civil formulado; 41 - Porque assim não decidiu, o Tribunal a quo violou o preceituado nos artigos 483°, do Código Civil, 129º, do Código Penal, e artigos 71º e 377º, do Código de Processo Penal; Sem prescindir, 42 - Ainda que assim não se entendesse, o que de todo não se concede, sempre a quantia de 8.331,37€, e respetivos juros, relativa à transferência operada a favor de “ J... , Lda.” deverá ser descontada ao montante total fixado a título de indemnização civil ( 44.000,00€); Pois que, 43 - Conforme supra exposto, relativo ao teor das declarações de I... , e ao teor do identificado processo-crime n.º 84/13.1TARSD constante dos autos e referido na motivação da decisão da matéria de facto, o "Banco C... , S.A." não ficou desapossado dessa quantia, em virtude de a ter retido/retirado a quantia transferida (8.331,37€) da conta pertencente a “ J... , Lda.”; Ainda sem prescindir, 44 - O arguido foi condenado na pena de prisão de 3 (três) anos, suspensa na sua execução por igual período de 3 (três) anos, subordinada ao dever de pagar ao “Banco C... , S.A.” pelo menos metade do valor pelo mesmo peticionado a título de indemnização civil, ou seja, 22.000,00€ (vinte e dois mil euros), o que deverá ocorrer durante o prazo de suspensão (3 anos); 45 - Ora, o Tribunal a quo não fundamentou, por qualquer forma que fosse, a decisão de impor ao arguido o pagamento ao Banco da quantia de 22.000,00€, no prazo de 3 (três) anos, como condição da execução da pena, limitando-se pura e simplesmente a exarar tal condição no dispositivo da sentença final proferida; 46 - O que implica a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, que aqui expressamente se invoca nos termos do preceituado no artigo 379º, n.º1, al. e), do Código de Processo Penal; Ainda sem prescindir, 47 - Quando o Tribunal equaciona a hipótese de condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de deveres, designadamente ao pagamento, no todo ou na parte que considerar possível, da indemnização devida ao lesado, deverá necessariamente averiguar da possibilidade de cumprimento dos deveres impostos pelo condenado, pois o artigo 51º, n.º 2, do Código Penal, consagra o "Princípio da Razoabilidade", donde se extrai que só podem ser impostos deveres que representem para o condenado obrigações cujo cumprimento seja razoável exigir-lhe; Ora, 48 - O arguido e a esposa auferem um rendimento mensal correspondente a cerca de 1.700,00€, ao qual haverá que descontar o pagamento do empréstimo bancário que ascenderá a 750,00€ mensais; 49 - É de conceder, por ser do senso comum, que do rendimento sobrante (950,00€) tenham de providenciar pelo pagamento de todas as suas demais despesas correntes, aqui incluídas a do seu filho adotivo menor, nomeadamente com alimentação, vestuário, saúde, higiene, comodidade, ensino, viatura, entre muitas outras, assim se estimando que tenham de consumir na íntegra o referido rendimento sobrante (950,00€) e à razão média de pelo menos 300,00€ mensais por cada um dos elementos do agregado familiar; Ou seja, 50 - Face aos rendimentos de que dispõe, aqui incluídos o da sua esposa, o arguido não tem capacidade financeira para cumprir no prazo fixado (3 anos) a condição imposta inerente ao pagamento de 22.000,00€, e que se traduziria no encargo mensal superior a 600,00€; Aliás, 51 - Haverá que notar que o arguido e a sua esposa já dispõem de empréstimo para pagamento da casa onde residem, e que para além de onerar em cerca de metade dos seus rendimentos, também os limita na contratação de novos empréstimos, sendo que como se referiu, o arguido e o seu agregado familiar consomem mensalmente a totalidade dos rendimentos de que dispõem, o que os impossibilita em absoluto de proceder a tal contratação; Em face do exposto, 52 - Haverá que conceder e aceitar que a condição para suspensão da pena imposta ao arguido, para além de não fundamentada, também se revela arbitrária, desproporcionada e não razoável, pelo que não se poderá manter; 53 - Porque assim não decidiu, o Tribunal a quo também violou o preceituado no artigo 51°, n.º 2, do Código Penal. E, assim, Vossas Excelências revogando a sentença de que se recorre, substituindo-a por outra que declare a absolvição integral do arguido ou, pelo menos, e se assim não entenderem, o que de todo não se concede, declarando a nulidade da sentença final proferida e a revogação da condição imposta ao arguido para suspensão da pena de prisão que lhe foi aplicada, farão a costumada JUSTIÇA.
O recurso foi objecto de despacho de admissão. Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo que falecem de razão os argumentos apresentados pelo recorrente, devendo em consequência ser na íntegra mantida a decisão recorrida. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que, acompanhando a resposta do Ministério Público, conclui que o recurso não merece provimento. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta. Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir. *** II. Fundamentos da Decisão Recorrida Na sentença recorrida foi consignada a seguinte fundamentação factual: 2.1. FACTOS PROVADOS: Com interesse para a decisão da causa, provaram-se os seguintes factos: No período compreendido entre 08.04.2002 e 12.03.2013, o arguido A... , exerceu as funções de director comercial do balcão de (...) , do Banco C... , sito na Rua (...) , em (...) . O Banco C... , S.A (doravante BST), é uma instituição de crédito que se dedica à atividade bancária. Em virtude das funções exercidas pelo arguido, o mesmo era possuidor do user C (...) , ou seja, do código pessoal e intransmissível que permitia o acesso ao sistema informático interno do BST. D... é titular da conta à ordem n.º (...) e da conta super renda mensal n.º (...) , ambas sedeadas no balcão de (...) do Banco C... . Acontece que, a 26.07.2012, D... apresenta uma reclamação escrita junto do gabinete de Inspecção do BST, no âmbito da qual reclamava a falta de fundos nas suas contas. N a sequência do que foi ordenada uma auditoria para averiguação dos factos constantes na reclamação. Na sequência dessa inspeção, apurou-se que o arguido, através da utilização do seu user, efectou as seguintes transações: a) a 26.11.2010, débito na conta à ordem n.º (...) de D... , no valor de € 3.000,00, com crédito lançado na conta à ordem n.º (...) de E... ; b) a 09.07.2009, débito na conta super renda mensal n.º (...) de D... , no valor de € 28.500,00, com crédito lançado na conta à ordem n.º (...) de H... ; c) a 15.09.2010, débito na conta super renda mensal n.º (...) de D... , no valor de € 8.331,37, com crédito lançado na conta à ordem n.º (...) de J... , Lda.; Os supra referidos lançamentos a débito nas contas tituladas por D... ascendem ao valor total de € 39.831,37. No entanto, tais operações bancárias realizadas pelo arguido, foram efectuadas sem prévia autorização do titular da conta, D... , ou sem qualquer motivo legítimo para o efeito, já que o titular da conta não tinha qualquer relação comercial, ou de outra índole, com os beneficiários das transações. Em cada um dos momentos das transações, o arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, aproveitando-se das funções por si exercidas no BST, O que facilitou a repetição da conduta, com o propósito, conseguido, de utilizar valores monetários das contas de D... , sem o consentimento e contra a vontade deste. 11. Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.
- Do Pedido de Indemnização Civil Com a sua conduta descrita em 7, o arguido causou ao cliente D... um prejuízo no valor total de € 39.831,37, tendo aquele sido ressarcido pelo Banco C... , S.A. em tal montante a que acresceram os juros devidos pelo lapso de tempo em que o mesmo ficou privado daquela quantia, no montante global de € 44.000,00. Até á presente data, o arguido não entregou qualquer quantia ao Banco demandante. Mais se provou que: O arguido é casado e nasceu em 17/12/1974. É auxiliar de serviços gerais na Santa Casa da Misericórdia e aufere cerca de € 505,00 mensais. A esposa é chefe administrativa e aufere € 1.200,00 mensais. Têm um filho adoptivo com 12 anos. Residem em casa própria a qual se encontram a pagar ao Banco, em empréstimo bancário, na quantia mensal de € 600,00 (sendo que se encontram em período de carência, após o que serão € 750,00 mensais). Tem como habilitações literárias o 12° ano de escolaridade. O arguido foi condenado por decisão de 30/01/2008, transitada em julgado em 29/02/2008, no âmbito do Proc. nº 26/06.0PTVIS, do 1° Juízo Criminal do Tribunal de Viseu, pela prática em 13/04/2006, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena de 120 dias de multa, á taxa diária de € 10,00 e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 meses. Foi condenado por decisão de 14/07/2010, transitada em julgado em 13/08/2010, no âmbito do Proc. nº 138/l0.6GTVIS, do Tribunal de Castro Daire, pela prática em 03/06/2010, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 110 dias de multa, á taxa diária de € 11,00 e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 5 meses.
2.2. FACTOS NÃO PROVADOS: Inexistem factos não provados.
2.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO: A convicção do Tribunal fundou-se na análise crítica e ponderada da prova produzida em audiência de julgamento e da prova documental constante dos autos, devidamente conjugada com as regras da experiência comum. Em audiência de julgamento o arguido prestou declarações e negou a prática dos factos. Referiu que efectivamente as transferências bancárias foram realizadas com o seu código mas que alguém o terá usado indevidamente. Referiu que o D... é um cliente do Banco que está emigrado no Canadá, o qual tinha uma maior relação com os outros colegas do Banco. Em relação á transferência para a conta do Sr. E... , referiu o arguido que se tratou de um pagamento de juros ao cliente no âmbito de um resgate antecipado de um depósito mas que não tratou de tal assunto com o mesmo, sendo que o depósito e o resgate são operações com document os de suporte assinados pelos colaboradores do Banco, L... ,à data subgerente do balcão de (...) e G... . Quanto á transferência para a conta de H... , referiu o arguido que não obstante ter tratado de todo o processo de recuperação de crédito deste cliente, não estava sequer na agência no referido dia 09/07/2009 estando de férias, sendo que quando regressou, o crédito do cliente já tinha sido saldado com a referida transferência bancária. Por ultimo, quanto á transferência para a conta de J... , Lda., o arguido referiu, nas suas declarações iniciais, não conseguir explicar esta transferência, já que apesar de se tratar de um cliente da sua carteira e o gerente da empresa ser promotor externo do Banco, o gerente, I... , não lhe justificou o montante e segundo o arguido, aquele não tinha documentos que suportassem a entrada desse dinheiro na conta da empresa. Ora estas declarações do arguido não convenceram minimamente o Tribunal, desde logo porque se revelaram contrárias a toda a restante prova documental e testemunhal, produzida em audiência de julgamento, não fazendo qualquer sentido a tese do arguido de que alguém que não ele, usou o seu código para efectuar as transferências e desapareceu com os documentos de suporte das mesmas e bem assim a tese da "cavala" do próprio Banco que também terá forjado mapas falsos de férias (já que resulta da documentação de fls. 519 que o arguido estava efectivamente ao serviço no dia 09/07/2009) e até da "cavala" de algumas das testemunhas directamente envolvidas nas transferências ( D... e os destinatários das mesmas H... e I... ) as quais tiveram versões dos factos completamente distintas da que foi apresentada ao Tribunal pelo arguido. Efectivamente resulta da vasta documentação bancária constante dos autos e o arguido não o nega, que as transferências foram efectuadas com a palavra passe do arguido e resultou do depoimento das testemunhas M... , colaborador no gabinete de inspeção do Banco, N... , responsável do gabinete de Inspecção, B... , actual director do balcão de (...) e á data dos factos sub-director e G... , também bancário, que a palavra passe é pessoal e intransmissível. Quis o arguido criar no Tribunal a ideia de que sendo o balcão de (...) muito pequeno, quase que do tamanho da sala de audiências, qualquer um dos outros três colaboradores poderia ter visto o arguido a introduzir a sua palavra passe no computador e a usurpado, realizando as ditas transferências, já que aquele não tinha qualquer motivação para o fazer, na medida em que não teve qualquer ganho com as referidas operações bancárias. Pois a razão pela qual o arguido ordenou as transferências é alheia ao Tribunal mas também a motivação não é elemento do crime, não tem de constar da acusação pública e nem tem que ser apurada pelo Tribunal. Basta que o Tribunal se convença, como efectivamente se convenceu, que foi o arguido quem ordenou as transferências e quanto a isso não se suscitou qualquer dúvida no espírito do julgador. Na verdade, tal convicção foi criada, valorando-se desde logo a vasta prova documental constante dos autos, com especial incidência no auto de denúncia e documento juntos a fls. 2 e ss; relatório elaborado pelo Banco denunciante de fls. 9 a 56 no qual se descrevem as diligências por si efectuadas e processo disciplinar de fls. 126 a 147 instaurado ao arguido por estes factos e alegadamente outros relativos a descobertos em conta e outras operações bancárias ilegitimamente efectuadas pelo arguido com a sua palavra passe, as quais culminaram no despedimento do arguido da instituição bancária. Considerou o Tribunal o depoimento prestado pela testemunha D... , titular das contas bancárias de onde saíram os referidos montantes o qual prestou um depoimento isento, completamente sincero e imparcial. Referiu que não ordenou as transferências em causa e não conhecia sequer os destinatários das mesmas. Salientou que a dada altura deu pela falta de dinheiro nas contas e se queixou verbalmente ao arguido o qual lhe referiu que não se preocupasse, que o dinheiro estava em "private" e que o arguido não tinha naquele momento acesso ao mesmo mas que em breve tais quantias seriam repostas na sua conta. Referiu a testemunha que esperou, voltou a falar com o arguido e contactou-o pelo menos duas vezes quando aquele se mudou para o balcão de (...) , ouvindo do mesmo sempre a referida desculpa. A data altura, referiu a testemunha que recebeu na sua conta, uma transferência de € 10.000,00 o que julgou ser o início da reposição do dinheiro mas algum tempo depois, tal quantia voltou a sair da conta sem que a testemunha nada fizesse. O arguido em julgamento negou que tenha dado tais "desculpas" à testemunha, tendo referido que apenas "empatou a situação" para poder investigar internamente o que tinha sucedido. Ora tal comportamento do arguido é completamente inverosímil e nada consentâneo com as regras da experiência comum. Por todos os funcionários do Banco inquiridos, incluindo e especialmente pelas testemunhas M... e N... , trabalhadores no gabinete de Inspecção e pelo próprio O... , administrador do Banco, o procedimento correcto a adoptar por um director de balcão como era o arguido à data, quando recebesse uma queixa de desaparecimento de fundos de um cliente, seria de imediato fazer a comunicação respectiva ao superior hierárquico, coisa que, note-se, o arguido nunca fez, levando a testemunha D... a apresentar, bem mais tarde, uma reclamação escrita, a 26 de Julho de 2012 (cfr. fls. 23 dos autos) na qual relata toda a situação (documento cujo conteúdo é aliás totalmente coerente com o depoimento prestado pela testemunha). Naquele documento de reclamação refere ainda a testemunha que em Maio de 2012, recebeu um telefonema do arguido a dizer que parte do dinheiro já estava na sua conta, quando verificou a tal transferência de € 10.000,00 vinda de outro cliente mas pouco tempo depois o montante voltou a sair novamente para a conta do dito cliente. E agora pergunta-se: se o arguido não fez a transferência em causa porque razão tentou concertar a situação quando até já estava no balcão de (...) e nada tinha a ver com aquilo?! E coincidência das coincidências, a transferência dos € 10.000,00 veio de um cliente do arguido do balcão de (...) e foi realizada com o código do mesmo, como resulta do relatório a fls. 16 e ss. e foi confirmado pela testemunha M... . De facto, o arguido referiu ao Tribunal que fez a dita transferência por causa de uma troca de uma aplicação financeira que o Sr. D... queria mas depois já não queria e teve então necessidade de anular a transferência e devolver o dinheiro ao cliente, P... . Do relatório de fls. 16 e pela testemunha M... foi referido que esta transferência de P... foi também irregular, até porque o cliente D... não possuía, na ocasião, no seu leque de aplicações, a referida aplicação financeira em causa, "Plano Financeiro Trimestral 2012". E de facto, a testemunha D... não falou ao Tribunal em nenhuma aplicação, tendo sido clara ao referir que foi o arguido quem lhe disse que estava a resolver parcialmente a situação anterior. E de facto, não é consentâneo nem minimamente crível que uma pessoa que verifica que o seu código pessoal e intransmissível foi usado ilicitamente por alguém, não comunique, de imediato, tais factos ao superior hierárquico, antes procure "empatar" o cliente e arranjar desculpas enquanto investiga internamente ... Não temos dúvidas que mais não tentou o arguido que não fosse repor a regularidade da situação em que ele mesmo criara ainda que à custa de outras situações irregulares por si criadas. Valorou também o Tribunal o depoimento da testemunha H... , no que se refere à transferência descrita em 7., b) da acusação pública. Referiu a testemunha que tratou de todo o processo de recuperação de crédito com o arguido, tendo dívidas ao Banco na ordem dos € 28.500,00 e que tentou a realização de um empréstimo junto da instituição bancária, tendo até chegado a assinar o contrato. Referiu que viu os € 28.500,00 a caírem-lhe na conta mas que o arguido lhe ligou a dizer que o empréstimo não estava aprovado e que afinal era ele quem iria emprestar-lhe o dinheiro, a título pessoal e sem juros. Referiu a testemunha que pagou entretanto tal quantia ao arguido, em dinheiro, tendo-lhe feito quatro entregas. Efectivamente, o Tribunal não pode deixar de notar a estranheza do depoimento desta testemunha, pois que, como se sabe, os empréstimos são feitos ao Banco e não pessoalmente pelos seus gerentes e muito mesmos o são sem documentos de suporte e sem o pagamento de quaisquer juros... Contudo, o facto é que só o arguido estava directamente envolvido com este cliente e só ele tratou do processo de restruturação do crédito do Banco que era precisamente do mesmo valor da transferência bancária, tendo a transferência sido realizada com o código do arguido. Não faz sentido pensar que outro colaborador do Banco pudesse ter feito a transferência com o código do arguido, pois que nenhum envolvimento o mesmo teria com o processo em causa e com o cliente. Valorou igualmente o Tribunal o depoimento da testemunha I... , gerente da empresa " J... , Lda." o qual prestou o seu depoimento de forma isenta e espontânea, merecendo-nos total credibilidade. A testemunha referiu ao Tribunal que, em Agosto de 2010, a pedido do arguido concedeu-lhe um empréstimo pessoal no referido valor de € 8.331,37, por o mesmo lhe ter referido que precisava urgentemente do dinheiro para um outro cliente do Banco o qual não conseguia um empréstimo bancário por ter prestações em atraso. Referiu que como confiava no arguido lhe cedeu o dinheiro, sendo que ao cabo de duas ou três semanas o dinheiro caiu na sua conta, através da transferência bancária em causa nestes autos. Salientou a testemunha que não estranhou o facto de a transferência vir de outro cliente, por julgar tratar-se do cliente a que se referia o arguido. Mais referiu que passado cerca de 2 anos foi então contactado pelo Banco que lhe disse que a transferência não era para si e foi -lhe então retirado o dinheiro da conta. Acrescentou que tem agora um processo contra o Banco e o arguido por tais factos e que nessa altura contactou o arguido que lhe assegurou que resolvia tudo, de tal forma que o mesmo assinou um documento onde assumia que a testemunha tinha direito a tal valor. E de facto resulta agora da certidão junta aos autos em 08/07/2015, que corre no DIAP desta Instância Local de (...) , o processo-crime nº 84/13.1 TARSD, tendo a referida empresa " J... , Lda." apresentado queixa-crime contra o Banco e o arguido por tais factos. Por outro lado, a testemunha juntou aos autos o referido documento que foi então assinado pelo arguido a seu pedido, em 13/12/2012, agora junto a fls. 1355. E analisando a declaração, cuja assinatura do arguido foi certificada, aquele declarou que não autorizou a transferência em causa nestes autos mas que o referido valor de € 8.331,37 era efectivamente devido à empresa " J... , Lda.ª, por um outro cliente do BST do Balcão de (...) que não o referido D... , sendo que não obstante, a dita transferência ter sido feita á sua revelia, a mencionada empresa "tinha todo o direito de receber a quantia transferida" . Ora mais uma vez não se logra compreender o comportamento do arguido que, como já se referiu, não é típico de quem não tem nada a ver com a dita transferência. Ora se o arguido não tinha a nada a ver com aquele assunto e não tinha pedido nada à testemunha I... , porque razão se dá ao trabalho de assinar tal documento, onde atesta que o valor é devido à empresa por outro cliente do Banco e com a sua assinatura certificada?! E como sabia o arguido que o valor era, afinal, devido à empresa " J... , Lda.ª, por outro cliente, precisamente naquela quantia?! Em audiência, confrontado com o referido documento, o arguido referiu que subscreveu e assinou o documento porque efectivamente havia uma outra empresa que devia à empresa " J... " a dita quantia, no âmbito de uma transacção comercial, uma vez que tinha conhecimento dos negócios entre clientes comuns do Banco, sendo que a empresa do Sr. I... prestou um serviço à dita empresa, no valor de aproximadamente € 8.000,00 e ficou de lhe pagar por transferência bancária, sendo certo que também assegurou que o valor não lhe era devido pelo Sr. D... porque o mesmo não constava da carteira de clientes da empresa " J... ". Mais referiu ao Tribunal que apenas assinou o documento a pedido do Sr. I... mas que o espírito do mesmo era apenas atestar a dita transacção comercial entre as duas empresas. Tais declarações do arguido revelam-se inverosímeis e incongruentes com as declarações inicialmente prestadas em audiência pelo arguido. É que no início da audiência, antes da junção aos autos do referido documento e do depoimento da testemunha I... , o arguido não referiu tais factos, antes pelo contrário, em relação à referida transferência, disse que não a conseguia explicar, já que apesar de se tratar de um cliente da sua carteira e o gerente da empresa ser promotor externo do Banco, o gerente, I... não lhe justificou o montante e segundo o arguido, aquele não tinha documentos que suportassem a entrada desse dinheiro na conta da empresa. Mas afinal o arguido estava bem por dentro dos negócios da dita empresa com os outros clientes do Banco e até sabia que o referido dinheiro era devido à empresa J... ... E porque razão assinou o arguido a declaração?! Tal só faz sentido se pensarmos mais uma vez numa forma de o arguido tentar remediar, de alguma forma, o "mal cometido" junto da testemunha I... que o estava a pressionar para assumir as consequências do seu acto. Mas faz algum sentido que se os factos fossem como o arguido referiu, a testemunha se desse ao trabalho de instaurar um processo crime contra o arguido e o Banco?! Bastava-lhe afinal exigir o pagamento da empresa a quem prestou o serviço, como foi referido pelo arguido. Aliás, não vemos qual o interesse das testemunhas D... , H... e I... em imputar responsabilidades ao arguido e inventar todas estas histórias contra o mesmo, já que não se demonstrou qualquer inimizade entre eles e o arguido e nem o arguido aventou qualquer razão para as testemunhas terem inventado o seu envolvimento nos factos. Por último, quanto à transferência para a conta bancária de E... , convém referir que, pese embora o arguido não tenha tido qualquer intervenção na constituição do depósito e no resgate antecipado do mesmo (tendo ali intervindo as testemunhas B... e G... ), o facto é que no que respeita ao reembolso dos juros e/ou despesas (e a transferência, ao que se apurou foi para isso mesmo), o arguido teve intervenção, pois que como o mesmo referiu, por ele foi efectuado ao Banco o pedido de estorno e só ele poderia ter efectuado tal pedido, por tal não estar nas funções da testemunha G... , tendo este último, além do mais, referido que não tendo perfil para tratar desse assunto, reencaminhou o mesmo para o arguido. Isto sem esquecer que, mais uma vez, a transferência foi realizada com o código do arguido. De modo que, como se disse e reforça uma vez mais, não temos dúvidas que foi o arguido quem procedeu às referidas transferências bancárias, independentemente do objectivo que o mesmo tinha ao efectuá-las, sendo certo que o arguido negou a prática dos factos e nem tinha o Tribunal de apurar a motivação do arguido para a prática do ilícito. E o facto de aparecer a palavra passe do subgerente do Banco, a testemunha B... nos registos bancários relativos à transferência para a conta do cliente " J... , Lda.ª (cfr. fls. 1158 dos autos), não criou no Tribunal qualquer dúvida sobre a responsabilidade do arguido naquela transferência. Ali aparece a transferência executada e depois anulada com o código do arguido (C (...) ) e com a autorização da testemunha (T508434), ao passo que logo a seguir é o arguido quem efectua novamente a transferência sem qualquer autorização. É que note-se, quem faz a transferência nas duas vezes é o arguido, com o seu código. Numa primeira fase, é verdade, a testemunha autoriza mas depois há uma anulação, também autorizada. Inquirida em julgamento, a testemunha B... refere que não se recorda daquela transferência em concreto e que não consegue explicar a sua autorização, sendo certo que usa a sua palavra passe entre 5 a 20 vezes por dia, e havendo um grande fluxo de cientes, pode estar a fazer várias coisas em simultâneo. É pois perfeitamente natural que a testemunha não consiga explicar porque razão concedeu a referida autorização para a transferência e para a posterior anulação. Não cremos de forma nenhuma que tenha sido a testemunha a fazer a transferência com o código do arguido, desde logo porque o próprio I... explicou ao Tribunal como tudo se passou e o envolvimento do arguido na situação, tendo além do mais referido que, nesse particular, nunca contactou com a testemunha B... que nenhuma intervenção teve na situação em causa. Terá o arguido solicitado a autorização da testemunha que a concedeu sem saber concretamente para que efeito. Não faz sentido que fosse a testemunha a efectuar depois a transferência, até porque a mesma é feita apenas com o código do arguido sem qualquer autorização. Não temos dúvidas que o arguido, enquanto funcionário bancário efectuou as ditas transferências, tendo o Tribunal chegado a tal concussão com recurso a prova indirecta, uma vez que a prova directa não é possível no caso dos presentes autos. Ora como se sabe, o juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a decisão do julgado, face à credibilidade que a prova mereça e as circunstâncias do caso, com recurso a prova indiciária, podendo esta por si só conduzir à convicção do julgador. Assim, relevantes no domínio probatório, para além dos meios de prova directa, são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções. É legítimo o recurso às presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125.° do Código de Processo Penal). Como é referido no Ac. do STJ de 07-01-2004, disponível na base de dados do ITIJ em www.dgsi.pt (proc. n.º 03P3213)., «na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. (…). A ilação decorrente de uma presunção natural não pode, pois, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável». Em suma, a apreciação da prova engloba não apenas os factos probandos apreensíveis por prova directa, mas também os factos indiciários, factos interlocutórios ou habilitantes, no sentido de factos que, por deduções e induções objectiváveis a partir deles e tendo por base as referidas regras da experiência, conduzem à prova indirecta daqueles outros factos que constituem o tema de prova. Ora considerando o depoimento das testemunhas que imputam os factos ao arguido e a prova documental constante dos autos, designadamente tendo as transferências sido efectuadas com o código pessoal do arguido, à luz das regras comuns de vida, podemos concluir que tais elementos de prova são fortemente persuasivos, superando qualquer dúvida razoável, da autoria do arguido no crime em causa nos presentes autos. E, não obstante nos factos terem sido avaliados pelo Tribunal de trabalho no proc. nº 116/13.3TTLMG, para efeitos de despedimento do arguido, apenas na perspectiva de infracção disciplinar, de forma a apreciar se os mesmos constituem justa causa de despedimento, o facto é que, ainda que com critérios de prova diferentes e menos exigentes, tais factos, também aqui em causa nestes autos, foram considerados provados por aquele Tribunal (cfr. factos descritos em 118 a 189), que também ali considerou ter sido o arguido o autor das transferências bancárias aqui, como também ali, em causa (cfr. certidão entrada em juízo em 08/07/2015). No que se refere ao elemento subjectivo descrito em 10 e 11, convém referir que, pertencendo as intenções à esfera íntima de cada pessoa, o Tribunal só as pode apreender de forma indirecta, através da submissão de actos de natureza externa, empiricamente observáveis, ao crivo das regras da experiência e da ordem natural das coisas. Assim, do comportamento do arguido, inclusivamente após a prática dos factos, conjugada com a demais prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, é possível, com o auxílio das regras de experiência comum, inferir a intencionalidade que lhes esteve subjacente, tendo o arguido efectivamente pretendido dar destino diverso ao dinheiro depositado nas contas do cliente D... ao pretendido por este, actuando sobre aquele dinheiro ao arrepio e contra a vontade do respectivo legítimo proprietário, de que se abstraiu, dando-lhe o destino que bem entendeu, como se este fosse sua propriedade, transferindo-o para as contas de terceiros. Para prova dos factos descritos em 12 e 13, considerou o Tribunal as declarações prestadas pelas testemunhas D... , o qual confirmou ter sido integralmente ressarcido pelo Banco de tal quantia e bem assim das testemunhas M... e N... , funcionários do banco no Gabinete de Inspecção, que confirmaram o pagamento ao cliente D... da referida quantia de € 44.000,00 e a não entrega de qualquer quantia ao Banco, pelo arguido. No que se refere às condições económicas e à situação familiar e social do arguido, teve-se em atenção as declarações do mesmo, produzidas em sede de audiência de julgamento, que apenas nessa parte, nos mereceram credibilidade, sendo certo que nenhuma prova em contrário foi produzida. No que se refere à idade do arguido e antecedentes criminais, o Tribunal considerou os certificados de registo criminal do arguido de fls. 1332 e ss. *** III. Apreciação do Recurso A documentação dos actos da audiência determina que este Tribunal possa conhecer de facto e de direito como resulta do disposto nos artigos 363º e 427º do Código de Processo Penal. Mas, o objecto do recurso delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1 e nº 2 do Código de Processo Penal) sempre sem embargo dos poderes de conhecimento oficioso. Ora, vistas as conclusões do recurso interposto, as questões a apreciar serão as seguintes: - Se os factos provados não integram a prática do imputado crime de abuso de confiança por inverificação do elemento objectivo “coisa móvel entregue ao agente por título não translativo da propriedade”; - Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto, devendo esta ser alterada no sentido indicado pelo recorrente com a sua consequente absolvição; - Se a sentença recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação do condicionamento da suspensão da pena ao pagamento de indemnização; - Se o condicionamento da suspensão ao pagamento de indemnização viola o disposto no artigo 51º, nº 2 do Código Penal.
Preliminarmente importa abordar questão que contende com o conhecimento das questões que o recurso suscita. Com efeito, a análise da matéria de facto da decisão recorrida evidencia carência de elementos de facto que comprometem a possibilidade de imputação do crime de abuso de confiança por que o arguido foi condenado e previamente acusado. Confrontando a acusação pública com a descrição fáctica da decisão recorrida, verificamos que esta reproduz a primeira no que respeita aos factos imputados ao arguido. E no que concerne ao elemento subjectivo do tipo de crime em causa apenas consta das duas referidas peças processuais que “Em cada um dos momentos das transações, o arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, aproveitando-se das funções por si exercidas no BST, o que facilitou a repetição da conduta, com o propósito, conseguido, de utilizar valores monetários das contas de D... , sem o consentimento e contra a vontade deste.” Comete o crime de abuso de confiança (artigo 205º do Código Penal) quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade. Fazendo parte do tipo objectivo de ilícito a apropriação, o dolo necessário ao preenchimento do tipo subjectivo supõe uma acção voluntária dirigida a fazer sua a coisa móvel e não apenas o propósito de a utilizar, palavra que não tem um significado específico de apropriação e consente a realidade do mero uso sem intenção de apropriação. Significativos da diferença, ao nível da semântica legal, entre as palavras utilizar e apropriar são os tipos de crime de furto “rei” e furto de uso, praticando o primeiro quem actuar com intenção de apropriação e o segundo quem actuar utilizando o bem sem autorização de quem de direito. Esta formulação do elemento subjectivo que consta da decisão recorrida não traduz, portanto, o dolo necessário e indispensável ao cometimento do crime de abuso de confiança, ou de outro ilícito penal o que significa que os factos descritos primitivamente na acusação e transcritos para a decisão recorrida não são susceptíveis de integrar o crime imputado, como não integram qualquer outro ilícito penal (caso em que se poderia equacionar comunicação da alteração da qualificação jurídica nos termos do artigo 358º, nº 3 do CPP) . De acordo com o disposto no artigo 283º, nº 3, alínea b) do Código de Processo Penal é elemento essencial da acusação a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção, ou seja, os elementos constitutivos do crime. Crime na noção contida na alínea a) do artigo 1º do Código de Processo Penal é o “conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais” de entre eles avultando o elemento subjectivo do tipo de crime. Se os factos da acusação não constituem crime devia a mesma ter sido rejeitada nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal. A propósito deste preceito Germano Marques da Silva em Processo Penal, III, 207/8, entende que, “esta alínea era desnecessária, porque os factos narrados hão-de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e só a podem fundamentar se constituírem crime. Se os factos não constituírem crime verifica-se a inexistência do objecto do processo, tornando-o inexistente e consequentemente não pode prosseguir”. Na senda de tal doutrina já defendemos que da conjugação do disposto nos artigos 283º, nº 3 e 311º, nº 3 do Código de Processo Penal resulta que a nulidade da acusação por falta de descrição de factos que constituam crime não é suprível e pode ser conhecida a todo o tempo até ao trânsito em julgado da decisão final (cfr. o Acórdão desta Relação de 22.5.2013 publicado em www.dgsi.pt) viciando todos os actos que sejam praticados posteriormente (artigo 122º, nº 1 do Código de Processo Penal). Dada a estrutura basicamente acusatória integrada pelo princípio da investigação judicial do nosso processo penal, o tribunal está vinculado ao thema decidendum definido pela acusação – princípio da vinculação temática – como forma de assegurar a plenitude da defesa, garantindo ao arguido que apenas tem que defender-se dos factos acusados, e não de outros, e que apenas poderá ser condenado pelos factos acusados, e não por outros. Daí que a lei fulmine com nulidade, a sentença que condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e condições previstos nos arts. 358º e 359º do Código de Processo Penal (artigo 379º, nº 1, alínea b) do mesmo Código). Mas, em certas circunstâncias, e no que à fase do julgamento respeita, o Código de Processo Penal possibilita o conhecimento de novos factos e a condenação do arguido por eles, cabendo equacionar se no caso poderia suprir-se por essa via a insuficiente descrição factual da acusação. Assim, se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver – isto é, quando os novos factos conhecidos na audiência não excedem o âmbito do objecto do processo, tal como foi definido na acusação – o tribunal pode deles conhecer, desde que, oficiosamente ou a requerimento, comunique tal alteração ao arguido e lhe conceda, se requerido, o prazo necessário para a preparação da respectiva defesa, salvo se os novos factos tiverem sido alegados pela defesa (artigo 358º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal). Se a alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia for substancial – tal como é definida no artigo 1º, f), do C. Processo Penal – já o tribunal só pode deles conhecer se, feita a sua comunicação, o Ministério Público, o arguido e o assistente concordarem com a continuação do julgamento pelos novos factos, e a alteração não determinar a incompetência do tribunal (artigo 359º, nº 3, do C. Processo Penal). Como refere Francisco Isasca (Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português 2ª Ed., 200 e ss.), dá-se uma reformulação do objecto do processo, operada pelo acordo dos sujeitos processuais com vista à rápida resolução do litígio, tudo sem a menor intervenção do julgador e portanto, sem trair o princípio do acusatório. Ora, o artigo 1º, alínea f) do Código de Processo Penal define “alteração substancial dos factos” como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”. Se, porém, os factos constantes da acusação não integram sequer um crime, afastada está a possibilidade do julgador suprir a falta da alegação dos factos integradores do tipo subjectivo, com recurso às aludidas normas. Pressuposto necessário é que se verifiquem os elementos objectivos e subjectivos do tipo, essenciais à estrutura e conceito do crime. Se os factos exarados na acusação não constituem crime, torna-se impossível a imputação de crime diverso, porque então estaríamos perante a realidade da imputação de um crime “ex novo” e não diverso. Aliás, o STJ, no Acórdão 1/2015, DR Iª Série de 27.1.2015, fixou jurisprudência no sentido de que a falta de descrição do elemento subjectivo não pode ser suprido em audiência por recurso ao artigo 358º do Código de Processo Penal, por maioria de razão não o poderá ser por recurso ao artigo 359º ainda que obtido o acordo a que se refere o seu nº 3. O fundamento da não aplicabilidade de tais preceitos radica na mesma causa; a inexistência de imputação de factos que constituem crime que é pressuposto de qualquer tipo de alteração. Perfilhamos, para além do mais que nele se expressa, a síntese conclusiva do Acórdão desta Relação de 13 de Janeiro de 2016, relatado pelo Exmº Desembargador Alberto Mira, publicado em www.dgsi.pt, sobre caso paralelo, do seguinte teor: - A imputação genérica de uma conduta, ou seja, sem a descrição fáctica integradora de um ilícito penal, é insusceptível de conduzir à aplicação, ao arguido, de uma pena ou de uma medida de segurança; - Consequentemente, a falta de narração, na acusação, quer do tipo objectivo, quer do tipo subjectivo de crime, traduz uma pura inexistência de tipicidade, não sendo, neste contexto, admissível, em julgamento, a alteração posterior dos factos, neste ou noutro procedimento, por forma a que daquela passem a constar factos integrantes de um comportamento típico do agente; - Nesse caso, tal alteração consubstanciaria a convolação de uma conduta atípica em conduta típica, em patente violação do princípio constitucional do acusatório. Por todo o exposto, impõe-se, sem mais, declaração de absolvição do arguido (…).
No caso a patologia consiste na falta de descrição do elemento subjectivo do crime imputado, sendo de retirar as mesmas conclusões. Acresce que não constituindo a factualidade descrita crime, falece o pressuposto da dedução de pedido cível em processo penal constante do artigo 71º do CPP, importando também nessa parte absolver o arguido/demandado. Por consequência fica prejudicada a apreciação das questões colocadas pelo recorrente. *** IV. Decisão Nestes termos e embora com diferente fundamento do alegado, acordam em conceder provimento recurso interposto e, em consequência, revogar a decisão recorrida e absolver o arguido da imputada comissão de um crime de abuso de confiança p. e p. pelos artigos 14º nº 1, 26°, 30° n° 2 e 205°, n.ºs 1 e 4 alínea b) do Código Penal e do pedido cível de indemnização contra ele formulado, ficando as custas cíveis a cargo do demandante. Não há lugar a tributação em razão do recurso. *** Coimbra, 27 de Abril de 2016 (Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora).
(Maria Pilar de Oliveira - relatora)
(José Eduardo Martins - adjunto)
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