Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1901/218T8FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO MOREIRA DO CARMO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
INTERPRETAÇÃO DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
Data do Acordão: 11/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA FIGUEIRA DA FOZ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 10.º E 11.º, N.ºS 1 E 2 DO DECRETO-LEI N.º 46/85, DE 25-10
Sumário: A cláusula contratual, estipulada em contrato de seguro, nas Condições Gerais do Contrato, com a epígrafe “Exclusões Gerais”, onde, a propósito de cobertura de “danos próprios” se dispõe que: “1 – Além das exclusões previstas no Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil – Parte I – e nas exclusões próprias de cada Condição Especial, ficam também excluídos os: (…) c) Sinistros quando o condutor do veículo seguro … voluntariamente abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada”, deve ser interpretada, quer face ao elemento redactorial quer ao disposto no art. 11º do DL 446/85 (sobre cláusulas contratuais gerais), no sentido de que se o condutor abandonar o local do acidente depois do chamamento das autoridades policiais verificar-se-á a apontada exclusão.
Decisão Texto Integral:

I – Relatório

1. AA, residente em ..., intentou acção declarativa contra Zurich Insurance plc, Sucursal em Portugal, com sede em ..., pedindo seja a ré condenada a:

a) assumir 100% da responsabilidade pagamento dos danos sofridos decorrentes do sinistro;

b) pagar ao autor a quantia a titulo de indemnização pelo sinistro de 23.250 €;

c) pagar ao autor a quantia que vier a ser apurada a titulo de privação do veículo;

d) tudo acrescido de juros legais vencidos e vincendos calculados desde a data do sinistro até efectivo e integral pagamento.

e) pagamento da certidão de participação de acidente de viação no montante de 76 €.

Alegou, em suma, a contratação com a ré de seguro que compreendia a cobertura de “danos próprios”, a ocorrência de um acidente de viação. O condutor abandonou o local por necessidade de se colocar em segurança e contactar o autor, dono do veículo, e não chamou a autoridade por não ter meios para o fazer, desconhecendo que ela tinha sido chamada ao local. Foi efectuada a peritagem e apurada a perda total do veículo, sendo calculado o valor da indemnização em 23.250 €, com dedução da franquia contratual. A ré deve pagar 20 €/dia de paralisação do veículo desde o dia do acidente. O veículo acima identificado era o único que o autor dispunha para as suas deslocações pessoais e profissionais.

A ré contestou, alegando, em síntese, que o sinistro está excluído da garantia do seguro por o condutor se ter ausentado do local do sinistro antes da chegada das autoridades deixando o veículo abandonado em plena via, e impugnou as circunstâncias em que ocorreu o acidente e o condutor se ausentou do local, e o valor dos danos.

O autor respondeu à excepção, pugnando pela improcedência.

*

A final foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.

*

2. O A. recorreu, concluindo que:

i) Andou mal o Tribunal a quo ao extrair a conclusão da prova produzida e de uma errada interpretação normativa, no improcedimento da acção

ii) O objeto do litígio é “Responsabilidade contratual da ré seguradora pelo pagamento do montante reclamado na sequência do acidente de viação.

iii) Não faz parte do tema de prova a identificação do condutor.

iv) Não foi provado que o condutor não era o identificado nos autos,

v) Encontra-se nos autos teste de álcool efetuado ao condutor.

vi) O ponto 7 dos factos não provados deveria estar como facto provado.

vii) A douta sentença é elaborada salvo o devido respeito em eventuais contraordenações estradais, que não estão em causa nos autos.

viii) O que está em causa é, tão só, a interpretação de uma clausula contratual.

ix) A Ré excluiu a responsabilidade com base na clausula 44.ª n.º 1 das Condições Gerais do Contrato de Seguro, com a epígrafe “Exclusões Gerais”, dispõe que: (… transcrição de texto).

x) A Ré não impugna que se trata de um contrato de adesão, e como tal a interpretação em caso de dúvida deve ser a mais favorável ao aderente.

xi) As dúvidas que se levantam na interpretação de tal norma são 1. saber se o abandono do condutor está cronologicamente dependente do chamamento das autoridades policiais, 2. se basta o abandono em si mesmo, independentemente das

autoridades terem sido chamadas antes ou depois da saída do condutor do local, ou

se tem que ser posterior a tal chamamento, 3. ou ainda se está dependente de juízos

de prognose se as autoridades serão ao não chamadas ao local.

xii) A interpretação que deve ser feita de tal cláusula por aplicação do referido artigo 11º é a no sentido de que, o abandono deve ser posterior ao chamamento da polícia e não está dependente de qualquer outra circunstância, como seja o dito juízo de prognose pois trata-se de um contrato de adesão.

xiii) O único circunstancialismo associado a tal cláusula é o abandono do local antes das autoridades serem chamadas quando o forem.

xiv) Caberia à ré fazer prova que as autoridades tinham sido chamadas antes do abandono do A do local do sinistro, prova que não logrou fazer nesse sentido, mas sim em sentido contrário,

xv) O A fez prova dos factos constitutivos do seu direito, e não impugnados pela Ré,

xvi) A Ré não fez prova dos factos e circunstâncias que excluem a sua responsabilidade.

xvii) Não restam dúvidas que existiu na Douta sentença uma errada interpretação das normas jurídicas supra descritas, e do objecto do litigio.

xviii) E em consequência proferida uma sentença que deve ser revogada e substituída por uma que julgue procedente a acção nos precisos termos em que foi peticionada.

xix) Tudo ponderado impõe-se decisão pelo Tribunal ad quem nos termos e para os efeitos do previsto nos artigos 639.º, 640.º e 662.º do Código do Processo Civil, que declare provado por procedente a presente apelação.

Nestes termos e nos demais de direito que V. Ex. os doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao recurso apresentado, e em consequência ser a decisão proferida alterada e substituída por outra que declare procedente a acção nos precisos termos peticionados.

3. A R. contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

 

II - Factos Provados

 

A) O autor AA celebrou com a Ré “Zurich”, um contrato de seguro do ramo automóvel, atinente ao veículo ligeiro de matrícula “..-RG-..”, marca ..., modelo ....

B) O contrato de seguro iniciou a sua vigência no dia 29 de Março de 2021.

C) E ficou titulado pela apólice n.º ...14.

D) O autor optou por contratar a condição especial de “Zurich Auto Protecção (Choque, Colisão, Capotamento e Incêndio)”, com o capital de Eur. 23 250, 00.

E) Foi também contratualizada uma franquia de 2% a cargo do segurado.

F) Na parte final da apólice vem consignado o seguinte : “Este contrato de seguro é constituído pelas condições gerais, especiais e particulares anexas e ainda pela proposta que lhe serviu de base. Esta apólice deverá ser conferida pelo tomador de seguro; na falta de reclamação, no prazo de 30 dias, será tida como inteiramente conforme”.

G) As referidas condições gerais, especiais e particulares estão impressas em livro de 106 páginas e constituem o Doc. n.º 2 junto com a contestação.

H) A cláusula 44.ª n.º 1 das Condições Gerais do Contrato de Seguro, com a epígrafe “Exclusões Gerais”, dispõe que:

1 – Além das exclusões previstas no Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil – Parte I – e nas exclusões próprias de cada Condição Especial, ficam também excluídos os: (…)

c) Sinistros quando o condutor do veículo seguro recuse submeter-se a testes de alcoolémia ou de detecção de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, bem como quando voluntariamente abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada”.

I) No dia 06 de Julho de 2021, o veículo referido em A) circulava na estrada dos armazéns de ..., Concelho ....

J) Cerca das 00h.30, o seu condutor despistou-se ocorrendo um choque em pilar e posterior capotamento.

K) O piso encontrava-se molhado devido às condições atmosféricas.

L) A autoridade policial, mais concretamente a Guarda Nacional Republicana, deslocou-se ao local do sinistro, depois de ter sido chamada para o efeito.

M) Quando a G.N.R. chegou ao local não se encontrava lá qualquer condutor.

N) O condutor saiu do local antes da chegada da G.N.R e não chamou as autoridades.

O) Encontrando-se o “RG” imobilizado em plena via, sem sinalização.

P) O condutor sabia que as autoridades seriam chamadas ao local.

Q) Foi efetuada peritagem em 08 de Julho de 2021, de que resultou que o montante necessário para a sua reparação se elevava a 47.489,08 €, o valor venal do veículo ascendia a 23.250,00€, e o salvado a 4.106,00 €, encontrando-se o veículo em situação de “perda total”.

R) As conclusões desse relatório foram comunicadas ao autor por carta de 15 de Julho de 2021 que constitui o documento nº 2 junta à petição.

S) O montante necessário para proceder à reparação do “RG” é de Eur. 47 489, 08.

T) Por sua vez, o seu valor venal, à data do sinistro, ascendia a Eur. 23.250, 00,

U) E o salvado a Eur. 4 106, 00.

V) O Autor contratou a condição especial 013 “Veículo de Substituição por Acidente”, por força da qual a “Zurich” garante às pessoas seguras, até ao limite fixado nas condições gerais, um veículo de substituição.

W) Prescreve o nº 1 do ponto 022 desta condição especial que: “Nos termos desta Condição Especial, a Zurich garante às pessoas seguras, até ao limite fixado no ponto 022.2, um veículo de substituição em conformidade com o declarado nas Condições Particulares”.

X) Nos termos do ponto 022.2: “Desde que acionada qualquer das coberturas da apólice que origine imobilização do veículo seguro, a mesma fica limitada a:

1.Acidente de Viação, no caso de acidente de viação, e até ao limite máximo de 30 dias por anuidade, a Zurich, por sinistro, assumirá:

a) O período correspondente aos dias de reparação efetiva do veículo seguro, expressos no relatório de peritagem ou,

b) Na ausência deste, pela informação dos dias de reparação constantes do orçamento elaborado pela oficina reparadora e confirmados pela Zurich.

c) Decorrendo do acidente de viação Perda Total do veículo seguro, a Zurich assumirá, até ao limite de 30 dias por anuidade, o período correspondente aos dias de paralisação do veículo até à data da confirmação da Perda Total pela Zurich.

d) Sempre que seja acionada qualquer cobertura de danos próprios, exceto Perda Total, os dias de reparação constantes do relatório de peritagem serão acrescidos de um máximo de 5 dias úteis, contados entre a data da imobilização e a data de início da reparação”. (página 38 das Condições Gerais).

(…)

Y) De acordo com a cláusula geral nº 41º, nº 2, al. a) considera-se “perda total” o “desaparecimento do veículo seguro ou destruição do mesmo quando” (…) o “valor da reparação seja superior a 70% (setenta por cento) do seu valor venal à data do sinistro”.

*

Factos não provados:

(…)

3) O condutor circulava sem passageiros, era o único ocupante do veículo e o único interveniente no acidente;

4) Não dispunha de meios de comunicação.

5) O condutor logrou sair do veículo sinistrado, não estava ferido e por não haver ninguém na via, decidiu começar a caminhar na esperança de encontrar alguém que o pudesse levar a casa para entrar em contacto com o aqui Autor, proprietário do veículo.

6) Quando o Autor tomou conhecimento do sucedido, a principal preocupação foi que o condutor, seu amigo, fosse de imediato ao Hospital, verificar se estava tudo bem.

7) No hospital o condutor foi submetido a teste de álcool.

8) O condutor não chamou as autoridades, por não ter meios para o fazer, pois o seu telemóvel estava sem bateria, estava sozinho e não tinha a quem pedir auxilio.

9) Abandonou o local, por necessidade de se colocar em segurança e contactar o proprietário do veículo para tomarem as providências necessárias no seguimento do sinistro.

10) Este era o único veículo que o Autor dispunha para as suas deslocações, pessoais e profissionais.

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Responsabilidade da R. pelo pagamento ao A. da indemnização peticionada.

2. O recorrente defende que o facto não provado 7) devia passar a provado, porque não foi provado que o condutor não era o identificado nos autos, encontrando-se nos autos teste de álcool efetuado ao condutor (iii) a vi) das conclusões de recurso).

Na motivação da decisão da matéria de facto exarou-se que:

“O Tribunal procedeu à análise crítica e conjugada, à luz das regras da experiência comum, de toda a prova testemunhal e documental junta aos autos.

(…)

A factualidade invocada pelo autor relativamente às circunstâncias em que ocorreu o acidente e em que o condutor se ausentou do local, e bem assim da submissão do condutor a teste de álcool e da utilização que era dada ao veículo pelo autor, a prova não se revelou minimamente consistente e segura.

Assim, não obstante a identificação do condutor na participação de acidente coincidir com a alegada na petição, a verdade é que inexistem testemunhas do despiste e os militares da GNR que se deslocaram ao local e depois ao hospital, esclareceram que colocaram como condutor a pessoa que se identificou como tal, já no hospital, mais de 2 horas depois do acidente (cfr. descrição do acidente constante da participação da GNR). ….”. 

O recorrente não tem qualquer razão, porque está “a ver” as coisas ao contrário.

Na verdade, não interessa se não foi provado que o condutor não era o identificado nos autos, é exactamente o contrário. Ao apelante é que cabia provar, de acordo com o seu ónus de prova, que o condutor era o identificado por si na p.i., um tal BB, o que não logrou. E só a partir deste facto se podia comprovar eventualmente que o dito condutor foi submetido a teste de álcool no Hospital, segundo a participação do acidente (doc. nº 3, junto com a contestação, a fls. 75v./76v.).

Tendo soçobrado naquela prova, não pode, obviamente, considerar-se que o tal BB submetido a teste de álcool era o condutor e, logicamente, que o referido facto não provado passe a provado.     

3. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Dispõe o art. 342º, nº 1 do Código Civil (CC) que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”. Por seu turno o nº 2 do mesmo preceito estipula que “a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”.

Tendo presente as regras da distribuição do ónus da prova, competia ao autor alegar e demonstrar o contrato de seguro, o sinistro, que os danos ocorridos foram causados por um dos riscos cobertos pelo seguro, a extensão e o valor do dano sofrido, e que a ré, através do contrato de seguro se obrigou a ressarci-lo até ao montante peticionado, no caso concreto, 23.250,00 €, e ainda pela privação do veículo até pagamento da indemnização.

Resulta dos factos provados que o autor cumpriu tal ónus de alegação e prova, ainda que em extensão menor que a reclamada, já que se mostra provada a contratação de franquia que importaria deduzir ao valor do capital seguro e que, de acordo com a condição especial 013, a indemnização pela privação do veículo estava sujeita aos limites estipulados no ponto 022.2, nº 1, al. c) (cfr. factos provados E), V), W) e X).

Como facto impeditivo do direito do autor, invoca a ré a verificação de uma causa de exclusão do risco, mais concretamente o art. 44º, nº 1, al. c) das condições gerais do contrato de seguro, que estipula que ficam excluídos da garantia do seguro: “Sinistros quando o condutor do veículo seguro recuse submeter-se a testes de alcoolémia ou de detecção de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, bem como quando voluntariamente abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada”.

Ora, resulta da factualidade provada que o condutor do veículo se ausentou do local antes da chegada das autoridades chegarem, designadamente que:

“L) A autoridade policial, mais concretamente a Guarda Nacional Republicana, deslocou-se ao local do sinistro, depois de ter sido chamada para o efeito.

M) Quando a G.N.R. chegou ao local não se encontrava lá qualquer condutor.

N) O condutor saiu do local antes da chegada da G.N.R e não chamou as autoridades.

O) Encontrando-se o “RG” imobilizado em plena via, sem sinalização.

P) O condutor sabia que as autoridades seriam chamadas ao local”;

Considera o autor que a referida cláusula de exclusão deve ser interpretada no sentido de ser necessária a obrigatoriedade de chamar as autoridades e o condutor não as chame, ou que o condutor tenha conhecimento de que as mesmas foram chamadas por terceiro quando se ausenta do local.

Ora, no caso concreto, afigura-se que, independentemente da existência de mortos ou feridos (cfr. art. 89º, nº 2 do Código da Estrada), era legalmente obrigatória a chamada das autoridades. Com efeito, relativamente ao comportamento em caso de avaria ou acidente, dispõe o art. 87º do Código da Estrada que:

1 - Em caso de imobilização forçada de um veículo em consequência de avaria ou acidente, o condutor deve proceder imediatamente ao seu regular estacionamento ou, não sendo isso viável, retirar o veículo da faixa de rodagem ou aproximá-lo o mais possível do limite direito desta e promover a sua rápida remoção da via pública.

2 - Nas circunstâncias referidas no número anterior, as pessoas que não estiverem envolvidas nas operações de remoção ou reparação do veículo não devem permanecer na faixa de rodagem.

3 - Enquanto o veículo não for devidamente estacionado ou removido, o condutor deve adotar as medidas necessárias para que os outros se apercebam da sua presença, usando para tanto os dispositivos de sinalização e as luzes avisadoras de perigo.

4 - É proibida a reparação de veículos na via pública, salvo se for indispensável à respetiva remoção ou, tratando-se de avarias de fácil reparação, ao prosseguimento da marcha.

5 - Quem infringir o disposto nos números anteriores é sancionado com coima de (euro) 60 a (euro) 300, ou com coima de (euro) 120 a (euro) 600 quando a infração for praticada em autoestrada ou via reservada a automóveis e motociclos, se outra sanção mais grave não for aplicável.” (sublinhado da signatária)

Assim, ainda que não fosse possível ao condutor proceder à sinalização da presença do veículo na via de imediato, nem dela removê-lo dado estar capotado, cabia-lhe minimizar o perigo que criou para a integridade física e para a vida de terceiros, chamando as autoridades para que se encarregassem de sinalizar o local e proceder à remoção do veículo da via, com a celeridade que a situação exigia. Note-se que o autor admite essa obrigatoriedade no caso concreto, já que, apesar de não o ter provado, alegou que o condutor não chamou as autoridades por não ter meios para o fazer.

Relativamente ao conhecimento do condutor do chamamento das autoridades, a cláusula em questão não refere se é necessário que as autoridades tenham sido chamadas e o condutor disso tenha conhecimento, antes de abandonar o local do acidente, ou se basta que este, dadas as circunstâncias do acidente, saiba que as mesmas serão chamadas, designadamente quando do acidente resulte perigo não sinalizado para os demais utentes da via, como sucedeu no caso concreto.

Importa ter em consideração as regras atinentes à interpretação das cláusulas contratuais gerais, já que estamos perante um contrato de adesão e da factualidade provada não resulta que tal cláusula tenha sido objecto de negociação.

De acordo com o art. 10º do DL nº 446/85 de 25.10 “As cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam”.

Por sua vez, o art. 236º do CC diz-nos que “A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.

Para as cláusulas ambíguas, prescreve o art. 11º, nºs 1 e 2 que “1 - As cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real.

2 - Na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.”

Ora, um tomador de seguro, medianamente diligente e sagaz, tendo em conta a natureza do contrato em causa e os riscos que visava garantir, bem como as razões de ordem pública que estão por detrás da referida cláusula de exclusão, não podia deixar de concluir que o sinistro ficaria excluído, caso, sem motivo justificativo, se ausentasse do local do acidente sabendo que as autoridades já tinham sido chamadas e, outrossim, quando, dadas as circunstâncias do mesmo ou por alguém ter revelado essa intenção, soubesse que seriam chamadas, designadamente por ter criado perigo não sinalizado para os demais utentes da via.

Com efeito, a razão justificativa da referida exclusão (dissuasão da condução sob o efeito de álcool e substâncias estupefacientes ou psicotrópicas e do incumprimento das regras atinentes ao comportamento do condutor em caso de acidente – arts. 87º a 89º do Código da Estrada) verifica-se quer o condutor, sem motivo atendível, abandone o local depois de saber que as autoridades policiais foram chamadas, quer se ausente antes desse chamamento, sabendo que o mesmo ocorrerá, atento o perigo gerado para terceiros.

É este, de resto, o sentido da cláusula que está de acordo com a boa-fé que deve nortear a interpretação dos negócios jurídicos.

Como se escreve no Ac. do STJ de 18.03.2021, proc. 1542/19.0T8LRA.C1.S1 “Nesta tarefa interpretativa, importa ainda recordar o ensinamento de Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral Tomo I, 1999, págs. 478, 479 e 483) quando afirma que “a doutrina atual encara a interpretação do negócio jurídico como algo de essencialmente objetivo; o seu ponto de incidência não é a vontade interior: ela recai antes sobre um comportamento significativo.” Acrescenta ainda o mesmo autor que a autonomia privada “(...) tem de ser temperada com o princípio da tutela da confiança...”, que não se opõe à autonomia privada, antes a delimita, e que a própria interpretação não pode deixar de atender à boa-fé, ou seja, aos valores fundamentais do ordenamento jurídico que aí se jogam.[3]”

Excluir da norma de exclusão a situação que ficou demonstrada nos autos, em que o condutor, sem razão justificativa, abandonou o local do acidente em incumprimento das normas estradais referentes ao comportamento em caso de acidente, indiferente ao perigo que representava para os demais utentes da via a presença não sinalizada do veículo capotado na via à noite, contraia a boa fé e os valores fundamentais do nosso ordenamento jurídico.

Assim, e atenta a factualidade provada, considera-se preenchida a causa de exclusão invocada pela ré, o que determina a improcedência da acção.”.

O apelante contesta esta argumentação (vide vii) a ixx) das conclusões de recurso). E com inteira razão.

3.1. O núcleo da questão em apreço é interpretar a cláusula contratual, provada em H), sob 44ª, nº 1, das Condições Gerais do Contrato de Seguro, com a epígrafe “Exclusões Gerais”, onde se dispõe que:

1 – Além das exclusões previstas no Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil – Parte I – e nas exclusões próprias de cada Condição Especial, ficam também excluídos os: (…)

c) Sinistros quando o condutor do veículo seguro … voluntariamente abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada”. Sublinhe-se que a situação contemplada na parte final desta cláusula foi a única invocada pela R./seguradora, como excludente da sua responsabilidade.

Pela própria redacção, pelo texto literal, inculca-se claramente que se o condutor abandonar o local do acidente depois do chamamento das autoridades policiais verificar-se-á a apontada exclusão. Antes não.

A dita cláusula contratual não está, assim, dependente de juízos de prognose se as autoridades serão ao não chamadas ao local, conforme hipotizado na argumentação do tribunal a quo. Nem dependente de eventual infracção ao C. Estrada que é cominada com contraordenação, como também argumentado na fundamentação jurídica da sentença.

Acresce que além da redacção em si, importa ter em consideração as regras atinentes à interpretação das cláusulas contratuais gerais, já que estamos perante um contrato de adesão, como salientado na decisão apelada.

Ora, se de acordo com o art. 10º do DL 446/85 (de 25.10) “As cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam”, e se por sua vez, o art. 236º do CC nos diz que “A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”, o certo é que para as cláusulas que se possam considerar ambíguas, sempre prescreve o art. 11º, nºs 1 e 2, daquele DL, que “1 - As cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real.

2 - Na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.”

Desta maneira, além da simples interpretação do elemento redactorial de tal cláusula, mesmo numa situação de hipotética ambiguidade a indicada interpretação sai reforçada. A interpretação que deve ser feita de tal cláusula por aplicação do referido art. 11º é, por conseguinte, no sentido de que, o abandono deve ser posterior ao chamamento da autoridade e não está dependente de qualquer outra circunstância, designadamente de qualquer juízo de prognose pois trata-se de um contrato de adesão. E, numa situação de dúvida, também, ao proteger-se o sentido favorável ao aderente segurado.

No mesmo sentido seguiu o Ac. do STJ de 18.03.2021, Proc. 1542/19.0T8LRA.C1., em www.dgsi.pt, onde se advogou, em caso similar que:

“(…)

Efetivamente, na referida cláusula é possível descortinar dois momentos relevantes para a verificação da exclusão: o do abandono

do local do acidente antes da chegada das autoridades e o da chamada das autoridades policiais.

Neste contexto, somos levados a considerar que a exclusão da cobertura do sinistro só tem razão de ser se o condutor do veículo, sem motivo que o justifique, abandonar o local do acidente, depois de saber que as autoridades policiais foram chamadas para tomar conta da ocorrência.

Aliás, o segmento final da referida cláusula apenas adquire alguma utilidade quando interpretado no sentido que acabamos de enunciar, ou seja o de que a seguradora apenas poderá opor a exclusão da garantia contratada ao tomador se a autoridade policial tiver sido chamada ao local pelo condutor do veículo ou por outra entidade e, não obstante, aquele, depois disso, tiver voluntariamente e por sua iniciativa abandonado o local do acidente de viação antes da chegada dessa autoridade.

É este, a nosso ver, o sentido normativo extraído da declaração negocial (cf. art. 236º, nº 1, do CC), se tivermos em conta, como instrumentos interpretativos, a natureza e o objeto do seguro, o teor das suas cláusulas contratuais, o seu contexto, a sua finalidade e o seu efeito útil, bem como o princípio geral consagrado no art. 11º, da

LCCG, segundo o qual, existindo dúvidas quanto ao entendimento do destinatário[4], prevalece o sentido mais favorável ao aderente/segurado, e que se funda na autorresponsabilidade do declarante e na proteção do destinatário, uma e outra assentes na boa fé, em sentido objetivo.

Compreende-se que assim seja, já que, em termos amplos, realizando-se o risco, e como contrapartida do recebimento do prémio, o segurador fica vinculado à prestação contratualmente definida, qual seja o pagamento da indemnização resultante de um sinistro associado ao risco convencionado (cf. arts. 1º, 43º e 99º, do DL 72/2008).”.

Caberia, portanto, à R. fazer prova de facto impeditivo da sua responsabilidade (art. 342º, nº 2, do CC), isto é, que as autoridades tinham sido chamadas antes do abandono do condutor do local do sinistro, prova que não logrou fazer nesse sentido. A R. é, pois, responsável perante o A.

3.2. Vejamos, agora, o montante da indemnização.

O A. pretende receber a quantia de indemnização pelo sinistro de 23.250 €, mais juros legais vencidos e vincendos calculados desde a data do sinistro até integral pagamento; a quantia que vier a ser apurada a titulo de privação do veículo, mais juros legais vencidos e vincendos calculados desde a data do sinistro até integral pagamento; pagamento da certidão de participação de acidente de viação no montante de 76 €.

3.2.1. Quanto à indemnização de 23.250 € o A. não tem direito a ela, por inteiro.

Estamos perante uma perda total - factos Q) a Y). Assim ao valor venal de 23.250 € há que deduzir a franquia de 2% - facto E) -, no montante de 465 €. Mais o valor do salvado de 4.106 € - facto U) -, nos termos das cláusulas 48ª, nº 1, a), e 49º, nº 1, das Disposições Gerais das Coberturas facultativas do seguro automóvel. O que tudo ascende a 18.679 €.

A que acresce juros de mora legais civis, à taxa de 4%. Mas não desde a data do sinistro (6.7.2021), como o A. pretende, pois, de acordo com o art. 805º, nº 1, do CC só existe mora depois de interpelação. Desconhece-se a data da interpelação que o A. não alegou e não pode provar. No entanto, pela carta junta à p.i. como doc. nº 2, datada de 15.7.2021, vê-se que a R. nessa data respondeu ao A. informando que o veículo estava em perda total e o valor a indemnizar teria por base os 23.250 € reclamados pelo A. Por conseguinte, deve considerar-se que a interpelação do A. à R., para ser ressarcido, ocorreu pelo menos e o mais tardar na apontada data. Daí, que os juros só sejam devidos desde a mesma até integral pagamento. 

3.2.2. No respeitante à quantia que vier a ser apurada a titulo de privação do veículo, mais juros, o A. indicou o valor de 20 € por cada dia de paralisação do veículo desde a data do sinistro (6.7.2021) até integral pagamento da indemnização por parte da R., porque era o único veículo de que o A. dispunha para as suas deslocações pessoais e patrimoniais.

Esta parte da indemnização podia eventualmente ser devida caso se verificasse um dano correspondente à privação temporária do uso do veículo. Acontece que o A. não logrou provar qualquer convenção contratual nesse sentido, nem aquela alegação - vide o facto não provado 10). Sendo assim, nesta parte, por falta de facto(s) comprovativos da existência de tal dano, o A. não tem direito a reclamar qualquer quantia indemnizatória.

Fora daquele âmbito temos que levar em conta os factos provados V) a X). De acordo com eles a R. devia ter assumido contratualmente a obrigação de proporcionar ao A. um veículo de substituição. Concretamente, nos termos do ponto 022.2, nº 1, c), da respectiva condição especial – aludido facto X) -, e tratando-se como se trata de uma perda total, a R. devia assumir, até ao limite de 30 dias por anuidade, um veículo de substituição, pelo período correspondente aos dias de paralisação do veículo até à data da confirmação da perda total por parte dela. Ora, decorre do já mencionado doc. nº 2 (junto com a p.i.) que a R. confirmou ao A. em 15.7.2022 a perda total do veículo. Quer dizer entre 6.7.2021 e 15.7.2021, num total de 10 dias, a R. devia ter assumido a sua obrigação de proporcionar ao A. um veículo de substituição. Porém, não resulta dos autos que a R. o tenha feito. 

Deste modo, o A. tem direito a ser compensado pela paralisação do seu veículo durante tal período de 10 dias. O valor diário é desconhecido. Mas remeter para liquidação de sentença o seu apuramento é desproporcionado e não justificado, dado o período de tempo curto da indicada privação. Afigura-se-nos mais apropriado recorrer à equidade (art. 566º, nº 3, do CC).

O A. indicou na p.i. um valor diário de 20 €. Temos por equilibrado tal valor compensatório, tendo em conta os preços que são publicamente conhecidos e praticados no âmbito do aluguer de veículos ligeiros sem condutor. Por conseguinte o A. tem direito a ser compensado, a este título, no montante de 200 € (10 x 20 €).

Neste particular aspecto não decorre do apontado doc. nº 2 (junto com a p.i) que o A. previamente à apresentação da p.i. tivesse interpelado a A., o que aconteceu, contudo, nessa p.i., datada de 13.12.2021. Portanto, só a partir desta data são devidos juros legais de mora civil á indicada taxa de 4%, até integral pagamento.        

3.2.3. Relativamente ao pagamento da certidão de participação de acidente de viação no montante de 76 €, trata-se de despesa suportada pelo A., previamente à instauração da acção, como tal integrante do conceito legal de custas processuais, na vertente de custas de parte (arts. 529º, nº 1 e 4 e 533º, nº 1 e 2, do NCPC). E, consequentemente, a seguirem o regime legal próprio delas.

Não procede esta parte da apelação.

(…)

IV - Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, parcialmente, condenando-se a R. a pagar ao A. a quantia de 18.679 €, acrescida de juros de mora à taxa de 4%, desde 15.7.2021 até integral pagamento, mais 200 €, acrescido de juros de mora à taxa de 4%, desde 13.12.2021 até integral pagamento. 

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Custas a cargo do A.e R. na proporção do vencimento/decaimento.

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Coimbra, 22.11.2022

Moreira do Carmo

Fonte Ramos

Alberto Ruço