Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
282/20.1T8LMG-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: CESSAÇÃO DA PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS
ALTERAÇÃO SUPERVENIENTE DAS CIRCUNSTÂNCIAS
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE LAMEGO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 2013.º, 1, B), DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I. Para que se faça cessar a prestação de alimentos fixada torna-se necessário a verificação da ocorrência superveniente de circunstâncias que o justifique, encontrando-se entre estas a impossibilidade do obrigado a prestar os alimentos o continuar a fazer ou da desnecessidade daquele que os recebe.
II. A conclusão de que ocorreu uma alteração de circunstâncias exige um juízo de comparação entre o circunstancialismo vigente num dado momento e o contexto existente num momento posterior.

III. Não foi alegado pelo Autor quanto as condições económicas de que dispunha quando assumiu aquela prestação, pelo que se torna impossível, considerando os factos de que agora se tem conhecimento, concluir que sofreu uma modificação superveniente que não lhe permite satisfazer aquela obrigação., o mesmo se dizendo quanto à situação da Ré.

IV.Sendo desconhecida a situação económica de ambos – Autor e Ré - no momento em que a pensão foi acordada, não há o necessário termo de comparação que permita apurar da superveniência da atual situação.

V. Foi o Autor quem instaurou a presente ação, pelo que é sobre o mesmo quem, recai o ónus de alegar pormenorizadamente quais as circunstâncias que ocorreram na sua vida que o privaram de capacidade econó­mica, bem como aquelas em que se encontrava quando celebrou o acordo, mediante o qual se obrigou a pagar a prestação cuja obrigação agora pretende ver cessada, incumbindo-lhe ainda a alegação das circunstâncias da Ré no momento do acordo e as supervenientes que determinariam a desnecessidade dos alimentos.

Decisão Texto Integral: Relator: Sílvia Pires
Adjuntos:  Fernando Marques da Silva
Pires Robalo

                       Autor: AA

                       Ré: BB

                                                           *

Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
 O Autor instaurou contra a Ré a presente ação cessação da prestação alimentícia que se obrigou a pagar a esta, invocando a alteração superveniente das circunstâncias com efeitos desde a data da propositura da ação, pedindo que peticionando que seja reconhecida a alteração superveniente das circunstâncias de o Autor cessar a prestação alimentos à Ré, devendo ser declarada a cessação da obrigação em questão, nos termos e para os efeitos do art.º 2012º e da al. b) do nº 1 do art.º 2013º, do Código Civil, com efeitos desde a data da propositura da ação.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese apertada:
No âmbito do processo n.º ......-A – do Juízo de Família e Menores ..., o Autor foi condenado a pagar à Ré na qualidade de sua ex-cônjuge, a quantia mensal de 250,00 € (duzentos e cinquenta euros) a título de alimentos definitivos.
A Ré recebeu a quantia de € 69.590,03 referente ao valor acumulado do fundo de pensões, que o A. disponha pela previdência profissional prestada na Suíça.
O Autor teve uma diminuição significativa dos seus rendimentos mensais, derivados de remodelação da sua empresa, em consequência da Pandemia e da Guerra entre a Rússia e a Ucrânia, não tendo condições de continuar a suportar o pagamento da pensão de alimentos à Ré, pois as suas despesas ultrapassam os seus rendimentos.
A Ré vive sozinha, recebe ajuda do filho e não paga arrendamento do imóvel onde reside, tendo possibilidades de prover à sua subsistência.

A Ré contestou, alegando que recebeu, na sequência da partilha por divórcio instaurada num tribunal Suíço, a importância de € 61.131.18, não tendo, no entanto, alterado a sua situação económica de molde a não precisar da quantia que o Autor lhe paga a título de alimentos.
Alegou ainda que na fixação do montante actual da pensão o tribunal atendeu à duração do casamento, a colaboração prestada à economia do casal, a idade e estado de saúde dos cônjuges, as suas qualificações profissionais e possibilidades de emprego, o tempo dedicado, à criação de filhos comuns, os seus rendimentos e proventos e de modo geral, todas as circunstâncias que influam sobre as necessidades do cônjuge que recebe os alimentos e as possibilidades do que os presta.
Concluiu pela improcedência, invocando que não se alteraram as circunstâncias que determinaram a obrigação.

Veio a ser proferida sentença que julgou a ação pela seguinte forma:
Em face do exposto, e ao abrigo das citadas disposições normativas, julgo procedente, por provado, o pedido formulado por AA, e em consequência, determina-se a cessação da obrigação de prestação da pensão de alimentos a prestar pelo Requerente à Requerida BB.

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A Ré interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
1ª A decisão recorrida interpretou erradamente os artigos 2004º nºs 1 e 2, 2009 2º, alínea a) e nº 3, e 2016º nº 1 e 2016 A, todos do Código Civil ao ter cessado a obrigação de alimentos do requerente à requerida sem qualquer prova da verificação da alegada alteração de circunstâncias;
2ª Os factos provados sob os números 3 a 6 só podem e devem ser provados por documento, sendo manifestamente insuficiente a prova produzida pelo requerente/recorrido, tendo a decisão recorrida recuado aos vergonhosos tempos do Santo Ofício ao basear-se nas declarações de parte e no depoimento de testemunhas arregimentadas pelo requerente/recorrido;
3ª A alegada alteração de circunstâncias que pudesse justificar a cessação da obrigação de alimentos teria de ser suportada documentalmente tal como reconheceu ab initio o requerente/recorrido quando ofereceu mais de 180 documentos em língua estrangeira e depois não os traduziu como era seu dever/ónus nos termos do artigo 234º do CPC;
4ª A ora recorrente/alegante preenche os requisitos exigidos pelos supra citados normativos para que o seu ex-cônjuge lhe preste e continue a prestar alimentos no quantum decretado nos autos principais que integram/integraram o apenso A da providência cautelar de alimentos provisórios, mantendo o requerente/recorrido a possibilidade de prestar tais alimentos.
Conclui pela procedência do recurso.

O Autor apresentou resposta, defendendo a confirmação da decisão proferida.

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1. Do objeto do recurso
Considerando que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas as questões a apreciar é apurar se se verificam alteração das circunstâncias que determinaram a atribuição de alimentos à Ré e, em caso afirmativo, se as mesmas são justificativas da sua cessação.

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2. Os factos
Da leitura das alegações de recurso resulta a discordância da Ré quanto ao julgamento da matéria de facto, nomeadamente quanto aos factos provados sob os n.º 3 a 6, alegando que a sua prova só resultar de documentos que os comprovem e não de prova testemunhal.
Ora, a prova do facto 3º resultou de acordo das partes manifestado nos articulados e, os demais factos não estão sujeitos, para a sua prova, a qualquer exigência, ou seja, a prova vinculada.
Assim, mantêm-se como provados os factos impugnados.

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Os factos provados são:
1. No procedimento cautelar de alimentos provisórios – processo n.º  ......-A – do Juízo de Família e Menores ... de que estes autos constituem apenso – , em 25.6.2021 foi proferida a seguinte decisão: [1]
Nos presentes autos, a requerente BB e o requerido AA, em ata de 21/07/2020, chegaram a um acordo provisório, devidamente homologado por sentença, no qual este ficou de pagar àquela a pensão mensal no montante de € 400,00 (quatrocentos euros);
Relativamente à requerente CC, para além de enviar o abono de família suíço, na íntegra, a que a filha tem direito, o requerido AA pagará uma pensão de alimentos mensal de € 150,00 (cento e cinquenta euros) e pagará, ainda, 50% das despesas de saúde e de educação (que incluirão alojamento, e propinas que a filha vier a pagar), mediante a apresentação dos respetivos comprovativos.

Por conseguinte, decide-se converter o regime provisório em definitivo, ficando o Requerido obrigado a pagar as quantias acordadas, sem prejuízo de ulterior alteração, consoante a decisão do tribunal Suíço.
2. Por decisão de 03 de junho de 2021, no Tribunal Distrital de ..., recebeu a quantia de € 61.131,18.
3. O montante acima mencionado, refere-se a metade do acumulado do fundo de pensões, que o A. disponha pela previdência profissional na Suíça.
4. O autor teve uma diminuição dos seus rendimentos, devido a problemas de saúde.
5. O autor tem uma companheira, que tem tido problemas de saúde.
6. O Autor tem despesas fixas mensais designadamente, com água e saneamento, eletricidade, internet, gás, telemóvel, combustível, seguros, alimentação, vestuário e saúde que têm aumentado.
7. A Ré não paga arrendamento do imóvel onde reside, pois, a casa era do ex-casal, a qual foi doada aos seus filhos.

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3. O direito aplicável

O Autor pretende que seja declarada cessada a sua obrigação de prestar alimentos para a Ré, invocando a alteração superveniente das suas condições económicas de ambos.  Alegou que, além da Ré ter recebido um montante de cerca de € 60.000,00 que determina a sua desnecessidade dos alimentos prestados pelo Autor, também ele viu diminuídos os seus rendimentos mensais, não tendo possibilidades de os continuar a prestar.
A Ré, sem colocar em crise o recebimento de € 61.131,18, na sequência da partilha dos bens do casal, defende que não viu alterada a sua situação económica de modo que justifique a cessação dos alimentos devidos pelo Autor, invocando para tanto a duração do casamento, a sua contribuição para a economia comum como mãe e dona de casa, a sua idade e habilitações académicas.
Na decisão proferida, entendeu-se que se verificou uma alteração das condições da requerida, sendo que esta, em virtude do recebimento da quantia de 61.131,18 euros, sendo que esta não logrou provar que mantinha a necessidade da pensão alimentos e que não conseguia prover ao seu sustento, pelo que, entende-se que deve ser decretada a cessação daquela obrigação.
Alega o Requerente que a situação económica que tinha no momento em que os alimentos foram fixados à menor se alterou de modo a não lhe ser possível continuar aquela ou qualquer outra prestação.
Dispõe o art.º 2013º, n.º 1, b), do C. Civil:
A obrigação de prestar alimentos cessa quando aquele que os presta não possa continuar a prestá-los ou aquele que os recebe deixe de precisar deles.
Assim, para que se faça cessar a prestação de alimentos fixada torna-se necessário a verificação da ocorrência superveniente de circunstâncias que o justifique, encontrando-se entre estas a impossibilidade do obrigado a prestar os alimentos o continuar a fazer ou da desnecessidade daquele que os recebe.
No caso em apreço, a prestação alimentícia devida pelo Autor à Ré foi fixada por acordo, conforme resulta do facto provado sob o n.º 1.
Como consta do acórdão proferido nesta secção em 9.1.2024 [2], que reproduz o entendimentos deste coletivo:
A conclusão de que ocorreu uma alteração de circunstâncias exige um juízo de comparação entre o circunstancialismo vigente num dado momento e o contexto existente num momento posterior. Por outras palavras: para que se assente numa modificação superveniente de circunstâncias é indispensável conhecer essas circunstâncias em momentos temporalmente diferenciados. Assim, para que uma obrigação parental seja modificável, com base na alteração das circunstâncias, aquele que pretende a alteração deve alegar – e provar - as circunstâncias existentes no momento em que aquela obrigação foi contraída e as circunstâncias presentes no momento em que requer a modificação dessa mesma obrigação. Se o juízo de relação mostrar uma variação de contexto, deve autorizar-se a alteração da obrigação; no caso contrário, a modificação deve, naturalmente, recusar-se.
No caso em apreço os factos provados dizem-nos que o Autor teve uma diminuição dos seus rendimentos, não nos permitindo, no entanto, concluir que essa situação apenas ocorreu em data posterior à fixação da prestação de alimentos devidos à Ré.
Não foi alegado pelo Autor quanto as condições económicas de que dispunha quando assumiu aquela prestação, pelo que se torna impossível, considerando os factos de que agora se tem conhecimento, concluir que sofreu uma modificação superveniente que não lhe permite satisfazer aquela obrigação., o mesmo se dizendo quanto à situação da Ré.
Sendo desconhecida a situação económica de ambos – Autor e Ré -  no momento em que a pensão foi acordada, não há o necessário termo de comparação que permita apurar da superveniência da atual situação.
Foi o Autor quem instaurou a presente ação, pelo que é sobre o mesmo quem, recai o ónus de alegar pormenorizadamente quais as circunstâncias que ocorreram na sua vida que o privaram de capacidade econó­mica, bem como aquelas em que se encontrava quando celebrou o acordo, mediante o qual se obrigou a pagar a prestação cuja obrigação agora pretende ver cessada, incumbindo-lhe ainda a alegação das circunstâncias da Ré no momento do acordo e as supervenientes que determinariam a desnecessidade dos alimentos.
A prova de que a Ré recebeu € 61.131,18, na sequência da partilha dos bens do casal, não é demonstrativa da alteração da sua situação económica de molde a provocar a sua desnecessidade dos alimentos, pois esse valor, na data da sua fixação por acordo, já integrava o seu direito no património comum do casal formado por si e pelo Autor.
Não o tendo o Autor feito a prova da alteração das circunstâncias, nos termos acima referidos, não podia o tribunal recorrido decretar a cessação da obrigação alimentar, pelo deve ser revogada a decisão proferida.

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Decisão:
Nos termos expostos revoga-se a decisão recorrida, julgando-se procedente o recurso.

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Custas da ação e do recurso pelo Autor.

                                                           *
                                                                                                          7.5.2024


[1] Transitada em julgado.
[2] Relatado por Henrique Antunes -  em que foram intervenientes a aqui relatora e o 1º Adjunto - e acessível em www.dgsi.pt.
 No mesmo sentido, entre outros o acórdão do T. R. P. de 8.6.2022, relatado por João Venade a acessível no mesmo site.