Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CÂNDIDA MARTINHO | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA CONFISSÃO INTEGRAL E SEM RESERVAS DO ARGUIDO CRIME ÚNICO PLURALIDADE DE RESOLUÇÕES MEDIDA DA PENA | ||
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Data do Acordão: | 03/26/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 3 | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 13º, 40º, 71º, 77º, NºS 1 E 2 E 152.º, N.ºS. 1, AL. B), 2, AL. A), DO CÓDIGO PENAL; ART.ºS 125º, 127º, 344.º, N.º 2, AL. A), 410º, N.º 2, E 412.º, N.ºS 3, 4 E 6, TODOS DO CPP. | ||
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Sumário: | 1 - A imputação invariável de um só crime de violência doméstica a que se vem assistindo na prática judiciária, ao concluir-se por uma unidade normativo-social que suporta a continuidade caraterística do crime de violência doméstica, sem ter em conta a extensão e os contornos do caso concreto, carece de ser corrigida e, no caso concreto, o afastamento da nova resolução, não só se mostra contrariada pela confissão integral e sem reservas do arguido, como contraria as regras da experiência da psicologia.
2 - Tendo o tribunal formado a sua convicção na confissão integral e sem reserva do arguido no que se refere a todos os factos vertidos na acusação, não podia ter concluído, como veio a concluir, ao dar como não provado que “ao atuar conforme descrito em 25 a 49 supra, o arguido tenha renovado os seus propósitos”, porquanto tal renovação (a qual, aliás, pertence ao mundo interior do agente), constante da acusação pública, foi confessada pelo arguido em sede de audiência de julgamento. 3 - O Tribunal a quo ao fazer constar do texto da decisão recorrida que da prova - produzida ou examinada - nenhuma evidência resultava que o arguido tivesse tomado nova resolução criminosa errou notoriamente na apreciação a que procedeu da confissão integral e sem reservas dos factos feita pelo arguido. 4 - O erro notório na apreciação da prova é de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido. Ou, numa interpretação diferente, mais recente, o erro não é aquele que é percetível pelo homem médio, antes se considerando que “O erro notório é a falha grosseira percetível pelo juiz em concreto pressuposto pela ordem jurídica.” 5 - Sendo certo que não se evidencia da factualidade provada, na sua globalidade, qualquer alteração do modus operandi do arguido, qualquer quebra temporal na sua conduta maltratante na pessoa da ofendida, nem também qualquer quebra de contacto físico com esta, não vemos como não extrair do comportamento levado a cabo pelo arguido posteriormente a ter sido detido e sujeito a primeiro interrogatório judicial no dia 2/12/2023, uma nova resolução criminosa, pois para além da sua confissão, as regras da experiência da psicologia impunham que assim se concluísse. 6 - Em suma, a atuação do arguido descrita na factualidade, ainda que mais ou menos contínua temporalmente, consubstancia duas autónomas resoluções, - uma abrangendo os factos ocorridos até ao interrogatório judicial (pontos 5 a 23 da factualidade provada) e outra abrangendo o período de 2/12/2023 a 17/1/2024 (pontos 24 a 49 dessa mesma factualidade), - integrando tal conduta a prática de dois crimes de violência doméstica, p. e p. nos termos do artigo 152.º, n.ºs. 1, al. b), 2, al. a), do Código Penal. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, os juízes da 4ªsecção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
I.Relatório
Nestes autos de processo comum, com o nº 524/23.1PCLRA, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Local Criminal de Leiria – Juiz 3, foi proferida sentença em 7/10/2024, constando do seu dispositivo o seguinte: “a) Absolver o arguido AA da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de 2 (dois) crimes de violência doméstica agravados, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, e 152.º, n.ºs. 1, al. b), 2, al. a), 4 e 5, ambos do Código Penal, de que vinha acusado; b) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada de 1 (um) crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, e 152.º, n.ºs. 1, al. b), 2, al. a), 4 e 5, ambos do Código Penal: - na pena principal de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão; e - na pena acessória de proibição de contactos, por qualquer meio, com a vítima, BB, durante um período de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses, excepto os estritamente necessários ao exercício das responsabilidades parentais do filho menor comum; c) Suspender a execução da pena principal de prisão ora aplicada ao arguido, nos termos dos artigos 50.º, n.ºs 1 e 5, e 53.º, ambos do Código Penal, e do artigo 34.º-B, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, por idêntico período, sendo a presente suspensão acompanhada de regime de prova, assente num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, comportando a obrigação de avaliação/manutenção do acompanhamento ao nível da problemática da dependência de produtos estupefacientes; d) Condenar o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC, tendo em conta a confissão, simplicidade da causa, a duração do julgamento e o número de intervenientes processuais - artigos 344.º, n.º 2, al. c), 513.º, n.ºs 1 e 3, e 514.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, e artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Judiciais, com reporte à Tabela III anexa; e) Alterar o estatuto coactivo do arguido AA determinando-se que o mesmo aguarde os ulteriores trâmites processuais sujeito às seguintes medidas de coacção: - obrigações decorrentes do Termo de Identidade e Residência, já prestado; e - proibição de contactos, por qualquer meio, com BB, medidas estas que se reputam suficientes, adequadas e proporcionais para garantia das necessidades cautelares do processo.
2. Inconformado com o decidido, veio o Ministério Público interpor o presente recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição): “1.º O presente recurso versa sobre a matéria de facto dada como não provada e sobre a matéria de direito constante da sentença proferida em 07/10/2024, que decretou a absolvição do arguido AA por um dos crimes de violência doméstica agravado pelo qual vinha acusado. 2.º Salvo melhor opinião, entende-se que da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, resultava, necessariamente, decisão diversa, no sentido de condenar o arguido pelo segundo crime de violência doméstica. 3.º O arguido vinha acusado da prática de dois crimes de violência doméstica agravados, previstos e punidos pelo artigo 152.º,n.º 1 al. b), n.º 2 al. a), 4 e 5, do Código Penal. 4.º A sentença recorrida condenou o arguido pela prática de um crime de violência doméstica agravado previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1 al. b), n.º 2 al. a), 4 e 5, do Código Penal e absolveu-o da prática do segundo crime de violência doméstica agravado. 5.º Para tanto, a sentença recorrida deu como não provados os seguintes factos: “a) que, ao actuar conforme descrito em 25 a 49 supra, o arguido tenha renovado os seus propósitos; b) que o arguido tenha actuado com o propósito concretizado e reiterado, de atingir BB no seu bem-estar físico. c)que o arguido agiu sabendo que infligia maus-tratos físicos a BB”. 6.º O arguido, em sede de audiência de discussão e julgamento, confessou integralmente e sem reservas todos os factos constantes da acusação. 7.º Ora, desta forma, os factos dados como não provados deveriam ter sido dados como provados. 8.º Aliás, o arguido, pelo menos nos períodos compreendidos entre 23/10/2023 e 30/11/2023 e 02/12/2023 e 17/01/2024, praticou factos integradores de dois crimes de violência doméstica agravados. 9.º Em 30/11/2023, o arguido foi detido e em 02/12/2023 foi apresentado a primeiro interrogatório judicial, tendo fica sujeito às seguintes medidas de coação: obrigação de não contactar, por qualquer meio, com a ofendida a BB e proibição de frequentar ou permanecer na residência da vítima, bem como no seu local de trabalho, mantendo uma distância mínima de 500m, sendo as mesmas sujeitas a fiscalização através de meios técnicos de controlo à distância (vigilância eletrónica); e sujeição do arguido a tratamento à dependência de que padece (estupefacientes), em instituição adequada, solicitando-se à DGRSP a sua colaboração no sentido de encaminhar o arguido para consulta e tratamento adequado dessa dependência. 10.º Sucede, porém, que no dia 02/12/2023, pelas 22h00m, o arguido dirigiu-se à residência da vítima e voltou a pedir-lhe dinheiro para satisfazer o seu vício, tendo inclusive referido que se iria matar. 11.º Aliás, desde o dia 02/12/2023 até ao dia 17/01/2024, o arguido voltou a praticar factos integradores do crime de violência doméstica. 12.º Ora, o arguido sabia, já depois de advertido pelo Mmo. Juiz de Instrução Criminal, que não poderia contactar com a vítima, o que implica, necessariamente, a sua não deslocação à residência da mesma. 13.º Ao dirigir-se novamente à residência da vítima, o arguido quis voltar a praticar factos integradores do tipo de ilícito pelo qual havia sido detido. 14.º Estando ciente de que os factos que estava a praticar constituíam crime. 15.º Depois do primeiro interrogatório, o arguido praticou por, pelo menos mais um mês, factos criminalmente puníveis, só tendo cessado a prática dos mesmos com a sua sujeição a prisão preventiva. 16.º Ora, a conduta do arguido cessou num primeiro momento quando o mesmo foi confrontado com o sistema penal, sujeito a medida de coação, renovando-se, ainda que no mesmo dia, mas por um largo período de tempo (pelo menos mais um mês). 17.º Dito de outra forma, com a conduta supra descrita, o arguido resolveu agir, novamente, contra o comando de uma norma jurídica, demonstrando que a mesma, em relação a ele, era ineficaz. 18.º Um dos critérios que nos permite aferir de que existiu uma cisão da unidade é a intervenção do poder punitivo estatal. 18.º Quando o agente é confrontado com a intervenção do poder punitivo do Estado (v.g. ouvido e sujeito a medidas de coação), ou o agente cessa a atividade crimina ou então renova-a. 19.º A retoma ou continuidade da conduta criminosa deverá ser vista como uma unidade autónoma. 20.º Com a sujeição a medida de coação, impunha-se ao arguido uma mudança do seu comportamento, uma vez que o mesmo tomou consciência do desvalor da sua conduta e teve oportunidade de refletir sobre o seu comportamento passado.
21.º Neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 11/07/2013, proferido no âmbito do processo n.º 1239/04.5TABRG.G1, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 12/01/1994, proferido no âmbito do processo n.º045725, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 07/02/2023, proferido no âmbito do processo n.º 1719/18.5GCABF.E1 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 8/02/2007, proferido no âmbito do processo n.º 06P4460. 22.º Não podemos, assim, concordar com a absolvição do arguido relativamente ao segundo crime de violência doméstica pelo qual vinha acusado. 23.º Daí que, ao ter sido absolvido o arguido da prática deste último crime, pelo qual vem acusado, e decidida a respetiva condenação, pela prática do crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1 al. b), n.º 2 al. a), 4 e 5, do mesmo diploma legal, a sentença recorrida encontra-se em violação com o disposto no mesmo artigo 152.º, n.º 1, al. b), n.º 2 al. a), 4 e 5 Assim, deverá ser revogada, a sentença proferida, e substituída por outra, que condene o arguido, pela prática do aludido crime de violência doméstica agravado, tendo em conta o acima alegado”.
3. O arguido veio responder ao recurso, defendendo existir uma só resolução criminosa, sem hiato temporal entre os comportamentos, concluindo ter o Tribunal a quo decidido bem ao condená-lo pela prática de só um único crime de violência doméstica.
Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
5. Cumprido o artigo 417º, nº 2, do C.P.P, o arguido veio responder ao parecer, reiterando as suas contra alegações ao recurso interposto pelo Ministério Público.
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado de harmonia com o preceituado no art.419º, nº 3, al. c), do diploma citado.
II. Fundamentação
Como é consensual, quer na doutrina quer na jurisprudência, são as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação, sintetizando as razões do pedido, que definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando para o tribunal superior as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios e nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais. No caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo Ministério Público, ora recorrente, as questões que importa decidir prendem-se com o seguinte: - Impugnação da matéria de facto dada como não provada com base no vício decisório a que alude o artigo 410º,nº2,al. b), do CPP. - Condenação do arguido pela de prática dos dois crimes de violência doméstica que lhe vinham imputados na acusação pública, e não apenas por um deles como se defendeu na sentença recorrida.
“(…) II – FUNDAMENTAÇÃO Discutida a causa e com pertinência, resultaram provados os seguintes factos: 1. No ano de 2010, o arguido AA iniciou um relacionamento amoroso com BB. 2. No âmbito do referido relacionamento, o arguido e BB trocavam carícias, mantinham relações sexuais e assumiam-se como um casal, comprometidos um com o outro. 3. Fruto desse relacionamento, BB veio a engravidar de CC, nascido a ../../2011. 4. Logo que BB engravidou, durante o ano de 2010, o casal decidiu passar a viver como se de marido e mulher se tratassem, com comunhão de teto, mesa e cama, em .... 5. O arguido é consumidor de produtos estupefacientes, designadamente de cocaína e de heroína, e, quando se encontrava sob o efeito de tais substâncias, dirigia frequentemente à sua companheira, BB, no interior da residência comum, as seguintes expressões: “sua puta” “tens amantes”, “andas a por-te debaixo de outros”, “não vales nada”, “se não fosse eu não eras nada”, “não és boa mãe”. 6. O casal residia na Rua ..., ..., ... andar, Quinta ..., ... ..., juntamente com três filhas maiores de BB, o filho que têm em comum e com outro menor, filho do falecido marido de BB, DD, nascido a ../../2011. 7. A partir de outubro de 2023, o comportamento do arguido agravou-se, passando o mesmo a exigir quase diariamente – entre outubro de 2023 e 30.11.2023 – dinheiro a BB para conseguir adquirir produto estupefaciente e quando tal lhe era negado, ameaçava partir tudo o que existia na residência comum, causando muito medo a BB, que acabava por vezes por aceder ao pedido para que o arguido saísse de casa. 8. Desde agosto de 2023, por várias vezes, sempre que BB se recusava a entregar dinheiro ao arguido para sustentar o seu vício, o arguido fazia chantagem psicológica, dizendo a BB que se ia suicidar e ia vender as coisas existentes na residência. 9. No dia 29.11.2023, perto da hora do almoço, o arguido telefonou para BB para lhe pedir €50,00 (cinquenta euros), o que lhe foi recusado por esta. 10. Perante a recusa da sua companheira, o arguido telefonou durante toda a tarde, reiteradamente, para o telemóvel de BB, perturbando-a, dado que estava a trabalhar, o que era do conhecimento do arguido. 11. Cerca das 23h00m, quando BB já estava em casa com as suas filhas, o filho que têm em comum e o menor DD, o arguido, exigiu aos gritos que a sua companheira lhe desse o dinheiro que lhe havia pedido para comprar produto estupefaciente. 12. Não obstante a insistência do arguido, BB recusou-se a entregar-lhe dinheiro. 13. Atenta a recusa de BB e, na presença dos menores, o arguido partiu os móveis da sala (designadamente um roupeiro), os vidros dos armários e cadeiras. 14. Nessa altura, os menores estavam a dormir, tendo acordado assustados com o barulho dos objetos a partirem. 15. Quando o menor CC estava junto a BB, o arguido disse-lhe que a culpa era da mãe porque não lhe dava dinheiro para ir buscar medicamento. 16. Para evitar discussões com o arguido, BB acabou por lhe entregar €20,00 (vinte euros), após o que ele abandonou a residência. 17. Contudo, cerca das 02h00m do dia 30.11.2023, o arguido regressou a casa e voltou a exigir mais dinheiro a BB, tendo aquela lhe explicado que não lhe podia dar porque não tinha. 18. No mesmo dia, pelas 18h00m, depois de BB regressar a casa do trabalho, e perante as filhas e os dois menores, o arguido voltou a exigir dinheiro à sua companheira, dizendo-lhe que se recusasse iria vender o frigorífico e os móveis da casa. 19. Nesse seguimento, o arguido retirou bens alimentares do frigorífico – lacticínios, carne, legumes – colocou-os em cima de uma bancada e ameaçou atirá-los pela janela, caso BB não lhe entregasse o dinheiro que lhe pedia. 20. Perante tal comportamento, BB solicitou à PSP para se deslocar à sua residência, o que veio a acontecer cerca das 20h00m. 21. Na presença dos Agentes da PSP, o arguido disse a BB que se iria arrepender de ter chamado a PSP. 22. Ato contínuo, o arguido partiu a mesa de jantar e várias cadeiras da residência ao mesmo tempo que gritava dizendo a BB para ter cuidado com o que dizia, porque iria tirar-lhe os menores por não ter capacidade económica de os sustentar. 23. Mesmo depois de ser alertado pelos Agentes da PSP para se acalmar, o arguido manteve o seu comportamento, tendo agarrado numa cadeira que lançou contra a estrutura da mesa da sala e afirmou que, de seguida, iria atirar os móveis e o frigorífico pela janela e partir tudo o que existia dentro de casa. 24. Considerando-se estar fortemente indiciada a prática pelo arguido de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152º, nº1, al. b) e nº2, al. a), do Código Penal, no dia 02/12/2023, em sede de 1º Interrogatório Judicial de arguido detido, foram aplicadas ao arguido as seguintes medidas de coacção: a) obrigação de não contactar, por qualquer meio, com a ofendida BB e proibição de frequentar ou permanecer na residência da vítima, bem como no seu local de trabalho, mantendo uma distância mínima de 500m, sendo as mesmas sujeitas a fiscalização através de meios técnicos de controlo à distância (vigilância eletrónica; b) sujeição do arguido a tratamento à dependência de que padece (estupefacientes), em instituição adequada, solicitando-se à DGRSP a sua colaboração no sentido de encaminhar o arguido para consulta e tratamento adequado dessa dependência. 25. No dia 02.12.2023, cerca das 22h00m, o arguido deslocou-se à residência de BB, estando bastante alterado, bateu muitas vezes à porta, aos gritos no prédio, ao mesmo tempo que gritava para BB “Desenrasca-me dinheiro, roupa, dá-me comida que estou esfomeado, ajuda-me, para eu me ir embora e ir-me tratar”. 26. Com medo do arguido, face ao estado em que ele se encontrava, BB não lhe abriu a porta, tendo-lhe dito do interior da residência que não lhe ia dar dinheiro nenhum, acabando por chamar a polícia. 27. O arguido permaneceu junto da residência de BB durante cerca de uma hora, até chegarem as autoridades policiais. 28. Com pena do arguido, BB deixou-lhe comida num saco à entrada da porta da entrada do prédio, após o que fechou logo a porta. 29. Após, o arguido foi transportado pelas autoridades policiais até ao terminal da Rodoviária de ..., onde, pelas 02h00m, apanhou um autocarro com destino à cidade ..., onde se encontrariam familiares do arguido a aguardá-lo. 30. Aí chegado, o arguido foi acolhido em casa da mãe, sita em .... 31. No dia 22.12.2023, o arguido regressou à cidade de Leiria, tendo-se deslocado, de imediato, à residência de BB, o que voltou a suceder nos dias 23.12.2023, 24.12.2023 e 25.12.2023, sempre perto da noite. 32. Em todas essas datas, o arguido dirigiu-se à residência de BB e pediu-lhe insistentemente para que o deixasse ficar lá em casa, que lhe desse dinheiro, comida e roupa, alegando que estava a dormir na rua. 33. Mal se apercebia da presença do arguido, tanto BB como os filhos menores, ficavam logo com um grande sentimento de insegurança e de pânico. 34. Em duas deslocações à sua residência, com pena do arguido e após tanta insistência por parte do arguido, já com vergonha face ao barulho que o arguido fazia juntos dos vizinhos, BB acedeu a entregar-lhe comida e alguma roupa nuns sacos, que deixava na rua e que depois o arguido levava 35. No dia 24/12/2023, pelas 19h00m, o arguido deslocou-se de novo a casa de BB. 36. Como ela não se encontrava em casa, dado que estava no seu local de trabalho, o arguido telefonou-lhe, várias vezes, de diferentes números de contacto, alegando que precisava de dinheiro para regressar para .... 37. No dia 25.12.2023, de manhã, perto da hora de almoço, o arguido entrou no prédio onde BB residia e forçou a entrada na sua residência, danificando a respetiva fechadura, apenas não conseguindo chegar a entrar, dado que as filhas de BB ficaram a fazer força contra a porta de forma a que o arguido não a conseguisse mesmo vir a arrombar. 38. No período compreendido entre o dia 25.12.2023 e o dia 16.01.2024, o arguido ficou a viver em ..., em local desconhecido, sendo que diariamente, por várias vezes, telefonava a BB, de números fixos da cidade de ..., com o indicativo “244”, e de números de telemóvel que o arguido pede a pessoas na rua, para lhe emprestarem o telemóvel. 39. Nessas chamadas telefónicas, o arguido pede a BB dinheiro, comida e para o deixar voltar para casa, alegando que está a viver na rua. 40. Quase diariamente, desde o dia 25.12.2023 até 17.01.2024 (momento em que lhe foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva), o arguido desloca-se à sua residência, onde permanece a fazer barulho na rua até que BB acaba por lhe dar comida e ele acaba por abandonar o local porque vê que aquela não acede a deixá-lo voltar para casa e a dar-lhe dinheiro. 41. No dia 29.12.2023, à noite, o arguido dirigiu-se para as traseiras do prédio onde BB reside, começando a fazer muito barulho e a gritar. 42. A dada altura, a filha de BB, EE, acordou sobressaltada com o barulho que o arguido estava a fazer, vindo chamar BB, que foi à janela da sacada da residência, altura em que viu que o arguido se encontrava em cima de uma árvore, com um cabo de aço enrolado ao pescoço, a gritar, dizendo que se ia enforcar se BB não lhe deixasse ver o filho. 43. De seguida, BB viu que tinha no seu telemóvel uma mensagem de um colega do arguido a dizer que ele tinha estado com ele a ingerir bebidas alcoólicas e comprimidos e a consumir produtos estupefacientes. 44. Após, BB contactou as autoridades policiais, as quais compareceram no local, juntamente com uma ambulância, que transportou o arguido à Urgência do Centro Hospitalar ..., onde o arguido terá tido alta. 45. Nessa tarde, o arguido telefonou a BB, que ainda se encontrava no seu local de trabalho, a dizer que o que não o tinham deixado fazer nesse dia, iria fazer de seguida, pretendendo, dessa forma, transmitir a BB que se iria suicidar. 46. No dia 04.01.2024, pelas 16h00m, junto à entrada da rodoviária sita na Avenida ..., em ..., o arguido cruzou-se com BB que circulava na rua. 47. Mal a viu, o arguido abordou-a e pediu-lhe de novo dinheiro. 48. Como BB recusou, o arguido ficou irritado e agressivo, falando num tom de voz elevado, pedindo insistentemente dinheiro a BB durante alguns minutos. 49. O arguido apenas cessou com tais atos dado que um agente da PSP de ..., que se encontrava nas proximidades, alertado pelo comportamento do arguido, abordou o casal, questionou BB sobre o que se passava e disse-lhe para abandonar o local, ficando a dialogar com o arguido. 50. O arguido sabia que BB era sua ex-companheira, e, sempre que adotou os comportamentos supra descritos, actuou com o propósito, concretizado e reiterado de a ofender e maltratar psiquicamente de modo a atingir o seu bem-estar psíquico, a sua tranquilidade, honra e dignidade pessoais. 51. O arguido agiu do modo descrito, sabendo que infligia maus-tratos psicológicos à sua ex-companheira, humilhando-a e sujeitando-a a tratamentos degradantes e causando-lhe um estado de humilhação, ansiedade e medo permanentes. 52. O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas, para além de censuráveis, eram proibidas e punidas por lei penal. 53. O arguido confessou, de forma integral e sem reservas, os factos de que vem acusado. 54. Mostrou-se arrependido de os ter praticado. Mais se provou que: 55. O arguido é solteiro. 56. Habilitado com o 11º ano de escolaridade, o seu percurso laboral foi marcado por alguma instabilidade, mobilidade de locais de trabalho e diversidade de tarefas, decorrentes da problemática aditiva. 57. Com efeito, o arguido apresenta um percurso de vida marcado pela toxicodependência de heroína e cocaína, desde a adolescência, tendo efetuado várias tentativas de tratamento, quer em regime ambulatório, quer em internamento, por diversas vezes, em várias comunidades terapêuticas, que não se revelaram eficazes. 58. Atualmente, o arguido encontra-se acolhido na comunidade terapêutica, Associação ..., onde ingressou a 10.04.2024, com admissão imediata proveniente do estabelecimento prisional onde se encontrava recluído, na sequência da substituição da medida de prisão preventiva e de aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, fiscalizada com vigilância eletrónica e de proibição de contactos com a BB. 59. O processo de tratamento tem termo previsto para, pelo menos, abril de 2025 e tem decorrido de forma positiva, manifestando o arguido adesão e motivação para delinear um projeto de vida, nomeadamente a possibilidade de emigrar. 60. O arguido valoriza o tratamento e apresenta consciência da importância de consolidar a abstinência e manter o internamento até alta clínica. 61. Beneficia de visitas do filho e da irmã, de acordo com a disponibilidade desta para realizar as deslocações e mantém contactos telefónicos com a mãe, que reside na zona norte. 62. A execução da medida de coação de obrigação de permanência na habitação a que está sujeito tem decorrido de forma positiva, não se registando qualquer anomalia até ao presente. 63. Não se identificam repercussões negativas da presente situação jurídico-processual a nível familiar, profissional e de inserção social. E que: 64. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta. Discutida a causa, e com pertinência para o apuramento da responsabilidade criminal do arguido, não se provou: a) Que, ao actuar conforme descrito em 25 a 49 supra, o arguido tenha renovado os seus propósitos. b) Que o arguido tenha actuado com o propósito, concretizado e reiterado, de atingir BB no seu bem-estar físico. c) Que o arguido agiu sabendo que infligia maus-tratos físicos a BB. O Tribunal fundou a sua convicção a partir da análise crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, bem como nos documentos juntos aos autos, em conjugação com as regras da experiência comum. Assim, alicerçou o Tribunal a sua convicção, essencialmente, nas declarações que o arguido AA decidiu prestar em audiência de discussão e julgamento – o qual confessou, de forma integral e sem reservas, os factos de que vem acusado, mais evidenciado arrependimento, que este Tribunal teve por sincero, da adopção de tais condutas –, em conjugação com a prova por declarações para memória futura de BB, valoradas nos moldes permitidos pelo disposto nos artigos 271.º e 356.º, n.º 2, al. a), ambos do Código de Processo Penal, prova testemunhal – depoimento da testemunha FF, irmã do arguido, à matéria da personalidade e situação pessoal – e documental coligida nos autos e examinada em idêntica sede – mormente, auto de notícia por detenção e aditamentos de fls. 2 a 8, 100, 104, 111, 121, 122, 132, 133, 138, 139 e 215, fichas de Avaliação do Risco de fls. 14 a 15, 112 a 114, reportagem fotográfica de fls. 27 a 35, informação de serviço de fls. 157 a 158, elementos clínicos do arguido de fls. 216, relatório social de fls. 385 a 387 e certificado de registo criminal do arguido de fls. 383 a 383v. –, as quais foram de molde a sustentar, inequivocamente, a matéria factual que supra se deixou consignada na correspondente rubrica “Factos provados”. Arredada de sustentação resultou tão só, na verdade, a matéria que se fez consignar, por um lado, na al. a) da rubrica “Factos não provados” – por nenhuma evidência resultar (produzida ou examinada) de que o arguido tivesse tomado nova resolução criminosa, posto que no próprio dia da suspensão provisória do processo (e daí em diante, até à sua prisão preventiva) continuou a actuar como até então, na execução reiterada do mesmo propósito (levando à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública, nos termos do disposto no artigo 358.º, n.ºs 3 e 1, do Cód. Proc. Penal) – e, por outro lado, nas als. b) e c) da rubrica “Factos não provados” – conquanto inexista qualquer conduta objectiva imputada pela acusação publica ao arguido suscetível de comportar a intencionalidade cometida.
D) Enquadramento Jurídico-Penal Uma vez apurados os factos provados e não provados e explicitada a inerente motivação do Tribunal, importa proceder ao enquadramento jurídico-penal dos factos praticados pelo arguido AA. Vinha imputada ao arguido a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de 2 (dois) crimes de violência doméstica agravados, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, e 152.º, n.ºs. 1, al. b), 2, al. a), 4 e 5, ambos do Código Penal. Vejamos: Dispõe o n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal que «Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição de recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: (…) b) A pessoa do outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; b) A progenitor de descendente comum em 1.º grau (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”, sendo certo que, nos termos do n.º 2, al. a), do mencionado preceito, se o agente “Praticar o facto […] na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima […]é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”. A incriminação consagrada no mencionado artigo 152º visa prevenir essencialmente, e desde logo, «...as frequentes e, por vezes, tão “subtis” quão perniciosas – para a saúde física e psíquica e/ou para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem estar – formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho» (cfr. AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pp. 329 e ss.), podendo dizer-se que a necessidade prática desta criminalização assenta simultaneamente em dois factores essenciais: por um lado, a circunstância de muitos dos aludidos comportamentos não integrarem, por si só, a prática de um crime autónomo e, por outro, o assumir da progressiva «...consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos» (idem). Quanto a este último aspecto, pode falar-se numa neo-criminalização, que veio colocar em crise o mito segundo o qual a família, a escola e a fábrica constituem ‘feudos sagrados’ nos quais o direito penal não se deveria imiscuir. O ratio deste crime não é, ao contrário do que à primeira vista se poderia supor, a protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim a protecção pessoal e individual da dignidade humana, sendo punidos por esta norma os comportamentos que lesam de forma reiterada esta dignidade, e podendo por isso afirmar-se que o bem jurídico protegido por este crime é, acima de tudo, a saúde (cfr. AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, op. cit., p. 332). Relativamente ao tipo objectivo deste crime, trata-se evidentemente de um crime específico, uma vez que pressupõe que entre o sujeito activo e o sujeito passivo exista uma certa e determinada relação especial, necessariamente uma das tipicamente previstas no aludido preceito. No caso vertente, e tendo em conta a matéria inscrita em 1 a 4 da rubrica “factos provados” não se suscita qualquer dúvida quanto à verificação da especial relação prevista na al. b) – e, bem assim, na al. c) – do n.º 1 do artigo 152º do Código Penal no que concerne ao arguido e à ofendida BB. Após a última revisão legislativa levada a cabo no tipo legal de crime em causa, esclareceu-se o que vinha sendo, precisamente a maior querela interpretativa anteriormente suscitada, que consistia, precisamente em saber se se exigia uma actuação reiterada do agente, repetindo sucessivamente condutas, alongando a violação típica no tempo, mesmo que por actuações diversas ou se bastava um único acto isolado, desde que a sua gravidade fosse tamanha que por si só, fosse adequado a atingir a dignidade do visado, isoladamente. E é precisamente neste último sentido que vai a actual previsão legislativa: basta um único acto para se integrar o tipo legal de crime em referência, desde que o mesmo, por si só, atinja o bem jurídico violado. Este consubstanciar-se-á, pois, na perpetração de qualquer acto de violência que afecte, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional da vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade. As condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (isto é, ofensas corporais simples), maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça, entre outros), tratamento cruel, isto é, desumano. Mister é, porém que, em casos em que não ocorra reiteração da conduta a mesma se restrinja a casos de especial violência. Ora, no caso concreto, os factos dados como provados revelam a prática pelo arguido do(s) crime(s) de que vem acusado em relação a BB.. Com efeito, embora as condutas do arguido dada como provadas nos presentes autos sejam susceptíveis de preencher igualmente os crimes de injúria, dano e coação, existe um concurso aparente entre estes crimes e o de violência doméstica, na relação de especialidade, a impor a punição por este último, à luz do bem jurídico protegido (que legitima constitucionalmente a existência da incriminação), os factos devem apresentar-se perante a vítima como dotados de um especial desvalor face àquele bem (pondo em causa a dignidade da pessoa enquanto tal, nomeadamente pelo desejo de domínio da relação familiar existente), sob pena de não se verificar o ilícito de violência doméstica. Ora, cremos que os factos apurados nos autos revelam o “especial desvalor da acção” da conduta do arguido, pela sua configuração global de desrespeito pelas pessoa da vítima e de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciando um estado de degradação e enfraquecimento da dignidade pessoal desta, bem como um perigo e ameaça de prejuízo sério para a respectiva saúde e para o bem-estar psíquico – cfr. Ac. TRP 28/9/2011 www.dgsi.pt/jtrp. A nosso ver, a actuação do arguido – independentemente da maior ou menor resiliência de BB – revela um tratamento insensível e degradante da condição humana da atingida, reconduzindo-a a uma vivência de tensão e de subjugação, que permite e justifica a relação de especialidade com outras normas punitivas, preenchendo os elementos típicos do crime de violência doméstica. A questão que se coloca é a de saber quantos crimes de violência doméstica praticou o arguido sobre BB. A acusação pública, como sabemos, imputa a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de dois crimes de violência doméstica agravados, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, e 152.º, n.ºs. 1, al. b), 2, al. a), 4 e 5, ambos do Código Penal. Assim seria se a materialidade dos factos acusados revelasse uma interrupção da resolução criminosa do arguido, motivada pela suspensão provisória do processo. Sucede que, conforme aduzido pela própria acusação, nesse mesmo dia (da suspensão provisória) o arguido repetiu as condutas criminosas, fazendo com que entre as que lhe precederam e as que lhe sucederam se estabelecesse uma linha de continuidade de violação do bem jurídico violado. Consubstanciada acha-se, assim, a prática de um único crime de violência doméstica agravado sobre BB, e não dois conforme imputado pela acusação pública. Mais tendo resultado provado que algumas das condutas praticadas pelo arguido o foram na residência comum do ex-casal, amiúde na presença do filho menor, mostra-se, em nosso entender, integralmente preenchido o tipo previsto no n.º 2, al. a), do artigo 152.º do Código Penal. Relativamente ao tipo subjectivo – o crime de violência doméstica é necessariamente um crime doloso –, e face à matéria de facto provada logo avulta que o mesmo também se mostra verificado, sendo o seu dolo um dolo directo – cfr. artigo 14º, n.º 1, do Código Penal. Constata-se, pois, que se mostra integralmente preenchido o tipo legal do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do Código Penal, pelo que a conduta do arguido é típica. Por outro lado, constata-se que não existe qualquer causa de justificação que afaste a ilicitude afirmada pela violação da norma legal, pelo que a conduta do arguido é igualmente ilícita. No que diz respeito à culpabilidade, ficou igualmente demonstrado que o arguido formou livremente a sua vontade, sabendo que o seu comportamento era criminalmente punível, pelo que o mesmo é susceptível de ser alvo de um juízo de censura formulado pela ordem jurídica. Constata-se assim, e face a tudo o exposto, que AA cometeu factos típicos, ilícitos e culposos, em relação a BB, pelo que o mesmo terá de ser punido – in casu, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs. 1, al. b), 2, al. a), 4 e 5, do Código Penal. * Consigna-se que a presente alteração da qualificação jurídica dos factos pode – e será – considerada pelo Tribunal, conquanto cumpridos os formalismos previstos no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Processo Penal. Efectuado o enquadramento jurídico-penal das condutas do arguido, cumpre proceder à determinação da natureza e medida da sanção a aplicar-lhe, nos termos dos artigos 40º, 70º e 71º do Código Penal. O crime praticado pelo arguido nos presentes autos é punível com pena de prisão de 2 a 5 anos [uma vez que se verifica a condição prevista no n.º 2, al. a), do artigo 152º do Código Penal]. Estipula o artigo 71º, n.º 1, do Código Penal, que «A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». A culpa do agente é desde logo, em homenagem ao princípio constitucional inviolabilidade da dignidade da pessoa humana, um limite inultrapassável – cfr. o artigo 40º, n.º 2, do Código Penal. Dentro da moldura penal abstracta, a culpa do agente define, assim, o limite máximo da pena concreta a aplicar; da mesma forma que em caso algum poderá haver pena sem culpa (toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta – cfr. artigo 13º do Código Penal), nunca a medida concreta da pena poderá ultrapassar a medida da culpa do agente – nisto consiste o Princípio da Culpa (cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, p. 73). No entanto, a culpa do agente não é o único critério a ter em conta na determinação da medida concreta da pena – a culpa do agente é condição necessária mas não suficiente de aplicação da pena (cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, op. e loc. cit.). De facto, há que ter em conta também, como refere o artigo 71º, n.º 1 do Código Penal, as exigências de prevenção. Na verdade, e sem embargo da importantíssima função delimitadora da culpa, «as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade» (JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, op. cit., p. 227; cfr. ainda o do n.º 1 do artigo 40º do Código Penal). Refira-se por fim que, nos termos do n.º 2 do artigo 71º do Código Penal, «...o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele...». No caso vertente, constata-se desde logo que são muito elevadas as exigências de prevenção geral. Com efeito, o crime praticado pelo arguido tem-se revelado, fruto da supra referida progressiva consciencialização ético-social sobre a gravidade individual e social destes comportamentos, um dos mais sensíveis no seio da comunidade em geral [veja-se, a este respeito, as sucessivas alterações legislativas ao tipo penal e as lamentáveis estatísticas que nessa área têm vindo a ser divulgadas]. Por outro lado, é igualmente elevado o grau de ilicitude dos factos, embora não haja que olvidar a que os mesmos foram praticados em contexto de consumos de produtos estupefacientes, embora prolongados no tempo. Contra o arguido pode ainda apontar-se a intensidade do seu dolo – que é, relembre-se, directo. As consequências dos factos, reputamo-las médias médios: essencialmente danos psicológicos e emocionais provocados na ofendida. Em benefício do arguido temos a considerar, porém, a relevante confissão, integral e sem reservas, efectuada em audiência de discussão e julgamento, e o arrependimento demonstrado. Para além disso, o arguido não detém, como se referiu, antecedentes criminais, o que, no caso, diminui as exigências de prevenção especial, as quais não ficam ainda mais esbatidas pela circunstância de o arguido se encontra, à data, abstinente, revelando um percurso de sucesso na comunidade terapêutica onde se encontra. Não há que desprezar a circunstância de o arguido se encontrar familiarmente inserido. Tudo sopesando, ponderadas as supra referidas circunstâncias à luz dos critérios acima mencionados, reputa-se adequada a pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão. * Aqui chegados, importa, de seguida, averiguar se as circunstâncias impõem o cumprimento da pena com efectiva prisão da liberdade ou se se bastam com uma pena de substituição. Por força da pena concreta aplicada ao arguido, mostram-se, desde logo, arredadas as penas de substituição previstas nos artigos 43.º, 45.º e 58.º do Código Penal. Porém, o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, estabelece que «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição». Subjacente ao sistema punitivo do nosso Código Penal encontra-se a concepção de que a pena privativa da liberdade constitui a última ratio da política criminal. Consequência do privilégio concedido ao sentido pedagógico e ressocializador das penas, eis que surgem as denominadas penas alternativas (de multa) e de substituição (no que ora releva, de suspensão de execução da prisão), cuja aplicação o julgador apenas deve negar quando a pena de prisão se revele, do ponto de vista da prevenção – geral e especial – indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias. No caso em apreço, e considerando os elementos que referenciamos supra, afigura-se-nos que a censura dos factos e a ameaça da prisão serão suficientes para satisfazer as necessidades de reprovação e de prevenção do crime, desde que acompanhada tal suspensão de regime de prova. Com efeito, na suspensão da execução da pena não estão em causa considerações de culpa, mas apenas de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, e de prevenção especial. Perante um prognóstico favorável nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, são considerações de prevenção especial que determinam a socialização do arguido em liberdade, por assim se lograr alcançar a finalidade reeducativa e pedagógica, pela ameaça da pena, e ser adequada e suficiente às finalidades da punição. Por outro lado, nos termos do disposto no artigo 53.º, nºs 1, e 2, do Código Penal, o Tribunal pode determinar que a suspensão da execução da pena de prisão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade, assentando tal regime num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social durante o período de suspensão da pena. No caso ora em apreciação, tal regime de prova deverá comportar a obrigação de avaliação/manutenção do acompanhamento ao nível da problemática da dependência de produtos estupefacientes, sem que o que resultará prejudicado o processo de ressocialização do arguido. Considerando ainda que, nos termos do artigo 50.º, n.º 5 do Código Penal, na redacção vigente, dada pela Lei n.º 94/2017, de 23 de Agosto, “O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos”, entende-se por adequado fazer corresponder o período temporal da suspensão ao período da pena de prisão aplicada: 2 (dois) anos e 8 (oito) meses. Por tudo o que ficou exposto, decide-se suspender a execução da pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão aplicada ao arguido AA, por igual período, acompanhada de regime de prova, assente num plano de reinserção social, comportando a obrigação de avaliação/manutenção do acompanhamento ao nível da problemática da dependência de produtos estupefacientes, executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social durante o período de suspensão da pena. Dispõe o artigo 152.º, n.ºs 4 e 5 do Código Penal – pelos quais vem o arguido igualmente acusado –, que: “(…) 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. (…)”. As penas acessórias supra transcritas visam, indubitavelmente, proteger a(s) vítima(s). “Mas o legislador não se preocupou apenas em proteger a vítima, pois ao consagrar a pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, demonstrou uma vontade de intervir junto do agressor de forma educacional e ressocializadora. É a tomada de consciência de que sem descurar a protecção e auxílio que deve ser dado às vítimas, é importante que os agressores sejam também objecto de controlo, intervenção e tratamento, pois se é correcto que proteger a vítima é mais humanitário e como tal mais compreensível, é questionável que seja o meio mais eficaz, pois não elimina o risco que o agente representa para outras possíveis e, infelizmente, prováveis vítimas. É necessário – não obstante ser difícil – procurar o equilíbrio entre a punição e o tratamento, entre a protecção da vítima e a intervenção sobre o agressor, considerando que quer a vítima quer o agressor são duas faces distintas do mesmo problema complexo, que é a violência doméstica, e que o acompanhamento do agressor pode até ser a melhor forma de proteger esta e outras vítimas, só assim se evitando a reincidência” – cfr. Dissertação “A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E AS PENAS ACESSÓRIAS”, Cristina Augusta Teixeira Cardoso, Universidade Católica, Maio 2012, pag. 36 a 37. Temos pois, que à condenação em pena principal pode acrescer a condenação em pena acessória [cf. art. 65.°, n.º 2, do Código Penal], tratando-se aqui de um poder-dever para o Juiz, uma vez verificados os pressupostos de que depende esta condenação. Na verdade, convém ter presente que apesar da aplicação de uma pena acessória pressupor a condenação numa pena principal, não se basta com esta, pois a sua aplicação depende do preenchimento de diferentes requisitos, relacionados com a execução do crime, com a culpa do agente, sendo que nem todas as situações reclamam a aplicação desta pena, mas apenas os casos mais graves. Pressuposto formal da condenação nas penas acessórias é que haja uma condenação pelo crime de violência doméstica. Significa isto que o agente pode ser condenado nas penas acessórias, independentemente do tipo de pena (prisão ou multa) ou do seu montante, o que mostra a ligação entre a pena acessória e o crime e ainda que a pena principal seja substituída por uma qualquer outra pena legalmente admissível – v.g., a suspensão da execução da pena de prisão aplicada, nos termos do art. 50.º. Ora, revertendo ao caso sub judice, no que tange às penas acessórias que visam a protecção da vítima, pese embora a interiorização do mal das condutas praticadas evidenciada pelo arguido em audiência de discussão e julgamento, ainda tempo não decorreu que permita a estabilização do contexto relacional dos intervenientes. Temos, assim, por pertinente, face à matéria apurada nos autos, a aplicação ao arguido da requerida pena acessória de proibição e contactos com a vítima, BB. No que tange, por outro lado, às penas acessórias que promovem a ressocialização do arguido, não vemos que a aplicação destas seja mais eficaz do que o acompanhamento (vg. ao nível do tratamento da dependência de produtos estupefacientes) que o Tribunal já determinou no âmbito do regime de prova a que se acha sujeita a suspensão da execução da pena principal. Não se aplicarão, assim, tais penas acessórias. Em face do que antecede, decide-se aplicar ao condenado a pena acessória de proibição de contactos, por qualquer meio, com a vítima, BB, durante o período da suspensão da execução da pena principal – excepto os estritamente necessários ao exercício das responsabilidades parentais do filho comum. São devidas custas pelo arguido – taxa de justiça e demais encargos com o processo – nos termos dos artigos 513.º e 514.º n.º 1 do Código de Processo Penal. O arguido AA encontra-se sujeito às seguintes medidas de coacção: a) às obrigações decorrentes do TIR prestado nos autos; b) à medida de coação de obrigação de permanência na habitação, sujeita a vigilância eletrónica, ao tratamento da sua toxicodependência nesse local e à proibição de contactar com BB, devendo permanecer na Comunidade Terapêutica onde se encontra 24 sobre 24 horas, não se podendo dela ausentar em caso algum sem autorização do Tribunal (nos exatos moldes determinados no despacho de refª 106820543, de 04.04.2024). É consabido que as medidas de coacção são aplicadas por despacho do juiz de instrução criminal até à remessa do processo para julgamento e, depois, mesmo oficiosamente, pelo Juiz de julgamento – cfr. artigos 17.º e 194.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal. Não há que olvidar, porém, que – conforme preceitua o artigo 191º, n.º 1, do Código Processo Penal – “a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei”, sendo certo ainda que “as medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas” – cfr. artigo 193.º, n.º 1, do Código de Processo Penal –, tendo em atenção os perigos enunciados no artigo 204.º do Código de Processo Penal. Tendo presente que subjazem exigências cautelares, exclusivamente processuais, no que tange ao estatuto coactivo do arguido, a esta distância, face às agora conhecidas sanções aplicadas pelo Tribunal, temos por suficiente, adequado e proporcional para garantia das necessidades cautelares do processo, a sujeição do arguido, para além das obrigações decorrentes do Termo de Identidade e Residência, já prestado, à proibição de contactar, por qualquer meio, com a vítima, BB. Decide-se, pois, no que respeita ao estatuto coactivo do arguido AA, ao abrigo do disposto nos artigos 191º, 192º, 193º, 196º, 200º, nº 1, alínea d), 204º, alínea c), e 212.º, n.º 3, todos do Código de Processo Penal, mantê-lo sujeito às medidas de coacção de sujeição às obrigações decorrentes do TIR (já prestado) e de proibição de contactar, por qualquer meio, com a vítima BB, as quais se reputam suficientes, adequadas e proporcionais para garantia das necessidades cautelares do processo. (…)”,
C)Apreciação do recurso
- Impugnação da matéria de facto dada como não provada.
Nos termos do disposto no artigo 428.º do Código de Processo Penal, o Tribunal de Relação conhece de facto e de direito. Começa o Ministério Público, ora recorrente, por colocar em causa a factualidade vertida nas três alíneas dos factos não provados. No que tange à matéria de facto, esta pode ser impugnada por duas vias distintas: através da invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2 do Código de Processo Penal, no que se convencionou chamar de “revista alargada” (de conhecimento oficioso)ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que respeita o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma. É consabido que a chamada revista alargada configura uma impugnação restrita da matéria de facto, mas não é a verdadeira impugnação da matéria de facto conforme o disposto no art. 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal. Tratam-se de institutos distintos com natureza e consequências distintas. Resulta do disposto no artigo 410º, nº 2, do CPP, que “ «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: al.a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; al. b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e al.c) erro notório na apreciação da prova». Estes vícios são do conhecimento oficioso – conforme jurisprudência fixada no acórdão nº7/95, de 19 de outubro, in Diário da República, I Série – A, de 28/12/1995 - e constituindo um defeito estrutural da decisão têm que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para os fundamentar como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da decisão que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente. Nesta forma de reagir, o tribunal de recurso limita-se a detetar os vícios que a sentença em si mesmo evidencia - neste caso o objeto de apreciação é apenas a peça processual recorrida - e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art. 426º, nº1). No caso vertente, o recorrente questiona a matéria de facto dada como não provada com base na invocação do vício decisório da alínea b) do artigo 410, nº2, do CPP”. Refere-se esta alínea à “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”. A contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão supõe posições antagónicas e inconciliáveis entre si nos factos descritos ou entre essa descrição e fundamentação: no primeiro caso (contradição insanável da fundamentação), incluem-se situações em que, por exemplo, se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado e já no segundo (contradição insanável entre a fundamentação e a decisão), incluem-se as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão: por exemplo, a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas (Ac. do TRC de 13/5/2020, proc.9/19.0GBMDA, in dgsi.pt). Como se salientou no acórdão do STJ de 13.10.1999, in CJ Acs. STJ, ano XXIV, tomo III, pág.184, Existe o vício de contradição insanável de fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal. Sustentou-se também no acórdão do STJ de 22.02.2007, proferido no proc. Nº.07P147 e acessível em www.dgsi.pt, que tal vício apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas ainda que com recorrência ao contexto da decisão no seu todo ou às regras de experiência comum. No caso vertente, o recorrente fez assentar o vício invocado no segmento da contradição entre a fundamentação e a respetiva decisão ao dar como não provados os factos vertidos nas respetivas alíneas a), b) e c). Consta das mesmas o seguinte: a) Que, ao atuar conforme descrito em 25 a 49 supra, o arguido tenha renovado os seus propósitos. b) Que o arguido tenha atuado com o propósito, concretizado e reiterado, de atingir BB no seu bem-estar físico. c) Que o arguido agiu sabendo que infligia maus-tratos físicos a BB. Já a respeito da fundamentação aduzida a tal propósito, consta do texto da sentença recorrida o seguinte: “Arredada de sustentação resultou tão só, na verdade, a matéria que se fez consignar, por um lado, na al. a) da rubrica “Factos não provados” – por nenhuma evidência resultar (produzida ou examinada) de que o arguido tivesse tomado nova resolução criminosa, posto que no próprio dia da suspensão provisória do processo (e daí em diante, até à sua prisão preventiva) continuou a actuar como até então, na execução reiterada do mesmo propósito (levando à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública, nos termos do disposto no artigo 358.º, n.ºs 3 e 1, do Cód. Proc. Penal) – e, por outro lado, nas als. b) e c) da rubrica “Factos não provados” – conquanto inexista qualquer conduta objectiva imputada pela acusação publica ao arguido suscetível de comportar a intencionalidade cometida”. Se bem percebemos, o recorrente faz a assentar a invocada contradição na circunstância de resultar do texto da decisão recorrida que o tribunal recorrido fundou a sua convicção na confissão integral e sem reservas do arguido de todos os factos constantes da acusação pública e, bem assim, nas declarações da vítima prestadas para memória futura, meios probatórios que, no seu entender, a terem sido valorados como foram, não podiam ter levado à conclusão a que chegou o tribunal ao dar como não provada a factualidade vertida nas citadas alíneas, mas sim à conclusão contrária, estando, por isso a fundamentação em contradição com a decisão. Ora, salvo devido o respeito, não assiste qualquer razão ao recorrente. Concorde-se ou não com o decidido factualmente, inexiste a invocada contradição, muito menos uma contradição insanável. Com efeito, não ignorando os meios probatórios produzidos, designadamente a confissão integral e sem reservas dos factos por banda do arguido, entendeu o tribunal recorrido, porém, que a prova produzida e examinada não evidencia que o arguido tivesse tomado uma nova resolução a partir do episódio a que se reporta o ponto 24 da factualidade provada (1º interrogatório judicial de arguido detido, ocorrido em 2/12/2023, e não qualquer suspensão provisória do processo como certamente por mero lapso se refere na decisão recorrida), pois, na sua convicção, desde o início da atuação até à prisão preventiva do arguido, este continuou a atuar como até então, na execução do mesmo propósito, e daí que tenha dado não provada a factualidade vertida na alínea a). Já quanto à demais factualidade, a vertida nas alíneas b) e c), evola do texto da sentença recorrida que a não prova da mesma resultou da circunstância de a intencionalidade aí vertida não ter qualquer suporte factual. Com efeito, não resultando da acusação pública, nem também da factualidade dada como provada na sentença recorrida, que o arguido tenha cometido qualquer mau trato físico, entendeu o tribunal recorrido inexistir conduta objetiva suscetível de comportar um propósito concretizado de atingir o bem estar físico da vítima BB. E, de facto, pertencendo o dolo ao mundo interior, à vida psíquica do agente, a extrair do comportamento exterior deste, inexistindo os factos atinentes à atuação (objetiva) do arguido a suportar tal intencionalidade (e inexistindo factos a confissão é inoperante) outra solução não restava que a dar como não provada. A decisão da matéria de facto está pois em consonância com a fundamentação aduzida. Não vislumbramos, pois, da análise do texto da decisão recorrida e da sua conjugação à luz das regras da experiência comum, o vício decisório a que se reporta a invocada alínea b) do artigo 410, nº2. Porém, no que em especial se refere à factualidade vertida na alínea a), pese embora a mesma não esteja em contradição com a fundamentação aduzida na motivação, somos do entendimento que, neste particular, o texto da decisão recorrida evidencia que o tribunal recorrido incorreu em erro notório na apreciação da prova ao dar como não provada tal factualidade – vício que sendo do conhecimento oficioso passamos a conhecer. Como vem unanimemente entendendo a jurisprudência, o erro notório na apreciação da prova trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74). No dizer destes Conselheiros, existe este vício, designadamente, “…quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida” (obra citada, pág.740). Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artigo 374, nº2 do C.P.P.). Como se escreveu no acórdão do STJ de 27/10/2010, “ o erro notório na apreciação da prova, nos termos do artº 410º, nº 2, al. c) do CPP, é uma anomalia de confeção técnica decisória, a resultar do texto da decisão recorrida, quando nela existam ou se revelam distorções de ordem lógica entre factos provados e não provados ou que traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorreta, que, por isso mesmo não passa despercebida imediatamente a uma verificação e observação sem esforço, tomando-se como ponto de referência o homem médio (…)» - cfr. CJ- ASTJ - Ano XVIII, tomo III, pág. 243 e ss. Mais recentemente numa interpretação diferente, considerando que o erro não é aquele que é percetível pelo homem médio, sustentou-se que “O erro notório é a falha grosseira percetível pelo juiz em concreto pressuposto pela ordem jurídica”, cfr Ac. STJ de 23.06.2022, processo 11/20.0GACLD.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt. Com vista a aferir-se se o Tribunal a quo incorreu em erro notório para efeito da disposição legal em análise, importa notar que o tribunal ad quem não vai analisar o conteúdo da prova, ou seja, saber se, por exemplo, os arguidos e as testemunhas disseram ou não o que consta da fundamentação da sentença recorrida. O Tribunal ad quem apenas vai analisar o percurso lógico seguido na apreciação da prova no sentido de dar resposta à questão de saber se os elementos de prova considerados permitiam concluir no sentido em que concluiu. Tal vício não pode também ser confundido com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questão do âmbito da livre apreciação da prova, princípio ínsito no artigo 127º do CPP. O que releva, neste aspeto, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos (Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 5/11/2008). No caso vertente, tendo o tribunal formado a sua convicção na confissão integral e sem reserva do arguido no que tange a todos os factos vertidos na acusação, não podia ter concluído, como veio a concluir, ao dar como não provado que “ao atuar conforme descrito em 25 a 49 supra, o arguido tenha renovado os seus propósitos”, porquanto tal renovação (a qual, aliás, pertence ao mundo interior do agente), constante da acusação pública, foi confessada pelo arguido em sede de audiência de julgamento. O Tribunal a quo ao fazer constar do texto da decisão recorrida que da prova (produzida ou examinada) nenhuma evidência resultava que o arguido tivesse tomado nova resolução criminosa errou notoriamente na apreciação a que procedeu da confissão integral e sem reservas dos factos feita pelo arguido. Ora, entre os direitos que a nossa lei processual penal reconhece ao arguido encontra-se o de não prestar declarações sobre os factos que lhe são imputados (al. d) do n.º 1 do art.º 61.º do Código de Processo Penal. Optando por prestá-las, em sede de julgamento, o arguido conserva o direito de recusar a resposta a algumas ou a todas as perguntas que lhe formulem, sem que isso o possa desfavorecer (n.º 1 do art.º 345.º). Apesar de não estar obrigado ao dever de verdade, as suas declarações são meio de prova permitido (art.º 125.º), sujeito à regra da livre apreciação da prova, consagrada no art.º 127.º Se o arguido pretender confessar os factos que lhe são imputados, o juiz, sob pena de nulidade, pergunta-lhe se o faz de livre vontade e fora de qualquer coação, bem como se propõe fazer uma confissão integral e sem reservas (art.º 344.º, n.º 1). A confissão integral e sem reservas implica (art.º 344.º, n.º 2): - Renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e consequente consideração destes como provados; - Passagem de imediato às alegações orais e, se o arguido não dever ser absolvido por outros motivos, a determinação da sanção aplicável; - Redução da taxa de justiça em metade. Porém, no n.º 3 do mesmo preceito, excetuam-se os casos em que: a) Houver coarguidos e não se verificar a confissão integral, sem reservas e coerente de todos eles; b) O tribunal, em sua convicção, suspeitar do carácter livre da confissão, nomeadamente por dúvidas sobre a imputabilidade plena do arguido ou da veracidade dos factos confessados; ou c) O crime for punível com pena de prisão superior a 5 anos. No caso dos autos, não se verifica nenhuma dessas situações de exceção, aplicando-se, assim, o regime previsto no n.º 2 do art.º 344.º. Ora, decorre da ata de audiência de julgamento de 7/10/2024 que o arguido confessou todos os factos que lhe são imputados na acusação e que questionado pela Mma Juiz se tal confissão era feita de livre vontade, fora de qualquer coação, integral e sem reservas, o mesmo respondeu afirmativamente. Mais dela decorre que perante as declarações confessórias não foi manifestada qualquer oposição à consideração da confissão prestada pelo arguido, tendo a Digna Procuradora da República prescindido dos depoimentos das testemunhas arroladas. Ouvidas a Exma Procuradora da República e a Exma defensora oficiosa do arguido foram dadas por reproduzidas as declarações para memória futura prestadas pela ofendida BB e após a inquirição de uma testemunha de defesa, a Mma Juiz determinou a passagem à fase das alegacões orais. Nessa ordem de ideias, vemos com perplexidade como é que o tribunal recorrido veio a dar como não provada a mencionada renovação do propósito criminoso do arguido no que tange aos factos ocorridos após a sujeição daquele a primeiro interrogatório judicial de arguido detido (factos dos pontos 25 a 49). Se o Tribunal tinha dúvidas sobre se a confissão do arguido abrangia este segmento da acusação, então, salvo o devido respeito, tinha o dever de as dissipar. O que não podia era ter concluído que a prova não evidenciava que o arguido tivesse tomado nova resolução criminosa. Pertencendo esta ao mundo interior do agente, uma vez confessada por este, a mesma tinha de ter sido dada como provada. Como bem se refere no acórdão de 25/9/2017 da Relação de Guimarães, proferido no processo n.º 24/15.3 T9AVV.G1, “a confissão, integral e sem reservas da arguida, abrange quer a materialidade dos factos referentes à conduta assumida, quer a factualidade referente aos elementos subjetivos do crime, designadamente, a consciência da ilicitude da sua conduta. No caso dos autos, atento o disposto no art.º 344.º, n.º 2, al. a), do CPP, não poderiam deixar de ser dados como provados os factos alegados na acusação, que foram confessados pela arguida, designadamente, os atinentes aos elementos subjetivos do tipo, sob pena de incoerência e contradição lógica entre a prova produzida e a decisão proferida sobre a matéria factual apurada”. Temos assim que ao não proceder dessa forma, incorreu a douta sentença recorrida no vício do erro notório na apreciação da prova. Como também se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/1/2014, proferido no proc. 329/06.4 TACLD.L1-3, “uma confissão que se diz integral e sem reservas, o Tribunal, se a aceita, tem de aceitar a veracidade dos factos constantes da acusação sem lhe ser lícito discutir a prova, e aplicar a lei aos mesmos. Se na apreciação que o Tribunal fez da prova excluiu a confissão, dando como não provado facto que havia sido confessado por confissão integral e sem reservas, esse desaproveitamento de meio de prova, por si só, vicia o resultado do processo probatório, configurando erro notório na apreciação da prova, pois, analisando a sentença é manifesto que o Tribunal não valorou devidamente a prova”. Claro está que o mesmo já não se passa relativamente à demais factualidade dada como não provada, porquanto, neste particular, não tendo sequer sido alegado na acusação qualquer facto suscetível de consubstanciar um qualquer mau trato físico cometido pelo arguido na pessoa da ofendida, parece-nos evidente a falta de suporte objetivo para um propósito daquele em querer atingir o bem estar físico desta, propósito que ainda que vertido na acusação apenas se conceberá por mero lapso e desatenção. Como evidente também nos parece, perante a inexistência de factos, a impossibilidade de retirar da confissão do arguido o propósito correspondente. Por conseguinte, padecendo a sentença recorrida de um erro notório na apreciação da prova no segmento em que deu como não provada a factualidade vertida na mencionada alínea a), terá a mesma de ser eliminada do elenco dos factos não provados e passar a integrar o ponto 50 da factualidade provada, sanando-se, em conformidade, o vício verificado. Ademais, sempre se dirá que sendo verdade não se evidenciar da factualidade provada, na sua globalidade, qualquer alteração do modus operandi do arguido, qualquer quebra temporal na sua conduta maltratante na pessoa da ofendida, nem também qualquer quebra de contacto físico com esta, não vemos como não extrair do comportamento levado a cabo pelo arguido posteriormente a ter sido detido e sujeito a primeiro interrogatório judicial no dia 2/12/2023, uma nova resolução criminosa. Para além da sua confissão, as regras da experiência da psicologia impunham que assim se concluísse.
A insistência do arguido em continuar a maltratar psiquicamente a ofendida nos termos descritos, mesmo após ter sido fortemente indiciado pela prática de um crime de violência doméstica agravado e sujeito a medidas de coação que passaram, para além do mais, por o proibir de frequentar ou permanecer na residência da vítima, bem como no seu local de trabalho, mantendo uma distância mínima de 500 m, aponta claramente para uma renovação do seu propósito, ou seja, no sentido de que os atos que praticou após ter sido sujeito a interrogatório judicial não são já uma mera descarga da resolução inicialmente tomada, antes supondo um novo processo deliberativo. Com efeito, com tal confronto judicial, ocorrido na sequência da sua detenção, no âmbito do qual tomou consciência da ilicitude da sua atuação e da sua censurabilidade, o arguido teve a possibilidade de refletir e de escolher/optar, entre por um fim à atividade criminosa que até aí vinha levando a cabo na pessoa da ofendida ou renová-la, pelo que tendo optado por a renovar, tal opção, a ter sido a escolhida, leva, nesta medida, a um novo crime. Temos para nós que a imputação invariável de um só crime de violência doméstica a que se vem assistindo na prática judiciária, ao concluir-se por uma unidade normativo-social que suporta a continuidade caraterística do crime de violência doméstica, sem ter em conta a extensão e os contornos do caso concreto, carece de ser corrigida e, no caso concreto, o afastamento da nova resolução, não só se mostra contrariada pela confissão integral e sem reservas do arguido, como contraria, como referimos, as regras da experiência da psicologia. Em suma, concluindo-se pelo já assinalado erro notório na apreciação da prova e eliminando-se a mencionada alínea a) do elenco dos factos não provados, o artigo 50 da factualidade provada passará a ter a seguinte redação: “50. O arguido sabia que BB era sua ex-companheira, e, sempre que adotou os comportamentos supra descritos de 1 a 22 e de 24 a 48, atuou com o propósito, concretizado, reiterado e renovado (no segundo caso) de a ofender e maltratar psiquicamente de modo a atingir o seu bem-estar psíquico, a sua tranquilidade, honra e dignidade pessoais”. Mal andou, pois, o tribunal recorrido, ao dar como não provada tal renovação do propósito criminoso do arguido, como também a proceder a uma alteração da qualificação jurídica dos factos, de dois crimes (como lhe vinha imputado na acusação pública) para um crime de violência doméstica e, por fim, a concluir pela verificação de um único crime de violência doméstica, assente numa ausência de interrupção da resolução criminosa, a qual, como referimos, não tem qualquer sustento. Assente que a atuação do arguido descrita na factualidade, ainda que mais ou menos contínua temporalmente, consubstancia duas autónomas resoluções - uma delas abrangendo os factos ocorridos até ao interrogatório judicial (pontos 5 a 23 da factualidade provada) e outra abrangendo o período de 2/12/2023 a 17/1/2024 (pontos 24 a 49 dessa mesma factualidade), cremos poder afirmar, sem necessidade de grandes considerações, estar-se perante uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude, no caso, a prática de dois crimes de violência doméstica, p. e p. nos termos do artigo 152.º, n.ºs. 1, al. b), 2, al. a), do Código Penal, sendo que em relação a cada um dos supra mencionados períodos mostram-se preenchidos os elementos objetivos e subjetivos deste tipo de ilícito (como, aliás, já havia concluído o tribunal recorrido aquando do enquadramento jurídico-penal a que procedeu, ainda que por referência a uma única resolução criminosa a abrange a globalidade da conduta), bem como a circunstância agravante prevista na alínea a), do nº2, do artigo 152º, do C.Penal, porquanto em cada um dos períodos temporais definidos a que se reporta cada uma das resoluções criminosas, temos condutas praticadas no domicílio da vítima, para além de algumas terem ainda ocorrido na presença de menor. Decidindo-se então pela condenação do arguido pela prática dos dois crimes de violência doméstica que lhe vinham já imputados na acusação pública, procedendo assim o recurso interposto pelo Ministério Público, importa agora extrair as devidas consequências em sede de determinação da pena, o que passará, desde já, por determinar as concretas penas parcelares a aplicar ao arguido por cada um dos referidos crimes, dentro da moldura penal abstrata de 2 a 5 anos de prisão (artigo 152º, nº1, al. b) e 2, alínea a), do Código Penal). Vejamos então. Ora, a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40º, nº 1 do C. Penal) mas, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº 2 do mesmo artigo). Por outro lado, estabelece o art. 71º, nº 1 do C. Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Um dos princípios basilares do C. Penal vigente reside na compreensão de que toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, como desde logo pronuncia o artigo 13º ao dispor que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência. Tal princípio da culpa significa não só que não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide da medida da pena, ou seja, a culpa não constitui apenas o pressuposto-fundamento da validade da pena, mas firma-se também como limite máximo da mesma pena. A este propósito, e conforme salienta o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal II, pag. 229, dentro do binómio culpa-prevenção há que ter em conta que a medida da pena não poderá ultrapassar a medida da culpa; a verdadeira função desta na teoria da medida da pena reside efetivamente numa incondicional proibição de excesso, pois, a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer questões preventivas, sejam de prevenção a nível geral positiva ou negativa, de integração ou intimidação; sejam de prevenção, neutralização ou pura defesa social. Há decerto, uma medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias: medida, pois, que não pode ser excedida em nome de considerações de qualquer tipo. Mas, abaixo desse ponto ótimo, outros existem em que aquela tutela é ainda efetiva e consistente e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se sem que esta perca a sua função primordial; até se alcançar um limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Nesta aceção, poderá até afirmar-se que é a prevenção geral positiva, ela sim (e não a culpa), que fornece um «espaço de liberdade ou de indeterminação, uma «moldura de prevenção», dentro da qual podem e devem atuar considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. De acordo com o direito vigente, na fixação da pena deve partir-se da teoria da união, a qual exige que se chegue a uma relação equilibrada dos diferentes fins da pena. A pena deve determinar-se de modo a que garanta a função retributiva, esta equacionada com o ilícito em si e a culpabilidade, sem pressuposto e limite último, e seja possível, pelo menos, o cumprimento também da missão ressocializadora da própria pena com respeito ao próprio arguido, acrescendo, deste modo, o fim da prevenção especial. Além disso, a defesa do ordenamento jurídico exige, por último, que a pena se determine de tal modo que possa alcançar um efeito sócio pedagógico na comunidade, que sirva ele de exemplo, de contra motivo à prática de idênticos ilícitos pelos demais indivíduos. Foi para fazer ou atingir a possível concordância dos fins das penas no caso concreto, que se desenvolveu na jurisprudência a teoria da margem da liberdade, teoria segundo a qual a pena adequada à culpabilidade não é uma medida exata. A pena concreta é fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa) determinado em função da culpa, intervindo os outros fins das penas – prevenção geral e prevenção especial – dentro daqueles limites – neste sentido, vide Claus Roxin, in Culpabilidad y Prevencion em Derecho Penal, 94-113. Assim, quanto à determinação da pena a aplicar ao agente e para além da culpa do mesmo e das exigências de prevenção, geral e especial, atender-se-á, ainda, a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo deponham a favor ou contra aquele (art. 71º, nº 2, do C.Penal). São elas, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do doto ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; j) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena". Tais circunstâncias e critérios do art. 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (por exemplo, a natureza e o grau de ilicitude do facto impõem maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente - Cf. Acórdão do STJ de 28-09-2005, in Coletânea de Jurisprudência-STJ, 2005, tomo 3, pág. 173. No caso vertente, o arguido agiu com dolo direto, forma mais grave da culpa, evidenciando uma total indiferença quer às exigências de respeito, estima, e consideração que são inerentes a um relacionamento entre duas pessoas que viveram debaixo do mesmo teto como marido e mulher e com um filho em comum, quer ao sofrimento psíquico infligido aquela que foi a sua companheira e é mãe do seu filho menor. Culpa essa muito mais intensa, porém, no que concerne aos factos ocorridos após o primeiro interrogatório judicial a que foi sujeito, pois tal não foi de molde a fazê-lo arrepiar caminho, antes tendo optado por insistir novamente na sua atividade criminosa logo nesse mesmo dia 2/12/2023 e daí em diante, durante cerca de um mês e meio. Ainda que os factos tenham ocorrido num contexto de toxicodependência do arguido, tal, porém, não é de molde a atenuar a sua culpa, evidenciando até uma certa deformação da sua personalidade. O grau de ilicitude foi elevado, atento o modo de execução dos crimes e a reiteração (que chegou a ser diária) de condutas (esta mais prolongada no que tange ao 1ºcrime ocorrido), as quais para além de ofenderem gravemente a honra e consideração da ofendida, geraram na mesma, em ambos os períodos, um ambiente de intimidação, medo, terror, nocivo à sua estabilidade emocional - o arguido através de vários comportamentos, verbais e não verbais, dirigidos direta ou indiretamente à ofendida, atingiu e prejudicou o seu bem estar psicológico, insultou, humilhou, ameaçou, destruiu objetos da residência, atemorizou, intimidou, chantageou emocionalmente a ofendida. De ponderar, no entanto, na senda da decisão recorrida, a ausência de consequências gravosas para a vítima. Relativamente às necessidades de prevenção geral, como também se salientou na decisão recorrida, as mesmas são muito acentuadas ante a frequência com que se vem assistindo, cada vez mais, nos nossos dias, a maus tratos infligidos ao cônjuge, ex-cônjuge, a quem viva em condições análogas ao cônjuge ou mantenha uma relação de namoro, culminando muitas vezes com a morte da vítima. Estes casos provocam na comunidade um crescente sentimento de repulsa e indignação, do que nos dá conta, com uma frequência quase diária, os meios de comunicação social, sendo, por conseguinte, absolutamente essencial, que a sociedade sinta que determinados comportamentos sofrem uma adequada punição, mantendo-se assim a confiança geral no ordenamento jurídico. Por fim, no que concerne às exigências da prevenção especial, as mesmas fazem-se sentir, tendo em conta a personalidade deformada do arguido evidenciada nos factos, sendo de ponderar, no entanto, a seu favor, a ausência de antecedentes criminais, a circunstância de ter confessado integralmente e sem reservas os factos, evidenciando ter interiorizado a gravidade e desconformidade da sua atuação à lei, a sua integração familiar e social, o seu percurso positivo no tratamento da toxicodependência. Em face do exposto, tendo em conta os critérios supra enunciados, julgam-se justas, proporcionais, adequadas, necessárias e suficientes as seguintes penas a aplicar ao arguido, pela prática de cada um dos crimes de violência doméstica por si cometidos: - 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão pelo primeiro crime de violência doméstica cometido até ao interrogatório judicial; - 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão pelo segundo crime de violência doméstica, abrangendo os factos cometidos no dia 2/12/2023 e daqui em diante. Considerando a pluralidade dos crimes cometidos pelo arguido aos quais se reportam as penas de prisão parcelares acabadas de decidir, impõe-se efetuar o respetivo cúmulo jurídico, nos termos do art. 77º, nºs 1 e 2 do Código Penal, dentro da moldura penal abstrata de 2 anos a 6 meses a 4 anos e 10 meses de prisão. Para tanto, há que ponderar o binómio factos - personalidade do arguido. Fundamental na determinação da pena única é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse pedaço global de vida criminosa com a personalidade do agente. A pena única deve assim formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do agente e das diversas penas parcelares. Assim, com vista à determinação da pena única, decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos – a relação dos diversos factos entre si, a sua frequência, a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados, a forma de execução, a determinação da intensidade da ofensa e dimensão do bem jurídico ofendido. Volvendo-nos no caso vertente, não pode deixar de reconhecer-se que o ilícito global é de acentuada gravidade, desde logo, pelo tipo de condutas reiteradas em que se corporizou, na mesma vítima, violadoras do mesmo bem jurídico. Mostra-se elevada a censurabilidade evidenciada do conjunto dos factos. Sobre a personalidade do arguido, importa ponderar a ausência de antecedentes criminais e a interiorização a que procedeu da gravidade e desconformidade da sua atuação, confessando integralmente e sem reservas os factos e evidenciando arrependimento. Tudo conjugado, temos como adequada e proporcional uma pena única de 3 (três) anos de prisão, pena esta que na senda do já decidido pela primeira instância e das considerações tecidas a tal respeito, se suspende na sua execução, agora pelo período de 3 anos, acompanhada do regime de prova e sujeita à mesma condição imposta na sentença recorrida. Por fim, cumpre tomar posição sobre a pena acessória de proibição de contactos a que se reporta o artigo 152º, nºs 4 e 5 do CPenal, cuja determinação deve operar-se mediante recurso aos critérios gerais consignados no citado artigo 71º do Código Penal, com a ressalva de que a finalidade a atingir pela pena acessória é mais restrita, porquanto a mesma tem em vista sobretudo prevenir a perigosidade do agente, ainda que se lhe assinale também um efeito de prevenção geral. Mostrando-se justificada a aplicação ao arguido da pena acessória de proibição de contactos, a que se reporta o citado preceito legal, na senda do que a este respeito foi expendido e decidido pela primeira instância, ainda que sem necessidade de sujeição a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, por tal não se mostrar imprescindível para a proteção da vítima, entendimento que perfilhamos, tendo, porém, o arguido, em conformidade com o anteriormente decidido, sido condenado por dois crimes de violência doméstica, impõe-se também, por referência a cada um dos mencionados crimes e trazendo à liça os critérios previsto no citado artigo 71º, condená-lo na respetiva pena acessória, as quais se fixam por um período de 2 (dois) anos e 4 (quatro)meses e um período 2(dois) anos e 6 (seis) meses, respetivamente, e, em cúmulo jurídico, ao abrigo do também já citado artigo 77º,nº1 e 2, por um período de 3 (três) anos, período este durante o qual o arguido ficará proibido de contactar, por qualquer meio, com a ofendida, sem prejuízo dos necessários contactos com vista ao exercício das responsabilidades parentais, devendo ainda manter-se afastado da sua residência e do seu local de trabalho. Procede assim o recurso interposto pelo Ministério Público.
III. Dispositivo
Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgando procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, acordam os juízes da 4ª secção penal do Tribunal da Relação de Coimbra em: - Eliminar do elenco dos factos não provados a factualidade vertida na alínea a), passando o artigo 50 da factualidade provada a ter a seguinte redação: “50. O arguido sabia que BB era sua ex-companheira, e, sempre que adotou os comportamentos supra descritos de 1 a 22 e de 24 a 48, atuou com o propósito, concretizado, reiterado e renovado (no segundo caso) de a ofender e maltratar psiquicamente de modo a atingir o seu bem-estar psíquico, a sua tranquilidade, honra e dignidade pessoais”. - Consequentemente, condenar o arguido pela prática de dois crimes de violência doméstica, p. e p. cada um deles pelo artigo 152º, nº1, al.b) e nºs 2, al. a), 4 e 5, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, no que tange ao primeiro crime de violência doméstica cometido até ao interrogatório judicial e na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão pelo segundo crime de violência doméstica, abrangendo os factos cometidos no dia 2/12/2023 e daqui em diante e, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, nos termos definidos na sentença recorrida. - Ao abrigo do disposto no artigo 152º, nº 4 e 5 do Código Penal, condenar o arguido nas penas acessórias de proibição de contactos por um período de 2 anos e 4 meses e um período de 2 anos e 6 meses, e, em cúmulo jurídico, por um período de 3 (três) anos, período este durante o qual o arguido ficará proibido de contactar, por qualquer meio, com a ofendida, sem prejuízo dos necessários contactos com vista ao exercício das responsabilidades parentais, devendo ainda manter-se afastado da sua residência e do seu local de trabalho.
Não é devida tributação
(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos signatários – art. 94º, nº2, do C.P.P.)
Coimbra 26 de março de 2025 Cândida Martinho (Juiz Desembargadora Relatora) João Abrunhosa (Juiz Desembargador 1ºAdjunto Rosa Pinto (Juiz Desembargadora 2ªAdjunta) |