Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | EMÍDIO SANTOS | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA MATERIAL TRIBUNAIS JUDICIAIS QUOTIZAÇÕES SEGURANÇA SOCIAL REEMBOLSO ENTIDADE EMPREGADORA | ||
Data do Acordão: | 01/21/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - GUARDA - JL CÍVEL - JUIZ 2 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 211 CRP, 64, 65 CPC, 80 LOSJ, 4, 49 Nº1 C) ETAF, LEI Nº 4/2007 DE 16/1, LEI Nº 110/2009 DE 16/9 | ||
Sumário: | A acção em que a autora (entidade patronal) pede a condenação da ré (trabalhadora) a pagar-lhe quantia determinada, a título de reembolso de quotizações pagas por aquela à Segurança Social é da competência dos tribunais judiciais. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam na 1.ª secção cível do tribunal da Relação de Coimbra
U (…), E.P.E., com sede na (...) , propôs acção declarativa com processo comum contra C (…) residente (…, pedindo: Para o efeito alegou em resumo: A ré contestou. Na sua defesa alegou que os tribunais judiciais eram incompetentes em razão da matéria para o julgamento da acção. Segundo a ré, a presente acção, que versava sobre a relação jurídica contributiva e apelava à interpretação e aplicação de normas de natureza tributária, tinha por objecto matéria que era da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, conforme artigo 4.º e 49.º, n.º 1, alínea c) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Findos os articulados, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo conheceu da excepção de incompetência, julgando-a improcedente. A ré não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse e substituísse a decisão recorrida por outra que julgasse o tribunal a quo incompetente em razão da matéria para conhecer da causa e que, em consequência, absolvesse a ré da instância. Os fundamentos do recurso consistiram, em resumo, na imputação à decisão recorrida da violação do artigo 64.º do CPC e do artigo 80.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário. Não houve resposta ao recurso. * A questão suscitada pelo recurso é a de saber se a decisão recorrida, ao julgar improcedente a excepção de incompetência do tribunal em razão da matéria, violou o 64.º do CPC e o artigo 80.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário. * Os factos relevantes para a decisão do recurso são constituídos pelos termos do pedido deduzido pela autora e pelos factos narrados na petição para fundamentar tal pedido. * Para bem percebermos os fundamentos do recurso importa recordar que as razões da decisão foram ase seguintes: 1. Que era jurisprudência assente que a competência do tribunal em razão da matéria se aferia em função do pedido e da causa de pedir; 2. Que a causa de pedir e o pedido envolviam matérias laborais, administrativas e fiscais; 3. Que não se podia afirmar que o pedido feito na acção emergia da relação laboral entre a ré e o autor; 4. Que a acção aproximava-se mais de uma acção de regresso do que uma acção emergente do contrato de trabalho, ainda que obviamente com ele conexa; 5. Que nesta acção seria discutida a eventual responsabilidade extracontratual da ré pela circunstância de não ter liquidado uma parte de um imposto que seria da sua responsabilidade (acto ilícito) por facto que lhe foi imputado (culpa) e que causou um dano patrimonial à autora (causalidade e danos) – artigo 483.º do Código Civil. A recorrente imputa à decisão a violação do artigo 64.º do CPC e do artigo 80.º, n.º 1, da LOSJ, com base na seguinte linha argumentativa: Apreciação do tribunal: Como se vê pela exposição acabada de efectuar, a pretensão da recorrente assenta, em síntese, na alegação de que a presente acção versa sobre a relação jurídica contributiva e que as acções relativas a esta relação são da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal nos termos do artigo 4.º e 49.º, n.º 1, alínea c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF). Segundo ela a acção versa sobre a relação jurídica contributiva pelo seguinte: A decisão é de manter embora por razões diferentes das que sustentaram a recorrida. Vejamos. Em sede de competência em razão da matéria importa tomar em consideração, antes de mais, o seguinte: Segue-se do exposto que a razão estaria do lado da recorrente se, tendo em conta o objecto acção, definido pelo pedido e pela causa de pedir, a competência para o seu conhecimento fosse atribuída pelos artigos 4.º e 49.º, n.º 1, alínea c), do ETAF aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal. Esta condição não se verifica. Comecemos por apreciar a alegação da recorrente segundo a qual a presente acção versa sobre a relação jurídica contributiva. A resposta a esta alegação remete-nos para o artigo 10.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro, e para o objecto da presente acção. Nos termos do artigo supra referido, a relação jurídica contributiva consubstancia-se no vínculo de natureza obrigacional que liga ao sistema previdencial: a) Os trabalhadores e as respetivas entidades empregadoras; b) Os trabalhadores independentes e quando aplicável as pessoas coletivas e as pessoas singulares com atividade empresarial que com eles contratam; c) Os beneficiários do regime de seguro social voluntário. Para o caso interessa-nos a hipótese prevista na alínea a), ou seja, a relação jurídica contributiva que intercede entre a segurança social e os trabalhadores e as respectivas entidades empregadoras. Resulta do citado preceito que a relação jurídica contributiva consiste numa relação de natureza obrigacional entre, de um lado, a segurança social e, do outro, os trabalhadores e as respectivas entidades empregadoras. Assim, a presente acção versaria sobre a relação contributiva tal como ela é prevista na alínea supra mencionada se o pedido e a causa de pedir da presente acção suscitassem questões relativas às obrigações da autora ou da ré, enquanto respectivamente, entidade empregadora e trabalhadora, para com a segurança social, o que não é o caso. Com efeito, na presente acção não se discute a obrigação de a ré pagar quotizações à segurança social, nem a responsabilidade da autora pelo pagamento de tais quotizações. Embora o facto de onde procede a pretensão - pagamento das quotizações à segurança social em virtude de a autora ser a entidade empregadora da ré – tenha relação com o cumprimento da obrigação contributiva, o direito que a autora quer ver reconhecido não emerge directamente da relação jurídica contributiva. E não emerge directamente porque, como se escreveu acima, a relação jurídica contributiva caracteriza-se por ser uma relação de natureza obrigacional entre, de um lado, a segurança social e, do outro, os trabalhadores e as respectivas entidades empregadoras, e no caso, não se discute a relação obrigacional para com a segurança social. Na verdade, a acção não se destina a obter o reembolso de quotizações pagas à segurança social. Ela visa obter o reembolso de uma quantia em dinheiro paga a título de quotizações, que é coisa diferente de pretender o reembolso das quotizações. Para se poder falar com propriedade em reembolso das quotizações seria necessário que o pedido fosse dirigido contra a entidade a quem foi paga a quotização, no caso a segurança social, o que não é o caso. Não tem, assim, amparo no pedido e nos fundamentos da acção, as seguintes alegações da recorrente: Em suma a presente acção não versa sobre a relação jurídica contributiva, tal como ela é configurada na alínea a) do artigo 10.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social. Apreciemos agora a alegação de que a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal para o conhecimento da presente acção resulta dos artigos 4.º e 49.º, n.º 1, alínea c) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. O artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais delimita o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais. Os números 1 e 2 do preceito procedem à delimitação positiva desse âmbito, indicando os litígios cuja apreciação compete aos tribunais administrativos e fiscais. Os n.ºs 3 e 4 operam a delimitação negativa, indicando alguns dos litígios que estão excluídos dessa competência. Apesar de a recorrente não indicar expressamente a norma do artigo 4.º do ETAF de onde resultava a competência dos tribunais da ordem administrativa e fiscal para o conhecimento da presente acção, deduz-se que teve em vista a alínea a) do n.º 1, na parte em que dispõe que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais”. E laboramos neste pressuposto porque a outra norma onde a recorrente vê fundamento para atribuir a competência, para o conhecimento da presente acção, aos tribunais da ordem administrativa e fiscal é a da alínea c) do n.º 1 do artigo 49.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, segundo a qual “compete aos tribunais tributários conhecer das acções destinadas a obter o reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos em matéria fiscal”. É isento de dúvida que a presente acção destina-se a obter o reconhecimento de um direito, concretamente o direito ao reembolso da quantia que a autora despendeu com as quotizações devidas pela ré à segurança social no período de Outubro de 2010 a Maio de 2014. Sucede que este direito – a existir - não está compreendido entre os “direitos legalmente protegidos no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais” e no âmbito “direitos legalmente protegidos em matéria fiscal” (2.ª parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º e alínea c) do n.º 1 do artigo 49.º do ETAF) pois os direitos tidos em vista por estas normas são os direitos de natureza fiscal ou parafiscal a exercer em processo judicial tributário contra a administração tributária. É o que resulta do artigo 96.º do Código de Procedimento e Procedimento Tributário, segundo o qual o processo judicial tributário tem por função a tutela plena, efectiva e em tempo útil dos direitos e interesses legalmente protegidos em matéria tributária, e da alínea h) do artigo 97.º do Código de Procedimento e Procedimento Tributário combinada com o n.º 1 do artigo 9.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário. Contra esta conclusão não depõe a circunstância de a autora pedir o reembolso de uma quantia paga a título de quotizações e de as quotizações dos trabalhadores por conta de outrem para a segurança social caberem no conceito de tributos parafiscais (alínea a) do artigo 3.º da Lei Geral Tributária e o n.º 2 do mesmo preceito). Com efeito, como se escreveu acima, a presente acção não se destina a obter o reembolso de quotizações pagas à segurança social. Ela visa obter o reembolso de uma quantia em dinheiro paga a título de quotizações, que é coisa diferente de pretender o reembolso das quotizações. Segue-se do exposto que as questões suscitadas pela acção não estão compreendidas nas que aludem a 2.ª parte da alínea a) do artigo 4.º do ETAF e a alínea c) do artigo 49.º do mesmo diploma. Vejamos, de seguida, as razões pelas quais a competência do tribunal a quo é de manter, embora por razões diferentes das da decisão recorrida. Como expusemos acima, a decisão sob recurso entendeu que na presente acção seria discutida a eventual responsabilidade extracontratual da ré pela circunstância de não ter liquidado uma parte do imposto que seria da sua responsabilidade (acto ilícito) por facto que lhe foi imputado (culpa) e que causou um dano patrimonial à autora (causalidade e danos) artigo 483.º do Código Civil. Salvo o devido respeito esta interpretação do objecto da acção não tem apoio nos factos que lhe servem de fundamento nem no pedido deduzido. Com efeito, visto o princípio geral da responsabilidade civil por factos ilícitos enunciado no n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil, a presente acção visaria efectivar a responsabilidade civil extracontratual da ré se o facto de onde procede a pretensão da autora se analisasse numa violação ilícita e culposa de um direito dela ou de uma disposição legal destinada a proteger interesses dela, autora. Não é o que se passa no caso. A autora baseia a sua pretensão no facto de, na qualidade de entidade empregadora da ré, ter pago à Segurança Social as quotizações da responsabilidade desta. Trata-se de um facto lícito, descrito, de resto, na petição, como tendo constituído o cumprimento de um dever legal. O conhecimento deste facto não é atribuído a outra ordem jurisdicional e, entre os tribunais judiciais, as leis de organização judiciária também o não atribuem a nenhum tribunal de competência especializada, designadamente aos juízos do trabalho. Vejamos. A questão suscitada pelo pedido e pela causa de pedir, embora tenha relação com a relação de trabalho subordinado estabelecida entre a ré e a autora, não emerge directamente de tal relação. Deste modo, não estamos perante questão cuja resolução caiba, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 126.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aos juízos do trabalho. A questão suscitada pela presente acção tem pontos de contacto com as questões da competência cível dos juízos de trabalho previstas na alínea n) do n.º 1 do artigo 126.º da LOSJ, ou seja, com as questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja directamente competente. Com efeito a questão em discussão na presente acção trava-se entre a entidade empregadora e uma trabalhadora e tal questão emerge de uma relação conexa com a relação de trabalho, concretamente do pagamento de quotizações da ré à segurança social, que a autora fez devido precisamente à sua condição de entidade empregadora da ré. Tem pontos de contacto mas não se ajusta à hipótese prevista em tal alínea porque o pedido da autora não foi deduzido em cumulação com qualquer outro para o qual o juízo de trabalho fosse competente. Segue-se do exposto que a competência para a presente acção não cabe nem aos tribunais administrativos e fiscais nem aos juízos do trabalho. Assim por aplicação do artigo 64.º do CPC e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 40.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a competência para o conhecimento da presente acção cabe ao tribunal a quo. Improcede, em consequência, a alegação da recorrente segundo a qual, ao julgar competente para a presente acção os tribunais judiciais a decisão recorrida violou o artigo 64.º do CPC e o artigo 80.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário. Decisão: Julga-se o recurso improcedente e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida. Visto o disposto na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de a recorrente ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma nas custas do recurso. Coimbra, 21 de Janeiro de 2020.
Emídio Santos ( Relator ) Catarina Gonçalves Maria João Areias |