Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
199/22.5JACBR-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA PÊGO BRANCO
Descritores: INTERPRETAÇÃO DAS LEIS
LEIS DE AMNISTIA E PERDÃO
REVOGAÇÃO DO PERDÃO
CONTAGEM DO PRAZO PARA A VERIFICAÇÃO DA CONDIÇÃO RESOLUTIVA DA CONCESSÃO DO PERDÃO
Data do Acordão: 10/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA - JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 8.º, N.º 1, ALÍNEA A), DA LEI N.º 38-A/2023, DE 2 DE AGOSTO
ARTIGO 9.º DO CÓDIGO CIVIL
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º 8/2015 E 2/2023
Sumário: I - Em matéria de leis interpretar quer dizer, não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também eleger, dentro das várias significações cobertas pela expressão, a verdadeira e decisiva, que coincidirá com a vontade real do legislador sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório de diplomas ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei.

II - A letra da lei é o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, a função negativa de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.

III - Atendendo à excepcionalidade que caracteriza as leis de amnistia e de perdão, a interpretação das mesmas deverá conter-se no seu texto.

IV - A condição resolutiva constante do n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, conta-se a partir da entrada em vigor da lei.

V - A contagem do prazo de verificação da condição resolutiva a partir da entrada em vigor da lei não lhe atribui qualquer efeito retroactivo, já que a lei dispõe para o futuro ao estabelecer consequências para a prática de ilícitos no período de um ano subsequente à sua entrada em vigor.

VI - A prática de infracção dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da lei determina a revogação obrigatória e automática do perdão concedido, sendo indiferente a culpa do agente na verificação da condição resolutiva e que o ilícito seja sancionado com pena privativa ou não privativa da liberdade.

Decisão Texto Integral: Relator: Cristina Pêgo Branco
Adjuntos: Sandra Ferreira
Sara Reis Marques

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do Proc. Comum Colectivo n.º 199/22.5JACBR do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Central Criminal – Juiz 2, o arguido , identificado nos autos, não se conformando com o despacho que revogou o perdão que lhe havia sido concedido, veio dele interpor o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«
B. Por douto despacho ora recorrido, datado de 24-IV-2025, foi decidida a revogação do perdão aplicado por intermédio do douto despacho de 13-III-2025, mas in casu não só o perdão foi concedido muito a posteriori sobre tal outra condenação como acaba por ser revogado quase no imediato, sem que se mostre decorrido prazo de um ano subsequente à sua concessão, não existindo qualquer facto superveniente à sua concessão que motive ou justifique tal revogação, pois o que existe agora já existia antes à data da sua concessão, pelo que apenas em violação das mais elementares garantias de defesa bem como princípios da segurança jurídica e da protecção a confiança é que algo pode ser decidido e depois revogado com base em circunstancialismo anterior a tal decretação, tendo tal prazo da condição resolutiva tem de se iniciar com o decretar do perdão, não podendo ter efeitos retroactivos;
C. À data da entrada em vigor da Lei 38-A/2023 quer da condenação transitada em 02 de Fevereiro de 2024 o arguido tão-pouco se mostrava condenado com trânsito em julgado nos presentes autos e apenas poderá ser considerado o prazo de um ano a contar do trânsito em julgado da condenação dos presentes autos, pois não se trata de condenação já existente à data de entrada da lei, inexistindo motivos para revogar um perdão, cuja concessão se mostra já transitada em julgado e deverá ter efeitos imediatos na liquidação, com base em cometimento de crime que foi ele mesmo anterior ao perdão!
D. Se o perdão foi decretado em 2025 não pode ser factualidade de 2023 nem de 2024 a revogá-lo, pois tal apenas assim seria caso o perdão tivesse sido logo decretado com a entrada em vigor da lei, que pressuporia a existência de condenação já transitada à data pelo que, não podendo no âmbito da lei penal haver efeitos retroactivos em desfavor dos arguidos, ter-se-á de entender que a condição resolutiva de tal perdão perdurará desde o seu decretar e até que ocorra tal decurso do prazo pois à data de cometimento do crime subjacente ao processo 2295/23.... ainda nenhum perdão tinha sido concedido ao arguido nem se mostrava transitada em julgado qualquer condenação nos presentes autos!
E. O art. 8º n.º 1 da Lei 38-A/2023 fala em concessão do perdão sob condição de o arguido não cometer infracção dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, devendo ser entendida como entrada em vigor do perdão, que não da lei pois a não ser considerado o prazo de um ano subsequente ao perdão não haveria condição resolutiva, que exige um período probatório necessariamente posterior como sucede no caso de uma pena suspensa, cujo período de suspensão não pode ser anterior ao da própria condenação, tratando-se de um período e lapso temporal probatórios, que apenas pode contar a partir do decretar do perdão pois não poderia o perdão ser aplicado e na mesma data logo declarado extinto pelo decurso anterior do prazo de um ano e dele beneficiar qualquer arguido que a seguir a tal perdão tivesse cometido crimes!
F. A condição resolutiva tem de ser sempre a contar do evento que pode ser resolúvel pois caso o não seja mostrar-se-á totalmente desvirtuada, importando atentar na redacção da norma legal em causa (art. 8º n.º 1 Lei 38-A/2023) bem como em demais históricos conexos (arts. 11º Lei 15/94, 4º Lei 29/99, art. 2º n.º 7 Lei 9/2020) pois todas as redacções anteriores de normas similares, a consagrar perdões e condições resolutivas, falavam expressamente em “entrada em vigor da presente lei”, o que igualmente se chegou a mostrar vertida na redacção/proposta inicial, tendo depois havido alteração legislativa pois na versão final desapareceu a alusão expressa a “entrada em vigor da presente lei” e apenas refere “sua entrada em vigor”, sendo esse sua relativo ao perdão e não à lei!
G. Tendo o perdão sido concedido ter-se-á de aguardar pelo prazo de um ano para aquilatar da sua eventual revogação, que não se pode alicerçar em factos passados à sua concessão, sob pena de desvirtuação total da medida pois o que relevará é que o arguido não venha a cometer qualquer crime no ano a contar da determinação do perdão dado que só assim verdadeiramente haverá um período probatório (a ser considerado algo já passado corria-se o risco de o perdão ser aplicado e logo quase imediatamente tido por cumprido ou revogado, sem qualquer real período probatório de 12 meses!);
H. A intenção do legislador (que por vezes deixa a desejar!) foi que houvesse um período probatório de 12 meses e que os perdoados tivessem consciência dessa realidade, abstendo-se de cometer crime(s), não podendo funcionar um lapso temporal passado quando à data do seu início nenhuma condenação havia, nenhum perdão tinha sido concedido nem se havia iniciado qualquer período probatório dado que todo e qualquer arguido a quem seja concedido qualquer perdão não deixaria de representar que o mesmo apenas seria revogado caso após tal concessão viesse a cometer novo crime doloso, sendo o entendimento mais conforme aos princípios da protecção da confiança e da segurança jurídicas por inexistir qualquer “infração superveniente”;
I. In casu, e contrariamente ao alegado pelo Tribunal a quo a fls. 2. 2º parágrafo, o arguido não “veio a ser” condenado, já o tinha sido muito antes, devendo também funcionar os elementos históricos e teleológico, salvo o devido respeito, ter-se-á de entender que a condição resolutiva acabou por ficar condicionada à entrada em vigor do perdão, ou seja, a sua decretação, julgando-se inconstitucional interpretação diversa pois, não fazia sentido nem seria materialmente justo que, caso os factos ilícitos fossem de 02 de Setembro de 2024, fosse tal perdão aplicado em Março de 2025 tido por não revogado e julgada verificada e cumprida a condição resolutiva, impondo-se encontrar uma metódica de concordância prática que não fira de morte qualquer dos direitos;
J. Tem-se por inconstitucional a interpretação e dimensão normativa do art. 8º n.º 1 Lei 38-A/2023, por violação dos princípios da legalidade, (des)igualdade, culpa, proporcionalidade, adequação e proibição do excesso bem como proibição de aplicação retroactiva de lei penal, no sentido de “O perdão aplicável nos termos da Lei 38-A/2023 é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor de tal Lei 38-A/2023, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada”;
K. Mostra-se disforme à Lei fundamental a interpretação e dimensão normativa do art. 8º n.º 1 Lei 38-A/2023, por violação dos princípios da legalidade, (des)igualdade, culpa, proporcionalidade, adequação e proibição do excesso bem como proibição de aplicação retroactiva de lei penal, no sentido de “O perdão aplicável nos termos da Lei 38-A/2023 é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor de tal Lei 38-A/2023, independentemente das datas das condenações, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada”;
L. Tem-se por inconstitucional a interpretação e dimensão normativa do art. 8º n.º 1 Lei 38-A/2023, por violação dos princípios da legalidade, (des)igualdade, culpa, proporcionalidade, adequação e proibição do excesso bem como proibição de aplicação retroactiva de lei penal, no sentido de “O lapso temporal de 12 meses que constitui condição resolutiva do perdão aplicável nos termos da Lei 38-A/2023 conta-se sempre da data de entrada em vigor da tal lei, não obstante a sua aplicação tenha lugar em condenação transitada em julgado muito para além do decurso integral de tal marco temporal, que se mostrava à data já totalmente expirado e decorrido”:
M. Ou numa outra perspectiva, tem-se por inconstitucional a interpretação e dimensão normativa do art. 8º n.º 1 Lei 38-A/2023, por violação dos princípios da legalidade, (des)igualdade, culpa, proporcionalidade, adequação e proibição do excesso bem como proibição de aplicação retroactiva de lei penal, no sentido de “O perdão aplicável nos termos da Lei 38-A/2023 é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor de tal Lei, podendo ser concedido já para além de tal marco temporal e alvo de revogação a assentar na prática de crime cometido no ano subsequente à entrada em vigor da lei, cuja condenação seja anterior à relativa aos autos em que foi aplicado”;
N. Mostra-se disforme à lei fundamental a interpretação e dimensão normativa do art. 8º n.º 1 Lei 38-A/2023, por violação dos princípios da legalidade, (des)igualdade, culpa, proporcionalidade, adequação e proibição do excesso bem como proibição de aplicação retroactiva de lei penal, no sentido de “O perdão aplicável nos termos da Lei 38-A/2023, e concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, pode ser revogado mesmo em caso de a sua aplicação/determinação ser posterior não só a tal marco temporal de um ano subsequente à entrada em vigor da Lei como aos próprios factos e trânsito em julgado de tal outra condenação, por crime cometido no ano subsequente à entrada em vigor de tal Lei”;
O. Ou numa outra perspectiva, é inconstitucional a interpretação e dimensão normativa do art. 8º n.º 1 Lei 38-A/2023, por violação dos princípios da legalidade, (des)igualdade, culpa, proporcionalidade, adequação e proibição do excesso bem como proibição de aplicação retroactiva de lei penal, no sentido de “O perdão aplicável nos termos da Lei 38-A/2023, e concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, pode ser revogado mesmo em caso de ser aplicado em processo cuja condenação transitada em julgado seja posterior não só a tal marco temporal de um ano subsequente à entrada em vigor da Lei como aos próprios factos e trânsito em julgado de tal outra condenação, por crime cometido no ano subsequente à entrada em vigor de tal Lei”;
P. In casu temos que uma condenação em multa, transitada em julgado anteriormente a uma condenação em prisão bem como à concessão de um perdão, terá/teria o condão de revogar o perdão de um ano de prisão, com violação dos princípios da (des)igualdade, proporcionalidade, adequação e proibição do excesso, sendo manifesto o exagero repressivo dado que pela punição em multa (ou seja, quando notoriamente, o que se alega nos termos e para efeitos do art. 412º CPC, se mostrou efectuado um juízo de prognose favorável em favor de um qualquer arguido!) há depois como consequência todo um desvalor com punição suplementar e para além de tal punição;
Q. Não pode tal revogação ser igual e sempre imutável independentemente da natureza e da pena aplicada nessa outra condenação, não podendo alguém condenado duas vezes em prisão ter tratamento semelhante a quem o seja em multa, pois os presentes autos não são comparáveis a outros em que o arguido tivesse sido condenado também em tais outros autos em prisão efectiva, ou seja, sem qualquer juízo de prognose favorável, não sendo justo nem conforme ao princípio da (igualdade que não pode ser entendido como tratamento igualitário sob pena de manifesta desigualdade mas sim aplicar de forma igual o que semelhante e de forma desigual o não semelhante, respeitando a medida da diferença;
R. Tal revogação não poderá ser automática e bastar-se unicamente com a verificação da condição resolutiva e inerente a condenação pela prática de crime doloso, tendo de ser valorado não só o circunstancialismo de prática do crime, a sua espécie, grau de culpa e censurabilidade do ilícito bem como a natureza e medida da pena aí aplicada pois não será igual tratar-se de crime bagatelar e punido com multa, como ocorreu nos presentes autos, ou condenação em prisão efectiva por crime grave (o que não correu in casu!);
S. É inconstitucional a interpretação e dimensão normativa do art. 8º n.º 1 Lei 38-A/2023, por violação dos princípios da legalidade, (des)igualdade, culpa, proporcionalidade, adequação e proibição do excesso, no sentido de “A revogação do perdão aplicado nos termos da Lei 38-A/2023 é automática, bastando-se com verificação da condição resolutiva de condenação por crime doloso, sem atentar na diversidade ao nível da natureza de crimes e penas aplicadas num e nos outros autos”;
T. Mostra-se disforme à Lei fundamental a interpretação e dimensão normativa do art. 8º n.º 1 Lei 38-A/2023, por violação dos princípios da legalidade, (des)igualdade, culpa, proporcionalidade, adequação e proibição do excesso, no sentido de “A revogação do perdão aplicado nos termos da Lei 38-A/2023 é automática, bastando-se com verificação da condição resolutiva de condenação por crime doloso, podendo ter lugar independentemente da diversa natureza de crimes e penas aplicadas num e nos outros autos, sendo de desconsiderar por completo no juízo a efectivar, o circunstancialismo de prática do crime, grau de culpa do arguido, censurabilidade da sua conduta, natureza e dosimetria das penas aplicadas bem como eventual juízo de prognose favorável vertida na outra condenação, em caso de punição a título de multa”;
U. Mostram-se violadas as seguintes normas jurídicas: nomeadamente art. 8º n.º 1 Lei 38-A/2023; arts. 11º Lei 15/94, 4º Lei 29/99, art. 2º n.º 7 Lei 9/2020; art. 6º n.º 1 proposta de Lei n.º 97/XV/1ª; art. 2º CP; arts. 1º, 2º, 13º, 18º, 20º, 29º, 202º n.º 3 e 205º CRP; art. 9º CC; bem como violados os seguintes princípios jurídicos violados: da não aplicação retroactiva de leis e condenações penais, da culpa, da (des)igualdade, da legalidade, da protecção da confiança, da segurança jurídica,, da proporcionalidade, da adequação, da proibição do excesso e dos fins das penas.»

2. Admitido o recurso, o Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta, …

3. Não foi proferido despacho de sustentação do decidido.

4. Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer …

5. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, respondeu o recorrente, reiterando o teor da sua peça recursória.

6. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


*

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

In casu, a única questão que vem colocada à apreciação deste Tribunal é a de saber se a condição resolutiva estabelecida à concessão do perdão previsto no art. 8.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, de o beneficiário não praticar infracção dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, deve ser entendida como contando-se a partir da data de entrada em vigor desse diploma ou da data da concessão do perdão, considerando o recorrente padecer de inconstitucionalidade a interpretação dessa norma efectuada na decisão recorrida.


*

2. Da decisão recorrida

É do seguinte teor o despacho recorrido (transcrição):
«Ref. 9666942
1. Foi o arguido … condenado nos presentes autos pela prática de um crime de Ofensa à integridade física qualificada na pena de 2 anos e 3 meses de prisão.
Mediante despacho datado de 13 de Março de 2025 [Ref. n.º 96678912], foi, em conformidade com a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, perdoado um ano da sobredita sanção detentiva. Mas logo nessa decisão se exarou que
Constata-se, outrotanto, que já decorreu o prazo elencado no n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 38-A/2023. Concordamos, para tanto, com Pedro Esteves de Brito[1] quando preconiza que
Para a revogação do perdão releva a prática de crime doloso no ano subsequente à data da entrada em vigor da Lei em análise.
Assim, é a partir da entrada em vigor da Lei em apreço que se atende ao prazo de 1 ano, e não a partir da decisão em que tal perdão foi concedido [Cfr., nesse sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-10-2005, processo n.º 2631/05, relator Pereira Madeira, in Coletânea de Jurisprudência, Ano XIII-2005, Tomo III, pág. 190].
Uma vez que a Lei em análise entrou em vigor em 01-09-2023 (cfr. art.º 15.º), revelam para este efeito os crimes praticados entre as 0 h do dia 01-09-2023 e às 24 h do dia 01-09-2024 (cfr. arts. 279.º, al. c), e 296.º do Código Civil - C.C.).

Tomou-se, entretanto, conhecimento que o arguido … veio a ser condenado no âmbito do processo n.º 2295/23...., por sentença datada de 27 de Dezembro de 2023 e transitada em julgado no dia 2 de Fevereiro de 2024 [Ref. 9666942], pela prática, no dia 9 de Dezembro de 2023, de um crime de Condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei 2/98, de 03/01, na pena de 185 dias de multa à taxa diária de €5,00.
2. Tendo em consideração a condenação posta em relevo, promove o Il. Magistrado do Ministério Público a revogação do perdão concedido.
Já o arguido … defende que o prazo da condição resolutiva apena se poderá iniciar com o decretar do perdão ou, quanto muito, com o trânsito em julgado da condenação dos presentes autos. Considera que outra solução significará que o prazo da condição resolutiva passa a assumir efeitos retrotractivos em desfavor do arguido enquanto resposta não consentida pelo ordenamento jurídico. Até porque, no seu entender, a condição resolutiva se afirma também como um “lapso temporal probatório”. Mais rematando que a diferença de redacções entre a versão inicial constante da proposta de lei e a versão final bem inculcam a noção que a condição resolutiva acabou por ficar condicionada à “entrada em vigor do perdão”.
Não tem o arguido … razão… Não ressaltam, para tanto, dúvidas que o legislador quis que a concessão do perdão ficasse sujeita à condição resolutiva de o arguido não praticar infracção dolosa entre o dia 1 de Setembro de 2023 e o dia 1 de Setembro de 2024. Note-se, para tanto, que o nº 1 do artigo 8.º da Lei n.º 38-A/2023 estabelece que
O perdão a que se refere a presente lei é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada.
O feitor da lei não é, obviamente, inepto… Cabendo ao intérprete presumir que aquele “consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” [artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil]. E resulta evidente do texto transcrito que a condição resolutiva ali desenhada conhece um termo inicial expressamente indexado à entrada em vigor da lei daquele mesmo diploma legal. Contrariamente ao argumentado pelo arguido …, a expressão “entrada em vigor” ali mobilizada não quer reportar-se ao próprio instituto de perdão. Não se tratam, para tanto, de termos conciliáveis… Pela simples razão que um perdão é aplicado [artigo 14.º da Lei n.º 38-A/2023] e não «entra em vigor». Ou seja, o que entra em vigor é uma lei e não, naturalmente, um perdão! No que a mobilização da sobredita expressão clama, evidentemente, associação à prévia menção de “presente lei” constante do mesmo normativo.

2. E a este Tribunal cabe apenas aplicar a solução delineada pelo feitor da lei nos termos supra explicitados. Até porque não divisamos qualquer mácula ou motivo de censura à solução legal que justifique a sua desaplicação! Contrariamente ao apregoado pelo arguido AA, a condição resolutiva não ostenta natureza próxima ou análoga a um regime de prova…
Note-se, desde logo, que o funcionamento das condições resolutivas do artigo 8.º da Lei n.º 38-A/2023 não se mostram dependentes da afirmação ou graduação de um juízo de culpa ou de censura. Ou da indagação se com o perdão se logrou a reintegração do condenado na sociedade… Como é consensualmente afirmado num plano jurisprudencial, as condições subjacentes a medidas de graça são, conquanto verificados os pressupostos formais, de aplicação automática. Isso mesmo o explicita no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de Fevereiro de 2006 (Processo n.º 17/06) [no mesmo sentido, Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 14 de Abril de 2004 (Processo n.º 0441451) e de 25 de Setembro de 2024 (Processo n.º 849/18.8PWPRT-C.P1), do Tribunal da Relação de Évora de 27 de Setembro de 2004 (Processo n.º 1334/04.1) e do Tribunal da Relação de Lisboa de 25 de Novembro de 2024 (Processo n.º 47/16.5JBLSB-C.L1.9)] quando preconiza que
Acresce que a aplicação da condição não depende da verificação, ope judice, de qualquer pressuposto material. Ou da formulação de qualquer juízo discricionariedade cujos pressupostos importe apreciar. Pelo contrário é definida ope legis, como consequência directa e imediata de uma condenação, posterior, pela prática de crime doloso praticado durante o período de vigência da condição resolutiva do perdão.
Sendo certo, ainda, que as condenações que determinaram a revogação do perdão foram proferidas em processos autónomos, nos quais o arguido foi ouvido e exerceu todas as possibilidades de defesa, designadamente em audiência pública onde esteve presente e assistido por defensor.
Além de que também as condenações que levaram – como tinham que levar necessariamente por efeito directo da lei - à revogação do perdão, transitaram em julgado.

Emblemática é também a noção do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14 de Abril de 2004 (Processo n.º 0441451) ao estabelecer que “também, e pelas mesmas razões, a condição resolutiva opera de forma obrigatória e automática. Os tribunais estão impedidos de, verificada a condição resolutiva, recusar a revogação do perdão, num determinado caso concreto, com base em juízos sobre a inconveniência (na consideração, designadamente, dos fins das penas) da revogação” [sublinhado nosso].

3. E não podemos, outrotanto, afirmar que estamos a aplicar um diploma penal com carácter retroactivo! Na verdade, a Lei n.º 38-A/2023 teve a publicidade própria decorrente da sua publicação. Que se deu em 2 de Agosto de 2023… No que os nossos concidadãos souberam antecipadamente que, para beneficiarem de um qualquer perdão a aplicar por referência a pena imposta ou a impor, não poderiam praticar facto ilícitos dolosos entre 1 de Setembro de 2023 e 1 de Setembro de 2024! Podendo orientar a sua conduta para futuro em função de tal crivo… O artigo 8.º supra transcrito não está, pois, a ser aplicado a factos que assumam anterioridade quando em face da sua data de entrada em vigor. Não se podendo afirmar, como tal, que tal norma se afirme constitucionalmente insolvente por reporte ao artigo 29.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa!
Quem o diz, aliás, são o próprio Tribunal Constitucional e Supremo Tribunal de Justiça. Como se estabelece no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Fevereiro de 2025 [Processo n.º 35/23.5PBRGR.S1],
Como decorre do Ac. TC n.º 25/2000, de 12-01-2000, que aborda a questão da (in)constitucionalidade do art. 11.º da Lei n.º 15/94, de 11 de maio:
«(…)
14. Ao conceder um perdão sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infracção dolosa nos três anos subsequentes à data da entrada em vigor da lei, a norma impugnada estatui a resolução da medida de graça em função da prática de infracção dolosa, independentemente de esta prática ser ou não anterior à decisão judicial de aplicação do perdão.
São, pois, colocados em igualdade de circunstâncias os agentes que praticam factos dolosos após a aplicação judicial da Lei que concede o perdão e aqueles outros que tinham já praticado factos dolosos em momento anterior à decisão judicial.
(…)
Na verdade, parece correcto descobrir no artigo 11º a manifestação de uma ideia de prevenção. Mas não é correcto defender que a função preventiva da condição resolutiva só pode razoavelmente ser desempenhada a partir da decisão judicial. Bem ao contrário, a Lei nº 15/94, de 11 de Maio, ao declarar condicionalmente perdoadas determinadas penas, estabelece logo, com a publicidade inerente à sua publicação, que só poderá beneficiar do perdão quem se abstiver da prática ulterior de factos dolosos.
A finalidade preventiva obtém-se, pois, a partir da publicação e da entrada em vigor da Lei. Deste modo, não sendo decisiva para este efeito a decisão judicial que declara perdoada a pena, é plenamente justificado o igual tratamento concedido aos agentes que vierem a praticar factos dolosos em momento anterior ou posterior à referida decisão judicial.»
Nos termos do art. 8.º, n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, «1 - O perdão a que se refere a presente lei é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada.». A referida Lei entrou em vigor em 1 de setembro de 2023.
Aplicando correspondentemente aquela jurisprudência constitucional ao regime deste n.º 1 do art. 8.º da Lei n.º 38-A/2023 – também acolhida no Acórdão deste STJ, de 13-02-2025 – Proc. n.º 3688/22.8T9GMR.G1.S1: rel. Cons. Jorge Gonçalves –, impõe-se reconhecer, como sugere o Ministério Público junto deste Supremo Tribunal, que, tendo o arguido praticado crimes que poderiam beneficiar do perdão e outros após 1 de setembro de 2023 – cujas penas foram englobadas em cúmulo jurídico na pena única que ora se aprecia –, não tem a decisão cumulatória que ponderar a sua aplicabilidade.
[sublinhado nosso]
Esta mesma jurisprudência foi sendo sucessivamente afirmada noutros arestos a propósito de normas análogas ao artigo 8.º da Lei n.º 38-A/2023 em similares leis prévias de clemência. …
4. Temos, por conseguinte, que o crime julgado [por sentença transitada em julgado] no processo n.º 2295/23...., porque doloso e praticado em 9 de Dezembro de 2023, [ou seja, no ano subsequente à entrada em vigor da Lei n.º 38-A/2023], não pode deixar de conduzir à revogação do perdão que foi mobilizado em face da pena imposta nos presentes autos! Esta é, efectivamente, a resposta dada pelo legislador a tal ocorrência…
….»


*

3. Da análise dos fundamentos do recurso

O recorrente insurge-se contra o despacho que, ao abrigo do disposto no art. 8.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, decidiu revogar o perdão que lhe havia sido concedido, em virtude de ter praticado infracção dolosa no ano subsequente à entrada em vigor desse diploma.

Alega, em síntese, que quando o mencionado preceito fala em concessão do perdão sob condição de o arguido não cometer infracção dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, deve ser entendido que se refere à entrada em vigor do perdão e não da lei, pois tal prazo não pode ter efeitos retroactivos, até porque uma condição resolutiva «exige um período probatório necessariamente posterior como sucede no caso de uma pena suspensa»; e que a revogação do perdão não poderá ser automática, bastando-se com «a verificação da condição resolutiva e inerente a condenação pela prática de crime doloso, tendo de ser valorado não só o circunstancialismo de prática do crime, a sua espécie, grau de culpa e censurabilidade do ilícito bem como a natureza e medida da pena aí aplicada».´

Convoca, em abono da sua tese, a actual redacção da norma legal em causa por comparação com a das anteriores normas similares (em concreto com a substituição das palavras «entrada em vigor da presente lei» por «sua entrada em vigor»), e conclui ser inconstitucional qualquer interpretação da norma diversa da por si propugnada.

Vejamos.

A propósito do problema da interpretação das leis, já no acórdão do STJ de 09-02-1999, proferido no Proc. n.º 98A1099[2], se lia:

«1. Interpretar uma lei não é mais do que fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos; o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei (Manuel de Andrade, "Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis", págs. 21 a 26).

Interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva (Pires de Lima e Antunes Varela, "Noções Fundamentais do Direito Civil", vol. 2º, 5ª edição, pág. 130).

Quer dizer, o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório de diplomas ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei.

2. A letra da lei é, naturalmente, o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, como assinala Baptista Machado, "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador", 2ª reimpressão, Coimbra, 1987, pp. 187 e ss., uma função negativa: eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.

Ou, como diz Oliveira Ascensão "O Direito, Introdução e Teoria Geral", Lisboa, 1978, pág. 350, "a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Quer dizer que o texto funciona também como limite de busca do espírito".

3. Para apreender o sentido da lei, a interpretação socorre-se de vários meios:

"Em primeiro lugar busca reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, na sua conexão linguística e estilística, procura o sentido literal. Mas este é o grau mais baixo, a forma inicial da actividade interpretativa. As palavras podem ser vagas, equívocas ou deficientes e não oferecerem nenhuma garantia de espelharem com fidelidade e inteireza o pensamento: o sentido literal é apenas o conteúdo possível da lei; para se poder dizer que ele corresponde à mens legis, é preciso sujeitá-lo a crítica e a controlo" (Francesco Ferrara, "Interpretação e Aplicação das Leis", tradução de Manuel de Andrade, 3ª edição, Coimbra, 1978, págs. 127 e segs. e 138 e segs.).

Nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.

Socorrendo-se dos elementos ou subsídios interpretativos acabados de referir, o intérprete acabará por chegar a um dos seguintes resultados ou modalidades essenciais de interpretação: interpretação declarativa, extensiva ou restritiva.»

E, complementa o AFJ do STJ n.º 8/2015, de 29-04-2015, proferido no Proc. n.º 85/14.2YFLSB - 3.ª[3]:

«O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regula a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende, ainda, o lugar sistemático que compete à norma interpretada no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico. O elemento histórico, por seu turno, compreende todas as matérias relacionadas com a história do preceito material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.

O elemento racional, ou teleológico, consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar. A propósito deste critério realça Ferrara que “É preciso que a norma seja entendida no sentido que melhor responda à consecução do resultado que quer obter. Pois que a lei se comporta para com a ratio iuris, como o meio para com o fim: quem quer o fim quer também os meios.
Para se determinar esta finalidade prática da norma, é preciso atender às relações da vida, para cuja regulamentação a norma foi criada. Devemos partir do conceito de que a lei quer dar satisfação às exigências económicas que brotam das relações (natureza das coisas). E portanto ocorre em primeiro lugar um estudo atento e profundo, não só do mecanismo técnico das relações, como também das exigências que derivam daquelas situações, procedendo-se à apreciação dos interesses em causa
Idem, p. 141.»

Relativamente ao caso específico das leis que estabelecem medidas de graça, explica o AFJ do STJ n.º 2/23, de 15-12-2022, proferido no Proc. n.º 132/15.0TXEVR-F.E1-A.S1[4]:

«O direito de graça assume uma natureza excecional que, como tal, não comporta aplicação analógica, interpretação extensiva ou restritiva, devendo as normas que o enformam “ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas”[11][5]. Nesta medida, insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa (…)”[12][6]

Como tal, atendendo à excecionalidade que caracteriza as leis de amnistia e de perdão, a interpretação das mesmas deverá, pura e simplesmente, conter-se no texto da respetiva lei [13][7], adotando-se uma interpretação declarativa em que “não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo”[14][8].

Vale aqui, plenamente, o brocardo e princípio exceptio strictissimae interpretationis. (…)»

Tendo presentes estes ensinamentos bem como o texto do art. 9.º do CC[9], e analisada a decisão recorrida, sufragamos as considerações e conclusões nela expressas, que aqui damos como integralmente reproduzidas, sendo que a sua completude e o vasto apoio jurisprudencial que indica nos dispensam de desenvolvidas considerações, sob pena de inútil repetição.

Em reforço e em síntese, sublinhamos:

A interpretação do recorrente, segundo a qual quando o art. 8.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, fala em concessão do perdão sob condição de o arguido não cometer infracção dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, deve entender-se que se refere à entrada em vigor do perdão e não da lei, não tem o mínimo sustento no elemento literal desta, e a substituição de «entrada em vigor da presente lei» por «sua entrada em vigor» não comporta qualquer alteração do sentido da norma (por comparação com idênticos preceitos de anteriores leis de clemência), por ser evidente, salvo o devido respeito por opinião diversa, que a «sua entrada em vigor» se reporta à do diploma legal, desde logo porque não tem cabimento falar em entrada em vigor de um perdão, como bem assinala o despacho recorrido.

E a circunstância de dessa forma se dever contar o prazo da verificação da condição resolutiva não lhe atribui qualquer efeito retroactivo, já que a lei dispõe para o futuro, ao estabelecer consequências para a prática de ilícitos no período de um ano subsequente à sua entrada em vigor.

Quando constatada a prática de infracção dolosa no mencionado período, a revogação opera de forma obrigatória e automática, não cabendo ao Tribunal efectuar qualquer valoração relativamente à culpa do agente na verificação da condição resolutiva, e sendo também indiferente que aquele ilícito seja sancionado com pena privativa ou não privativa da liberdade (não competindo ao intérprete estabelecer essa distinção, que o legislador entendeu não consagrar).

Nesse sentido, relativamente também a normas de idêntico teor inseridas em anteriores leis de clemência, e para além da jurisprudência já indicada na decisão recorrida, vejam-se os acórdãos do TC n.º 497/97, 499/97, 298/2005 e 153/2007; da Relação de Coimbra de 25-10-2006, Proc. n.º 1043/01.2TBVIS-B.C1, de 02-06-2021, Proc. n.º 760/13.9TXPRT-L.C1, e de 28-05-2025, Proc. n.º 527/19.0GCLRA.C2; da Relação do Porto de 27-02-2008, Proc. n.º 0746706; da Relação de Lisboa de 10-05-2006, Proc. n.º 6003/2005-3; e da Relação de Évora de 29-10-2013, Proc. n.º 686/97.1TBEVR-A.E1, todos in www.dgsi.pt.

Da leitura das suas conclusões J a O, S e T, resulta que o recorrente considera que qualquer interpretação do art. 8.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, diversa daquela que ele próprio sustenta padece de inconstitucionalidade, por violação dos princípios da legalidade, da igualdade, da culpa, da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso e da proibição da retroactividade da lei penal.

Acerca da conformidade constitucional de normas inseridas em anteriores leis de clemência, relativas à verificação de condição resolutiva do perdão e com redacção idêntica à que figura no diploma ora em apreço, já por diversas vezes o Tribunal Constitucional se pronunciou, concluindo pela afirmativa, nos já acima mencionados arestos.

E a afirmação em contrário formulada pelo recorrente não vem densificada/concretizada em razões e argumentos que, em nosso entender, a ela conduzam e nos levem a discordar daquele juízo de conformidade.

O mesmo é dizer que o despacho recorrido, que decidiu revogar o perdão, concedido ao ora recorrente sob a condição resolutiva a que alude o art. 8.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, por este ter praticado, em 09-12-2023, um crime doloso pelo qual veio a ser condenado por sentença transitada em julgado em 02-02-2024, nenhuma censura merece, não tendo incorrido na violação de qualquer norma legal ou princípio constitucional.

Improcede, pois, o recurso interposto.


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III. Decisão

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido , confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC (arts. 513.º, n.ºs 1 e 3, e 514.º, n.º 1, ambos do CPP, 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa).


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(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária, sendo ainda revisto pelos demais signatários, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20-09)

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Coimbra, 08 de Outubro de 2025


[1] Pedro José Esteves de Brito, Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, in www.julgar,pt, página 39
[2] In www.dgsi.pt.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] 11 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de dezembro de 1977, in “Boletim do Ministério da Justiça”, n.º 272, citado no Assento n.º 2/2001, de 25 de outubro de 2001, proferido no âmbito do processo n.º 3209/00-3.
[6] 12 Assento n.º 2/2001, de 25 de outubro de 2001, proferido no âmbito do processo n.º 3209/00-3.
[7] 13 AGUILAR, Francisco, Amnistia e Constituição, Coimbra, Almedina, 2004, p.119, n. 557.
[8] 14 FERRARA, Francesco, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, Arménio Amado, 3.ª edição, 1978, p. 147.
[9] Que, recorda-se, dispõe: «(Interpretação da lei)
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»