Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
199/22.5JACBR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SARA REIS MARQUES
Descritores: CONHECIMENTO SUPERVENIENTE DO CONCURSO
PENA DE PRISÃO SUSPENSA
Data do Acordão: 01/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 77º, 78º, CP
Sumário: A data do trânsito em julgado da decisão que condenou o arguido numa pena de prisão suspensa na sua execução, nas situações em que tal pena foi já declarada extinta – e em que, por isso, não entra no cúmulo jurídico a realizar - não pode funcionar como marco temporal relevante para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente.

( Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.



I- Relatório:

No âmbito deste processo comum foi proferido despacho datado de 09 de setembro de 2024, que decidiu que as penas em que foi condenado no processo 199/22.... não são cumuláveis com as demais condenações constantes do seu certificado do registo criminal, nomeadamente, com as penas impostas nos processos 248/20.... e 1685/19...., que o Tribunal a quo considerou apenas cumuláveis entre si, uma vez que a condenação relativa a este último processo transitou em julgado em data anterior ao cometimento dos crimes pelos quais o arguido foi condenado no primeiro.
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-» Inconformado com o assim decidido, o arguido recorreu, apresentou a motivação de recurso e formulou, a final, as conclusões que seguidamente se transcrevem:
A. Com o presente recurso, que versa sobre matéria de Direito, não pretende o recorrente colocar em causa o exercício das mui nobres funções nas quais se mostram investidos os Ilustres julgadores, mas tão-somente exercer o direito de “manifestação de posição contrária”, traduzido no direito de recorrer, consagrado na alínea i) do n.º 1 do art. 61º CPP e no n.º 1 do art. 32º da CRP;
B. Entende o arguido que sendo de excluir o cúmulo por arrastamento nem por isso a douta solução vertida na douta decisão recorrida se mostra a única admissível nem a que mais favorece o arguido, dado que a exclusão de realização de tal operação cumulatória se mostra contrária à normatividade jurídica aplicável bem como disforme à justiça, protecção da confiança e segurança jurídicas;
C. Havendo no registo criminal diversidade ao nível condenatório, com aplicação de penas de diversa natureza, sendo umas de prisão efectiva e outra de prisão suspensa já declarada extinta, deverão ser efectuados cúmulos distintos, com observância de diversos marcos temporais para cada um dos tipos de condenação, pois não fará sentido que a solene advertência de condenação em pena de prisão suspensa já declarada extinta seja tida em conta para determinação de concurso de pena distinta (necessariamente efectiva de prisão!), não podendo misturar-se o que não é misturável sob pena de violação da igualdade;
D. Entende o recorrente que um processo penal materialmente justo e processualmente conforme imporá uma diversa leitura face ao conhecimento superveniente do concurso, com imperiosa realização do cúmulo pois tal condenação sofrida nos autos de processo 1685/19...., por força da sua natureza suspensiva e consequente extinção, nunca seria uma das penas parcelares a cumular em concurso;
E. A tabela junta na douta decisão recorrida padece do vício de omissão de pronúncia/demissão ajuizativa face à pena aplicada em cada processo sendo que tal falha inquinou a douta decisão a proferir pois sendo um dos marcos constituídos respeitante a uma condenação em pena de prisão suspensa na sua execução e já declarada extinta, não pode ser considerado, devendo passar-se para o marco seguinte, que in casu seria 19 de Maio de 2022, e como os factos dos autos tiveram lugar em 19 de Fevereiro de 2022 (ou seja, três meses antes!) verifica-se a cumulatividade, tal qual também defendido pelo Ministério Público em douta promoção precedente, com referência 94939049 e datada 04-IX-2024 nos seguintes termos que se transcreveram;
F. O Tribunal a quo errou ao não tomar em consideração tais vectores e descartando a realização de cúmulo jurídico em nome da determinação de um marco temporal que consagra uma pena que nunca entraria no concurso conforme jurisprudência convocada na motivação, sendo que nunca poderá ser tomado como marco temporal relevante a data de trânsito em julgado de uma pena que nunca seria a cumular, tratando-se do Tribunal da última condenação, estando assim integralmente preenchidos os pressupostos para a realização da operação cumulatória, pelo que não se vislumbram razões, com a indispensável solidez e compreensibilidade, para a demissão cumulatória, a qual se traduzirá na violação da normatividade jurídica aplicável bem como das garantias de defesa do arguido;
G. Deverá ter lugar conhecimento superveniente do concurso, atentas as demais condenações sofridas no seu registo criminal, maxime a respeitante aos presentes autos bem como as do processo comum colectivo nº 248/20...., do Juízo Central Criminal de Coimbra – Juiz ...;
H. É inconstitucional o entendimento e dimensão normativa do art. 78º n.º 1 CP quando interpretado no sentido de “Para efeitos de determinação de marco temporal relevante para conhecimento superveniente do concurso pode o Tribunal valorar o trânsito em julgado de condenação em pena suspensa já declarada extinta, não obstante a mesma nunca ser cumulável com qualquer outra demais parcelar, e com base nesse marco temporal decidir pela não realização da diligência judicial em função de as demais condenações não terem sido cometidas antes dessa data”.
I. Mostram-se violadas as seguintes normas jurídicas: nomeadamente arts. 77º e 78º CP; arts. 13º, 18º, 20º, 202º n.º 3 e 205º CRP; art. 9º CC; bem como violados os seguintes princípios jurídicos: da culpa, da legalidade, da concentração, do acesso ao Direito e tutela jurisdicional efectiva, da igualdade, da proporcionalidade, da adequação, da proibição do excesso e dos fins das penas.
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Destarte, sempre com o V/ mui douto suprimento requer-se, mui respeitosamente a V/ Exas., a procedência do presente recurso e a consequente revogação da douta decisão recorrida, devendo ser substituída por outra a decidir pela verificação dos pressupostos do conhecimento superveniente do concurso bem como pela sua realização.”

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-»  Admitido o recurso com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, o Ministério Público junto da primeira instância respondeu, pugnando pelo seu provimento e apresentado conclusões.
1.ª - Vem o presente recurso interposto pelo arguido AA do douto despacho proferido nos presentes autos, no dia 09 de Setembro de 2024 (Ref.ª Citius n.º 94957485), no qual, se decidiu que as penas impostas nos presentes autos não ostentam qualquer relação de cúmulo com as demais condenações constantes do certificado de registo criminal do arguido, pelo que não há qualquer cúmulo a concretizar. 
2.ª - Caso não existissem as normas (os artigos 77.º e 78.º, do Código Penal) relativas ao cúmulo jurídico de penas, teria de haver acumulação material das penas relativas aos crimes em concurso. 
3.ª - Com o sistema de cúmulo jurídico visou-se evitar esta acumulação material, aplicando-se uma pena única (ou conjunta), ponderando todo o percurso criminoso do arguido possível (o que respeita aos crimes em concurso, para efeito do cúmulo jurídico das penas), bem como a respectiva personalidade. 
4.ª - O concurso de infracções exige que os vários crimes tenham sido praticados antes de ter transitado em julgado a pena imposta por qualquer delas, representando o trânsito em julgado de uma condenação penal o limite intransponível no âmbito do concurso de crimes, excluindo-se da pena única os praticados posteriormente, sendo que o trânsito em julgado de determinada condenação obsta a que se fixe uma pena unitária em que, englobando as cometidas até essa data, se cumulem infracções praticadas depois deste trânsito.

 
5.ª - Para efeitos de determinação da pena única do cúmulo jurídico de penas apenas devem ser consideradas as penas de prisão suspensas na sua execução que ainda não tenham sido declaradas extintas. 
6.ª - Ora, no âmbito do Processo Comum Singular n.º 1685/19.... que correu seus termos no Juízo Local Criminal de Coimbra-Juiz ..., foi o arguido AA condenado numa pena de prisão de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos.   
7.ª - Sucede que essa pena de prisão já foi declarada extinta no dia 09 de Junho de 2022, pelo que não deve entrar numa relação de cúmulo jurídico com quaisquer outras penas que tenham sido aplicadas ao arguido AA. 
8.ª - E, salvo melhor opinião em sentido contrário, essa pena não pode ser também considerada como marco relevante para a realização de qualquer cúmulo jurídico a realizar.  
9.ª - Entendemos, assim, que o douto despacho a quo deve ser revogado na medida em que interpretou e aplicou as normas legais que o arguido considerou terem sido violadas, em desconformidade com o Ordenamento jurídico-penal, devendo ser substituído por outro que:  
-              Decida que a pena de prisão efectiva sofrida pelo arguido AA, nos presentes autos, se encontra numa relação de concurso, nos termos do disposto no artigo 78.º do Código Penal e artigos 471.º e 472.º, ambos do Código de Processo Penal, com a pena por aquele sofrida no âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 248/20.... que corre, seus termos, no Juízo Central Criminal de Coimbra-Juiz ...;
-              Decida que deve ser designado dia e hora para a realização de Audiência de Discussão e Julgamento com vista a realização de cúmulo jurídico das supra referidas penas, no âmbito dos presentes autos, por ser o da última condenação e, como tal, competente para  a realização do cúmulo jurídico de penas - cfr. artigo 471.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. 

***
Pelo que, em face do exposto, Vossas Excelências farão a necessária e costumada Justiça, julgando o recurso apresentado pelo arguido AA totalmente

procedente e revogando o douto despacho a quo. 

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                                                                       *

--» Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso, acompanhando a resposta apresentada pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância
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-» Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP, tendo sido oferecida resposta pelo arguido, que disse:
“(…) Razão pela qual se comunga e adere ao douto parecer do Ministério Público no sentido do provimento recursório pois apenas pode ser valorado como marco temporal o trânsito em julgado de qualquer das penas a cumular, sem valorar penas suspensas já extintas.
E não pode o recorrente ser prejudicado pelo facto de nenhum dos Tribunais ter tempestivamente procedido a tal diligência pois caso o tivesse sido, ainda antes de a pena suspensa ter sido julgada extinta, até se poderia ter dado o caso de tal pena única (que já não abarcaria os presentes autos!|) ela própria ficar suspensa na sua execução como se verificava face a uma das penas parcelares a cumular.
Mas se a pena suspensa na sua execução já declarada extinta não entra na diligência de conhecimento superveniente do concurso, então também não pode ser valorado o marco temporal do seu trânsito em julgado sob pena de violação e prejuízo duplos para todo e qualquer arguido na mesma situação do recorrente, face a quem tal cúmulo não foi tempestivamente levado a cabo, sem culpa sua.

Pelo que o marco temporal a considerar deverá ser 19 de Maio de 2022!
Entende-se que, pese embora as doutas considerações vertidas na douta decisão recorrida, por as mesmas se não mostrarem totalmente conformes à normatividade jurídica aplicável bem como dissidentes face ao plasmado na Lei Fundamental, justifica-se outro e adequado tratamento fáctico-jurídico, sendo que não deixarão V/ Exas. de, como sempre, de forma justa fazer funcionar a aplicação do Direito em termos adequados e julgarem procedente o recurso.”

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Após os vistos, foram os autos à conferência.

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II- Questões a decidir no recurso:

De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, nº 2, e 410º, nº 3, do mesmo diploma legal)

O objeto do presente recurso, tal como se mostra delimitado pelas respetivas conclusões, reconduz-se à apreciação da seguinte questão:
-        Saber se uma pena de prisão suspensa na sua execução já extinta, apesar de não entrar no cúmulo jurídico, deve funcionar como marco relevante para tal efeito.

III  Factos relevantes para a decisão das questões suscitadas:

Definidas as questões a tratar, importa considerar a factualidade que resulta da análise dos autos com interesse para a decisão a proferir:


1) O arguido AA foi condenado no âmbito dos presentes autos, por Acórdão datado de 27/2/2023,  na pena única de nove anos de prisão efectiva, por factos datados de 19/02/2022.

2) no processo 248/20...., por decisão datada de 29/11/20 e transitada em julgado a 19/05/2022, foi condenado por factos datados de 28/04/2020, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão efectiva


3) A 4/9/2024 foi proferida a seguinte promoção no âmbito do processo comum em apreço: (transcrição parcial)
“Assim, são dois os pressupostos que a lei exige para a aplicação de uma pena única:
- A prática de uma pluralidade de crimes pelo mesmo arguido, formando um concurso efectivo de infracções, seja ele concurso real, seja concurso ideal (homogéneo ou heterogéneo);
- Que esses crimes tenham sido praticados antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles. Ou seja: a decisão que primeiro transitar em julgado fica a ser um marco intransponível para se considerar a anterioridade necessária à existência de um concurso de crimes. Nessa medida, se o (s) crime (s) for (em) praticado (s) depois do trânsito, já a pluralidade ou concurso de crimes não dá lugar à aplicação de uma única pena.
Assim, constata-se que a pena de prisão efectiva sofrida, pelo condenado AA, nos presentes autos, se encontra numa relação de concurso, nos termos do disposto no artigo 78.º do Código Penal e artigos 471.º e 472.º, ambos do Código de Processo Penal, com a pena por aquele sofrida no âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 248/20.... que corre, seus termos, no Juízo Central Criminal de Coimbra-Juiz ....
Por outro lado, entre os Juízos que aplicaram as penas a cumular, o da última condenação e, como tal, competente para a realização do cúmulo jurídico de penas - cfr. artigo 471.º, n.º 2, do Código de Processo Penal - é o dos presentes autos.
Assim, em face do exposto, promovo:
a) - Se designe dia e hora para a realização de Audiência de Discussão e Julgamento com vista a realização de cúmulo jurídico das supra referidas penas.
b) - Em caso de concordância com o promovido na alínea antecedente, promovo se oficie o Processo Comum Colectivo n.º 248/20.... que corre, seus termos, no Juízo Central Criminal de Coimbra-Juiz ..., informando-os que vamos proceder à realização de Audiência de Cúmulo Jurídico, uma vez que a pena sofrida, pelo arguido AA, no âmbito dos presentes autos, se encontra numa relação de concurso, nos termos do disposto no artigo 78.º do Código Penal e artigos 471.º e 472.º, ambos do Código de Processo Penal, com a pena que lhe foi aplicada, naqueles autos.


4) A 4/9/2024 foi proferida a decisão recorrida, com o seguinte teor (transcrição parcial)
“Constata-se agora que o arguido AA foi, com carácter prévio àquela condenação, condenado noutros processos. Efectivamente, o Certificado de Registo Criminal constante da Ref. 9089206 documenta diversas outras penas impostas ao arguido AA. Cumpre assim apreciar se as sanções proferidas no presente processo podem entrar numa relação de cúmulo jurídico com outras penas. E, como elemento de auxílio em tal labor, é possível avançar com a seguinte tabela:

Processo

Factos

Condenação

Trânsito

1122/10....

22/08/2010 [C1]

22/08/2010 [C2]

24/05/2011

30/06/2011

[Relevante Cúmulo 1]

1690/11....

15/12/2006

18/04/2012

18/04/2012

1688/09....

11/11/2009

26/02/2013

26/02/2013

163/10....

03/09/2010 [C1]

2009 [C2]

02/05/2014

02/06/2014

1685/19....

27/02/2019

14/02/2020

09/06/2020

[Relevante Cúmulo 2]

248/20....

28/04/2020 [C1]

28/04/2020 [C2]

29/11/2021

19/05/2022

199/22....

19/02/2022 [C1]

19/02/2022 [C2]

27/02/2023

26/04/2024

Em conformidade com o instituto do conhecimento superveniente de crimes – ou, mais correctamente, concurso de penas – consagrado no aludido artigo 78.º, n.º 1 do Código Penal, deverá ser punido numa única pena aquele sobre o qual recair conhecimento que, após uma condenação transitada de julgado, “praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes”. Isto sendo que, como se refere no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º  9/2016, o momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso superveniente de crimes é o trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso.

Cumpre pois aferir quais [se alguns] dos crimes transcritos foram praticados conjuntamente com o julgado nos presentes autos até ao proferimento da primeira das mesmas condenações. E carecemos, para tanto, de ter em consideração a totalidade das penas constantes do Certificado de Registo Criminal. 

Constatando-se, para tanto e desde logo, que os seus antecedentes revelam a existência abstracta de uma primeira situação de concurso de sanções!

 Efectivamente, as penas dos processos n.º 1122/10...., 1690/11...., 1688/09.... e 163/10.... encontram-se, todas elas, num primário contexto de cúmulo.  Pois que em todos aqueles casos falamos de crimes praticados em momento prévio a 30 de Junho de 2011 enquanto primeira condenação a transitar em julgado por referência ao arguido AA.

Tal significa, paralelamente, que aqueles mesmos processos deixam de relevar para efeitos de aferição de cúmulos ulteriores. Efectivamente, o novo cúmulo a interceder dar-se-á por referência a factos praticados em momento ulterior a 30 de Junho de 2011. Ao ponto de abranger, desta feita, os processos n.º 1685/19.... e 248/20..... Tratamos, também aqui, de ilícitos cujo cometimento [27 de Fevereiro de 2019 e 28 de Abril de 2020] se deu até ao primeiro trânsito em julgado subsequente e cuja data se indexa a 9 de Junho de 2020 [processo n.º 1685/19....].

Se assim é, temos que as penas impostas nos presentes autos não ostentam qualquer relação de cúmulo com as demais condenações constantes do Certificado de Registo Criminal do arguido AA. Isto pois que os crimes aqui sancionados foram cometidos no dia 19 de Fevereiro de 2022… E, por conseguinte, muito após o trânsito em julgado da condenação imposta no processo n.º 1685/19.... e que delimita temporalmente o segundo concurso de penas.

Com o que não há qualquer cúmulo a concretizar por referência ao arguido AA nos presentes autos.”


IV- Do mérito do recurso:

Sustenta o juiz a quo que as penas em que foi condenado no processo 199/22.... não são cumuláveis com as demais condenações constantes do seu certificado do registo criminal, nomeadamente, com as penas impostas nos processos 248/20.... e 1685/19...., que o Tribunal a quo considerou apenas cumuláveis entre si, uma vez que a condenação relativa a este último processo transitou em julgado em data anterior ao cometimento dos crimes pelos quais o arguido foi condenado no primeiro.

Vejamos.

O regime aplicável à punição do concurso de crimes, por conhecimento superveniente do concurso, está estabelecido nos artigos 77.º e 78.º do Código Penal.

Resulta dos referidos normativos que são pressupostos do concurso superveniente a pluralidade de crimes com julgamentos efectuados em momentos diferentes e anterioridade da prática dos crimes em relação ao trânsito em julgado da 1.ª condenação

(Cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 9/2016, publicado no DR nº 111, I série, de 9/6/2016 - «O momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso»)

Os crimes cometidos posteriormente a essa decisão transitada, constituindo assim uma solene advertência que o arguido não respeitou, não estão em relação de concurso, devendo ser punidos de forma autónoma, com cumprimento sucessivo das respectivas penas.

E é jurisprudência maioritária do STJ que as penas de execução suspensas que tenham sido extintas pelo decurso do prazo, sem revogação, não podem integrar o cúmulo jurídico, assim como sucede com as penas suspensas cujo prazo de suspensão já decorreu e estão em condições para serem declaradas extintas.

De facto, tem entendido  o STJ que o nº1, in fine, do art. 78º, do CP, tem que ser interpretado restritivamente, no sentido de só ser aplicável a penas principais (prisão e multa).

Como se escreve no Ac- de 26-03-2015, proc. n.º 226/08.9PJLSB, in www.dgsi.pt, “o art. 81.º n.º 2 do Código Penal, ao prever a possibilidade de um desconto equitativo quando a pena anterior e a posterior forem de diferente natureza, pressupõe a modificação da pena anterior por outra de espécie diferente, o que «não seria esse o caso, se a pena suspensa extinta tal como outra pena substitutiva] fosse transfigurada em pena de prisão para entrar no cúmulo. Porque nessa eventualidade, no cúmulo, só entrariam penas de prisão, tal como a pena conjunta aplicada. Manter-nos-ia sempre dentro da mesma espécie de pena. Acresce que repugnaria considerar a pena anterior e a posterior da mesma espécie para efeito de desconto, porque o que foi efetivamente cumprido foi a pena suspensa. Não se poderia pretender que o arguido não cumprisse a pena de prisão substituída e só a de substituição, o que teve lugar, para depois se ir ficcionar que cumprira parte dessa pena de prisão, com o fito de proceder a um desconto na pena conjunta».

(neste sentido, e por todos, cfr ainda os recentes Acórdãos do STJ de 02-06-2021, Processo: 626/07.1PBCBR.S1 e de  15-07-2020, Processo: 3325/19.8T8PNF.S1)

Desta forma, no caso em análise, a pena em que o arguido foi condenado no âmbito do processo 1685/19...., tendo sido suspensa na sua execução e declarada extinta no dia 09 de junho de 2022, não pode integrar o cúmulo jurídico a realizar no âmbito deste processo.

E,  por essa razão, a data do trânsito em julgado da decisão proferida no referido processo não pode ser considerada como marco relevante para o cúmulo de penas a realizar.

Tal marco será dado pela data do trânsito em julgado da decisão proferida no processo Comum Colectivo n.º 248/20....: o dia 19/5/2022.

Datando os factos praticados nos presentes autos de 19/2/2022, concluímos pela existência de um concurso de penas entre a pena em que o arguido foi condenado no presente processo e aquela (de 2 anos e 6 meses de prisão efetiva) em que foi condenado no âmbito do processo Comum Colectivo n.º 248/20.....

Competente para a realização do referido cúmulo jurídico é o presente processo, por ser o da última condenação - artigo 471.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. 
            Procede, assim, o recurso interposto pelo arguido.
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V- DECISÃO:

Pelo exposto, as juízas do Tribunal da Relação de Coimbra, após conferência, concedem provimento ao recurso do arguido e revogam o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que:

- decida que a pena de prisão efectiva sofrida pelo arguido AA, nos presentes autos, se encontra numa relação de concurso, nos termos do disposto no artigo 78.º do Código Penal e artigos 471.º e 472.º, ambos do Código de Processo Penal, com a pena por aquele sofrida no âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 248/20.... que corre, seus termos, no Juízo Central Criminal de Coimbra-Juiz ...; 

 -  designe dia e hora para a realização de cúmulo jurídico das penas em que o arguido foi condenado nos processos 248/20.... e 199/22.....

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Sem custas
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                                     Coimbra,   22 de janeiro de 2024

Sara Reis Marques

(Juíza Desembargadora Relatora)

Maria da Conceição Miranda

(Juíza Desembargadora Adjunta)

Sandra Ferreira

(Juíza Desembargadora Adjunta)


 (texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)