Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | LUÍS RICARDO | ||
| Descritores: | PROCESSO DE INVENTÁRIO RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS NÚMERO DE ARTICULADOS INDICAÇÃO DOS MEIOS DE PROVA | ||
| Data do Acordão: | 10/28/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – CALDAS DA RAINHA – JUÍZO LOCAL CÍVEL | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 1104º, ALÍNEA D), 1105º, Nº1 E 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL | ||
| Sumário: | I – A reclamação contra a relação de bens, inserida, no âmbito do inventário, na fase processual denominada “Oposições e verificação do passivo”, apenas comporta dois articulados – requerimento e resposta (arts. 1104º, alínea d), e 1105º, nº1, do C.P.C.)
II – Os meios de prova, havendo reclamação, devem ser apresentados com esses articulados. III – Deve ser rejeitado um articulado onde o interessado reclamante pretende pronunciar-se sobre a resposta à reclamação, uma vez que esta última não integra matéria de excepção. IV – Não deve ser admitido, de igual forma, um meio de prova que se destina a demonstrar factualidade alegada no articulado que se pronunciou sobre a resposta à reclamação. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
| Decisão Texto Integral: | * Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra I – RELATÓRIO.
No inventário que corre termos para partilha da herança de AA veio a interessada BB deduzir reclamação contra a relação de bens apresentada pela cabeça-de-casal CC, acusando a falta de relacionação de um conjunto de imóveis, produtos financeiros, contas bancárias, móveis e direitos de crédito. Paralelamente, requereu a exclusão da verba única do passivo e a avaliação de diversos bens que integram a relação em causa, nos termos que constam do articulado incorporado nos autos em 22/11/2024, cujo teor se considera integralmente reproduzido. ** A cabeça-de-casal apesentou resposta à reclamação relacionando os bens imóveis referenciados pela reclamante e impugnando a restante matéria alegada pela mesma, conforme resulta da peça processual de 23/1/2025, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido. Para prova do alegado, juntou três documentos e arrolou testemunhas, tendo ainda requerido que fosse expedido ofício com vista a obter o registo clínico do inventariado junto de determinada instituição hospitalar, bem como informação acerca do valor actual em dívida junto dessa instituição e dos serviços a que diz respeito o montante por liquidar. *** Em 4/2/2025, a interessada BB apresentou uma peça processual onde se pronuncia sobre a resposta à reclamação, sendo, que na mesma, requer a junção de dois documentos e a avaliação dos bens (móveis e imóveis) objecto do inventário, mais requerendo que se oficiasse à entidade hospitalar referenciada nos autos com vista a apurar “as capacidades de decisão e de vontade” do inventariado e se o mesmo esteve internado nos períodos compreendidos entre 30 de Junho a 13 de Julho de 2023.
** Em 17/2/2025, a cabeça-de-casal requereu o desentranhamento do requerimento de 4/2/2025, sustentando que o mesmo é processualmente inadmissível ** Em 21/3/2025, a mesma interessada requereu a junção aos autos de uma mensagem referenciada no requerimento apresentado em 4/4/2025, tendo a cabeça-de-casal, através de requerimento incorporado nos autos em 3/4/2025, peticionado que o aludido meio de prova fosse indeferido, por ser nulo. ** Nessa, sequência, em 11/4/2025, foi proferido o seguinte despacho: “Reqs. constantes sob as ref.ªs 11569993, de 04.02.2025, 11612687, de 17.02.2025 e 11724901, de 21.03.2025: Afigura-se existir total razão à cabeça-de-casal. Como é sabido, o direito ao contraditório não é ilimitado, e não surge – nem se renova – a cada requerimento apresentado pela contraparte, sob pena de a tramitação processual decair no exercício infinito dessa prerrogativa, o que não se concede, nem encontra suporte na lei processual. Com efeito, nos termos do artigo 1105.º do Código de Processo Civil (CPC), não há lugar à resposta à resposta à reclamação à relação de bens. Assim, por configurar o exercício inadmissível do contraditório, dão-se por não escritos os requerimentos datados de 04.02.2025 e de 21.03.2023, deduzidos pela interessada BB. São devidas custas do incidente anómalo pela interessada, fixando-se em 1 UC a taxa de justiça - cf. art.º 527.º, n.º 1 e 2 do CPC e art.º 7.º, n.º 4 e 8 do RCP e tabela II-A anexa. Notifique.”. *** Não se conformando com a decisão proferida, a interessada BB interpôs o presente recurso, no qual formula as seguintes conclusões: “a) O despacho de indeferimento prolatado no dia 11/04/2025 que indefere os articulados e meios probatórios requeridos pela interessada aqui recorrente, é um despacho interlocutório, passível de recurso; b) Nos presentes autos está em crise o facto de o douto tribunal a quo ter decidido que os requerimentos datados de 04/02/2025 com a referência 1156993 e 21/03/2025 com a referencia 1172901 terem sido dados como não escritos por no entendimento do tribunal a quo nos termos do artigo 1105 do CPC não haver lugar à resposta à resposta à reclamação de bens; c) Não pode a recorrente conformar-se com o despacho em crise, porquanto este viola o principio do contraditório e o direito à prova; d) No articulado apresentado de resposta à resposta à reclamação de bens, veio a cabeça de casal juntar documentos novos (1,2,3), requerer novas diligências de prova (alíneas a) e b) do pedido do requerimento supra identificado), bem como alegar factos novos na indicação de verbas distintas das apresentadas na relação de bens; e) É inquestionável que o princípio do contraditório constitui um princípio estruturante no nosso regime processual civil e tem assento legal no artigo 3.º, n.º3, do CPC, estabelecendo a obrigatoriedade de cumprimento ao longo de todo o processo, estando vedado ao juiz decidir questões de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem; f) Uma consequência lógica do reconhecimento do direito à prova é, naturalmente, o direito das partes à aquisição das provas admitidas e consequente dever do juiz de as admitir, como se pode deduzir do art. 413.°(provas atendíveis) do CPC; g) O indeferimento das diligências probatórias requeridas viola o princípio do direito à prova, plasmado no artigo 413 do CPC; h) Assim, ao indeferir os articulados e diligências probatórias requeridas está o tribunal a violar o direito à prova da ora recorrente, bem como o princípio do contraditório, pelo que deve este Douto despacho ser revogado, e em consequência, ser proferido despacho que defira os requerimentos datados de 04/02/2025 com a referencia 1156993 e 21/03/2025 com a referencia 1172901;”.
** A cabeça-de-casal contra-alegou, concluindo nos seguintes termos: “A) O despacho recorrido, proferido em 11 de abril de 2025, declarou como não escritos os requerimentos apresentados pela Recorrente em 04/02/2025 e 21/03/2025, por os mesmos configurarem o exercício inadmissível do contraditório. B) O novo regime legal do inventário, introduzido pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, tem por base os princípios da celeridade, da concentração da atividade processual e da preclusão, impondo às partes o ónus de apresentar todos os factos, documentos e requerimentos probatórios no momento processualmente adequado, sob pena de não serem admitidos. C) O novo paradigma veio estabelecer três fases estanques no processo de inventário – a fase dos articulados, a fase do saneamento e a fase da partilha. D) Nos casos em que o requerimento de inventário é apresentado por pessoa diferente do cabeça do casal, estão previstos os seguintes articulados: a) Requerimento de Inventário; b) Relação de Bens; c) Reclamação à Relação de Bens; d) Reposta à Reclamação à Relação de Bens. E) Não se encontra prevista qualquer réplica ou resposta à Resposta à Reclamação à Relação de Bens, sendo a Resposta à Reclamação à Relação de Bens o último articulado previsto. F) Esta resposta só é possível em casos excecionais, em concreto quando na resposta à reclamação sejam invocados factos novos que possam consubstanciar matéria de exceção, nos termos do artigo 571.º, n.º 2, segunda parte do Código de Processo Civil, o que não se verificou, uma vez que, a Recorrida se limitou a impugnar por negação motivada os factos alegados pela Recorrente em sede de Reclamação de Bens. G) Neste sentido, atente-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 6716/22.3T8VNG-A.P1, datado de 24-09-2024 e no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 824/10.0TBLRA-H.C1, datado de 03-12-2013. H) Assim, sendo inadmissível o exercício do contraditório quanto à Resposta à Reclamação à Relação de Bens, por não estar legalmente previsto, deve manter-se o despacho que deu por não escrito o requerimento apresentado pela Recorrente em 04/02/2025. I) Sendo que, ainda que se entenda que na resposta à reclamação sobre a relação de bens tenha sido invocada alguma matéria de exceção, o que não se consente, mas por mera cautela se alvitra, então apenas relativamente a tais factos poderia ser exercido o contraditório, devendo, em qualquer caso, ser desconsiderada toda a restante resposta J) Os documentos juntos pela Recorrente nos requerimentos de 04/02/2025 (informação predial simplificada e caderneta predial) e de 21/03/2025 (ficheiro áudio) destinavam-se a provar factos que haviam já sido alegados na Reclamação à Relação de Bens, podendo e devendo ter sido juntos com esse articulado, pelo que não o tendo sido, não pode a sua junção ser admitida, nos termos do disposto nos artigos 1105.º, n.º 2 e 423.º do Código de Processo Civil. K) A decisão proferida pelo Tribunal a quo respeita os princípios estruturantes do processo de inventário judicial, não consubstanciando qualquer violação dos princípios do contraditório ou do direito à prova, uma vez que a Recorrente teve a possibilidade de exercer os seus direitos no momento processualmente próprio. L) A admissão da apresentação extemporânea de articulados e de meios de prova, fora das fases processuais legalmente fixadas, colidiria com os Princípios da concentração processual, da preclusão e da estabilidade da instância. M) Não assiste, pois, razão à Recorrente, devendo o recurso interposto pela mesma ser julgado totalmente improcedente, e mantido, na integra, o Despacho proferido em 11/04/2025 pelo Tribunal a quo.”.
*** Questão objecto do recurso: admissibilidade das peças processuais consideradas impertinentes pelo Tribunal a quo.
*** II – FUNDAMENTOS.
2.1. Fundamentação de facto. Com interesse para a apreciação do presente recurso, importar considerar a tramitação processual que vem descrita no relatório antecedente.
*** 2.2. Enquadramento jurídico. Como é sabido, no âmbito do quadro normativo que rege, actualmente, o processo de inventário, a reclamação contra a relação de bens não assume a natureza de um incidente [1], o que não significa, no entanto, que tenham sido substancialmente alteradas as regras que se ocupam do número de articulados que as partes podem apresentar e do momento, processualmente relevante, em que podem ser formulados requerimentos probatórios com vista a demonstrar a matéria alegada nas correspondentes peças processuais. Integrada na fase processual denominada “Oposições e verificação do passivo”, a reclamação, face ao disposto nos arts. 1104º, alínea d) [2], e 1105º, nº1, ambos do C.P.C. [3], apenas comporta dois articulados – requerimento onde é apresentada ou deduzida a reclamação e resposta dos interessados que intervêm no respectivo processo –, sendo que, por força do nº2 do mesmo art. 1105º, as provas devem ser apresentadas com os requerimentos e as respostas [4]. No CPC anteriormente vigente [5], apesar da natureza incidental da reclamação, também estavam previstos dois articulados (arts. 1348º, nº1, e 1349º, nºs 1 e 3), devendo os meios probatórios ser indicados nessas peças processuais (art. 1344º, nº2). Idêntica solução foi adoptada no âmbito da Lei nº 23/2013, de 5 de Março (cf. arts. 31º, nº2, 32º, nº1, e 35º, nºs 1 e 3), diploma que se ocupou do processo de inventário até à entrada em vigor da Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro. A nossa jurisprudência, analisando o regime consagrado no actual C.P.C., tem salientado a obrigatoriedade de os interessados concentrarem os meios de defesa nos articulados que se encontram previstos para a fase das oposições e verificação do passivo, uma vez que, nos diplomas anteriores, admitia-se a possibilidade de a reclamação ser deduzida em momentos díspares (cf. art. 1348º, nº6, do C.P.C. de 1961, e art. 32º, nº5, da Lei nº 23/2013, de 5 de Março). A este propósito, pode referir-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 24/10/2024 (disponível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/8e287954881885d080258bd600342aca?OpenDocument), cujo sumário, de forma pertinente, contém as seguintes observações: “I - Com a entrada em vigor da Lei no 117/2019 de 13 de setembro, o processo de inventário passou a situar-se sistematicamente no âmbito do CPC, pelo que a este processo especial serão plenamente aplicáveis os princípios gerais do Código, bem como o regime do processo comum de declaração, com as adaptações necessárias. II - Com este novo modelo, o processo de inventário apresenta-se como uma verdadeira ação, e a reclamação contra a relação de bens já não constitui um incidente do processo de inventário, inserindo-se na marcha regular do processo em causa, obrigando a que os interessados concentrem os “meios de defesa” no articulado que apresentam e indiquem aí todos os meios de prova, sob pena de preclusão.” No mesmo sentido, no Acórdão da Relação de Guimarães de 16/5/2024 (disponível em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/a936c1e5e8186fc980258b2400300a68?OpenDocument), são referidos os seguintes aspectos nucleares: “(…) II. O processo de inventário é hoje uma verdadeira acção, obrigando a que os interessados concentrem os meios de defesa no articulado que apresentam e indiquem aí todos os meios de prova, sob pena de preclusão. III. O actual modelo processual do inventário não comporta sucessivos aditamentos à relação de bens e nomeadamente ao passivo, salvo nos casos de superveniência.”. Sem prejuízo das considerações que acabam de ser enunciadas, afigura-se possível um terceiro articulado, de harmonia com o disposto no art. 3º, nº4, do C.P.C. [6], nos casos em que o cabeça-de-casal, na resposta à reclamação, invoca matéria de excepção, como se refere no Acórdão desta Relação (Coimbra) de 28/1/2025 (disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/c081d4377e4f13e280258c360032141e?OpenDocument), cujo sumário apresenta o seguinte teor: “(…) III - Invocando o cabeça-de-casal, na sua resposta à reclamação da relação de bens, que bens imóveis e uma conta bancária do de cujus, cuja falta de relacionação fora invocada, tinham sido já partilhados entre alguns dos interessados, assiste ainda aos interessados o direito de se pronunciarem sobre estes novos factos, que integram excepções de direito material, e de sobre eles produzirem prova, por via do disposto no artº 3, nº4 do C.P.C.”.
Ora, revertendo para o caso dos autos, verifica-se que a interessada BB apresentou um articulado, em 4/2/2025, onde pretende pronunciar-se sobre a resposta da cabeça-de-casal, mais tendo formulado um requerimento probatório, numa fase ulterior (21/3/2025), contendo uma mensagem identificada na peça processual de 4/2/2025. A cabeça-de-casal, como vimos, não invocou qualquer excepção, limitando-se a impugnar a matéria que a referida interessada carreou para os autos relativamente aos bens que, na sua óptica, devem integrar a relação oportunamente apresentada. Deste modo, mostra-se inteiramente correcto o entendimento do Tribunal a quo no sentido de que foi apresentado um articulado – e um requerimento – que a lei não admite, devendo, consequentemente, manter-se a decisão impugnada, com as consequências daí resultantes. *** III – DECISÃO.
Pelo exposto, decide-se julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar o despacho recorrido. Custas pela apelante.
Coimbra, 28 de Outubro de 2025 (assinado digitalmente) Luís Manuel de Carvalho Ricardo (relator) Cristina Neves (1ª adjunta) Luís Miguel Caldas (2º adjunto)
[1] Como refere Carlos Lopes do Rego (“A recapitulação do inventário”,“Julgar”, online, Dezembro de 2019, pág. 9, disponível em https://julgar.pt/wp-content/uploads/2019/12/20191216-ARTIGO-JULGAR-A-Recapitula%C3%A7%C3%A3o-do-Invent%C3%A1rio-revis%C3%A3o-Carlos-Lopes-do-Rego-v5.pdf), o “novo modelo procedimental parte de uma definição de fases processuais relativamente estanques, envolvendo apelo decisivo a um princípio de concentração, propiciador de que determinado tipo de questões deva ser necessariamente suscitado em certa fase procedimental (e não nas posteriores), sob pena de funcionar uma regra de preclusão para a parte;”. [2] Art. 1104º, nº1, alínea d), do C.P.C.: “Os interessados diretos na partilha e o Ministério Público, quando tenha intervenção principal, podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação: (…) d) Apresentar reclamação à relação de bens; [3] Art. 1105º, nº1, do C.P.C.. “Se for deduzida oposição, impugnação ou reclamação, nos termos do artigo anterior, são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada.”. [4] Art. 1105º, nº2, do C.P.C.: “As provas são indicadas com os requerimentos e respostas.”. [5] Diploma aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44129, de 28 de Dezembro de 1961, o qual vigorou até à entrada em vigor da Lei nº41/2013, de 26 de junho. [6] Art. 3º, nº4, do C.P.C.: “Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.”. |