Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
107/23.6T8FCR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
FIXAÇÃO DO RENDIMENTO INDISPONÍVEL
VIVÊNCIA MINIMAMENTE CONDIGNA
RENDIMENTOS FUTUROS
COMPENSAÇÃO DOS RENDIMENTOS
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 09/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 239.º, N.ºS 3 E 4, AL.ª C), DO CIRE, 1.º, 67.º E 205.º, N.º 2, DA CRP
Sumário: I – A exoneração do passivo restante não assenta na desresponsabilização do devedor. Implica empenho e sacrifício do devedor no sentido de que deve comprimir ao máximo as suas despesas, reduzindo-as ao estritamente necessário, em contrapartida do sacrifício imposto aos credores na satisfação dos seus créditos, por forma a se encontrar um equilíbrio entre dois interesses contrapostos - está em causa a conciliação de dois interesses conflituantes: de um lado, o interesse dos credores dos insolventes/requerentes da exoneração e, de outro, os dos insolventes/requerentes. A sua harmonização prática impõe uma redução do nível de vida dos insolventes, conforme com as circunstâncias económicas em que se encontram e que estão na base da declaração de insolvência.

II – A fixação de um rendimento indisponível não visa assegurar a manutenção do padrão de vida anterior à declaração de insolvência, mas apenas uma vivência minimamente condigna, cabendo ao beneficiado pela solução legal adequar-se à especial condição em que se encontra, ajustando as despesas ou encargos e o seu nível de vida, em general e na medida do possível, à realidade em que se encontra.

III – Depois, não havendo rendimento disponível não há cessão de rendimentos, pelo que, não nasce a favor do devedor o direito de compensar ou de deduzir, nos rendimentos futuros, a ausência de rendimentos ou rendimentos inferiores ao que foi estabelecido como o razoavelmente necessário para o sustento dele e da família.

IV – A interpretação do art. 239.º, n.º 4, al. c), do CIRE no sentido de impor ao devedor a obrigação de entregar imediatamente/mensalmente os rendimentos recebidos ao fiduciário sem operar a compensação dos rendimentos com os montantes auferidos nos meses anteriores e posteriores não viola os arts. 1.º, 67.º e 205.º, n.º 2, da CRP.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

1.Relatório

Através do requerimento apresentado a 07.04.2025, veio o Sr.º Fiduciário apresentar o relatório anual relativo ao estado da cessão, nos termos do disposto no art.º 240.º, do CIRE, no qual se apurou, em síntese, que a insolvente se encontra em dívida perante a fidúcia.

Nesse seguimento, veio a insolvente, através de requerimento apresentado no dia 14.04,2025, manifestar a sua discordância quanto ao cálculo dos valores a ceder no primeiro ano de cessão por parte da insolvente, alegando, em síntese, que o valor a ceder deverá ser apurado através da divisão, pelos 12 meses do ano, dos subsídios auferidos pela insolvente (natal e férias).

No exercício do contraditório, veio a credora “A... S.À.R.L” pugnar pelo acerto dos cálculos efectuados pelo Sr.º Fiduciário, alegando, em síntese, que a proposta da insolvente carece de fundamento legal, enquanto este nada acrescentou à sua posição vertida no aludido relatório.


*

No Juízo de Competência Genérica de Figueira de Castelo Rodrigo foi proferida a seguinte decisão:

Por tudo o exposto, indefere-se o requerido, não havendo qualquer censura a efectuar ao relatório apresentado pelo Sr.º Fiduciário quanto ao apuramento das quantia a ceder pela insolvente no primeiro ano de cessão.

Adverte-se novamente a Insolvente de que o incumprimento das obrigações inerentes à admissão liminar do pedido, nomeadamente a não entrega ao fiduciário da documentação necessária para aferir os seus rendimentos ou os valores a ceder poderá levar à cessação antecipada da exoneração do passivo.

Notifique.


*

AA, Insolvente no processo à margem referido, não se conformando com parte da decisão de 03-06-2025 com a ref.ª CITIUS 32328935, na parte em que indefere o requerido apuramento do valor a ceder – apuramento das quantias a ceder pela insolvente no primeiro ano de cessão – média de 12 retribuições por ano requerido pela Insolvente, dela interpõe o seu recurso, assim concluindo:

(…).


*

2. Do objecto do recurso

Na sequência do despacho proferido no dia 25.01.2024, foi proferido despacho liminar de exoneração do passivo restantes no qual se decidiu, além do mais, determinar que durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo a Devedora deve entregar anualmente ao Fiduciário a quantia que aufira e que exceda o valor correspondente a uma retribuição mínima mensal garantida por mês.

Nas palavras da julgadora da 1.ª instância.

Descendo ao caso concreto, e salvo devido respeito por entendimento contrário, não acompanhamos a posição da insolvente quanto à questão suscitada atinente à forma de cálculo do rendimento disponível, embora, como é sabido, não seja uma questão com tratamento unânime na nossa jurisprudência.

Isto porque, tal como se decidiu no despacho liminar de exoneração, o rendimento indisponível foi fixado no valor correspondente ao salário mínimo nacional, devendo a mesma entregar ao Sr.º Fiduciário todas as quantias recebidas, seja a que título for, por referência a cada mês em que os rendimentos ultrapassem aquela quantia.

Ou seja, e tal como alega a credora “A... S.À.R.L.”, o apuramento do rendimento a ceder pela insolvente apura-se em cada mês (pois é por referência a cada mês que se fixa o rendimento disponível/indisponível), não havendo uma espécie de “acerto de contas” no final de cada ano e aquando da elaboração do relatório anual por parte do Sr.º Fiduciário (o relatório é anual e respeita à entrega de quantias entregue durante esse período de um ano, mas a obrigação da entrega é mensal e, como tal, também será mensal a obrigação de entregar, em cada um desses momentos, a quantia que ultrapasse o valor do rendimento indisponível).

Daí que, necessariamente, se num determinado mês a insolvente não obteve rendimentos que ultrapassem o rendimento indisponível, nada cedendo, mas no seguinte já recebe valores que ultrapassem esse limite, naturalmente que terá de entregar esse valor remanescente ao Sr.º Fiduciário, não se operando qualquer espécie de compensação entre os períodos onde se recebeu menos do que o rendimento indisponível e aqueles em que os rendimentos ultrapassaram aquele valor.

Reconhecendo que a jurisprudência possa não ser unânime quanto a esta questão (desde logo em face do duto acórdão citado pela insolvente), a verdade é que o entendimento jurisprudência maioritário vai de encontro à posição que acabamos aqui de sufragar.

A título de exemplo, veja-se o decido em Acórdãos dos diversos Tribunais superiores (aplicáveis ao caso, matatis, mutandis):

• “Os valores recebidos a título de subsídios de férias e de Natal pelo insolvente devem ser cedidos ao fiduciário nos meses em que são processados e na medida em que ultrapassem o montante mensal fixado para o sustento minimamente digno do Insolvente e do seu agregado familiar (Ac. TRP, datado de 19.03.2024, proc. n.º 4104/18.5T8STS.P1);

• “Não sendo os subsídios de férias e de natal imprescindíveis para o sustento minimamente condigno do devedor/insolvente, têm os mesmos que ser incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência” (Ac. TRP, datado de 08.09.2020, proc. n.º 950/20.8T8OAZ-B.P1).

• “Fixado o rendimento indisponível mensal, o insolvente deverá entregar ao fiduciário todos os rendimentos que venha a receber, a que título for, esporadicamente, ou de forma permanente, desde que excedam e na medida em que ultrapassem aquele montante – ainda que trate de subsídios de férias ou de natal –, ficando de fora quaisquer considerações acerca da natureza da retribuição.” (Ac. TRC, datado de 22.06.2020, proc. n.º 6137/18.2T8CBR-B.C1);

• “A insolvente terá de entregar ao fiduciário todo e qualquer rendimento por si auferido que, mensalmente, exceda o equivalente a 1,75 a Retribuição Mínima Mensal Garantida, independentemente de tais quantias serem por si recebidas a título de subsídios de natal, de férias, ou outros” (Ac. TRC, datado de 09.01.2024, prc. n.º 2225/22.9T8ACB-D.C1).

Concordamos.

Conforme o art.º 239.º, n.º 3 do CIRE, “Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:

a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;

b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;

iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor”.

O que pretende o legislador - tem a sua fonte na lei, embora concretizada por decisão judicial:

Em primeiro lugar, que a exoneração do passivo restante não assenta na desresponsabilização do devedor. Implica empenho e sacrifício do devedor no sentido de que deve comprimir ao máximo as suas despesas, reduzindo-as ao estritamente necessário, em contrapartida do sacrifício imposto aos credores na satisfação dos seus créditos, por forma a se encontrar um equilíbrio entre dois interesses contrapostos - está em causa a conciliação de dois interesses conflituantes: de um lado, o interesse dos credores dos insolventes/requerentes da exoneração e, de outro, os dos insolventes/requerentes. A sua harmonização prática impõe uma redução do nível de vida dos insolventes, conforme com as circunstâncias económicas em que se encontram e que estão na base da declaração de insolvência.

A fixação de um rendimento indisponível não visa assegurar a manutenção do padrão de vida anterior à declaração de insolvência, mas apenas uma vivência minimamente condigna, cabendo ao beneficiado pela solução legal adequar-se à especial condição em que se encontra, ajustando as despesas ou encargos e o seu nível de vida, em general e na medida do possível, à realidade em que se encontra –neste preciso sentido, o Acórdão desta Relação de 31-01-2012, relatado por Carlos Marinho, disponível in www.dgsi.pt.

Depois, não havendo rendimento disponível não há cessão de rendimentos, pelo que, não nasce a favor do devedor o direito de compensar ou de deduzir, nos rendimentos futuros, a ausência de rendimentos ou rendimentos inferiores ao que foi estabelecido como o razoavelmente necessário para o sustento dele e da família.

Com efeito, só se compreenderia tal direito de compensação ou de dedução se se configurasse a subalínea i) da alínea b), do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE como uma garantia de rendimento a favor do devedor ao longo do período da cessão. Sucede que não é este o sentido da garantia de tal norma. Ela não garante rendimentos ao devedor. O que ela garante é que uma parcela dos seus rendimentos, havendo-os, não será atingida pela cedência ao fiduciário. Garante-se uma exclusão se houver rendimentos.

Por isso, a citada norma do artigo 239.º, tem de ser lida com o sentido de que o apuramento dos rendimentos objecto de cessão para efeitos da alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE deve ser feita por referência aos rendimentos do devedor e ao período de um mês - a introdução de um mecanismo correctivo em que se decida que, nos meses em que os rendimentos sejam inferiores ao valor do ordenado mínimo nacional, a entrega do montante não é realizada é suficiente para garantir a equidade concreta normativamente exigida.

Como se escreve nos Acórdãos desta Relação de Coimbra de 28.2.2023, 9.1.2024 e 23.1.2024,  pesquisáveis em www.dgsi.pt, as diversas alíneas do nº3 do artigo 239.º do CIRE elencam os rendimentos que não integrarão o rendimento disponível. Todos os outros rendimentos, que advenham a qualquer título ao devedor, são disponíveis e deverão ser entregues ao fiduciário, como o são as quantias recebidas a título de indemnização e créditos laborais - o preceito é claro, no sentido de determinar que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor após o despacho inicial, qualquer que seja a sua fonte, que não estejam excluídos nos termos das als. a) e b) do citado 239.º; a insolvente terá de entregar ao fiduciário todo e qualquer rendimento por si auferido que, mensalmente, exceda o equivalente a 1,75 a Retribuição Mínima Mensal Garantida, independentemente de tais quantias serem por si recebidas a título de subsídios de natal, de férias, ou outros; ao afirmar-se no nº3 do artigo 239º do CIRE que integram o rendimento do devedor todos os rendimentos “que advenham a qualquer título ao devedor”, quis-se salientar que neles estão incluídos todos os rendimentos por si percebidos, independentemente da sua fonte, ou seja, não apenas os rendimentos do trabalho, mas também rendas, pensões, subsídios, de que o mesmo seja titular.

Também o Tribunal da Relação do Porto, nos seus recentes acórdãos de 24.9.2024, 10.9.2024 e 18.6.2024, acessíveis em www.dgis.pt, tem o entendimento de que os subsídios de férias e de natal não estão excluídos da cessão ao fiduciário na medida em que ultrapassem o montante retributivo mensal considerado minimamente digno para a subsistência do devedor. Face ao disposto no artigo 239º, n.º 3 CIRE faz englobar, no rendimento disponível para os credores, todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, para lá de 1 salário mínimo nacional, os subsídios de férias e de Natal, não exceptuados na fixação do rendimento, são rendimentos disponíveis do devedor, e que é entendimento quase unânime nesta Relação de que o rendimento indisponível deve ser entregue mensalmente. Citam-se as seguintes decisões deste Tribunal da Relação do Porto, 2410/16.2T8STS.P1, de 26.01.2021, relatado pelo Des VIEIRA E CUNHA, 8215/13.5TBVNG-F.P1, de 26.10.2020, relatado pelo Des JORGE SEABRA, 557/21.2T8OAZ.P1, de 20.09.2021, relatado pelo Des JORGE SEABRA, 8/22.5T8STS-B.P1, de 12.09.2022, relatado pela Des ANA PAULA AMORIM, 1544/18.3T8STS.P1, de 29.04.2021, relatado pela Des DEOLINDA VARÃO, 2718/18.2T8OAZ.P2, de 08.11.2021, relatado pelo Des MENDES COELHO, entre outros.

Na Relação de Guimarães, por ex. e muito recente, o Acórdão de 31.10.2024, pesquisável em www.dgsi.pt: Ao invés do que sucede com as prestações periódicas salariais ou pensionistas, os subsídios de férias e de natal não se destinam a garantir a subsistência mínima ou condigna do devedor, sendo antes prestações complementares ou suplementares dos salários e das pensões. Deste modo, a Remuneração Mensal Mínima Garantida, enquanto referencial mínimo para estabelecer o rendimento indisponível do devedor, tem como referência o mês (e, portanto, 12 meses por ano, por ser o número de meses do ano civil) e não o equivalente a um duodécimo da multiplicação por 14 daquele valor.

Nas palavras do acórdão do STJ de 9.3.2021, O instituto da exoneração do passivo restante não tem por finalidade precípua garantir ao devedor o recebimento de um certo montante a título de sustento, pelo que o devedor não goza da garantia da intangibilidade do montante estabelecido para seu sustento.

Se a cessão do rendimento disponível e o montante arbitrado ao devedor a título de sustento foram estabelecidos numa base mensal pelo tribunal, não pode o apuramento do rendimento disponível ser feito numa base anual. Se em determinado mês o rendimento do insolvente não alcança o montante que lhe foi arbitrado para sustento, nem por isso lhe assiste o direito de, mediante “compensação” ou “ajuste de contas”, não entregar ao fiduciário o excesso que se verifique nos demais meses.

A interpretação do art. 239.º, n.º 4, al. c), do CIRE no sentido de impor ao devedor a obrigação de entregar imediatamente/mensalmente os rendimentos recebidos ao fiduciário sem operar a compensação dos rendimentos com os montantes auferidos nos meses anteriores e posteriores não viola os arts. 1.º, 67.º e 205.º, n.º 2, da CRP”- www.dgsi.pt .

Assim, não haverá que atender às concretas despesas comprovadas ou meramente alegadas pelo insolvente, procurando-se antes a determinação do que é razoável gastar para prover ao seu sustento e do seu agregado familiar que, eventualmente, tenha a seu cargo - Como se afirma no Acórdão desta Relação de 31.01.2012, não pode existir qualquer correspondência entre o valor a fixar e o montante global das despesas indicadas pelo devedor, por falta de suporte legal – relatado por Carlos Marinho e disponível in www.dgsi.pt.

“O critério decisivo, para excluir rendimentos da cessão ao Fiduciário, está no que é necessário, num plano de normalidade, razoabilidade, comedimento e sobriedade, para um sustento minimamente digno, independentemente do trem de vida que se teve – e que porventura até pode ter gerado ou contribuído para a situação de insolvência – e/ou se aspira a manter; e isto – o que é indispensável para um sustento minimamente digno – é um dado da experiência comum (que é suposto os tribunais portugueses conhecerem e que é um meio de prova – cfr. art. 351.º do C. Civil) – Acórdão desta Relação de Coimbra de 4.2.2020, relatado por Barateiro Martins.

As eventuais despesas extraordinárias deverão ser atendidas pelo tribunal, já não no âmbito do ponto i), mas com recurso ao disposto na al. ii) que determina a exclusão de outras despesas ressalvadas pelo juiz, a requerimento do devedor, onde se inserirão despesas extraordinárias por doença aguda ou crónica, incapacidade e outras.

A subalínea i) da citada alínea b) visa salvaguardar o direito fundamental do devedor – e respectivo agregado familiar – a uma sobrevivência minimamente condigna, determinando que fica excluído do rendimento disponível o valor que, em termos de razoabilidade, se deva ter como necessário para prover ao seu sustento minimamente digno. A subalínea ii), determinando que fica excluído do rendimento disponível o valor que seja razoavelmente necessário para o exercício pelo devedor da sua actividade profissional visa salvaguardar e assegurar a possibilidade de o devedor angariar rendimentos com o produto do seu trabalho que lhe permitam prover ao seu sustento – e do seu agregado – e satisfazer algum do seu passivo, evitando-se, desta forma, que, por não dispor do valor necessário para assegurar as despesas inerentes à sua actividade profissional, o devedor fique impossibilitado de angariar rendimentos, pondo em causa a sua subsistência e eliminando – ou reduzindo – a possibilidade de os credores obterem a satisfação (ao menos parcial) dos seus direitos. Sob a alçada da subalínea iii) ficam as despesas que, não se integrando nas duas subalíneas anteriores, visam assegurar a satisfação de concretas necessidades que, por variadas razões (designadamente em função de uma concreta doença, patologia ou condição física) são essenciais para o devedor (ou para algum dos elementos que compõem o seu agregado familiar) e que, pela sua natureza e relevância, devam prevalecer sobre o interesse dos credores na satisfação dos seus créditos.

Tendo o legislador optado no CIRE, na determinação do rendimento disponível a ceder pelo insolvente ao fiduciário, por um critério geral e abstracto - do que não seja necessário para assegurar o “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”-, pretendeu que o mesmo fosse objecto de casuística densificação, por forma a respeitar a diferenciada realidade do caso concreto  - incluindo a sua adequação ao momento histórico e ao ambiente social em que é aplicado; e essa casuística densificação é incompatível com qualquer fórmula matemática, de automática e invariável aplicação - nomeadamente, de uma retribuição mínima mensal garantida por cada membro do agregado familiar do insolvente, ou de uma qualquer capitação matemática fixa que lhes seja aplicável.

Naturalmente, sem prejuízo de, perante situações de emergência devidamente comprovadas, essencialmente relacionadas com a saúde, se deva admitir alguma maleabilidade, crê-se que as entregas devem ser feitas mensalmente se o ponto de referência para a determinação do rendimento in/disponível for o salário, nos termos referidos no ponto i) do n.º 3 do art.º 239.º do CIRE.

Os subsídios de férias e de Natal não podem ser analisados à luz das regras laborais e, por inerência, considerados como integrantes na retribuição e vencendo-se progressivamente em cada mês do ano.

O direito do trabalho é um direito especial de direito privado que regula as relações jurídicas entre empregador e trabalhador, tendo por base o princípio da protecção deste último, enquanto parte presumivelmente mais fraca.

O direito insolvencial é um outro direito especial de direito privado que regula os mecanismos de satisfação dos direitos dos credores em caso de insolvência do devedor, através da repartição dos seus bens ou da aprovação de um plano de insolvência.

São áreas do direito absolutamente autónomas entre si, não havendo qualquer fundamento jurídico para entender aplicáveis as regras jurídicas especiais privativas de um ao outro.

Ficando assente esta delimitação negativa, a forma de contabilização dos valores dos subsídios de férias e de Natal para efeitos de cessão do rendimento disponível deve ser decidida à luz da teleologia e dos interesses em jogo no incidente de exoneração do passivo restante.

Os subsídios de férias e de Natal são incontestavelmente rendimentos disponíveis do devedor e traduzem-se, como se sabe, num complemento à retribuição auferida nos 12 meses do ano com a função de auxiliar nas despesas potencialmente acrescidas em época de férias ou no período do Natal.

Devem, por inerência, ser cedidos ao fiduciário nos meses em que são processados e na medida em que ultrapassem o montante mensal fixado para o sustento minimamente digno do Insolvente e do seu agregado familiar.

Em face dos interesses em presença, esta será a forma concreta mais justa de adaptar a situação sócio-económica do Insolvente à condição jurídica especial em que se encontra, conjugando o valor necessário para assegurar o sustento condigno deste nos 12 meses do ano com a máxima defesa dos interesses patrimoniais dos credores.

Citando o Acórdão deste Tribunal de 8.4.2025, pesquisável em www.dgsi.pt:

(…) seguir-se a tese do recurso, nas situações de variabilidade dos rendimentos ao longo do ano, haveria como que uma “conta-corrente”, com a entrega mensal de valores ao fiduciário, mas em que o apuramento final do rendimento disponível só poderia vir a ter lugar no final, quando aferidos os resultados anuais.

Ora, essa lógica foi expressamente afastada nos preceitos em apreço, ao determinar a entrega imediata da parte do conjunto dos rendimentos objeto de cessão, não sobrando dúvidas ter o legislador eleito para esse efeito o critério do apuro mensal, no qual, de resto, se estabelece a exclusão do sustento minimamente digno do devedor.

A circunstância de, quer a informação do fiduciário (art. 240.º, n.º 2, parte final do CIRE), quer a notificação da cessão aos credores (art. 241.º do CIRE), revestirem a periodicidade anual não significa que a obrigação do devedor de entregar o rendimento objeto de cessão tenha em conta o seu rendimento anual, apresentando-se aquelas apenas como um meio para que os credores e o tribunal conheçam, ainda que sucintamente, os rendimentos comunicados, os valores entregues pelo devedor e em que termos foram afetados.

E não se diga, como se defende em sede de recurso, que, à semelhança do decidido, entre outros, nos acórdãos citados no recurso, como também, v.g., no do TRL, de 22.09.2020 (processo n.º 6074/13.7TBVFX.L1-1), só através do apuramento dos rendimentos objeto de cessão por referência aos rendimentos anualmente auferidos é possível garantir aos devedores disporem, em cada mês de cada ano do período de cessão e por recurso aos rendimentos que ao longo do ano vão auferindo, de rendimentos de montante não inferior, ao rendimento mensal indisponível fixado.

Isto porque, desde logo, a recorrente/exonerada não demonstrou, nem resulta inequívoco dos autos, estarmos confrontados com esse risco; ou seja, que, em concreto, a aplicação do critério legalmente fixado (o da entrega imediata da parte do rendimento disponível), implique o perigo de, em determinados meses, auferir rendimento inferior ao do fixado como necessário ao sustento minimamente digno, risco que só poderia ser neutralizado, concedendo-lhe a pretensão de, em determinados meses, conservar em seu poder capital para utilizar noutros em que o rendimento não alcance o valor indisponível.

Improcedem, assim, as conclusões da Apelante, mantendo-se o decidido pelo Juízo de Competência Genérica de Figueira de Castelo Rodrigo.

Sumário:

(…).


*

3.Decisão

Assim, na improcedência do recurso, mantemos a decisão proferida pelo Juízo de Competência Genérica de Figueira de Castelo Rodrigo.

Custas a cargo da apelante.

 

Coimbra, 30 de Setembro de 2025

(José Avelino Gonçalves - relator)

(Catarina Gonçalves – 1.ª adjunta)

(Maria João Areias – 2.ª adjunta)