Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
158/23.0T9NZR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: FRAUDE FISCAL
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
Data do Acordão: 05/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 103º, N.º 1, 104º, N.º 2, AL. A) DA LEI N.º 15/2001, DE 5.6; 68º, N.º 1, AL. A), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: No crime de fraude fiscal os únicos interesses protegidos pela norma incriminadora são do Estado, na vertente da Fazenda Nacional, não tendo um particular legitimidade para se constituir assistente.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

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RELATÓRIO


        

No processo de instrução n.º 158/23.0T9NZR.C1, foi pelo Juiz de Instrução Criminal de Leiria – J.... proferido o seguinte despacho (transcrição):

1. Autue-se como instrução.

2. Vem AA requerer a sua constituição como assistente, e a abertura de instrução imputando um crime de fraude fiscal.

3. Dado o crime em causa, de natureza fiscal, não é visível interesse privado algum. Interesse apela a relação. E, neste âmbito relacional de horizontalidade, não tem cada membro da coletividade cuidar do cumprimento de tal dever de outro seu igual. Antes compete ao Estado cumprir e fazer cumprir a obtenção de receita pelo imposto. De outra forma, o bem jurídico em causa, é o erário público, e o interesse concretiza-se na manutenção da relação de dever de pagar impostos, e assim protegida normativamente. Assim, por falta de interesse, não se mostra preenchido o requisito descrito no artigo 68 n.º 1 a) do C.P.P., apesar de ter pago taxa de justiça e devidamente representado (procuração a fls. 112).

Esta asserção tem apoio há muito na jurisprudência, cfr. sem exaustividade, Ac. RP de 24.10.1997, rel. MILHEIRO DE OLIVEIRA, e após mantida, cfr. Ac. RC de 28.1.2010, rel. MOURAZ LOPES, todos no local virtual www.dgsi.pt..

Decide-se não admitir a constituição como assistente.

4. Não estando constituído como assistente, por inadmissibilidade legal, nos termos do artigo 287 n.º 1 e n.º 3 do C.P.P., rejeita-se o requerimento de abertura de instrução.


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Recurso de AA (conclusões que se transcrevem integralmente):

1. O presente recurso incide sobre o douto despacho do Mmº Juiz de Instrução Criminal de Leiria que não admitiu a constituição do Recorrente como assistente e, em consequência, a abertura de instrução por si requerida.

2. O Tribunal a quo entendeu que o crime que é imputado na abertura de instrução é um crime de fraude fiscal e, pela sua natureza, não é visível interesse privado algum, não estando preenchido o requisito do artº 68º, nº 1, al. a) do CPP, e, em consequência, não é admitida a abertura de instrução por falta de legitimidade do Recorrente para tal.

3. O Recorrente participou criminalmente contra H... Unipessoal, Lda, BB, e eventuais desconhecidos, pelo preenchimento e assinatura de faturas em 2020, faturas essas que o Recorrente não emitiu ou preencheu, relativa a serviços que não prestou e emitidas a favor de entidade que desconhece.

4. Ao contrário do decidido no despacho recorrido não é verdade a inexistência de interesse penalmente atendível do Recorrente nos presentes autos.

5. Com efeito, a prática do crime levou a que contra o Recorrente fosse instaurado procedimento de liquidação oficiosa de rendimentos do ano em questão. pelo que da prática daquele crime resultou a lesão de interesses patrimoniais do Recorrente, tal como se alega no requerimento de abertura de instrução.

6. Em consequência, o douto despacho recorrido, ao não admitir a constituição do Assistente como recorrente, violado o disposto no artº 68º, nº 1, al. a) do CPPenal.

7. Mesmo que assim se não entendesse, existe sempre legitimidade do Recorrente para se constituir Assistente, por ter interesse no mesmo.

8. No seu requerimento de abertura de instrução, o Recorrente pugna pela acusação dos Denunciados pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, nos termos dos artigos 103º, nº 1 e 104º, nº 2 al. a) do RGIT porque a provarem-se os factos constantes da participação criminal, esse será o crime máximo (entenda-se, com a moldura penal mais gravosa) que resultaria da prática dos mesmos.

9. A imputação do Recorrente não vincula o Mmº Juiz, que pode acusar pela prática daquele crime ou pela prática de crime diferente.

10. Como é entendimento jurisprudencial unânime, o crime de fraude fiscal perpetrado pelo uso de faturas falsas consome o crime de falsificação de documentos.

11. Cumpridas as diligências probatórias requeridas pelo Recorrente no seu requerimento de abertura de instrução, mesmo que não se demonstrar a prática do crime de fraude fiscal, é muito provável (ou, pelo menos, possível), que os denunciados serão acusados pelo crime de falsificação de documento, por estarem preenchidos os elementos típicos previstos no artº 256º, nº 1, als. a) e) do CPenal.

12. Este crime já é um crime em que o Recorrente tem interesso direito (e não meramente reflexo), pelo que, por este crime já tem o Recorrente legitimidade para se constituir Assistente.

13. O problema é que provada a falsificação de documentos fica também provada a fraude fiscal, pelo que o Recorrente estava obrigado a requerer a abertura de instrução nos termos em que o fez, pois, salvo melhor entendimento, o artº 287º do CPP não permite a acusação por crimes em alternativa ou subsidiariedade.

14. O Recorrente, repete-se, estava obrigado a acusar pelo crime de fraude fiscal, sem prejuízo de, da instrução, por resultar a acusação pelo crime de falsificação de documentos.

15. O despacho recorrido viola também com este fundamento, o artº 68º, nº 1, al. a) do CPPenal, fazendo errada interpretação e aplicação do mesmo, bem como do artº 287º, nº 2 do mesmo diploma legal, constituindo a violação daquelas normas legais nulidade do despacho recorrido, nos termos do artº 379º, nº 1, als. b) e c) do CPPenal, mas também violação do artº 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, por não proteger os direitos e interesses legalmente protegidos do Recorrente.

16. Pelo que deve o despacho recorrido ser revogado e proferida nova decisão que admita a constituição do Recorrente como Assistente nos presentes autos, e admita o requerimento de abertura de instrução, ordene a abertura da mesma, nos termos do artº 287º, nº 1 do CPP.

Normas violadas: artº 68º, nº 1, al. a) e artº 287º, nº 2, ambos do CPPenal; e o artº 20º, nº 1 da CRP.


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Respondeu o Ministério Público, pugnando pela improcedência do recurso interposto, rematando com as seguintes conclusões:

- No caso vertente a questão suscitada pelo recorrente que cumpre apreciar consiste na admissibilidade da constituição de assistente (e posterior requerimento de abertura de Instrução).

- Atento o preceituado no artigo 68°, n°1, alínea a), do Código de Processo Penal, podem constituir-se como assistentes, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação. Resulta do citado preceito legal que o legislador consagrou, para efeitos de constituição como assistente, um conceito de “ofendido” entendido em sentido restrito.

- A fraude fiscal é configurada como um crime de perigo concreto singular, no sentido de que pela mesma não é colocada em perigo uma diversidade não determinável de bens jurídicos, mas sim e apenas um determinado interesse jurídico-penal, ainda que multifacetado, mas cujo núcleo se pode reconduzir às receitas tributárias. O bem jurídico especialmente protegido com tal crime é a ofensa ao património ou erário público. Deparando-nos, pois, com um crime eminentemente público, deve considerar-se que o verdadeiro ofendido neste crime é o Estado.

4º - Defendemos, pois, que não assiste razão ao recorrente quando pretende intervir nos autos como assistente, por virtude de os interesses protegidos pela infração em apreciação no inquérito assumirem uma dimensão pública cujo interesse jurídico-penal não foi pelo legislador excecionado em termos de ser admitida a intervenção de outros que não o próprio Estado. E assim sendo não poderia ser admitido o requerimento de abertura de instrução.

5º - Concordando com o teor do despacho ora posto em crise e porque entendemos que não se verifica a violação de qualquer preceito legal, nomeadamente dos artigos 68º, nº1, al. a) e art.º 287º, nº2, ambos do CPP, bem como do art.º 20º, nº1 da CRP, julgamos que deverá o presente recurso ser julgado improcedente.


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No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador-geral Adjunto acompanhou a resposto do Ministério Público em 1ª instância.

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         - CONHECIMENTO DO RECURSO

O objeto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995).

São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, pelo que se ficam aquém, a parte da motivação que não consta das conclusões não é considerada, e se forem além também não são consideradas, porque a motivação das mesmas é inexistente ([1]).

Assim, a questão a decidir prende-se exclusivamente com a legitimidade do recorrente para se constituir como assistente nos autos.


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Passando a conhecer do recurso interposto,

Notificado de despacho de arquivamento proferido no final do inquérito quanto ao denunciado crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103º, n.º 1, e 104º, n.º 2, al. a), do Regime Geral das Infrações Tributárias, requereu o queixoso AA a abertura de instrução, bem como a sua prévia admissão a intervir nos autos na qualidade de assistente, pugnando pela pronúncia

«1. O Denunciante é gerente da Sociedade Denunciada

2. Em data não concretamente determinada, mas anterior a 30.05.2021, o denunciado e a denunciada conluiaram-se premeditadamente, tendo o denunciado preenchido e assinado sete faturas de um livro de faturas em branco do Assistente, no valor total de € 31750,00 acrescido de IVA à taxa legal em vigor, entregando-as de seguida à denunciada.

3. De seguida, a sociedade denunciada alterou os seus livros de contabilidade a apresentou

declarações fiscais, em sede de IVA e IRC, incluindo os valores das faturas em questão como despesas suas (pagamentos).

4. Nunca o Assistente prestou qualquer serviço à denunciada, sendo, por isso, aquelas faturas, falsas, não correspondendo a qualquer montante que lhe tenha sido entregue, até porque se encontra emigrado desde muito antes do ano em questão.

5. Com a referida conduta, os Denunciados alteraram factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria coletável.

6. Os denunciados fizeram-no com o propósito obterem de vantagem patrimonial que causou diminuição das receitas tributárias no montante de, pelo menos, € 17292,52, que efetivamente conseguiram.

7. Os denunciados agiram em comunhão de esforços, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

8. Pelo exposto, os denunciados praticaram, em autoria imediata e na forma consumada, um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103º, nº 1 e 104º, nº 2 alinea a) do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).»

De acordo com o disposto no art. 68º, nº 1, al. a), do Código de Processo Penal, podem constituir-se como assistentes, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, “Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos” (sublinhado nosso).

Para efeitos de legitimidade para a constituição como assistente, o conceito de ofendido coincide inteiramente com a definição adotada no art. 113°, n° 1, do Código Penal para aferir da legitimidade para apresentar queixa, tendo sido inicialmente consagrada pelo art. 11° do Código de Processo Penal de 1929 e, posteriormente, pelo art. 4°, nº 2, do Decreto n° 35.007, de 13 de outubro de 1945.

O estatuto de assistente é conferido ao ofendido que o requeira, considerando-se este o titular dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação, incluindo se estiver em causa um crime público.

«“Partes particularmente ofendidas” são os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger quando formulou a norma penal. Quando prevê e pune os crimes, o legislador quis defender certos interesses: o interesse da vida no homicídio, o da integridade corporal nas ofensas corporais, o da posse ou propriedade no furto, no dano ou na usurpação de coisa alheia. Praticada a infração, ofenderam-se ou puseram-se em perigo estes interesses que especialmente se tiveram em vista na proteção penal, podendo também prejudicar-se secundariamente, acessoriamente, outros interesses. Os titulares dos interesses que a lei penal tem especialmente por fim proteger quando previu e puniu a infração e que esta ofendeu ou pôs em perigo, são as partes particularmente ofendidas, ou diretamente ofendidas, e que, por isso, se podem constituir acusadores» ([2]).

Conforme tem sido entendido na jurisprudência e doutrina mais recentes, o vocábulo «especialmente» usado pela lei significa, pois, de modo especial, num sentido de «particular», como se referiu, e não «exclusivo» ([3]).

Como refere Jescheck ([4]), «o direito penal tem por missão proteger bens jurídicos. Em todas as normas jurídico-penais subjazem juízos de valor positivo sobre bens vitais que são indispensáveis para a convivência humana na comunidade e que consequentemente devem ser protegidos, pelo poder coativo do Estado através da pena pública. [...] Todos os preceitos penais podem reconduzir-se à proteção de um ou vários bens jurídicos. O desvalor do resultado radica na lesão ou o colocar em perigo de um objeto da ação (ou do ataque) (v. g., a vida de uma pessoa ou a segurança de quem participa no tráfico), que o preceito penal deseja assegurar, do titular do bem jurídico protegido» (em itálico agora). O que significa que poderá um só tipo legal proteger «especialmente» mais do que um bem jurídico, questão a dilucidar perante cada tipo e cada ação dele violadora.»

Caso o bem jurídico protegido em determinada incriminação transcenda o singular, uma certa pessoa pode ainda ser considerada ofendida: “Determinante é que aquele bem supraindividual se possa encabeçar, digamos assim, numa pessoa concreta; ou dito do avesso, necessário é que se demonstre no caso concreto que a mancha de danosidade que a incriminação quer tipicamente esconjurar tenha atingido ou intendesse atingir pessoa concreta” ([5])

Assim, resulta da própria expressão da lei que não basta uma ofensa indireta a um determinado interesse para que o seu titular se possa constituir assistente, pois que não se integram no âmbito do conceito de ofendido, da alínea a) do n.º 1 do artigo 68.º do CPP, os titulares de interesses cuja proteção é puramente mediata ou indireta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os seus próprios e específicos.

Em resumo, a legitimidade do ofendido deve ser aferida em relação ao crime específico que estiver em causa, devendo ser admitida a constituição de assistente sempre que esse bem jurídico puder ser encabeçado num portador concreto, ou seja, quando os interesses imediatamente protegidos pela incriminação sejam, simultaneamente, do Estado e de particulares ([6]).

No entanto, importa ter presente que para efeitos de constituição de assistente não é considerado ofendido qualquer indivíduo prejudicada com o cometimento do crime, mas exclusivamente o titular do interesse que a norma incriminadora visou proteger ([7]).

Não corresponde, pois, a noção de “assistente”, conferidora de posição processual especifica, a “ofendido” ou “lesado”, podendo bem suceder que exista uma pessoa lesada pela prática de crime que não visou proteger o seu interesse individual – caso em que não lhe assiste o direito de se constituir assistente no respetivo processo crime.


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À luz destas considerações, vejamos agora o caso dos autos:

Pretende o recorrente, com o requerimento de abertura de instrução que apresentou, ver o arguido pronunciado pela prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelos arts. 103º, n.º 1, e 104º, n.º 2, al. a), do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 5.6).

Estabelecem as normas incriminadoras:

«Artigo 103.º

Fraude

1 - Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:

a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria coletável;

b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;

c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.

2 - Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a (euro) 15000.

3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.

Artigo 104.º

Fraude qualificada

1 - Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas coletivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias:

a) O agente se tiver conluiado com terceiros que estejam sujeitos a obrigações acessórias para efeitos de fiscalização tributária; (…)»

No inquérito, foram objeto de investigação factos suscetíveis, em abstrato, de serem qualificados como um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1 e 104.º n.º 2 alínea a) do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), tendo sido proferido despacho de arquivamento.

No requerimento de abertura de instrução, o requerente defende existirem indícios suficientes, face a provas cuja produção requer, para concluir pela prática pelos denunciados do mesmo crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1 e 104.º n.º 2 alínea a) do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).

O denunciante não peticiona em lado algum a pronúncia dos denunciados pelo crime de falsificação de documento, nem tal crime foi objeto de investigação na fase de inquérito, pressuposto para que seja requerida a abertura de instrução, uma vez que esta fase processual visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito (art. 286º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

Aliás, do acervo factual descrito no requerimento de abertura de instrução como integrantes do crime cuja pronúncia o recorrente pretende dos denunciados não constam os elementos típicos do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º do Código Penal.

Ora, foi objeto de investigação exclusivamente matéria tributária de natureza criminal. O crime de fraude fiscal é um crime de perigo, dirigido a uma diminuição de receitas fiscais ou à obtenção de um benefício fiscal injustificado, sendo o bem jurídico protegido a ofensa ao património ou erário público, bem eminentemente de interesse público.

São, pois, os interesses do Estado, na vertente da Fazenda Nacional, os únicos protegidos pela norma incriminadora, não se vislumbrando qualquer interesse particular que neste crime sejam objeto de proteção ([8]).

Como bem refere o Ministério Público na sua resposta ([9]), «A fraude fiscal é configurada como um crime de perigo concreto singular, no sentido de que pela mesma não é colocada em perigo uma diversidade não determinável de bens jurídicos, mas sim e apenas um determinado interesse jurídico-penal, ainda que multifacetado, mas cujo núcleo se pode reconduzir às receitas tributárias.

O crime de fraude fiscal é dirigido a uma diminuição das receitas fiscais ou à obtenção de um benefício fiscal injustificado. O bem jurídico especialmente protegido com tal crime é a ofensa ao património ou erário público. Deparando-nos, pois, com um crime eminentemente público, deve considerar-se que o verdadeiro ofendido neste crime é o Estado.

 São os interesses do Estado, na sua vertente vulgarmente denominada por Fisco ou Fazenda Nacional, entendido como sistema dinâmico de obtenção de receitas e realização de despesas (ver, neste sentido o Ac. RP 3.6.1998 in CJ T III, 1998). (…)

Em termos mais sintéticos, o valor tutelado na incriminação legal da fraude fiscal é, na primeira perspetiva, a ordem fiscal (em sentido amplo interesse na concreta determinação dos factos fiscalmente relevantes) e, na segunda, o erário público.

Defendendo a segunda das vias apontadas o valor que em última linha parece orientar o legislador é efetivamente a proteção patrimonial do “erário público”.

Em termos imediatos, a reposição da verdade fiscal é a forma idónea de impedir ou neutralizar o perigo que consuma o tipo de ilícito. Já a reposição das quantias devidas traduz-se no impedimento do dano efetivo. O bem jurídico teleologicamente protegido pela norma é, pois, o erário público nos termos descritos.»

O art. 50º do Regime Geral das Infrações Tributárias, em consonância com o que se vem mencionando, possibilita a intervenção processual da administração tributária, mas que não é sobreponível ao conceito de assistente. Nada mais.

Pelas razões referidas, uma vez que os interesses protegidos pela infração em causa assumem uma dimensão pública cujo interesse jurídico-penal não foi pelo legislador excecionado em termos de ser admitida a intervenção de outros que não o próprio Estado, nenhuma censura merece o despacho recorrido, que é de confirmar.


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DECISÃO


Pelas razões mencionadas, julga-se totalmente improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.

Coimbra, 8 de maio de 2024

Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora – processei e revi)

Alcina da Costa Ribeiro (1ª adjunta)

João Novais  (2º adjunto)


[1] v. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, págs. 335-336.
[2] Beleza dos Santos, «Partes particularmente ofendidas em processo criminal», na Revista de Legislação e Jurisprudência, 57, p. 2, citado no excelente Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2003, de 27 de fevereiro, rel. Simas Santos, Diário da República n.º 49/2003, Série I-A de 2003-02-27, páginas 1409 – 1419.
[3] - Cf. o AFJ referido e a jurisprudência aí citada, Pedro Soares de Albergaria, “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, vv.aa., anot. ao art. 68º, bem como a jurisprudência e doutrina que refere; e os Acórdãos de Fixação de Jurisprudência n.ºs 7/2011, 8/2006 e 10/2010.
[4] Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4.ª ed., p. 6.
[5] Pedro Soares de Albergaria, ob. cit., pág. 787, bem como a extensa doutrina que refere.
[6] Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., pág. 212, e ainda o AFJ n.º 1/2003, cit.
[7] Cf. Ac. da Relação de Évora de 30.6.2015, rel. Gilberto Cunha, versando o crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, em www.dgsi.pt
[8] Cf. os Acórdãos da Relaçao do Porto de 3.6.1997, rel. Milheiro de Oliveira, da Relação de Coimbra de 28.1.2010, rel. Mouraz Lopes, da Relação de Évora de 30.6.2015, rel. Gilberto Cunha, todos em www.dgsi.pt
[9] Recorrendo ao Ac. desta Relação de 28.1.2010, cit.