Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
545/23.4T8PMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: CONDUÇÃO SOB A INFLUÊNCIA DO ÁLCOOL
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
PROVA DO NEXO CAUSAL
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 19.º, C), DO DL 522/1985, DE 31/12
ARTIGO 27.º, 1, C), DO DL 291/2007, DE 21/8
ARTIGO 350.º, 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I . Não se mantém em consequência da alteração legislativa efetuada, no atual quadro legislativo, a força persuasiva da jurisprudência fixada pelo AUJ n.º 6/2002. O direito de regresso da seguradora contra o condutor que, no exercício da condução, tenha dado causa ao acidente, conduzindo com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, não exige a prova do nexo causal entre a ocorrência do acidente e a condução sob o efeito do álcool, pois a lei presume-o.
II. Esta presunção legal não impede o segurado da sua ilisão, provando que a ocorrência do acidente não se ficou a dever à sua condução sob o efeito do álcool, impedindo, assim, o direito de regresso da seguradora.
Decisão Texto Integral: Relator: Sílvia Pires
Adjuntos: Luís Carvalho Ricardo
Teresa Albuquerque


                       Autora: Z..., S. A.

                       Réu: AA  

                                                           *

     Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A Autora intentou a presente ação, pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de € 5.833,41, acrescida de juros vencidos desde a citação e vincendos até integral e efetivo pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão, que alicerça no direito de regresso que lhe é conferido pelo art.º  27º, n.º 1, c) do DL 291/2007, invoca a ocorrência de um acidente de viação em que interveio o veículo automóvel de matrícula ..-..-TR, conduzido pelo Réu; a transferência para si - mediante um contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...74 -,  da responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo; a culpa exclusiva do Réu que conduzia com uma T. A. S. de 0,69g/l, na produção do acidente e o valor dos  danos decorrentes do acidente por si suportado.

O Réu não contestou.

Foi proferida sentença que julgou a ação pela seguinte forma:
Pelo exposto, julgo a presente ação totalmente procedente e, consequentemente, condeno o réu AA no pagamento à autora Z..., S.A. da quantia de € 5.334,00 (cinco mil, trezentos e trinta e quatro Euros), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa de juro legal, contabilizados desde 10.11.2023 até integral e efetivo pagamento.

                                                           *

O Réu interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
I.- A meritíssima Juíza Recorrida proferiu decisão, que julgou procedente a acção, por provada, e, em consequência condenou o Réu, ora Recorrente, no pagamento à Autora Z..., SA. na quantia de € 5.334,00 (cinco mil, trezentos e trinta e quatro) euros, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa de juro legal, contabilizados desde 10.11.2023 até integral e efectivo pagamento.
II.- O Recorrente não se conforma, tendo interposto o presente recurso da douta sentença, não se conforma, porque embora a causa de pedir seja o alegado direito de regresso com fonte num contrato de seguro de responsabilidade civil do ramo automóvel, este só deverá ser procedente contra o Recorrente por ter agido sob influência do álcool, se a seguradora, aqui Recorrida, alegar e provar o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.
III.- Não ficou provado, nem sequer foi alegado, o nexo de causalidade adequada entre o a condução sob o efeito do álcool e a produção do acidente.
IV.- Reconhece o Recorrente que existiu uma verdadeira querela doutrinal e jurisprudencial em torno desta matéria.
V.- Debatia-se, como se reconhece na douta sentença recorrida, se devia existir nexo de causalidade entre o acidente de que resultaram os danos e a condução sob a influência do álcool e quem devia suportar o ónus da demonstração desse nexo causal.
VI.- Tal discussão veio a terminar com a publicação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/02, de 28 de maio de 2002 (publicado em Diário da República n.º 164, série I-A, de 18/07/2002) que uniformizou a jurisprudência segundo a qual “a alínea c) do Art.º 19 do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”.
VII.- Ora também se reconhece na douta sentença que a doutrina acolhida em tal Acórdão uniformizador mantém a sua força vinculativa na ordem jurisprudencial enquanto a norma interpretada não for alterada pelo legislador, ou a jurisprudência não for modificada por outro Acórdão uniformizador.
VIII.- Não houve qualquer Acórdão Uniformizador que tenha contrariado o anterior.
IX.- Só havendo uma pequena alteração legislativa – Decreto-Lei n.º 291/2007, de 31 de agosto – que não alterou expressamente o sentido da norma anterior, o que se impunha, se essa fosse a intenção do legislador.
X.- Na douta sentença recorrida foi adotada a corrente segundo a qual a seguradora apenas tem de provar que o condutor deu culposamente causa ao acidente e conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida.
XI.- Foram assim violadas as normas previstas nos Art.ºs 27 do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 31/08, bem como o Art.º 686 do C.P. Civil que garante a força vinculativa do Acórdão até o mesmo ser contrariado por outro Acórdão Uniformizador, ou por uma alteração legislativa clara e sem deixar dúvidas da intenção do legislador.
Termos em que o presente recurso deve ser considerado procedente, revogando-se a decisão recorrida, e em consequência, absolvendo-se o Réu, aqui Recorrente, em conformidade com a jurisprudência fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2002, seguindo os demais trâmites do recurso até final.

A Autora apresentou resposta, apresentando as seguintes conclusões:
1. Tendo sido regularmente citado na sua pessoa, o Réu, ora Recorrente, nunca interveio nos autos até à prolação da sentença.
2. Considerando o efeito cominatório semi-pleno da revelia operante do aqui Recorrente, a Meritíssima Juíza a quo proferiu uma sentença extremamente bem fundamentada, que não se limitou a dar por confessados os factos e com base nos mesmos condenar o Réu.
3. Pelo contrário, a douta sentença proferida está coesamente fundamentada na parte da aplicação do Direito aos factos, nos termos do atual panorama legal e jurisprudencial em torno da interpretação do teor do n.º 1, al. c), 1.ª parte, do art. 27.º do DL 291/2007, de 21 de agosto.
4. Assim, quanto à aplicação do Direito, pode ler-se o seguinte na sentença ora posta em crise: “Atualmente o seguro obrigatório é regulado pelo Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, que veio revogar expressamente, no artigo 94.º, o Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, diploma este que até então disciplinou a matéria.”
5. A douta sentença identificou as situações elencadas no art. 27.º do DL 291/2007, de 21 agosto, como aquelas em que embora a seguradora esteja vinculada à obrigação de reparação dos danos sofridos pelos lesados em consequência de um acidente de viação, com base na lei civil e nos termos previstos nos arts. 11.º e 12.º do citado diploma legal, beneficia em simultâneo de um direito de regresso por haver, “no entanto casos em que, seria de todo injusto que essa obrigação não recaísse unicamente sobre o verdadeiro causador do sinistro. Nem que este seja o próprio segurado, como no caso de ser ele o causador do sinistro por conduzir sob a influência do álcool. Nestes casos, por força da lei, a seguradora fica com o direito a exigir ao causador do sinistro o que pagou ao lesado, uma vez que os danos excedem o risco contratado.”
6. Mais explicitou a decisão ora atacada pelo Réu que: “A ação de regresso será assim, não uma ação por indemnização de danos, mas “uma ação em que a seguradora exige o reembolso do que pagou porque o risco que contratualmente assumiu não se compagina com os comportamentos do segurado tipificados naquele texto legal (condutores que abandonam sinistrados, que não têm habilitação legal para conduzir, que agem sob a influência do álcool, etc.)” (Cfr. neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.05.2003, proc. n.º 1231/03, disponível em www.dgsi.pt).”
7. Ora, com base na letra da atual lei aplicável ao caso dos autos, esclarece de forma meritória a sentença sub judice que “tem vindo a formar-se e, cremos, a consolidar-se, sendo hoje a posição dominante, uma outra corrente jurisprudencial que se basta com a demonstração da culpa do segurado e de que este conduzia com uma taxa de álcool no sangue superior à permitida por lei, sem exigir a prova do nexo causal entre o estado de alcoolemia e o acidente.” (destacado nosso)
8. Não obstante a posição interpretativa claramente tomada pela Meritíssima Juíza a quo, e corretíssima a nosso ver, acerca da atual falta de exigência de prova do nexo causal entre a condução sob a influência do álcool e a produção do acidente, sempre se diz que a Autora ora recorrida até produziu efetivamente tal prova nos autos, ou seja,
9. Pese embora o legislador tenha alterado a letra da lei e subtraído a exigência de prova do nexo causal acima referido, na verdade, atenta a alegação dos arts. 37.º e 38.º da PI que foram dados como provados no parágrafo 27.º da sentença, verifica-se que está efetivamente provado nos autos que “27. O Réu, devido à concentração de álcool que possuía no sangue, conduzia desatento e alheado às características e condições da via em que circulava, e ao trânsito que se processava ao seu redor, com os reflexos e discernimento tolhidos e comprometidos.” (destacado nosso)
10. Ora, com isto quer demonstrar-se que mesmo não sendo atualmente exigível à Autora, ora Recorrida, a prova do nexo causal entre a condução sob a influência do álcool e a causa do acidente, até resulta dos presentes autos que tal prova foi efetivamente concretizada, o que é nesta sede recursiva inatacável exatamente porque estamos perante um Réu revel, ou seja, a matéria de facto assente é nesta sede impassível de impugnação.
11. E com isto resulta efetivamente da matéria provada nos autos que:
“24. Ao descrever a curva acentuada que se apresentava à sua direita, o ora Réu, perdeu o controlo da viatura por si conduzida e invadiu a faixa de rodagem em que circulava o veículo de matrícula ..-FI-...”
“25. O condutor do veículo de matrícula ..-FI-.., circulava dentro dos limites legais de velocidade, conduzia o veículo mantendo uma trajetória de marcha estável, mantendo-se sempre dentro dos limites da sua faixa de rodagem.”
“26. Após a ocorrência do acidente, o ora Réu, condutor do veículo de matrícula ..-..-TR, foi submetido à realização do teste de pesquisa de álcool por ar expirado, através de alcoolímetro quantitativo, tendo acusado uma TAS de 0,644 g/l, correspondente à TAS de 0,69 g/l registada, deduzido o valor de erro máximo admissível. (vide Doc.2)”
“27. O Réu, devido à concentração de álcool que possuía no sangue, conduzia desatento e alheado às características e condições da via em que circulava, e ao trânsito que se processava ao seu redor, com os reflexos e discernimento tolhidos e comprometidos.”
12. Não obstante o supra aduzido, “dando de barato” e mesmo que a matéria de facto provada fosse atacável em sede recursiva, a forçada tese do Réu não colhe porque se baseia num Acórdão Uniformizador de Jurisprudência que incidiu sobre a interpretação de um preceito legal atualmente revogado, sendo que a norma revogatória do anterior regime legal (art. 27.º n.º 1 al. c), 1.ª parte, do DL 291/2007, 21 agosto) não se confunde, no seu texto, com o teor da norma revogada (art. 19.º n.º 1 al. c), 1.ª parte, do DL 522/85, de 31 dezembro).
13. Em bom rigor, enquanto que o DL 552/85, de 31 de dezembro, referia no seu art. 19.º al. c), 1.ª parte, que “Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso (…) contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool (…)”, a atual norma aplicável ao direito de regresso com fundamento em condução com taxa de alcoolémia superior ao legalmente permitido, prevista na al. c), 1.ª parte, do n.º 1 do art. 27.º do DL 291/2007, de 31 de dezembro, estabelece que “satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso: (…) c) contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida (…)”.
14. Em suma, é inegável a mudança de paradigma legal, não podendo o Venerando Tribunal apreciador do presente recurso olvidar tal evolução legislativa que foi devidamente acompanhada pela Meritíssima Juíza do Tribunal a quo.
15. A douta sentença proferida nos autos não padece de qualquer vício, razão pela qual, não se poderá retirar nenhuma conclusão diversa da aplicação do Direito ao caso em apreço, tendo por base a matéria de facto considerada provada, no caso, necessariamente provada atentamente a revelia operante do Réu aqui recorrente.
Conclui pela improcedência do recurso.

                                                           *

1. Do objeto do recurso
Considerando que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas a questão a apreciar é a de determinar se para ser reconhecido à Autora o direito de regresso é necessária a prova do nexo causal entre o acidente e a condução sob influência do álcool

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2. Os factos
Os factos provados são:


1. A Autora exerce, devidamente autorizada pela Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, atividade seguradora em diversos ramos.
2. Em 30/06/2020, no exercício da sua atividade, a Autora contratou com BB, um contrato de seguro do ramo automóvel, através do qual transferiu para si a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo, de marca ..., modelo ... D, com a matrícula ..-..-TR, titulado pela apólice n.º ...74.
3. No dia 01/11/2020, pelas 00:20 horas, ocorreu um acidente de viação Na Estada Nacional 243 (doravante designada por EN 243), ao Km 4,360, distrito ..., concelho ..., freguesia ... e ....
4. A EN243 é gerida pela Infraestruturas de Portugal.
5. A ocorrência do suprarreferido acidente ficou registada na Participação de Acidente de Viação com o NPAV: ...08/...51, elaborada pela GNR / Comando Territorial de Leiria, Posto Territorial ....
6. Foram intervenientes no acidente dos autos os seguintes veículos:
i. O veículo ligeiro de passageiros de marca ..., modelo ... D, com a matrícula ..-..-TR, propriedade de herdeiros de BB, e à data dos factos conduzido pelo Réu;
ii. O veículo ligeiro de passageiros, de marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-FI-.., propriedade de CC, e à data do acidente por este conduzido.
7. No local do acidente a faixa de rodagem é uma artéria pública de pavimento betuminoso, sem bermas transitáveis, com 2 sentidos de marcha, com uma via de circulação para cada sentido, separadas por uma linha contínua.
8. O traçado da via configura uma curva bastante acentuada.
9. No local do acidente, existe um passeio do lado direito da faixa de rodagem, considerando o sentido de marcha ... / ... (sentido em que circulava o veículo matrícula ..-FI-..).
10. Considerando o sentido de marcha ... / ..., (sentido em que circulava o veículo de matrícula ..-..-TR conduzido pelo Réu), a faixa de rodagem é ladeada por uma valeta em cimento para escoamento de águas pluviais.
11. No local existe sinalização vertical a indicar a aproximação de curva acentuada.
12. A visibilidade no local do acidente é reduzida.
13. O limite de velocidade legalmente permitido no local do acidente é de 50 km/h.
14. A faixa de rodagem onde ocorreu a colisão tem a largura de 7,45m.
15. No momento do acidente o piso da via encontrava-se em bom estado de conservação.
16. Não existia nenhum obstáculo na via que impedisse ou dificultasse a visibilidade ao condutor do veículo seguro segurado, de matrícula ..-..-TR.
17. No momento do acidente, não chovia, não fazia vento, não estava nevoeiro, estava bom tempo.
18. O piso da via estava limpo e seco.
19. O local do acidente é servido de iluminação artificial.
20. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas, o veículo de matrícula ..-FI-.., conduzido por CC, circulava na EN 243, no sentido ... / ....
21. E o veículo de matrícula ..-..-TR, conduzido por Réu, circulava na referida artéria, mas no sentido de marcha ... / ....
22. Ao chegar ao Km 4,360 da referida artéria, o condutor do veículo de matrícula ..-FI-.., no momento em que descrevia a curva acentuada à esquerda, foi embatido na lateral esquerda do seu veículo pelo veículo de matrícula ..-..-TR, conduzido pelo ora Réu, que circulava em sentido oposto ao seu.
23. E, em sequência do embate o veículo de matrícula ..-FI-.. embateu com a roda traseira direita no lancil do passeio, que se apresentava ao lado direito do seu sentido de marcha.
24. Ao descrever a curva acentuada que se apresentava à sua direita, o ora Réu, perdeu o controlo da viatura por si conduzida e invadiu a faixa de rodagem em que circulava o veículo de matrícula ..-FI-...
25. O condutor do veículo de matrícula ..-FI-.., circulava dentro dos limites legais de velocidade, conduzia o veículo mantendo uma trajetória de marcha estável, mantendo-se sempre dentro dos limites da sua faixa de rodagem.
26. Após a ocorrência do acidente, o ora Réu, condutor do veículo de matrícula ..-..-TR, foi submetido à realização do teste de pesquisa de álcool por ar expirado, através de alcoolímetro quantitativo, tendo acusado uma TAS de 0,644 g/l, correspondente à TAS de 0,69 g/l registada, deduzido o valor de erro máximo admissível. (vide Doc.2)
27. O Réu, devido à concentração de álcool que possuía no sangue, conduzia desatento e alheado às características e condições da via em que circulava, e ao trânsito que se processava ao seu redor, com os reflexos e discernimento tolhidos e comprometidos.
28. Na sequência do acidente supra descrito, o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-FI-.., sofreu estragos em toda a extensão da lateral esquerda e na lateral traseira direita. (vide Doc. 5)
29. O valor da reparação dos referidos estragos orçou em € 5.334,00 (cinco mil, trezentos e trinta e quatro Euros).
30. No decorrer do presente processo de sinistro a aqui Autora pagou as seguintes quantias:
a. € 5.334,00 (cinco mil, trezentos e trinta e quatro Euros), a título de reparação dos estragos provocados no veículo de matrícula ..-FI-..;
b. € 80,00 (oitenta Euros), a título de despesas de gestão processual com o sinistro; € 340,00 (trezentos e quarenta Euros), a título de custos decorrentes com a limpeza da via de circulação por forma a restabelecer as condições de segurança rodoviária.
c. € 79,41 (setenta e nove Euros e quarenta e um Cêntimos), pela emissão de certidão da participação de acidente n.º ...08/2020, emitida pela GNR.

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3. O direito aplicável
O Réu interpôs o presente recurso da decisão que o condenou a pagar à Autora as quantias que despendeu em consequência dos danos decorrentes do acidente de viação em que o Autor, enquanto condutor de veículo automóvel de matrícula ..-..-TR com uma TAS de 0,69 g/l, foi interveniente e culpado exclusivo.
Como argumento principal para a procedência da sua pretensão, defende que o direito de regresso em que a Autora alicerça a sua pretensão só pode ser reconhecido se esta alegar e provar o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente, o que em seu entender não ocorreu neste processo. Reforça o seu entendimento com o de que a doutrina do A. U. J. n.º 6/2002[1] mantém a sua força vinculativa na ordem jurisprudencial enquanto a norma interpretada não for alterada pelo legislador, ou a jurisprudência não for modificada por outro Acórdão uniformizador.
Não é colocado em crise que à situação dos autos é aplicável o Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.8 que dispõe no seu art.º 27º, n.º 1, c):
Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.
Por sua vez o DL 522/1985 de 31.12 – legislação no âmbito da qual foi proferido o AUJ 6/2002 -  preceituava no seu art.º 19º, c):
Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso:
contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado.

Quanto à questão que a alteração legislativa do citado preceito  passou a colocar, consta do acórdão do S. T. J. de 25.3.2021[2] que, por refletir a sua influência na jurisprudência, aqui reproduzimos:
 Porém, na decorrência dessa alteração legislativa, continuou ainda a persistir uma linha jurisprudencial no sentido de manter a orientação firmada no AUJ n.º 6/2002, como é exemplo disso, o acórdão do STJ, de 06/07/2011, proferido no processo n.º 129/08.7TBPTL.G1.S1, mas que deixou de ser predominante, mormente na jurisprudência deste Supremo Tribunal, como se pode colher dos seguintes acórdãos do STJ citados no acórdão recorrido: de 08/10/2009, proferido no processo n.º 525/04.9TBSTR.S1; de 28/11/2013, proferido no processo n.º 995/10.6TVPRT.P1.S1; de 09/10/2014, proferido no processo n.º 582/11.1TBSTB.E1.S1; de 06/04/2017, proferido no processo n.º 1658/14.9TBVLG.P1.S1; de 07/02/2017, proferido no processo n.º 29/13.9TJVNF. G1.S1; de 07/03/2019, proferido no processo n.º 248/17.9T8BRG.G1.S2.[1]
Esta última orientação foi reiterada em recentes acórdãos do STJ, nomeadamente no acórdão de 03/11/2020, proferido no processo n.º 2490/18.6T8PNF.P2.S1, e no acórdão de 10/12/ 2020, proferido no processo n.º 3044/18.2T8PNF.P1.S1.
Assim, a linha hoje largamente maioritária é de que, por via daquela alteração, atendendo ao contexto da precedente divergência jurisprudencial e da uniformização sobre esta firmada, o legislador pretendeu desonerar as seguradoras da prova diabólica do mencionado nexo de causalidade, exigindo a estas tão só a prova dos factos ali configurados.
Assim, não se mantém em consequência da alteração legislativa efetuada, no atual quadro legislativo, a força persuasiva da jurisprudência fixada pelo AUJ n.º 6/2002. O direito de regresso da seguradora contra o condutor que, no exercício da condução, tenha dado causa ao acidente, conduzindo com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, não exige a prova do nexo causal entre a ocorrência do acidente e a condução sob o efeito do álcool, pois a lei presume-o. Esta presunção legal não impede o segurado da sua ilisão, provando que a ocorrência do acidente não se ficou a dever à sua condução sob o efeito do álcool, impedindo, assim, o direito de regresso da seguradora.
Este entendimento encontra-se defendido  no Acórdão do S. T, J, de 6.4.2017[3], nos seguintes termos:
… não temos dúvida que a dita alteração legislativa (apagando a expressão agido sob influência do álcool e substituindo-a pelo – muito mais objectivado- segmento normativo conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida) teve como consequência dispensar efectivamente a seguradora do ónus de demonstração de um concreto nexo causal entre o erro ou falta cometido pelo condutor alcoolizado no exercício da condução - e que despoletou o acidente - e a dita situação de alcoolemia, envolvendo a normal e provável diminuição dos reflexos e capacidade reactiva do condutor alcoolizado.
O sentido a atribuir ao regime normativo introduzido pelo DL 291/07 será o de ter vindo estabelecer, afinal, uma presunção legal, assente nas regras ou máximas de experiência, na normalidade das situações da vida, segundo a qual o concreto erro ou falta cometido pelo condutor alcoolizado – e que consubstancia a responsabilidade subjectiva por facto ilícito que lhe é imputada - se deveu causalmente à taxa de alcoolemia verificada objectivamente por meios técnicos adequados e inteiramente fiáveis – deixando naturalmente a parte beneficiada pelo estabelecimento desta presunção legal de estar onerada com a prova efectiva do facto a que conduz a presunção, nos termos do art. 350º, nº 1, do CC.

Na verdade, afigura-se que a dita presunção legal carece de ser interpretada e aplicada em consonância com os princípios fundamentais da culpa e da proporcionalidade, em termos de não criar uma responsabilização puramente objectivada, cega e absolutamente irremediável do condutor/segurado pelas indemnizações satisfeitas ao lesado, precludindo-se a garantia emergente do contrato de seguro sempre e apenas em função da verificação totalmente objectivada de uma situação de alcoolemia: representando esta preclusão da garantia do seguro a imposição ao condutor/segurado de um ónus gravoso, implicando uma responsabilidade patrimonial pessoal particularmente onerosa, é naturalmente indispensável que esta imposição de uma responsabilização definitiva pelas quantias satisfeitas pela seguradora aos lesados se possa conformar com os referidos princípios fundamentais , não traduzindo a imposição ao condutor de um ónus manifestamente excessivo e desproporcionado.
E, assim sendo, por força dos referidos princípios estruturantes da ordem jurídica, não excluímos, que o condutor/demandado possa alegar e demonstrar na acção de regresso, com vista a ilidir a referida presunção legal:
- como exigência do princípio da culpa - que a situação de alcoolemia, impeditiva do legítimo exercício da condução, lhe não é imputável, por não ter na sua base , por exemplo, um comportamento censurável de ingestão de bebidas alcoólicas na altura da condução do veículo ( demonstrando, por exemplo, que tal taxa de alcoolemia está ligada a factor acidental e incontrolável, como reacção imprevisível a determinado medicamento);
- como decorrência do princípio da proporcionalidade - que, apesar da taxa de alcoolemia objectivamente verificada, não ocorreu, no caso, qualquer nexo causal efectivo entre tal situação e o acidente – ilidindo, por esta via a presunção legal segundo a qual qualquer situação de alcoolemia objectivamente proibida funciona como causa efectiva do erro ou falta cometida no exercício da condução: não é, pois, a seguradora que tem de provar, como pressuposto do direito de regresso, a existência de um concreto nexo causal entre a taxa de alcoolemia verificada e o erro de condução que desencadeou o acidente e o evento danoso, como sucedia no regime anteriormente em vigor, mas o próprio condutor que, se quiser afastar a sua responsabilidade em via de regresso, terá de ilidir tal presunção legal, perspectivada como presunção juris tantum, nos termos do nº2 do art. 350º do CC.
No caso que nos ocupa, não tendo o Réu colocado em crise a presunção legal de causalidade entre a sua alcoolemia no exercício da condução e o facto determinante da produção do acidente, salientado, no entanto a prova do mesmo, conforme decorre do facto  27 [4], impõe-se a confirmação da decisão recorrida.

                                                           *

Decisão
Nos termos expostos, julgando-se improcedente a apelação, confirma-se a decisão proferida.

                                                           *

Custas do recurso pelo Réu.

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                                                                                                          21.5.2024


[1] Publicado no D.R., I Série A, de 18/07/2002 e onde se decidiu que “a alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”.

[2] Relatado por Tomé Gomes e acessível em www.dgsi.pt .
[3] Relatado por Lopes do Rego e acessível em www.dgsi.pt.

Também no acórdão referido em 2 consta:
Posto isto, conclui-se, tal como foi entendido, de forma convergente, pelas instâncias, que do artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08, decorre uma presunção iuris tantum do nexo de causalidade em referência, incumbindo ao condutor segurado, quando demandado em ação de regresso, o ónus da sua ilisão, ainda que não se mostre exigível que a influência da alcoolemia ou do consumo de substância psicotrópica seja a causa exclusiva da conduta causadora do acidente, devendo essa influência ser ponderada, para tais efeitos, à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação, como judiciosamente se equaciona no acórdão do STJ, de 06/04/2017, proferido no processo n.º 1658/14.9 TBVLG.P1.S1
[4] O Réu, devido à concentração de álcool que possuía no sangue, conduzia desatento e alheado às características e condições da via em que circulava, e ao trânsito que se processava ao seu redor, com os reflexos e discernimento tolhidos e comprometidos.