Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | LUÍS RAMOS | ||
Descritores: | ASSISTENTE REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA NULIDADE | ||
Data do Acordão: | 03/15/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COIMBRA (J I CRIMINAL –J2) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 283.º, 28.º, 303.º, 307.º E 309.º, DO CPP; ART. 32.º DA CRP | ||
Sumário: | I - O formalismo do RAI pelo assistente é legal, compreensível e inultrapassável porque, destinando-se o processo penal a efectivar a responsabilidade penal, apenas pode prosseguir quando estão presentes os pressupostos da punição, ou seja, quando é possível imputar a uma concreta pessoa factos que constituem crime. II - Em última análise o que está em causa é a garantia constitucional de defesa do arguido com o princípio, também constitucional, do contraditório que é inerente àquele e cuja efectividade implica uma definição clara e precisa do objecto do processo. III - O requerimento para abertura da instrução que não respeite o formalismo acima apontado, se não for rejeitado por inadmissibilidade legal da mesma, irá necessariamente dar lugar a um despacho de não pronúncia. IV - A factualidade descrita na pronúncia não pode extravasar a que é descrita no requerimento para abertura da instrução se corresponder a uma alteração substancial dos factos nele narrados, sob pena de nulidade. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
Findo o inquérito, o Ministério Público proferiu a seguinte decisão: “Face a tudo o exposto, resta concluir pela ausência de indícios suficientes da existência de crime, pois que para tanto seria necessário que a conjugação de todos os elementos de prova juntos aos autos permitisse antever uma condenação da denunciada. Desta forma, determino o arquivamento do presente inquérito, nos termos do artigo 277º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal.” Inconformados, o assistente veio requerer a abertura de instrução através de requerimento no qual consigna: “(…) J. Deve por isso, ser dado por indiciariamente provado que: 1.º - No ano de 2007, A.... interpôs uma ação de processo comum contra B...., Lda., sociedade por quotas, com o número único de identificação de pessoa coletiva (...) , que fechou no dia 31 de Março de 2007 e cujas instalações sede e principal estabelecimento se situava na (...) , na Figueira da Foz. Essa ação que correu na agora denominada Comarca de Coimbra, Instância Central, 2.3 seção do Trabalho da Figueira da Foz e ao Tempo Tribunal do Trabalho da Figueira da Foz, sob o n.” 248/07.7TTFIG. 2.° - A ação foi julgada e a B... foi condenada a pagar ao A... a quantia de € 8.258,06 (oito mil e duzentos e cinquenta e oito euros e seis cêntimos), valor ao qual acresciam juros. 3. ° - A B... encerrou o seu estabelecimento e deixou de ter qualquer atividade em 31 de Março de 2007, tendo já sido administrativamente encerrada. 4.° - Entretanto a sociedade não pagou a quantia em que foi condenada, porque não tinha nem dinheiro nem bens, e o A. intentou a execução contra a B... que correu sob o número 248/07.7TTFIG-B. 5.° - No âmbito dessa execução que seguiu por apenso à ação supra identificada, o exequente nomeou à penhora uma máquina portátil de diagnóstico automóvel, marca Reflex, em duas malas cinzentas grandes pertencente à executada. 6.° - Posteriormente, o exequente, com o recurso “a uma espécie de agente infiltrado”, conseguiu saber onde estavam as coisas da sociedade, veio requerer nova penhora sobre a totalidade dos bens e equipamentos que tinham sido adquiridos pela sociedade no regime de locação financeira - leasing - ao Banco Popular, vd. Doc. 1 junto com participação criminal. 7.° - Na sequência deste requerimento foi ordenado pela Mma. Juiz de Direito que se procedesse à penhora conforme requerido dos bens móveis indicados pelo exequente. 8.° - A penhora foi levada a cabo por funcionária judicial tendo a agente que fez a diligência de penhora sido a participada nas suas funções enquanto funcionária judicial. 9.° - No requerimento formulado pelo exequente é indicada a localização das coisas da sociedade e que era: “a) a verba 4 da listagem encontra-se na própria loja F (...) ; b) as verbas 1 a 3, 6 a 12 e 14 a 29, encontram-se numa outra garagem, a penúltima à direita depois de se entrar na garagem comum junto ao Lote L da Rua (...) (garagem pertencente aos pais do sócio da executada H...); c) as verbas 5 e 13 encontram-se numa garagem, a primeira à esquerda do n.º 12 da Rua (...) , na quinta da (...) m (...) Figueira da Foz (ou seja o prédio onde residem os sócio da executada). 10.° - Quando foi feita a penhora, a primeira garagem onde o Tribunal se deslocou foi não só a que foi indicada pelo exequente sita na Rua (...) a, mas também a uma garagem imediatamente a seguir e com essa garagerm comunicante, sendo contudo que se percebe bem que a mesma pertence a outro prédio porquanto tem uma porta que permite passar e situa-se noutra Rua (a Rua C (...) ) e daí foi retirado muito material que não se encontrava indicado para penhorar uma vez que não pertencia à empresa e que por sua vez não foi relacionado no auto de penhora, ou seja, foi feita a penhora pela Senhora Funcionária que redigiu e assinou o auto e com os bens indicados foram levados outros cuja propriedade não era da B... . 11. ° - Ou seja: o exequente levou o material que sabia ser da executada mas foi a local que não tinha pedido para ir e levou o que aí se encontrava além do material da B... , material esse que não foi inserido no auto da penhora, vd. Docs. 2 e 3 juntos com a queixa, que não era propriedade da sociedade executada e que a seguir se indica: 12.° - Da Garagem da Rua Professor Vítor Rebelo: 1.1. Um Medidor de Massa de Ar para Fiat Punto GT- PVP de 661,59 €, Peça propriedade de I.... pertencente ao seu Fiat Punto GT; 1.2. Caixa com vários tipos e tamanhos de O'Rings para hidráulicos - PVP de 75,00 €; (de propriedade de E... ),' 1.3. onjunto de várias chaves inglesas (grande e média), de canalizador grande e de grifos - PVP de 150,00€. (de propriedade de E... ). 1.4. Uma chave pneumática de impacto marca Shimano - PVP 356,70€; (Propriedade do H... comprada em 2004 á M ... ) e um conjunto para remendar pneus em caixa plástica c/ verruma e material de colagem - PVP de 50,00€,' (Propriedade do H... comprada em 2003/4 para uso na reparação de pneus no motocross); 1.5. Jogo de chaves de caixa Cartull de 111 peças - PVP 153,75 €; (Propriedade do H... comprada em 2004, no Rui Peças, para uso na reparação das motas de motocross); 2. Da Garagem da Rua (...) , 16: 2.1. Máquina de estampagem manual de matrículas, marca Metalúrgica Modema, com os respectivos conjuntos de letras em aço de A a Z, algarismos de O a 9 e dois hífens e duas grelhas de suporte das letras para prensar as chapas - PVP de 1845,00 €; (Máquina de propriedade de E... comprada no ano 1986 por 450 contos, para fazer matrículas no antigo posto da Shell da F da Foz, que à data era da sua concessão). 2.2. Um carro telecomandado com motor a gasolina marca Kyosho Inferno Dx e respectivos comandos de rádio, baterias, cachimbo, starter, lata de 5 litros de gasolina especial e vários acessórios; PVP de 500,00 €. (Propriedade d4 J...., comprado em Andorra em 1993). 2.3. Uma garrafa, de ar comprimido, para mergulho subaquático, em alumínio com 12 I de capacidade e 15 kg de peso e 200 Atm de pressão. Valor - 450,00€. (de minha propriedade, comprada em Angola em 1985 e trazida em 1986 para Portugal). Da garagem da Rua (...) a - (contígua à da R. (...) ): 3.1. Quatro embalagens de 4 litros de óleo Helix Diesel Super 15W/40 - PVP de 134,70 €; (Material de propriedade de E... , vindo do dito antigo posto da Shell da F. da Foz. 3.2. Três embalagens de 2 litros de lubrificante Shell SF 75W/80, para caixas de velocidade Peugeot/Citroen - PVP = 139,34€; (Material de propriedade de E... , vindo do antigo posto da Shell da F. da Foz). 3.3. Uma caixa com doze embalagens de spray Shell de limpar jantes, interiores auto, vidros, etc. de 0,5 I cada - PVP = 135,20 €; (Material de propriedade de E... , vindo do antigo posto da Shell da F. da Foz; 3.4. Um berbequim de percussão Bosch 500 RE - PVP = 72,45 €; (Este berbequim, de propriedade de E... , foi comprado por pontos acrescido de dinheiro numa campanha da Shell nos anos de 1999/2000). 3.5. Duas plainas manuais para trabalhar madeira, marca Stanley em aço - PVP de 110,70 €. (da propriedade de E... por herança do seu pai). 3.6. Duas plainas manuais para trabalhar madeira, corpo e cunha em madeira e ferro de corte em aço HSS - PVP de 73,80 ê. (da propriedade de E... por herança do seu pai) 3.7. Uma caixa de pesos de zinco de vários tamanhos, para equilibrar rodas - PVP de 92,25 €. (Propriedade de E... ). 3.8. Uma secretária com painéis de aço e tampo de madeira - PVP de 350€. (Secretária propriedade de J... ,; 4. Da garagem da Rua (...) a Uma bancada de trabalho em aço c/tampo em madeira e arrumação - PVP de 159,90 €; (Comprada em Maio2005 na Makro. 13.º - Além disso, do queixoso foram destruídos ou danificados em 07-Dez-2012, os seguintes bens: - Bens destruídos nas Garagens da R. (...) e da Rua (...) : Um saco guardado com várias calças, camisas, T-Shirts, camisolas e jaquetas, que foram deterioradas pelo óleo, tendo servido aos autores da penhora, para a tentativa de absorção e limpeza do óleo derramado. Valor de substituição - 250,00€; (Propriedade de E... ). Um balde de 25 litros de óleo Shell Helix 15W/40 rebentado e derramado no chão - Valor - 275,83€; (Propriedade de E... ). Um Balde de 25 litros de óleo Shell Rímula D-40 rebentado e derramado no chão - Valor - 184,20€; (Propriedade de E... ). Um balde de 25 litros de óleo diesel Shell Sarama 15W/40 rebentado e derramado no chão - Valor - 199,88€; (Propriedade de E... ). Reparação para recuperação de uma secretária em mogno, partida e riscada durante as diligências do auto de penhora; (Propriedade de E... ). Reparação para recuperação de uma mobília completa de sala de jantar estilo Henrique II, de que partiram várias peças, pés, cadeiras, etc, e que ficou encharcada pelo óleo derramado dos baldes; (Propriedade de E... ). Reparação para recuperar uma cómoda de estilo, em madeira de cerejeira envernizada que foi riscada e partida e que ficou encharcada com o óleo derramado no chão; (Propriedade de E... ). Limpeza do chão das duas garagens e das partes comuns dos dois condomínios, impregnado pelo óleo derramado no rebentamento dos três baldes, efectuada pelos intervenientes nas diligências do auto de penhora. 14.º - O valor dos objetos levados sem referir é de € 5.970,29, sendo o valor dos objetos destruídos € 909,91. Orçamento de reparação da mobília € 750,30.€. Ademais, para ver o estado das coisas antes da penhora ele era o que se encontra demonstrado pelas fotos com os números 4 a 7 juntos com a queixa e pois da penhora o estado das coisas foi o que se encontra demonstrado pelas fotos constantes dos documentos com os números 8 a 16 juntos com a queixa. 15.º - Soube o queixoso que a denunciada é amiga do exequente A... e da sua companheira, fazendo pública a sua amizade através das redes sociais. 16.º - Ao permitir que fossem penhorados bens que não foram relacionados no auto de penhora e que não constavam do requerimento de penhora e em local diferente do onde foi ordenada a penhora - bens esses pertencentes aos queixosos e que foram encontrados na posse do exequente parte dentro das gavetas dos carros oficina que foram penhorados - a participada apropriou-se em proveito do exequente de coisa móvel particular, o que lhe foi possível em razão do seu exercício de funções. 17.º - Para levar as coisas foi usada no transporte um veículo de matrícula (...) SH. Esta viatura não se sabe a quem pertence, mas no transporte foi conduzida por alguém, quem acompanhou a carga, quantas viagens foram feitas, para onde foram feitas a viagens e foram sempre acompanhadas pela PSP. Urge investigar, averiguar quem esteve e quem fez o quê com ordem de quem. Estão, por conseguinte, reunidos os requisitos do crime participado, atenta a factologia supra descrita da conduta do arguido. Realizadas as diligências de prova que de seguida se requererão e as demais que se entendam necessárias, deverá ser proferido despacho que pronuncie a arguida pelo crime participado, isto é: - D..... pelo crime de peculato previsto e punido pelo artigo 375. o do Código Penal. Realizada a instrução, foi proferida a seguinte decisão instrutória (transcrição da parte relevante): “I – Iniciaram-se os presentes autos com a apresentação de queixa crime por parte de E... contra D... . De acordo com a denúncia, em 2007 A... propôs uma acção de processo comum contra “ B... , Lda., sociedade por quotas, no Tribunal do Trabalho da Figueira da Foz, à qual foi atribuído o nº 248/07.7TTFIG. Na referida acção, a “ B... ” foi condenada a pagar ao Autor A... a quantia de €8.258,06 (oito mil e duzentos e cinquenta e oito euros e seis cêntimos), valor ao qual acresciam juros. A referida sociedade encerrou o seu estabelecimento e deixou de ter qualquer actividade em 31 de Março de 2007, tendo já sido administrativamente encerrada. Contudo, não procedeu ao pagamento da referida quantia a A... e este intentou então um processo de execução contra a B... , que correu por apenso aos citados autos principais. No âmbito dessa execução, o exequente nomeou à penhora uma máquina portátil de diagnóstico automóvel, marca Reflex e duas malas cinzentas grandes e pertencentes à executada e, posteriormente, requereu nova penhora sobre a totalidade dos bens e equipamentos que tinham sido adquiridos pela sociedade ao Banco Popular no regime de locação financeira. A penhora foi levada a cabo pela arguida, no exercício das suas funções enquanto funcionária judicial. No requerimento formulado pelo exequente foi ainda indicada a localização dos objectos pertença da sociedade: a loja F (...) e uma garagem, a penúltima à direita depois de se entrar na garagem comum junto ao Lote L da Rua (...) , nas Abadias. De acordo com a queixa crime, quando foi executada a penhora, em 7 de Dezembro de 2012, o Tribunal deslocou-se não só à garagem que foi indicada pelo exequente, sita na Rua (...) , mas também a uma garagem imediatamente a seguir e comunicante com a primeira, da qual foi retirado muito material que não se encontrava nomeado à penhora e que não pertencia à executada e que não foi relacionado no auto de penhora. Assim, diz a queixa, a arguida, que redigiu e assinou o auto de penhora, permitiu que fossem levados bens que não estão descritos nesse auto e cuja propriedade não era da executada “ B... ”. Diz o denunciante que o exequente levou os referidos bens que não foram inseridos no auto da penhora e material que não era propriedade da sociedade executada. Para além destes factos, queixou-se ainda o denunciante de que foram destruídos ou danificados vários bens, aquando da realização penhora. Segundo disse, acresce que a arguida é amiga do exequente A... e da sua companheira e, ao permitir que fossem penhorados bens que não foram relacionados no auto de penhora e que não constavam do requerimento de penhora e em local diferente do onde foi ordenada a penhora, bens esses pertencentes ao denunciante e que foram encontrados na posse do exequente, a denunciada apropriou-se em proveito do exequente de coisa móvel particular, o que lhe foi possível em razão do seu exercício de funções. Juntou documentos e arrolou testemunhas. * * No termo do inquérito, e realizadas que foram as diligência probatórias consideradas pertinentes, o Ministério Público, com os fundamentos constantes do despacho de fls. 84 e ss. dos autos, arquivou os autos. * * II - Inconformado com o arquivamento dos autos com relação à queixa por si apresentada, o queixoso, já na qualidade de assistente, veio requerer a abertura da presente instrução, pugnando pela pronúncia da denunciada pela prática de um crime de peculato, p. e p. pelo art..º 375º do CP. * * (…) Revertendo ao caso dos autos, constatamos que a argumentação do assistente reside no facto de, na sequência do acto de penhora de bens móveis, terem desaparecido das garagens onde aquele se realizou um conjunto de bens titulados por outrem que não a executada e que extravasaram o objecto fixado à mesma diligência. Sustenta que a penhora não poderia incidir sobre bens que não foram indicados pelo exequente e que todos e cada um dos bens removidos careciam de ter sido descriminados no auto de penhora, o que não sucedeu. Mais: a penhora realizou-se não só na garagem que foi indicada pelo exequente como sendo aquela onde os bens se encontravam mas também numa outra garagem com esta comunicante. Para além do mais, diz, no momento da penhora foram destruídos ou danificados uma série de bens. Assim, e porque a arguida presidiu a essa diligência e é amiga do exequente, terá agido com intenção de favorecer o exequente, permitindo que tais bens fossem levados do local e não os descrevendo como deveria ter sucedido e assim tolerando que o exequente se apropriasse de tais bens. Ora, desde logo há que notar que a circunstância da arguida não ter descrito os bens no auto de penhora com o rigor, com a minúcia devidas, é algo que poderá ser resolvido no plano executivo ou deontológico e que, por si só, não a fará incorrer em responsabilidade criminal nem integra o crime que o assistente lhe imputa. Também não assiste razão ao assistente quando diz que a penhora não pode incidir sobre bens que não foram indicados pelo Exequente ou pelo próprio Tribunal. É efectivamente ao Agente de Execução que compete localizar bens susceptíveis de serem mobilizados para cobrança da quantia exequenda e das despesas prováveis da execução, pelo que ao agir assim não incorreu certamente em responsabilidade criminal. Pelas mesmas razões, nenhum obstáculo existe também a que tenham sido retirados bens da executada de uma garagem comunicante com aquela que foi indicada como local da penhora. Efectivamente, constatando o agente de execução, numa diligência de penhora, que existem bens do executado numa divisão contígua àquela onde a penhora se está a realizar, está naturalmente legitimado a penhorá-los. Quanto à alegada circunstância de terem desaparecido bens da garagem, a verdade é que, segundo se entende, desde logo nenhum indício existe, para além da alegação do assistente, de que, por um lado, tais bens existissem (nenhuma prova documental da sua aquisição foi junta aos autos) e, por outro lado, que tais bens tenham sido retirados da garagem aquando da penhora sem que a arguida os tivesse feito constar do auto de penhora. Senão, vejamos. Desde logo, apreciados os documentos reunidos nos autos, resulta suficientemente indiciado que C... é exequente no processo n.º 248/07.7TTFIG-B, que correu termos no Tribunal de Trabalho da Figueira da Foz, sendo nele executada a sociedade comercial “ B... , Lda.”, sendo E... sócio-gerente e no âmbito da qual foi realizada a penhora em causa nos autos. E resulta ainda dos documentos juntos aos autos que tal penhora observou os dispositivos normativos previstos no âmbito da legislação do processo executivo. Da certidão extraída do Processo de Instrução nº 333/13.6TAFIG, e junta aos presentes autos a fls. 318 a 456, resulta que o aqui denunciante apresentou uma outra queixa crime com fundamento, no essencial, na factualidade aqui denunciada, contra o exequente na acção nº.248/07.7TTFIG-B, A... , a quem imputou a prática de um crime de furto, p.p. pelo artigo 203º, nº. 1 do Código Penal e um crime de dano, p.p. pelo artigo 212º, nº. 1 do referido diploma legal, inquérito este em que foi proferida decisão de arquivamento por parte do Ministério Público e despacho de não pronúncia do arguido. As testemunhas F... e G... - que são agentes da PSP e que assistiram à diligência de penhora em causa nos autos – foram inquiridas na instrução e contaram que estiveram presentes na diligência de penhora, desde o seu início e até às 13.00 horas, altura em que foram rendidos, e que para além deles estavam presentes a oficial de justiça D... , aqui arguida, o exequente A... e um outro senhor, que procedeu ao arrombamento da porta. Disseram ainda estas testemunhas que nada foi retirado das garagens em causa nos autos sem que a arguida tivesse verificado o que era transportado e ainda que esta ia tirando notas à medida que os bens iam sendo retirados do local. Estas testemunhas prestaram depoimentos isentos, coerentes, credíveis e entre si c coincidentes. Saliente-se, aqui, que de facto não fez o assistente qualquer prova de que estivessem na garagem os bens cuja falta acusa, como acima se referiu já. E, ainda que tais bens ali se encontrassem e que, efectivamente, aquando da penhora de bens, tivessem sido dolosamente retirados e subtraídos do local bens, tal não significaria, sem mais, que a aqui arguida tivesse sido a autora dessa subtracção ou que tivesse sido conivente com tal subtracção. Acresce que, segundo o que o assistente declarou, não ia à garagem desde há cerca de 4 meses e quer a ex-mulher, quer os filhos, tinham acesso livre á mesma. E explicou que afirmou que entre a arguida e o exequente C.... existe uma relação de amizade porque a nora lhe contou que aqueles são amigos no facebook e também se conhecem na vida real, mas desconhece com que grau de intimidade. Nenhum outro facto pode relatar que confirme tal relação de amizade que invocou no requerimento de abertura da instrução. Esclarecei que a nora também é amiga da arguida nesta rede social e desconhece se o é também na realidade. Assim, nenhuma prova produzida nos autos permite inferir que a arguida subtraiu bens ou permitiu essa subtracção por terceiro nem há razões para supor que a prova desejada pelo assistente, arrolada no requerimento de abertura da instrução, permitiria a prova de taios factos, uma vez que as testemunhas inquiridas em instrução, que estiveram presentes no ato de penhora, foram claras e inequívocas nos depoimentos que prestaram, tornando-se pois desnecessária a inquirição de demais testemunhas Uma última nota se impõe, que é a de que resultou claramente dos depoimentos das testemunhas acima referidas que, quando a garagem foi aberta para realizar a penhora constatouse que estava a escorrer óleo de um bidão que estava tombado no interior da referida garagem e que o chão desta estava, por isso, sujo. Por indiciar se mostra, pois, que a arguida tenha estragado ou permitido estragar bens no interior da garagem Concluindo: a versão do assistente constante do requerimento de abertura da instrução não foi corroborada por nenhum outro meio de prova idóneo, para além das declarações do assistente, não sendo a prova colhida nos autos suficiente para fundar o juízo da probabilidade da condenação da arguida pelos factos descritos no requerimento de abertura da instrução, juízo imprescindível para a decisão de acusação, isto é, para prosseguimento dos autos de inquérito para julgamento, de acordo com o disposto no n.º 1 do art. 283.° do Código de Processo Penal. Em conformidade, a decisão tem necessariamente de ser de não pronúncia. V- Em face do que fica dito, decido não pronunciar o arguido pela prática dos factos e crime constantes do requerimento de abertura da instrução, determinando o arquivamento dos autos.” Inconformado com o decidido, o assistente E... interpôs recurso no qual apresenta as seguintes conclusões (transcrição): “1.ª - Nestes autos foi proferido um despacho de não pronúncia da arguida, sustentando, em síntese a Mma. Juiz de Direito que a versão trazida pelo assistente no requerimento de abertura de instrução não foi corroborada por nenhum meio de prova idóneo além das declarações do assistente. 2.ª - Para que possa ser proferido o despacho de pronúncia, é necessário que o Mmo. Juiz de Instrução esteja convicto no carácter indiscutivelmente razoável na possibilidade de condenação. Para que se possa proferir o despacho de pronúncia é necessário que se tenham obtido indícios suficientes da prática do crime. No artigo 283.º n.º 1 do Código de Processo Penal, estabelece-se que indícios suficientes da prática do crime se verificam quando “já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”, Figueiredo dias, Direito Processual … pág. 133. Por se entender que existem indícios suficientes de que os crimes se verificaram, foram violados os artigos 308.º e 283.º ambos do Código de Processo Penal. 3.ª - Em teoria uma decisão só pode ser tomada depois de estarem apurados os factos relevantes e de determinada regra aplicável. A decisão é construída a partir da regra aplicável ao caso concreto. Portanto a seleção da regra aplicável antecede necessariamente a construção da decisão. “Um facto só pode ser juridicamente relevante se preencher uma previsão legal, isto é, se corresponder ao facto representado nessa previsão. ... Os factos jurídicos são aqueles que são subsumíveis às previsões legais: antes da sua qualificação como jurídicos os factos não são factos jurídicos. ... uma vez determinada a fonte que qualifica o facto como jurídico, está também encontrada a regra que o regula, Miguel Teixeira de Sousa, ob. e loc. cits.. 4.ª - A matéria de direito é sempre conhecida oficiosamente pelo tribunal, iura novit curia, dado que este não está vinculado às alegações dos sujeitos processuais em matéria de direito. Por isso, ao aplicador da lei, o que se exige é que ele conheça toda a lei da sua área de sabedoria ou ação, saiba raciocinar sobre ela e conheça a sua teleologia. 5.ª - Ao Ministério Público compete exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática, conforme preceitua o artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa. “O titular da função investigatória deve dispor do adequado espaço operativo, em termos de tempo e instrumentos, para aprofundar o conteúdo na notícia do crime, verificar o seu fundamento, procurar os autores do facto e assegurar, uma vez iniciada a ação penal, a disponibilidade pelos outros sujeitos processuais das fontes da prova”, Paulo Dá Mesquita, Ob. e loc. cits. 6.ª - O inquérito é constituído por atos de investigação para esclarecer a notícia do crime e pela recolha das provas para comprovar os factos. Aberto o inquérito, procede-se, porque se tem de se proceder, à investigação dos factos noticiados. A denúncia ou notícia do crime tem de ser investigada em todas as suas vertentes. “O âmbito do inquérito respeita assim aos factos constitutivos do crime, às suas circunstâncias e ao agente. Importa investigar e recolher provas de tudo quanto possa servir para fundamentar a decisão que há-de ser tomada findo o inquérito, quanto à acusação ou não acusação … e ainda sobre a aplicação de medidas de … garantia patrimonial”. … A lei nada dispõe quanto aos métodos de investigação nem às diligências a efetuar em ordem ao esclarecimento da notícia do crime, para além do que estabelece sobre os procedimentos probatórios. Conforme os crimes a investigar as técnicas de investigação variam. … O investigador tem necessariamente de formular hipóteses sobre o modo como foi praticado o crime para investigar e recolher as provas respetivas”, Germano Marques da Silva, Curso … Vol. III, Verbo, págs. 67 e 68. 7.ª - “A queixa delimita a investigação relativa aos factos de certo tipo de crime que dela são objeto, mas não ao esclarecimento integral dos seus elementos essenciais e acidentais. A investigação dos factos objecto da queixa não pode ser limitada pelo queixoso, devendo no inquérito praticar-se todas as diligências que forem julgadas indispensáveis para o seu pleno esclarecimento, para a descoberta da verdade”, Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 96/7. 8.ª - Bem se compreende que assim seja, porquanto o Ministério Público, no inquérito e o Juiz, em instrução, artigo 290.º e 286.º do Código de Processo Penal, que foram violados na decisão recorrida, tem o poder-dever de investigar e de lançar mão de todos os meios que julgue necessários para a dedução de acusação ou de arquivar. Não tem de se cingir aos meios de prova que o queixoso indica. 9.ª - O conceito de recolha de indícios suficientes conforme a lei postula no artigo 283.º n.º 1 do Código de Processo Penal. Ora, indícios suficientes da prática do crime verificam-se quando “já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal I,… Ob. e loc. cits.. A definição do artigo 283.º n.º 2 do CPP, segundo a qual “consideram-se suficientes os indícios, sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança”, não contém uma simples definição de prova indiciária dos factos, a qual está pressuposta, mas uma exigência de antecipação de um juízo de culpa. 10.ª - Indícios suficientes da prática do crime verificam-se quando “já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”, Figueiredo Dias, Direito Processual …, pág. 133. 11.ª - Assim, na perspetiva do legislador, os indícios suficientes pressupõem um ponto de vista da acusação sobre a culpa do agente, sendo certo que para se deduzir acusação se exige que se faça uma antecipação do juízo da culpa do arguido. 12.ª - O Ministério Público, enquanto magistratura e defensor da legalidade democrática, artigo 219.º n.º 2 da norma normarum, tem a função e obrigação de formular tais perspetivas de acusação com consciência e fundamentação. O que se pede “não é apenas, dada a definição da lei, que acuse à cautela ou porque acha que sociologicamente há uma probabilidade de condenação, mas sim que acuse quando e porque, de acordo com um juízo antecipado de culpa fundamentado juridicamente, considera o arguido culpado. Este é de facto o critério possível de um processo penal da presunção da inocência.” Fernanda Palma, Ob. e loc. cits. A relação entre os indícios e a possibilidade de condenação é que caracteriza a suficiência de indícios. Com efeito os indícios de que resulta a possibilidade razoável de condenação são indícios suficientes para a condenação, o que significa que revelam uma espécie de causalidade para aquele resultado, mas tal qualificação não se refere diretamente à natureza dos indícios, nomeadamente à sua caracterização como fortes, fracos ou de média intensidade. 13.ª - “Na lógica do Código de Processo Penal, os indícios que justificam a acusação são, segundo me parece, necessariamente graves ou fortes, no sentido de serem factos que permitem uma interferência de tipo probabilístico da prática do crime (enquanto facto) de elevada intensidade, permitindo estabelecer uma conexão com aquela prática altamente provável. E é assim, porque só os indícios de elevada intensidade são suficientes, isto é, justificam um juízo normativo de “possibilidade razoável de condenação”, Fernanda Palma, ob. cit., pág. 122. 14.ª - No despacho de arquivamento, depois do assistente o ter lido e relido, ao Ministério Público, basta-lhe o que se passou noutros processos para sem investigar à (como ensina a Ex.ma. Senhora Professora Doutora Anabela M. Rodrigues, o Ministério Público tem de investigar à charge et decharge) decidir arquivar um processo, este cuja abertura de instrução se requer, que não investigou e cuja ação se limitou a aceitar neste processo penal efeitos de outros processos. 14.ª - No nosso sistema jurídico ou na nossa ordem jurídica, para que uma decisão possa ter efeitos dentro e fora de um processo, de qualquer foro, é necessário que essa decisão não seja passível de recurso ordinário, “sendo portanto inatacável” Manuel Domingues de Andrade, ob. e loc. cits. Por trânsito em julgado de uma decisão que ponha termo ao processo, deve-se entender a Sentença ou Acórdão, que já não é suscetível de “reclamação nem de recurso ordinário, quer nenhuma impugnação tenha tido lugar nos prazos legais, quer se tenham esgotado os meios de impugnação efetivamente utilizados, transita em julgado e extingue a instância” José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto, ob. e loc. cits. Dentro do caso julgado há que distinguir entre o caso julgado material e o caso julgado formal. Quando a decisão recai “unicamente sobre a relação jurídica processual, temos o caso julgado formal; se recai sobre o mérito da causa, e portanto sobre a relação jurídico substancial, temos o caso julgado material” Alberto dos Reis, ob. e loc. cits. A noção de caso julgado material é pois a definição dada “à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) - quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (ação destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão” Manuel Domingues de Andrade, ob. Cit., pág. 305. A definição ou a decisão que for dada, depois de não admitir recurso ordinário, ou seja, depois de transitar em julgado, “tem de ser acatada por todos os tribunais e por todas as autoridades” Artur Anselmo de Castro, ob. e loc. cits. O caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo e fora dele, impedindo que “o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material litigada” Antunes Varela, ob. e loc. cits. Para que uma decisão possa produzir efeitos dentro e fora do processo de forma a ter de ser acatada por todos, pela comunidade, pelos tribunais e por todas as autoridades tem de ter sido proferida sobre o mérito da causa e tem de ter transitado em julgado. A finalidade do processo não é só a realização da justiça, é também a segurança. 15.ª - Entendemos que uma decisão proferida em qualquer processo nunca poderá constituir meio de prova no processo penal conforme se explicará por força do princípio da presunção da inocência. As provas, sendo que constitui objeto “da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência de crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis” artigo 124.º n.º 1 CPP, no processo penal não têm o mesmo regime jurídico que nos outros ramos do direito e se dum modo correspondem aos elementos com base nos quais os factos podem ser demonstrados, por outro, enquanto “motivação da convicção da entidade decisora acerca da ocorrência dos factos relevantes, contanto que essa motivação se conforme com os elementos adquiridos representativamente no processo e respeite as regras da experiência, as leis científicas e os princípios da lógica” Paulo de Sousa Mendes, ob. e loc. cits. Uma decisão proferida noutro processo, poderá envolver ou não um julgamento com um objeto do processo e com a produção, ou não, de prova. Doutro modo, uma decisão para condenar um arguido, implica que tenha havido um processo, com um inquérito, que tenha havido uma acusação, ou que tendo ou não havido acusação seja proferido um despacho de pronúncia e, envolve, por regra, um julgamento em processo penal. Um julgamento feito num processo-crime, tem de ser feito de acordo com as regras do processo penal que tem os seus meios de prova próprios, os meios de obtenção da prova e, ao mesmo tempo, também tem as proibições de prova. Atenta a sua natureza própria, uma decisão proferida em processo crime não é passível de ter como meios de prova decisões de outros ramos de direito. Isto porque a decisão a que se chega nesses outros ramos de direito é fruto da aplicação de outras regras processuais que não as do processo penal, podendo ser as lides decididas com base em presunções e como tal conduzem a um resultado que no processo penal poderá não ser o mesmo, pois a presunção que existe no processo penal é que o arguido se presume inocente e não reproduzem o que sucedeu, mas, outrossim, o que em determinado ramo de direito em função das regras da prova se provou que aconteceu e que como tal se lhe aplicou determinadas regras de direito. 16.ª - Os efeitos que as decisões proferidas nem processos doutro foro poderão produzir no processo penal só poderão ser in bonna partem, ou seja, poderão em determinados casos funcionar como causa de exclusão de ilicitude, artigo 31.º do Código Penal. As decisões proferidas no processo penal só podem ter como efeito noutro processo penal a possibilidade do recurso de revisão, artigo 449.º n.º 1 c) do Código de Processo Penal. 17.ª - O Ministério Público aproveitou decisões proferidas noutros processos, com outros sujeitos processuais, doutros foros e em que nunca foram analisados os factos narrados na queixa para arquivar este processo. O arquivamento e o suporte noutros processos onde a denunciada nunca foi sujeito processual e nunca a sua conduta foi analisada, Não pode colher arrego legal! Esse mesmo fundamento permitiu que a Mma. Juiz de Instrução não ouvisse as testemunhas que nunca foram inquiridas nos autos com o fundamento que tinham sido ouvidas noutro processo, com outro objeto do processo, com outros sujeitos processuais. As testemunhas indicadas tinham de ser ouvidas e o assistente tem direito à prova. 18.ª - O problema nunca se tinha posto como neste processo, em que se descreve com factos determinada conduta que se afirma ter sido feita por uma determinada pessoa. Ao deparar-se com esta versão o processo é arquivado com a seguinte fundamentação: nunca se discutiu esse assunto dessa forma e com este sujeito, mas, concorda-se com o já decidido por outras pessoas e por isso não se investiga nem se cuida de saber da bondade da denúncia, não se quer mostrar vontade em apurar a verdade e, arquiva-se. 19.ª - Se se tivesse investigado, promovendo as diligências requeridas e algumas outras que depois se afigurassem necessárias para a descoberta da verdade e se se chegasse a alguma conclusão diferente que não permitisse acusar, poder-se-ia ou não concordar. Mas decidir com base no que foi decidido por terceiros sem que os factos tivessem sido analisados, a pretexto de decisões sem que os sujeitos processuais fossem os mesmos é decidir contra todas as regras do direito, constitui uma má decisão, viola a regra constitucional e da convenção europeia do processo equitativo e justo. 20.ª - O direito ao processo equitativo está positivado no artigo 20.º da CRP, no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no artigo 14.º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos e no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigos esses que foram violados na decisão. 21.ª - Por falar em violação do processo equitativo e justo, o signatário tendo sido notificado do despacho de arquivamento de um processo onde a denunciada perante os factos que lhe foram assacados nem sequer foi ouvida nem constituída arguida, estranhou que o arquivamento terminasse a fls. 491 e que daí até ao final do despacho, estivesse parte do papel sem estar escrito e o local e data constasse do final de fls. 491 e o nome da Senhora Procuradora Adjunta estivesse na página seguinte. 22.ª - Ora se bem percebemos este processo é decidido com base no que foi decidido noutros processos, NÃO INVESTIGANDO os presentes autos. No entanto, manda-se investigar e apurar num outro processo se os factos denunciados constituem ou não um crime de denúncia caluniosa. 23.ª - Quem tem, o poder-dever de investigar e ver se recolhe indícios suficientes da prática do crime, ou não, é o Ministério Público. Não o fez neste processo, não cuidou de saber se as pessoas tinham conhecimento de alguma coisa, nem sequer ouviu ou mandou ouvir a denunciada como arguida. Todavia, mandou investigar num outro processo se os factos denunciados constituíam crime de denúncia caluniosa. 24.ª - Ao decidir como decidiu no inquérito e que motivou a abertura de instrução, verifica-se que além de não ter sido investigado e de terem sido omitidas as diligências que se podem reputar como essenciais para a descoberta da verdade o que constitui nulidade e que se arguiu nom requerimento de abertura de instrução e devia ser declarado para os devidos efeitos legais, artigo 120.º n.º 2 d) do Código de Processo Penal, não teve resposta na instrução pelo existe omissão de pronúncia, existindo aqui uma clara violação da teoria da aparência e violação do processo equitativo e justo, sendo violado o artigo 20.º n.º 4 da CRP também. 25.ª - E a Mma. Juiz de Direito sustenta depois desta nulidade arguida e depois de se ter explicado que houve uma não investigação, indefere a audição de testemunhas pedida à saciedade pelo assistente pois só assim poderia provar ou sustentar os indícios que denunciou, o que constitui nulidade e que se invocou no início do debate instrutório, mais uma vez e que foi indeferida. É que o assistente no inquérito indicou testemunhas que não foram ouvidas nestes autos. E arguiu a nulidade em sede de instrução e a Mma. Juiz de Direito volta a não ouvir as testemunhas e no final não pronuncia dizendo inexistir prova. Se a prova não foi produzida foi porque a Juiz indeferiu os requerimentos de prova. 26.ª - Ou seja, não há, sequer, a aparência que o processo é verdadeiramente imparcial e se se arquiva duma forma, esconde-se de forma ilegal, pois que a notificação expedida ao signatário trazia uma parte que não se lê, apesar do processo depois do arquivamento ser público, deixando a notificação em branco, omitindo o despacho que ordena a extração de certidão para procedimento criminal contra o queixoso. E se um não se pode queixar, o dono da ação penal toma as dores do outro abrindo um outro processo para ver se se tratava ou não de denúncia caluniosa, vd. doc. 2 junto com o requerimento de abertura de instrução. 27.ª - Com o Prof. Gomes Canotilho, ob. e loc. cits., “A proteção alargada através da exigência de um processo equitativo significará também que o controlo dos tribunais relativamente ao carácter “justo” ou “equitativo” do processo se estenderá, segundo as condições particulares de cada caso, às dimensões materiais e processuais do processo no seu conjunto. O parâmetro do controlo será sob o ponto de vista intrínseco, o catálogo dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados e os direitos de natureza análoga constantes de leis ou de convenções internacionais (CRP, art. 16.º). Mas o controlo pautar-se-á ainda pela observância de outras dimensões processuais materialmente relevantes”, que se verão de seguida. 28.ª - “Quando os textos constitucionais, internacionais e legislativos, reconhecem hoje, um direito de acesso aos tribunais esse direito concebe-se como uma dupla dimensão: (1) um direito de defesa antes os tribunais e contra atos dos poderes públicos; (2) o, direito de proteção do particular através dos tribunais do estado no sentido de este o proteger perante a violação dos seus direitos por terceiros… As normas – constitucionais, internacionais e legais – garantidoras da abertura da via judiciária devem assegurar a eficácia da proteção jurisdicional. … O direito de acesso aos tribunais implica o direito ao processo, … no qual se inclui o direito de obter uma decisão fundada no direito. … A proteção jurídica através dos tribunais implica a garantia de uma proteção eficaz e temporalmente adequada. 29.ª - Há pois a violação do princípio da aparência de que a justiça é feita de forma imparcial o que tem de ser declarado para os devidos efeitos legais. 30.ª - E no inquérito a denunciada nem sequer foi incomodada com a versão do queixoso e muito menos constituída arguida. 31.ª - Por aqui se vê que o Ministério Público deveria ter investigado o caso e tinha de fazer um esforço para sob o seu comando analisar (e não pensar por cabeça de terceiros) a versão apresentada, estudá-la e aplicar as normas corretas que sabe existir e conhece. E a Mma. Juiz de Direito deveria ter declarado procedente a nulidade suscitada ou, no mínimo, investigado o caso inquirindo todas as testemunhas que foram indicadas, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 290.º n.º 1 do Código de Processo Penal que foi violado. Houve, pois, a violação do princípio da investigação de quem tem a obrigação de investigar em ordem a poder dizer: fiz tudo o necessário e possível para acusar ou arquivar o inquérito ou, depois, em sede de instrução para pronunciar ou não o arguido. Neste processo, não foi feita investigação, não foi feito nada do que era necessário. Apesar de a lei nada dispor quanto aos métodos de investigação nem às diligências a efetuar em ordem ao esclarecimento da notícia do crime, para além do que estabelece sobre os procedimentos probatórios, a verdade é que o Ministério Público está obrigado a investigar. E em sede de instrução o Juiz também está. Nestes termos e nos melhores de direito e com o douto suprimento de V.as Ex.as, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e em consequência ser proferida uma decisão que declare procedentes as nulidades arguidas e que mande proceder à investigação como a mesma deve ser feita, inquirindo-se as testemunhas, tudo com as devidas consequências legais, como é de inteira JUSTIÇA!” Responderam o Ministério Público e a arguida. O primeiro concluiu: “Conclui-se, assim, que a decisão recorrida, ao declarar que, tendo o assistente requerido a abertura de instrução na sequência de despacho de arquivamento proferido pelo MP no fim do inquérito e pugnando pela pronúncia da denunciada D... pela prática de um crime de peculato, p.p. pelo artigo 375°, nº l do Código Penal, foram inquiridas algumas das testemunhas indicadas pelo assistente e foi indeferida a inquirição das demais e realizou-se o debate instrutório, com observância dos requisitos legais e, não tendo sido requerida qualquer prova suplementar, deuse cumprimento ao artigo 302°, nº 4 do C.P.P., e consequentemente foi proferida decisão de não pronúncia da arguida, sendo que a versão do assistente constante do requerimento de abertura de instrução não foi corroborada por nenhum outro meio de prova idóneo, para além das declarações do assistente, não sendo a prova colhida nos autos suficiente para fundar o juízo da probabilidade da condenação da arguida, pelos factos descritos no requerimento de abertura da instrução, juízo imprescindível para a decisão de acusação, isto é, para prosseguimento dos autos de inquérito para julgamento, de acordo com o disposto no nº l do art. 283° do Código de Processo Penal. Efectuou uma correcta aplicação do direito, não enfermando a mesma de qualquer nulidade por omissão de pronúncia relativamente à nulidade invocada pelo recorrente já que, porquanto a Mma. JIC, sobre o alegado pelo recorrente, se pronunciou ao longo de toda a instrução e no despacho de não pronúncia, não tendo sido igualmente violados os artigos 290° e 286°, ambos do Código de Processo Penal na decisão recorrida; a regra constitucional e da convenção europeia do processo equitativo e justo; a teoria da aparência e do processo equitativo e justo, não tendo sido violado o artigo 20°, n°. 4 da C.R.P. igualmente; ou qualquer outro dos supra invocados pelo recorrente e como o defende, (recorrente). E bem assim, não colhe o argumento do recorrente de não existirem indícios suficientes de que os crimes indicados no requerimento de abertura de instrução não se verificaram, donde retira terem sido violados, mormente, os artigos 308° e 283°, ambos do Código de Processo Penal. Há ainda que não olvidar que no nosso ordenamento jurídicoprocessual, vigora, como se sabe, o sistema da livre convicção, consagrado no artigo 127° do c.P.P., sendo que a liberdade concedida ao julgador se trata de uma liberdade de acordo com um dever, qual seja o de perseguir a chamada verdade material, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, redutível a critérios objectivos e, portanto, susceptível de motivação e controle. A Mmª JIC não circunscreveu a sua apreciação a um ou dois elementos probatórios em especial, mas a todos os que se referem na decisão recorrida, que relacionou e conjugou, igualmente à luz das regras da experiência. A decisão recorrida bem ajuizou a prova produzida em sede de inquérito e instrução, fazendo uma correcta aplicação dos factos. O que o recorrente pretende é, no fundo, que não se tivessem dado como não indiciados, factos que a Mm” JIC deu, no uso do seu poder de livre apreciação da prova admitida e análise jurídica dos elementos objectivos do tipo legal de ilícito. A decisão ora recorrida de não pronúncia da arguida efectuou uma correcta aplicação dos factos e do direito, não enfermando a mesma de qualquer nulidade, designadamente por omissão de pronúncia relativamente às nulidades invocadas e nos termos suscitados pelo recorrente ou de carência de indícios suficientes. Deve assim ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos, como será de inteira Justiça.” A arguida manifestou-se genericamente pela improcedência do recurso. Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta também pela improcedência do recurso com a seguinte argumentação: “(…) Essencialmente entende o assistente que não foram feitas todas as diligências de prova por si requeridas e que, por isso, foi violado o princípio da investigação, e a decisão enferma de nulidade por omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade, prevista no artigo 120.°, n.º 2, alínea d), do CPP. Mais entende que foi violado o princípio da aparência e do processo equitativo e justo e, consequentemente, o disposto no artigo 20.°, n.º 4, da CRP, no artigo 6.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no artigo 14.° do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos e no artigo 10.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e que a decisão foi tomada com base no que foi decidido por terceiros, noutros processos, com outros sujeitos processuais, doutros foros, sem que os factos tivessem sido analisados e investigados, considerando, ainda, terem sido violados os artigos 290.° e 286.° do CPP. O JIC tem o poder/dever de praticar todos os actos necessários à realização da comprovação da decisão de dedução da acusação ou de arquivamento do inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigos 290.°, n.º 1 e 286.°, n.º 1 do CPP). Por isso, pode indeferir os actos requeridos que entenda não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo, cabendo apenas reclamação deste despacho, sendo irrecorrível o despacho que a decidir (artigo 291.°, n.º 2.° do CPP). Os actos e diligências de prova praticados no inquérito só são repetidos no caso de não terem sido observadas as formalidades legais ou quando a repetição se revelar indispensável à realização das finalidades da instrução (artigo 291.°, nº 3 do CPP). No caso dos autos, a M.a JIC decidiu, atenta a finalidade da instrução, que era necessário inquirir algumas testemunhas e outras não à matéria indicada pelo assistente. Em minha opinião inquiriu as testemunhas arroladas no RAI sob o n.º 8.°, 9.°, 10.°, 15.° e 17.° que, perante os factos denunciados e que o assistente entendia suficientemente indiciados, havia necessidade de serem inquiridas por terem presenciado a penhora e presumivelmente presenciado os factos que o assistente lhe imputa e que davam mais garantias de isenção, independência e credibilidade. Realizada a sua inquirição, perante a insuficiência de prova produzida decidiu a M.a JIC proferir despacho de não pronúncia por entender não ter sido produzida prova suficiente da prática do crime, considerando mais provável a absolvição da arguida que a sua condenação. Parece-me, assim, que não existe omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade, que foram feitas as diligências de prova essenciais para a descoberta da verdade e que a confirmação do despacho de arquivamento se mostra acertado, não tendo sido violado nenhuma das normas ou princípios que o assistente aponta no recurso. A isto acresce que o RAI, devendo configurar uma acusação, já que o Ministério Público se absteve de acusar, proferindo despacho de arquivamento, não cumpre com o disposto no artigo 283.°, n.ºs 3, alíneas a) e b), aplicável por força do artigo 287.°, n.o 2, ambos do Código de Processo Penal, não identificando a arguida, não descrevendo qualquer facto referente ao elemento subjectivo do ilícito imputado, nem indicando as circunstâncias temporais em que os factos ocorreram, sendo todo ele muito impreciso e insuficiente sobre os factos sobre os quais deveria incidir a instrução, que poderia ter levado à inadmissibilidade legal da instrução, mas que tendo sido admitida, implica, também por isso, a não pronúncia da arguida já que, sendo submetida a julgamento, a absolvição é certa. Nesta conformidade, sou de parecer que deve negado provimento ao recurso, confirmando-se a douta decisão recorrida de não pronúncia da arguida.” No âmbito do artigo 417.º, n.º 2 do Código Penal o assistente respondeu afirmando que o Exmo. Procurador-Geral Adjunto não tem qualquer razão. Cumpre conhecer do recurso Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso. É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras)[[1]]. Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” a quer se refere o artigo 379º, nº 1, alínea c., do Código de Processo Penal, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entende-se por “questões” a resolver, as concretas controvérsias centrais a dirimir[[2]]. *+*+*+* Vejamos: O recurso terá que ser julgado improcedente. Explicando: Uma vez que o processo penal se destina a efectivar a responsabilidade penal, apenas faz sentido nele prosseguir quando estão presentes os pressupostos da punição, ou seja, quando seja possível imputar a uma pessoa factos concretos que constituem crime. Por isso, sendo a decisão instrutória um marco do prosseguimento do processo para julgamento, determina o artigo 287º, nº 2, que embora o requerimento para abertura de instrução não esteja sujeito a formalidades especiais, caso seja apresentado pelo assistente, deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à não acusação, bem como dos factos que se espera provar, sendo-lhe aplicável o disposto no artigo 283º nº 3, ou seja, o requerimento do assistente para abertura de instrução terá que conter, para além do mais, as indicações tendentes à identificação do arguido, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e ainda a indicação das disposições legais aplicáveis. Este formalismo legal é compreensível e inultrapassável porque, destinando-se o processo penal a efectivar a responsabilidade penal, apenas pode prosseguir quando estão presentes os pressupostos da punição, ou seja, como acima se disse, quando é possível imputar a uma concreta pessoa factos que constituem crime. Por isso, como se diz no Acórdão da Relação de Coimbra de 16 de Novembro de 2011[[3]], “a exigência legal de que o requerimento de instrução contenha a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, refere-se aos elementos objectivos e também subjectivos do crime imputado, posto que não existe crime/responsabilidade penal sem que todos eles se encontrem preenchidos. A exigência da descrição dos factos no requerimento de instrução do assistente radica na circunstância de este, partindo de um despacho de arquivamento do inquérito, dever fixar o objecto do processo, dentro do qual se moverá a actividade do juiz de instrução a quem é vedado alterar os factos alegados, fora das excepções previstas no artigo 303º, nº 1 do Código de Processo Penal. Mas, por outro lado e de capital importância, o requerimento de instrução é a base factual dentro da qual se moverá o contraditório, o exercício do direito de defesa (cfr. Prof. Germano Marques, Curso de Processo Penal III, pag. 141). Em última análise o que está em causa é a garantia constitucional de defesa do arguido com o princípio, também constitucional, do contraditório que é inerente àquele e cuja efectividade implica uma definição clara e precisa do objecto do processo (cfr. artigo 32º, nº 1 e nº 5 da CRP). O disposto no artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal é, portanto, uma decorrência necessária da própria constituição. Porque assim é, tem sido entendido que o requerimento de instrução do assistente que não descreva cabalmente os factos imputados, deve ser objecto de rejeição por inadmissibilidade legal desta, nos termos conjugados dos artigos 287º, nº 2 e nº 3 e 283º, nº 3, b) do Código de Processo Penal, não podendo o juiz de instrução intrometer-se de qualquer modo na delimitação do objecto do processo no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao assistente requerente da instrução (cfr. o acórdão do STJ de fixação de jurisprudência nº 7/2005).”[[4]] Aliás, consubstanciando este entendimento (ainda que respeite à acusação, as razões jurídicas são precisamente as mesmas), o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 - Diário da República n.º 18/2015, Série I de 2015-01-27 fixou a seguinte jurisprudência: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.» Em suma: no requerimento para abertura da instrução formulado por assistente devem ser narrados os factos que fundamentam a aplicação de uma pena, ou seja, devem ser especificados os elementos objectivos e subjectivos do crime, e indicadas as disposições legais aplicáveis, sendo certo que, delimitando aquele os poderes de cognição do juiz de instrução e sendo nele que o arguido tem que assentar a defesa, dúvidas não podem existir de que a descrição factual do crime tem que ser apresentada de uma forma clara e insusceptível de qualquer confusão, não só para o tribunal como também, e muito especialmente, para o arguido. Temos assim de concluir que o requerimento para abertura da instrução que não respeite o formalismo acima apontado, se não for rejeitado por inadmissibilidade legal da mesma, irá necessariamente dar lugar a um despacho de não pronúncia porque o despacho a que se refere o artigo 307º terá de se conter, sob pena de nulidade, na factualidade naquele descrita (em consonância com o disposto no artigo 309º, nº 1, a factualidade descrita na pronúncia não pode extravasar a que é descrita no requerimento para abertura da instrução se corresponder a uma alteração substancial dos factos nele narrados). Na sequência do que acabámos de dizer, é fácil perceber que o recurso está inelutavelmente votado ao fracasso visto que o despacho em apreço não poderia ter sido outro que não fosse de não pronúncia, ainda que por razões diversas das nele insertas. Explicando: Em sede de requerimento para abertura da instrução diz o assistente que “deverá ser proferido despacho que pronuncie a arguida (…) D... pelo crime de peculato previsto e punido pelo artigo 375.º do Código Penal”. De acordo com o artigo 375º, nº 1 do Código Penal comete o crime de peculato “o funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel ou imóvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções”, ou seja, a conduta típica consiste na apropriação, em proveito próprio ou de terceiro, de dinheiro ou qualquer coisa móvel ou imóvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou a que o funcionário aceda em razão das suas funções, que aquele actue com uma ilegítima intenção de apropriação, sabendo que a coisa pertence a outrem e que tenha a consciência de que não a detém em virtude de qualquer direito ou título, mas apenas em razão das suas funções e que actue com intenção de a integrar no seu património ou no património de terceiro. No caso “sub judice”, para além de estarmos perante um requerimento instrutório onde a descrição factual se revela altamente confusa (não se extrai da mesma qualquer situação que ultrapasse o âmbito da situação prevista no artigo 342º, nº 1 do Código de Processo Civil) e onde não está minimamente descrito o comportamento típico donde se possa extrair a “apropriação” (não basta dizer que a mesma ocorreu, sendo imperiosa a concretização dos actos praticados pela arguida que a demonstram!), o recorrente omite totalmente os elementos subjectivos do crime em referência. Quanto a estes, especificamente referidos na resposta a que se refere o artigo 417º, nº 2 como constando do ponto 16 do RAI, apenas podemos dizer que não os vislumbramos, nem no ponto indicado, nem em qualquer outro. Com efeito, o ponto 16 do RAI tem o seguinte teor: “16.º - Ao permitir que fossem penhorados bens que não foram relacionados no auto de penhora e que não constavam do requerimento de penhora e em local diferente do onde foi ordenada a penhora - bens esses pertencentes aos queixosos e que foram encontrados na posse do exequente parte dentro das gavetas dos carros oficina que foram penhorados - a participada apropriou-se em proveito do exequente de coisa móvel particular, o que lhe foi possível em razão do seu exercício de funções.” Ora, sendo o peculato um crime doloso, para que a conduta da arguida fosse subsumível à previsão típica seria necessário que aquela tivesse actuado com conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo e do tipo subjectivo, ou seja, que tivesse actuado com conhecimento e representação dos elementos que integram o crime e com o propósito de o realizar, ou seja, sendo o peculato um crime doloso, no caso “sub judice”, a arguida tinha de ter conhecimento da factualidade típica, mormente, a consciência de que os bens em causa eram alheios, que lhe eram acessíveis em resultado das suas funções de funcionária judicial e ainda actuar com a consciência e a vontade conseguida de deles se apropriar em proveito de terceiro. Acontece que o transcrito ponto 16. não contém em si o facto consistente na consciência da arguida da prática dos factos que cometia, nem da vontade de os praticar. Em suma: por falta da descrição dos elementos típicos do crime de peculato previsto e punido pelo artigo 375º do Código Penal, o RAI nunca poderia sustentar um despacho de pronúncia uma vez que, como acima explicámos, delimitando ele, de forma inultrapassável, a factualidade descrita no despacho de pronúncia, a falta de descrição dos elementos típicos impõe que seja proferido despacho de não pronúncia. Por isso, e ainda que por razões diversas, é de manter a decisão recorrida. *+*+*+* Face ao exposto, acorda-se em julgar o recurso improcedente. *+*+*+* Fixa-se em 4 UC a taxa de justiça a pagar pelo recorrente. *+*+*+* Coimbra, 15 de Março de 2017
(Luís Ramos – relator)
(Olga Maurício – adjunta)
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