Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
308/22.4T8CBR-C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: PROCESSO DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
SUPRIMENTO DA AUTORIZAÇÃO DO BENEFICIÁRIO
PRESSUPOSTOS
EXAME PERICIAL
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 23-04-2024
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 892.º, N.º 2, 899.º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 141.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – O suprimento da autorização deve ser concedido – mas só deve ser concedido – quando o beneficiário não o possa dar livre e conscientemente ou quando o tribunal considere que existe fundamento atendível para o conceder. Ao tribunal cabe, pois, controlar se se justifica suprir a falta de autorização do beneficiário.

II – O tribunal deve recusar o suprimento se, em face das provas produzidas, se dever concluir, sem hesitação, que o beneficiário dispõe da capacidade para conceder a autorização ao requerente, sendo que a situação factual relevante para decidir se o tribunal deve suprir a autorização do Requerido é a situação existente na data dessa decisão.

III – Considerando a norma do nº 2 do art.º 899º, e atendendo ao carácter urgente do processo, tudo aponta para que tenha o legislador querido introduzir no processo de acompanhamento de maior uma clara simplificação de procedimentos, reduzindo-os inclusive, sendo a regra a realização no mesmo de apenas um exame pericial e ainda assim por determinação do juiz. Apenas a audição do requerido/beneficiado é obrigatória.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 308/22.4T8CBR-C1

 

(Juízo Local Cível de Coimbra - Juiz 3)

Acordam os Juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

 

I. Relatório

 AA, residente na Av. ..., ... Ap. ...02, ...40 ..., ..., Brasil instaurou a presente acção especial de acompanhamento de maior da sua mãe BB, atualmente a residir na Rua ..., ... ....

Solicitou o suprimento da autorização da Beneficiária, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 892º, n.º 2 do C.P.C. e 141º do Código Civil e a nomeação como Acompanhante de si própria.

Para o Conselho de Família, indicou os sobrinhos da Requerida, CC e DD.

A Requerida contestou, pugnando pela improcedência da acção e pela absolvição do pedido.

Em 9-11-2022, procedeu-se à audição pessoal e directa da Requerida e à realização do respectivo exame pericial.


*

Pelo Juízo Local Cível de Coimbra - Juiz 3, foi proferida a seguinte decisão:

“Pelo exposto, não se encontrando verificados os pressupostos para o suprimento da autorização da Requerida exigidos no artigo 141.º, n.º 2 do Código Civil, carecendo a Requerente de legitimidade para intentar a presente ação, absolvo a Requerida BB da instância – art. 278.º, n.º 1, alínea e), conjugado com os art.s 576.º, n.º 2, 577.º, alínea e) e 578.º, aplicáveis ex vi do artigo 549.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Sem custas – art. 4º, n.º 2, alínea h) do Regulamento das Custas Processuais.

Valor da acção: € 30.000,01 – art. 303º, n.º 1, do C.P.C.

Notifique e registe.

AA, requerente nos autos em epígrafe, notificada da sentença neles proferida, vem da mesma interpor recurso de apelação nos termos do disposto no art.º 901 do Código do Processo Civil, formulando as seguintes conclusões:

(…).

BB, ao abrigo do disposto no artigo 638.º, n.º 5, do CPC, apresenta as suas contra-alegações, assim concluindo:

(…).


*

2. Do objecto do recurso

2.1 – Da junção de documentos;

AA, Recorrente nos autos em epígrafe, notificada das contra-alegações e dois documentos juntos aos autos por BB, filha da Beneficiária, vem, no exercício do direito ao contraditório que lhe assiste, dizer o seguinte:

1.º Nas suas contra-alegações alegações pretende a referida filha da Beneficiária, BB, invocar novos factos e juntar novos documentos, o que não se pode aceitar.

2.º Estabelece o art. 651.º do CPC que as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o art. 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.

3.º E, por sua vez, determina o referido art. 425.º do CPC que, depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.

4.º Importará ainda ter presente, quanto ao momento da apresentação de prova por documentos, o artigo 423.º do CPC, que estipula:

1 - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.

2 - Se não forem juntos com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.

3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.

5.º Assim, da articulação das referidas normas resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excepcional, depende da alegação e da prova pelo interessado de uma de duas situações: ou a impossibilidade de apresentação do documento em momento anterior ao recurso ou ter o julgamento de primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional.

6.º Relativamente ao primeiro elemento, a impossibilidade de apresentação do documento em momento anterior ao recurso refere-se manifestamente à superveniência do documento, referida ao momento do julgamento em primeira instância, podendo ser caracterizada como superveniência objectiva ou superveniência subjectiva, sendo que:

- objectivamente, só é superveniente o que historicamente ocorreu depois do momento considerado, não abrangendo incidências situadas, relativamente a esse momento, no passado;

- subjectivamente, é superveniente o que só foi conhecido posteriormente ao referido momento considerado, sendo necessário, como requisito de admissão do documento, a justificação de que o respectivo conhecimento, não obstante o carácter pretérito da situação quanto ao momento considerado, só ocorreu posteriormente a este e por razões que se considerem atendíveis, no sentido de serem razões aptas a demonstrar a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido conhecimento anterior da existência do documento.

7.º E, relativamente ao segundo elemento supra referido – quando a junção do documento se torna necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância -, pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção do documento com o recurso, como questão apta a modificar o julgamento e só revelada pela decisão recorrida, o que exclui as situações em que essa decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o themadecidendum.

8.º Quanto a este ponto a jurisprudência e a doutrina sempre convergiram na ideia de que a previsão normativa se reporta às situações em que a 1.ª instância conhece oficiosamente de uma questão que não estava suscitada ou tratada pelas partes, toma em consideração meio de prova inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou se baseia em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado.

9.º Ora, a mencionada filha da Beneficiária, BB, ao requerer a junção de dois documentos às suas contra-alegações, nem sequer alega a verificação in casu de alguma destas duas mencionadas hipóteses, sendo manifesto que nenhuma das mesmas se verifica no caso concreto.

10.º O que se verifica é que a mencionada filha da Beneficiária, BB, pretende agora, em fase de recurso, alegar novos factos e juntar novos documentos, o que não é legalmente admissível, sendo manifesto, quanto aos documentos que agora a mesma pretende juntar aos autos, que estava perfeitamente ao seu alcance a possibilidade de junção dos mesmos aos autos em momento anterior àquele em que foi proferida a decisão recorrida.

11.º Por todo o exposto, não se deve admitir a junção dos documentos referidos, ordenando-se o respectivo desentranhamento.

12.º Não obstante, à cautela, por mero dever de patrocínio, não se pode deixar de impugnar o teor dos referidos documentos quanto aos efeitos e consequente a prova que com os mesmos se pretende fazer, não se podendo retirar dos mesmos as conclusões e as ilações pretendidas pela referida filha da Beneficiária, BB, porquanto se trata de um documento que consubstancia uma decisão judicial não definitiva proferida por um Tribunal do Brasil em sede de providência cautelar.

Termos em que não se devem admitir os documentos juntos às contraalegações de BB, ordenando-se o respectivo desentranhamento.

Avaliando.

À questão da junção de documentos na fase de recurso se refere expressamente o artigo 651º, nº 1, cujo teor ora se transcreve:

“Artigo 651º

Junção de documentos e de pareceres

1 - As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425º ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância”.

E dispõe o artigo 425º:

“Apresentação em momento posterior

Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.

E importará ter presente, enfim, enquanto norma contendo o “princípio geral” que referencia, na dinâmica do processo, o momento da apresentação de prova por documentos, o artigo 423º:

Momento da Apresentação

1 - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.

2 - Se não forem juntos com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.

3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior”.

Da aplicação conjugada destas normas decorre que a junção de documentos em sede de recurso - junção que é positivamente considerada apenas a título excepcional - depende da alegação  - e da prova - pelo interessado nessa junção de uma de duas situações:

a) A impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso, valendo aqui a remessa do artigo 651º, nº 1 para o artigo 425º;

b) O ter o julgamento da primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí – até ao julgamento em primeira instância – se mostrava desfasada do objecto da acção ou inútil relativamente a este.

O primeiro elemento referido – a impossibilidade de apresentação anterior – legitima as partes a utilizar no recurso, juntando-os com a motivação deste, documentos cuja apresentação não tenha sido possível até esse momento (até ao julgamento em primeira instância), o que pressupõe aquilo que se refere como superveniência objectiva ou subjectiva do documento pretendido juntar.

Ora, sendo superveniente  - objectivamente superveniente - o que só ocorreu historicamente depois de um determinado momento considerado, ou  - superveniência subjectiva - o que justificadamente só foi conhecido por alguém depois desse momento, vale a asserção de superveniência aqui relevante – vale, portanto, como integração positiva da facti species do nº 1 do artigo 651º – pela constatação da ocorrência da situação revelada pelo documento só posteriormente à decisão recorrida  - superveniência objectiva, pressupondo esta a criação posterior do documento - ou pela justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante a sua existência ser anterior ao momento considerado, só teve lugar posteriormente, por razões que se prefigurem como atendíveis, no sentido de serem razões aptas a demonstrar a impossibilidade daquela pessoa  - quer o artigo 423º, nº 3 como o artigo 425º falam em “não ter sido possível” - , num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido conhecimento anterior da existência do documento.

Estas razões, todavia – rectius, a atendibilidade delas – pressupõem à partida a respectiva invocação e a prova da não possibilidade de um conhecimento anterior.

Note-se que o artigo 651º, nº 1 também admite, no seu trecho final, a junção de documentos com as alegações de recurso nos casos em que o julgamento proferido em primeira instância torne necessária a consideração desse documento. Pressupõe esta situação, todavia, a novidade da questão decisória justificativa da junção pretendida, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão, sendo que isso exclui que a decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum - não abrange, eguramente, o caso de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da causa e, visar, com esse fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e de deveria ter oferecido na 1ª instância.

Por outro lado, apenas podem ser apresentados documentos, quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, máxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo.

De facto, a junção de documentos não deve ter-se por admissível – em qualquer instância - se o facto que os documentos visam provar não tiverem sido objecto de oportuna alegação. A prova é a actividade destinada a demonstrar factos alegados, ou mais exactamente, afirmações de facto produzias em juízo e a convencer o tribunal da sua veracidade; o documento é um meio de prova: a sua produção apenas tem justificação se o facto que com ele se visa provar tiver sido objecto de alegação.

E neste plano, há que conjugar a faculdade de oferecimento de provas documentais com as regras a que obedece a alegação, no tribunal de recurso, de factos novos, considerando que a atribuição à Relação de poderes de julgamento da matéria de facto deve, sempre, ser vista no enquadramento geral dos recursos: o que se visa não é criar uma nova instância de julgamento da matéria de facto – mas limitadamente instituir uma instância de controlo sobre o julgamento dessa matéria pela 1.ª instância.

Na verdade, considerados a partir da finalidade da impugnação, os recursos ordinários podem ser configurados como um meio de apreciação e de julgamento da acção por um tribunal superior ou como meio de controlo da decisão recorrida. No primeiro caso, o objecto do recurso coincide com o objecto da instância recorrida, dado que o tribunal superior é chamado a apreciar e a julgar de novo a acção: o recurso pertence então à categoria do recurso de reexame; no segundo caso, o objecto do recurso é a decisão recorrida, dado que o tribunal ad quem só pode controlar se, em função dos elementos apurados na instância recorrida, essa acção foi correctamente decidida, ou seja é conforme com esses elementos: nesta hipótese, o recurso integra-se no modelo de recurso de reponderação .

No direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida, dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento, o que significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não hajam sido formulados: os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas .

Excluída está, portanto, a possibilidade de alegação de factos novos - ius novarum nova – na instância de recurso. Ressalva-se a hipótese, de verificação muito rara, de as partes acordarem na alteração ou ampliação da causa de pedir, caso em que tal alegação será admissível - art.º 264.º.

Portanto, tais factos não podem ser considerados, como tais, no julgamento do recurso.

Por isso, dando razão, neste particular à Apelante, não se admite a junção dos documentos nem se conhece da matéria alegada com tal junção.


*

2.2- Da nulidade processual;

Alega a Apelante:

“6. Por não se concordar com o assim decidido – já que os meios de prova a produzir se revelam de tremenda importância para a boa decisão da causa e descoberta da verdade – interpõe a recorrente este recurso visando afinal a revogação do despacho recorrido e a determinação das diligências de prova requeridas pela Ré no requerimento junto aos autos em 12.10.2023.

7. Entende desde logo a recorrente que o despacho recorrido enferma de nulidade processual pela inobservância do princípio do inquisitório que gera nulidade processual”.

Ora, salvo o devido respeito, o julgador ao proferir a decisão em crise, não precisou de efectuar ponderação oficiosa, no exercício dos poderes inquisitórios, fê-lo, antes, apreciando requerimento formulado pela parte no âmbito dos poderes/deveres de impulsionar o processo e de influenciar a decisão ,que a lei processual lhe reconhece e faculta da relevância e utilidade da realização dos actos probatórios solicitados pela parte, concluindo que as mesmas eram, neste momento processual,  impertinentes para o julgamento da causa. Não incorreu, por isso, na omissão de qualquer acto devido, antes entendeu que o mesmo não tinha de ser realizado.

Não se tratará, pois, de qualquer nulidade procedimental – pudesse ou não a mesma ser invocada em recurso – as nulidades de procedimento, previstas no art.º 195º do Código do Processo Civil, tem regime de arguição diverso das nulidades da decisão, devendo, ao contrário destas, ser invocadas, em regra, perante o tribunal onde foram cometidas -, mas sim, eventualmente, de uma decisão ilegal – não de um error in procedendo, antes de um possível error in iudicando, pois quando existe uma decisão que incide sobre praticar ou não praticar determinado acto (seja a mandar praticar acto indevido, sem impondo a omissão de acto devido), não pode falar-se de nulidade (processual), antes de decisão ilegal (caso o acto praticado seja indevido ou o acto omitido seja devido): a ‘decisão ilegal sobre a omissão de um acto não pode ser confundida com a omissão ilegal do acto – Cfr. Miguel Teixeira da Sousa, in comentário de 30/01/2023 denominado ‘Dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se’, no Blog do IPPC (blogippc.blogspot.com), acedido em Novembro de 2023.

O que vem de se expor não significa afirmação peremptória de que as diligências probatórias em questão enquadrem o conceito de acto ou formalidade prescrito na legal tramitação da causa – a norma visa as irregularidades na tramitação processual (na marcha ou desenvolvimento do processo ou na realização de qualquer acto a ele atinente), ou seja, ‘atos da sequência processual’, destinados a conformar os requisitos, constitutivos ou impeditivos, dos pressupostos da decisão de mérito -  José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 4ª Edição, p. 400. –, tão só e apenas demonstrar a incongruência e manifesta improcedência da argumentação da Apelante.

Tendo a 1.ª instância proferido decisão a propósito da realização das diligências probatórias em questão, indeferindo-as, não estaremos perante qualquer nulidade pela omissão de um acto devido, antes perante uma diligência probatória indeferida por despacho – ou seja, nem estaremos perante qualquer nulidade resultante do não uso, pelo juiz, dos poderes instrutórios que a lei confere, nem estaremos perante qualquer nulidade resultante da omissão de acto que seria devido.

Constatação que permite concluir que o entendimento manifestado na decisão recorrida, no sentido de se mostrar inútil e irrelevante à decisão da causa a produção das provas propostas pela Apelante não constitui nulidade da decisão – a mostrar-se errado esse entendimento, tal repercutir-se-á tão só no valor doutrinal da decisão, sujeitando-a a revogação e consequente alteração/Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª Edição, pág. 55.

Como escreve o julgador da 1.ª instância:

“Invoca a recorrente em sede de recurso, além do mais, a “nulidade processual pela inobservância do inquisitório que gera nulidade processual, nos termos gerais do nº1, do art. 195º, do CPC”.

Contrariamente ao alegado pela recorrente quanto a esta matéria – e que aqui me dispenso de reproduzir – no despacho recorrido o tribunal ressalvou a possibilidade de determinar as diligências probatórias que se repute de essenciais para a boa decisão da causa – onde, naturalmente, se incluirá a prova testemunhal –, em função da prova que cumpre produzir, pelo que, salvo melhor opinião, afigura-se prematura a invocação da ocorrência de nulidade, nos termos do art.º 195.º, do Código de Processo Civil.

De facto, não se encontrando prevista na lei a nulidade do despacho que indefere requerimento de prova apresentado por uma parte, só quando se reconhecer que a eventual irregularidade cometida possa influir no exame ou decisão da causa – o que apenas ocorrerá após a produção da prova já admitida, dado que o tribunal ressalvou a possibilidade de ordenar outras diligências probatórias, caso as mesmas se afigurem necessárias ou indispensável á boa decisão da causa – é que poderá equacionar-se a ocorrência de nulidade, o que manifestamente não é o caso.

Conforme se refere no Ac. Do STJ de 5.7.2018 (Proc. 97/12.0TBPV.L2.S1, in www.dgsi.pt): “(…) O poder/dever conferido ao tribunal para proceder à inquirição oficiosa de determinada pessoa não oferecida como testemunha deve ser exercido sempre que, no decurso da acção, haja razões para presumir que tem conhecimento de factos cujo esclarecimento se imponha com vista ao apuramento da verdade material e à boa decisão da causa. Tal poder só deve ser exercido quando o tribunal não se considere suficientemente esclarecido acerca de factos controvertidos relevantes para a justa composição do litígio e existam elementos que permitam fazer crer que é possível ultrapassar dúvidas sobre tais factos através da audição de pessoa não indicada como testemunha ou mediante outros meios de prova, uma vez que a previsão do artigo 411º não se confina à prova testemunhal. (…).”

Evidente, pois, a improcedência da arguida nulidade da decisão.


*

2.2. Da pertinência, utilidade e relevância das provas propostas pela Apelante.

O princípio do processo justo e equitativo  - art.º 20º da Constituição da República Portuguesa - projecta a exigência do princípio do contraditório  - decorrência do direito à jurisdição, que implica o direito efectivo a uma jurisdição que conduza a resultados individual e socialmente justos – de conteúdo multifacetado, traduz primordial e fundamentalmente a possibilidade de cada uma das partes invocar razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado dessas provas, tendo ínsito o direito à prova - enquanto actividade destinada à demonstração da realidade dos factos em juízo – direito à apresentação de provas destinadas a demonstrar e provar os factos alegados em juízo.

Por isso, art.º 411º do Código de Processo Civil – será o diploma a citar sem menção de origem - determina que “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.

Nos termos gerais e à semelhança do que acontecia no Código de Processo Civil de 1961, mesmo antes da reforma de 1995/1996, o juiz continua a poder determinar amplamente a junção de documentos ao processo, quer estejam em poder da parte contrária, de terceiro ou de organismo oficial – ler art.ºs 429º, 432º e 436º.

Trata-se de uma evidente manifestação do princípio do inquisitório, que constitui anverso do princípio da controvérsia: ao juiz cabe, no campo da instrução do processo, a iniciativa e às partes incumbe o dever de colaborar na descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados  - art.º 417º, nº 1; tudo sem prejuízo das regras do ónus de alegação dos factos essenciais e da prova  - art.º 5º do Código Civil e art.ºs 342º e seg.s do Código Civil.

É, em tese geral, um podere-dever do juiz: tem a obrigação de ordenar as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer. Todavia, os poderes/deveres inquisitórios do juiz não são ilimitados quanto à determinação de provas - “Se fosse este o alcance, então teríamos de admitir que as partes estavam dispensadas de indicar provas, já que o juiz tinha o dever de procurá-las, de diligenciar, por exemplo, quem residia nas imediações onde ocorreram os factos para verificar se alguém os tinha constatado, ou procurar  entre familiares e amigos das partes as possíveis provas que poderiam existir e, claro está, as contraprovas”.

Não obstante esta possibilidade/dever de iniciativa instrutória do juiz, como manifestação do princípio do dispositivo, as provas devem, em princípio, ser requeridas pelas partes e no momento processual em que tal lhes é facultado, já que é de cada uma delas a defesa do interesse que visa acautelar no processo, tendo o ónus de demonstrar os factos cujo efeito a favorece.

A atividade que o juiz desenvolve no exercício dos poderes conferidos pelo citado art.º 411º há de ter em mira a prevalência da verdade material sobre uma verdade meramente formal, e a justa composição do litígio, mas não pode deixar de ter presente os ónus que a lei especialmente impõe às partes, o que se torna evidente nas situações em que seria uma ofensa a estes imperativos que o juiz oficiosamente determinasse a realização de meios de prova que a parte, a quem incumbia a sua apresentação, não o tivesse feito nas condições em que o deveria ter efectuado.

Na acção declarativa comum, é dever das partes juntar os documentos, apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova com os respetivos articulados  - art.ºs 423º 552º, nº 2 e 572º, al d). Depois dessa fase, poderá haver alteração do requerimento probatório e aditamento ou alteração ao rol de testemunhas apenas nas condições previstas no art.º 598º, entre elas, quanto ao requerimento probatório, na audiência prévia quando a ela haja lugar nos termos do disposto no artigo 591º ou nos termos do disposto no nº 3 do art.º 593º.

Dos princípios da igualdade, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes resulta que, caso não indiquem os meios de prova nos respetivos articulados quando tal lhes é legalmente imposto, com observância dos prazos perentórios a que estes estão sujeitos, ocorre preclusão desse direito. É incontroverso que fora dos prazos e momentos previstos na lei não podem as partes apresentar os seus requerimentos probatórios.

O dever de oferecer os meios de prova de que dispõem, nos respetivos articulados, ou seja, no acto em que cada uma das partes desenvolve a sua argumentação e formula a sua pretensão, tem razões óbvias: traz coerência, inteligibilidade e sustentabilidade à argumentação, e permite à parte contrária avaliar melhor a sua consistência e viabilidade, assim como a necessidade e a medida da sua oposição, no exercício do contraditório.

Este regime, algo rígido e simultaneamente flexível, tem ainda uma válvula de escape na norma do citado art.º 411º, justificada pela necessidade de dar prevalência à realização da justiça material. Mas, o dever investigatório do juiz, fora das condições do exercício do ónus das partes requererem e apresentarem os meios de prova no prazo ou no momento próprio, não pode obliterar aquele regime especificamente prescrito para esse efeito e, em igualdade, para ambas as partes - a apresentação do requerimento probatório nos tempos e lugares devidos.

O princípio do inquisitório não impõe ao tribunal o dever de acolher toda e qualquer pretensão instrutória de uma das partes em qualquer momento e condição formulada. Como se escreve no acórdão da Relação do Porto de 4.6.2013, pesquisável em www.dgsi.pt: “Com efeito, só em concreto, seja por via da dinâmica da produção da restante prova produzida em sede própria (maxime em audiência de julgamento), e sob contraditório, ou por via de sugestão de qualquer das partes, nessa mesma sede e sob o mesmo contraditório, haverá o tribunal de averiguar da utilidade ou necessidade da produção de outros meios de prova para além dos oportunamente produzidos ou requeridos pelas partes. Só em concreto, isto é, nas concretas circunstâncias da actividade instrutória desenvolvida conforme tempestivamente proposto pelas partes, é que o tribunal poderá considerar a necessidade de outros meios de prova, que se revelem necessários "ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio". E isso, poderá até acontecer no decurso da audiência de julgamento, ou até antes, se, na situação concreta, o tribunal entender antecipadamente ser essencial à realização desses objectivos a produção de qualquer meio de prova que as partes não requereram.”

Esmiuçando estes autos:

O Juízo Local Cível de Coimbra - Juiz 3 fixou e motivou, assim, a sua matéria de facto:

Com relevância para a decisão do incidente de suprimento do consentimento da Requerida, da prova produzida (assentos de nascimento, documentação clínica, audição pessoal e directa da Requerida e relatórios periciais) resultaram provados os seguintes factos:

1- A Requerida nasceu no dia ../../1936, na freguesia ..., concelho ....

2- A Requerida é divorciada.

3- A Requerente é filha da Requerida.

4- O Relatório de Perícia Médico-Legal – Psiquiatria realizado nos presentes autos concluiu que:

“1. A Requerida não evidencia atualmente, um quadro psicopatológico que permita diagnosticar qualquer patologia enquadrável na CID-10.

2. Não há motivos de natureza psiquiátrica que impossibilitem a requerida de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos, ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.

3. Não se justifica, do ponto de vista psiquiátrico-forense, a necessidade de quaisquer medidas de acompanhamento”.

5- A avaliação neuropsicológica, a que a Requerida foi submetida na Delegação do Centro do INMLCF, concluiu que:

• A examinada revelou possuir um funcionamento cognitivo/nível intelectual global de qualidade muito superior, comparativamente à média esperada para a população normal.

• Do ponto de vista psicométrico, verificou-se uma diferença, estatisticamente significativa, entre o desempenho verbal e o desempenho psicomotor, sugerindo que os processos mentais afetos às funções psicomotoras estarão a iniciar um ligeiro processo de perda, que deverá ser encarado como normal, num processo de envelhecimento.

• Os resultados obtidos no desempenho dos diferentes instrumentos de avaliação neuropsicológica aplicados (ACE-R; FAB; Fluência Verbal (semântica e fonémica), apontam no mesmo sentido, ou seja, que a sua função cognitiva global se encontra, conservada, tendo em conta os parâmetros considerados normativos para a população normal e relativos ao seu grupo etário.

• Os valores obtidos no IAFAI apontam para a presença de uma incapacidade funcional global mínima, detetado sobretudo em atividades instrumentais da vida diária-avançadas (AIVD-A=22.2%). É ainda de salientar que a examinada parece ter plena consciência dessas suas dificuldades em áreas especificas, tomando iniciativa de recorrer a estratégias para as ultrapassar (solicita apoio).

6- Em sede de audição pessoal e direta da Requerida, a mesma respondeu dizendo o seu nome, que tem 84 anos, que nasceu em ... em ../../1936, disse o nome dos pais DD e EE, disse que mora em ... em casa da filha EE na Rua ..., disse que antes viveu em ... e no Brasil e que está há cerca de 6 a 8 meses em ..., referiu que tem 4 filhos a AA, a EE e o FF, mas um deles morreu o GG; respondeu que estamos no mês 11, mas que não se lembra do dia e que estamos no ano de 2023 e no Inverno; quanto à moeda em circulação, começou por referir ser o real, tendo posteriormente corrigido para “euro”; realizou, mentalmente, somas e multiplicações e identificou corretamente as notas de 10 e 5€, bem como as moedas de 2€, 50, 5 e 1 cêntimos, tendo referido que bens consegue adquirir com concretas quantias em dinheiro; disse que estamos no século 22; referiu que os seus bens são geridos com a sua orientação, que recebe rendas de prédios, tem conta no banco, normalmente as rendas são depositadas e vai ao banco buscar os extratos da conta, até porque gosta de ter contacto com o banco para ter confiança, tem um gestor de conta e vai acompanhada pelo seu genro ou filha EE; referiu ainda que se sente capaz de controlar a sua vida.

A requerente, neste particular, alega:

A Requerida tem 85 anos de idade e é divorciada e que após o suicídio do filho GG, em 11/09/2018, a Requerida começou a demonstrar sintomas de demência, com lapsos de memória, repetição de pedidos e desorientação em lugares públicos.

Em janeiro de 2020, a Requerida teve um surto psicótico acreditando que estava a ser detida pela polícia e em abril de 2020, foi levada pela sua filha EE para ..., com o pretexto do estado de emergência decorrente da pandemia.

Que em 19/10/2020, a Requerida teve uma fratura do corpo vertebral D10 e diagnóstico de doença de Kúmel. A Requerida permaneceu um período na cama, mas a irmã EE nunca informou a Requerente sobre as indicações médicas ou a gravidade da extensão da lesão da mãe.

A Requerente, que se encontrava em Portugal, marcou exames clínicos à Requerida. Esta estava com uma infeção urinária, falta de vitamina D e, avaliada, por um especialista da coluna, a doença de Kúmel estava estacionária. Foi, também, a Requerida, a otorrinolaringologista, que lhe prescreveu aquisição de aparelho auditivo.

(…)

Notoriamente, a Requerida está sem discernimento para administrar as suas finanças, bem como administrar os seus bens, estando a ficar descapitalizada, correndo o risco de não poder prover ao seu sustento e a todos os encargos que tem.

(…)

No momento atual, a Requerente desconhece o estado de saúde da mãe, o que se passa com esta e está extremamente preocupada, não conseguindo falar telefonicamente com a Requerida.

Dado o comportamento da irmã EE e do irmão HH, a Requerente tem receio justificado de que a Requerida não esteja devidamente acompanhada.

Pelo estado de saúde que a Requerida tinha quando estava em ..., esta necessita de vigilância durante 24 horas.

A Requerida não apresenta capacidade para gerir o seu património, nem para celebrar, de forma autónoma, os negócios da vida corrente.

(…)

A Requerida, não reúne condições físicas e mentais necessárias para viver condignamente sem qualquer auxílio de terceiro, bem como para gerir o seu património e fazer face às despesas mensais.

Após algumas contrariedades na citação da requerida – que levou, inclusive à apresentação da contestação por parte do M.º P.º, em representação da citanda – esta constituiu advogado e apresentou a sua contestação.

Foi feita a audição pessoal e directa da requerida pela julgadora no dia 9 de novembro de 2022, seguida do exame pericial - foi realizada segunda entrevista, nas instalações da Delegação do Centro do INMLCF no dia 25 de janeiro de 2023 – assim fundamentado:

“Das cópias das extensas peças processuais a que tivemos acesso constam vários documentos clínicos referentes à requerida, que passamos a discriminar.

- Informação médico-psiquiátrica, datada de 27 de outubro de 2021, assinada por médica psiquiatra particular consta que a requerida foi observada em consulta a 13 de janeiro de 2020 e 19 de agosto de 2021. Na primeira consulta é referido que a beneficiária apresentava sintomatologia depressiva (humor deprimido, insónia intermédia e matinal) e dois episódios confusionais, que se verificou estarem associados a infeção urinária e que reverteram com antibioterapia. Apresentava, àquela data, valor limite em prova de rastreio cognitivo aplicada. Na segunda consulta é descrita melhoria dos sintomas depressivos, mas agravamento do declínio cognitivo, com proposta de alteração terapêutica e sugestão de avaliação neuropsicológica para melhor aferição de grau de défice cognitivo.

- Relatório resumo de episódio de urgência do SU do CHUC, referente a observação no dia 13 de junho de 2021 por queda com TCE após escorregar na casa de banho. Registado TCE parieto-occipital esquerdo, sem amnésia e sem cefaleias, em doente calma, consciente e orientada. Realizou estudo por TC-CE que não revelou alterações traumáticas agudas, com sinais de leucoencefalopatia isquémica periventricular, vias de circulação de líquido cefalorraquidiano alargadas, traduzindo redução do volume encefálico.

- Relatório de avaliação psiquiátrica, datado de 4 de novembro de 2022, assinado por médico psiquiatra particular (avaliação solicitada a pedido da requerida, para apreciação da sua capacidade de gerir a sua pessoa e bens). Deste consta que a requerida foi entrevistada em 2015, a 5 e 7 de março, 22 de abril e 4 de novembro de 2022, tendo sido realizada avaliação neuropsicológica de forma complementar.

Dos resultados da avaliação foi concluído que, apesar de evidência que suportava um processo de declínio cognitivo, a requerida se encontrava ainda na posse das faculdades mentais necessárias e requeridas à tomada de decisões em questões de natureza financeira, incluindo os atos de disposição patrimonial.

Conclui o médico subscritor do relatório que, apesar de um estado de ligeiro disfuncionamento cognitivo, a requerida não apresenta vulnerabilidade emocional ou ideias psicóticas que condicionem a sua capacidade de decisão, nem sinais ou compromisso mental que evidenciasse estar a ser sujeita a coação para a tomada de decisões.

Não se apurou, por anamnese ou documentalmente, existência de quaisquer antecedentes psiquiátricos, neurológicos ou médico cirúrgicos com relevo para o caso e a requerida, tanto quanto nos foi possível apurar, não toma qualquer medicação psicofarmacológica.

De referir que tivemos oportunidade de entrevistar a filha da requerida, EE, que a acompanhava à data da audição em tribunal e também da avaliação nesta Delegação, e que prestou os esclarecimentos tidos como necessários.

Adicionalmente, e para melhor caracterização do quadro, a requerida viria a ser objeto de avaliação neuropsicológica, por nós solicitada, nesta Delegação do Centro do INMLCF, que enviamos em apenso e de cujos resultados daremos sumariamente conta em seguida.

EXAMES COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO

- Avaliação psicológica – 22 de fevereiro de 2023 (Dr.ª II)

“(…) a examinada foi submetida à Escala de Inteligência de Wechsler para Adultos (WAIS-III). Os resultados obtidos foram os seguintes:

Tendo em conta que os valores de QI considerados médios se devem situar entre 90 e 109, os resultados obtidos pela examinada sugerem estarmos em presença de alguém portador de um funcionamento cognitivo global de qualidade muito superior, considerando os parâmetros normativos para a população portuguesa e relativos ao seu grupo etário.

No entanto, verifica-se uma diferença significativa (23 pontos) entre as aptidões intelectuais de natureza verbal (resultado Muito Superior QIV= 146) e as aptidões intelectuais manipulativas (resultado superior QIR=123). Este dado sugere que a examinada, comparativamente a um nível de desempenho pré-mórbido, possa estar a iniciar alguma perda de qualidade no desempenho de funções cognitivas não-verbais (que envolvem raciocínio não verbal abstrato e fluido, processamento de informação espacial, atenção a detalhes, integração visuo-motora).

(…)

Tendo em conta os resultados obtidos pela examinada nas diferentes provas de avaliação psicológica a que foi submetida, pensamos ter reunido dados que nos permitem concluir o seguinte:

• A examinada revelou possui um funcionamento cognitivo/nível intelectual global de qualidade muito superior, comparativamente à média esperada para a população normal.

• Do ponto de vista psicométrico, verificou-se uma diferença, estatisticamente significativa, entre o desempenho verbal e o desempenho psicomotor, sugerindo que os processos mentais afetos às funções psicomotoras estarão a iniciar um ligeiro processo de perda, que deverá ser encarado como normal, num processo de envelhecimento.

• Os resultados obtidos no desempenho dos diferentes instrumentos de avaliação neuropsicológica aplicados (ACE-R; FAB; Fluência Verbal (semântica e fonémica), apontam no mesmo sentido, ou seja, que a sua função cognitiva global se encontra, conservada, tendo em conta os parâmetros considerados normativos para a população normal e relativos ao seu grupo etário.

• Os valores obtidos no IAFAI apontam para a presença de uma incapacidade funcional global mínima, detetado sobretudo em atividades instrumentais da vida diária-avançadas (AIVD-A=22.2%). É ainda de salientar que a examinada parece ter plena consciência dessas suas dificuldades em áreas especificas, tomando iniciativa de recorrer a estratégias para as ultrapassar (solicita apoio).”

AVALIAÇÃO CLÍNICA E PARECER PSIQUIÁTRICO FORENSE

No seguimento da douta audição pessoal e direta da requerida, seguida do exame pericial e da entrevista adicional realizada nesta Delegação, e reunidos os elementos considerados necessários à apreciação do presente caso, incluindo os resultados da avaliação psicológica realizada, podemos afirmar que a mesma não evidencia, atualmente, um quadro psicopatológico que permita diagnosticar qualquer patologia enquadrável na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde da Organização Mundial de Saúde (CID-10).

A requerida apresenta-se, em tribunal e nesta Delegação, com aspeto bem cuidado, congruente com a idade, estrato socio económico e condições ambientais.

Apresenta ligeira hipoacusia. Mostra-se parcialmente orientada no tempo em tribunal (não recorda o dia do mês, erra o ano e a estação), aspeto que melhorou na observação fora do contexto judicial, mantendo-se sempre orientada no espaço, pessoa e situação. Consegue referenciar quem moveu o processo de acompanhamento de maior (uma das filhas) e os motivos que crê estarem subjacentes à abertura da ação. O contacto é sintónico e a postura sempre colaborante durante as entrevistas realizadas, observando adequadamente a pragmática social.

O discurso é espontâneo, coerente, sem alterações da fluência ou prosódia, sem alterações de articulação da linguagem. O pensamento não evidencia alterações da forma ou conteúdo e mantém, como melhor caracterizado na avaliação psicológica a que foi submetida, capacidade de abstração e flexibilidade, não se apurando quaisquer sintomas da linha psicótica (com corte do sentido da realidade) como delírios ou alucinações. O humor manteve-se eutímico durante as observações, com adequada expressão de afetos.

É totalmente autónoma nas atividades de vida diárias e nas atividades instrumentais de vida diária, referindo que por sentir maior segurança ao tramitar alguns assuntos de gestão do seu património junto de entidades bancárias, tem solicitado apoio de familiares para o efeito (genro), sendo, contudo, a própria que assume todas as decisões. Revela conhecimentos adequados sobre os seus rendimentos e extensão do seu património e mantém capacidade de compreender e expressar adequadamente, entre outros conceitos, em que consiste um testamento.

Em tribunal, ainda que tenha inicialmente nomeado a moeda atualmente em circulação como sendo o Real (viveu no Brasil), rapidamente corrigiu para Euro e identificou corretamente notas e moedas que lhe foram apresentadas, assim como o valor de alguns bens de uso corrente.

Tal como detalhadamente apreciado na avaliação psicológica realizada, a requerida mantém preservadas capacidades de cálculo (em tribunal consegue fazer somas e subtrações corretamente), linguagem (compreensão, escrita e leitura, nomeação e repetição), atenção e funções executivas e aptidões visuo espaciais, sendo o domínio da memória o que registou algumas fragilidades nas provas psicométricas.

De frisar que o funcionamento cognitivo da requerida foi apreciado em níveis muito superiores à média (ainda que já com sinais sugestivos de alguma perda de qualidade no desempenho de funções cognitivas manipulativas) e que os resultados da avaliação cognitiva realizada nesta Delegação são globalmente sobreponíveis aos obtidos na avaliação prévia, particular (a que esta se submeteu por sua iniciativa em 2022).

Adicionalmente, as (parcas) limitações da requerida, são presentemente supridas pela cooperação e assistência de familiares, para cujo apoio a requerida tem capacidade de expressar vontade de forma clara, esclarecida e intencional.

Não há, assim, motivos de natureza psiquiátrica que impossibilitem a requerida de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos, ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, não se justificando, do ponto de vista psiquiátrico-forense, a necessidade de quaisquer medidas de acompanhamento.

CONCLUSÕES

1. A requerida não evidencia atualmente, um quadro psicopatológico que permita diagnosticar qualquer patologia enquadrável na CID-10.

2. Não há motivos de natureza psiquiátrica que impossibilitem a requerida de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos, ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.

3. Pelo exposto, não se justifica, do ponto de vista psiquiátrico-forense, a necessidade de quaisquer medidas de acompanhamento.

COIMBRA, 06 de abril de 2023

A Perita Médica

Dr.ª JJ

Assistente de Psiquiatria

O Perito Médico

Dr. KK

Assistente Graduado de Psiquiatria”

A Requerente, notificada dos relatórios periciais juntos aos autos pelo INMLCF em 10.04.2023, vem dizer e a final requerer o seguinte:

1.º Da leitura dos ditos relatórios periciais do INMLCF (relatório de perícia médico-legal de Psiquiatria datado de 06.04.2023 e relatório de perícia médico-legal de Psicologia datado de 22.02.2023) resulta a existência de incongruências várias, não se encontrando as respectivas conclusões em total consonância com os seus fundamentos.

2.º Os ditos relatórios descuram em absoluto o facto de, nas duas idas à urgência mencionadas, a Beneficiária se encontrar num estado confusional em contexto de infecção urinária e com sintomatologia depressiva, 3.º sendo que é comum as pessoas idosas fazerem quadros confusionais mas tão-somente quando já existe deterioração cognitiva.

4.º Por outro lado, a tomografia computadorizada (TC) realizada em episódio de urgência à Beneficiária em 13.06.2021 – e não obstante se tratar de um exame “grosseiro”, não específico, de avaliação da parte neurológica – já evidencia pormenores importantes ao nível neurológico, designadamente atrofia cortical cerebral, dilatação ventricular do cérebro e múltiplos pequenos enfartes,

5.º encontrando-se, assim, bem explícito que, à data, o cérebro da Beneficiária já se encontrava em atrofia.

6.º Note-se que, tal como consta dos ditos relatórios de avaliação, em sede de audição pessoal e directa pelo Tribunal – momento em que não se encontrava a examinanda acompanhada -, a Beneficiária não se soube situar temporalmente (não recordou o dia do mês, errou o ano e a estação), o que depois é incompreensivelmente desvalorizado nos ditos relatórios,

7.º realçando-se que, durante a avaliação cognitiva que conduziu à elaboração dos referidos relatórios, a Beneficiária esteve acompanhada pela sua filha EE, sendo manifesto que tal não deveria ter sucedido, uma vez que tal presença/acompanhamento afasta a transparência/imparcialidade e pode ter contribuído para a adulteração dos resultados.

8.º Ao que acresce que, no dito relatório de perícia médico-legal de Psicologia, não se valoriza devidamente o facto de, na prova de despiste de doença ACE-R, que serve para rastrear eventual demência (instrumento de rastreio cognitivo utilizado para avaliação de desempenho e identificação de fases mais precoces dos processos de perda patológica da função cognitiva) – cf. pág. 5, item 3.2. - e no qual são avaliados cinco domínios, no que respeita ao domínio da memória a Beneficiária apresenta apenas 12 em 26 pontos (12/26), o que já implica uma alteração moderada.

9.º Por outro lado, ainda no mencionado Ponto 3.2., no domínio relativo às funções executivas (o qual é essencial para a tomada de decisão), a Beneficiária apresenta apenas 8 em 14 pontos (08/14).

10.º Há ainda que considerar que, nos próprios relatórios de avaliação, consta que a Beneficiária já não é capaz de estar sozinha e de gerir sozinha o seu património, sendo que, quando lhe é perguntado pela moeda actualmente em circulação, começa por responder que é o Real.

11.º Acresce ainda que, no item 3.5. do dito relatório de perícia médico-legal de Psicologia (cf. pág. 6), referente ao inventário de avaliação funcional (instrumento que visa avaliar de forma exaustiva as aptidões funcionais envolvidas na realização autónoma de actividades da vida diária), resulta ter-se apurado perda de capacidades, verificando-se uma incapacidade global de realização de actividades da vida diária de 27,7%,

12.º sendo que, no que respeita ao módulo 3 – actividades instrumentais da vida diária – avançadas (precisamente nos domínios associados à tomada de decisões relativas à saúde ou às finanças, por exemplo, contar dinheiro), é notório que a Beneficiária falha neste domínio, verificando-se uma incapacidade de 22,2%(dentro dos supra mencionados 27,7%).

13.º Ou seja, a Beneficiária só é capaz de desempenhar de forma autónoma as actividades básicas da vida diária do módulo 1 (vestir-se, lavar-se,…).

14.º Pelo que, contrariamente às conclusões plasmadas nos supra mencionados relatórios, tudo quanto supra alegado denota deterioração já considerável da capacidade cognitiva da Beneficiária, impondo-se a observação e avaliação da mesma por especialista da área de Neurologia, designadamente com vista a uma adequada interpretação da TC realizada à mesma em 13.06.2021, a qual, reitera-se, é anormal e já evidencia importantes alterações neurológicas, as quais foram totalmente desconsideradas nos ditos relatórios de avaliação do INMLCF.

Termos em que, e com vista á especificação das medidas de acompanhamento a determinar, requer-se a V. Exª se digne ordenar

1º - a realização de avaliação cognitiva da Beneficiária por especialista em Neurologia, por ser esta a especialidade médica indicada para se alcançar a melhor caracterização do quadro mental da beneficiária,

2º - avaliação a ser realizada presencialmente e sem que a Beneficiária se encontre acompanhada”.

No seguimento, promove a magistrada do M. º P. º:

“Vem a requerente AA pedir que se ordena a realização de avaliação cognitiva da beneficiária BB por especialista em Neurologia, por ser esta a especialidade médica indicada para se alcançar a melhor caracterização do quadro mental daquela.

Ora, no relatório de perícia médico-legal junto em 10/04/2023 a Sra. Perita Médica pronunciou-se no sentido de que a beneficiária BB “não evidencia actualmente um quadro psicopatológico que permita diagnosticar qualquer patologia enquadrável na CID-10…, não havendo motivos de natureza psiquiátrica que a impossibilitem de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos, ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, … pelo que não se justifica, do ponto de vista psiquiátrico-forense, a necessidade de quaisquer medidas de acompanhamento.” (sic)

Também aquando da sua audição a beneficiária BB mostrou-se colaborante, respondeu com clareza e acerto a todas as questões que lhe foram colocadas e afirmou que se sente capaz de controlar a sua vida.

Perante estes dados não nos parece que uma avaliação cognitiva da beneficiária BB por especialista em Neurologia possa contribuir para se alcançar a melhor caracterização do seu quadro mental, tanto mais que a perícia médico-legal já realizada baseou-se nos elementos clínicos da beneficiária e a perícia psicológica a que a mesma também foi submetida aponta no mesmo sentido (de realçar que é ali referido que a beneficiária BB revelou possuir um funcionamento cognitivo/nível intelectual global de qualidade muito superior, comparativamente à média esperada para a população normal – cfr. relatório junto em 10/04/2023).

Face ao exposto, pronunciamo-nos no sentido de que deve ser indeferido o pedido de realização de avaliação cognitiva da beneficiária BB por especialista em Neurologia.

*

Coimbra, d. s”

 A 1.ª instância “com vista a habilitar o Tribunal a tomar decisão sobre a necessidade de realização da diligência requerida, decide-se proceder à audição dos peritos médicos subscritores do relatório de perícia médico legal, bem como da perita psicóloga, a fim de lhes serem tomados esclarecimentos”.

“ATA DE AUDIÇÃO DOS PERITOS MÉDICOS

Data: 13 de Novembro de 2023, 10h00

Magistrada Judicial: Dra. LL, Juiz de Direito dos Juízos Locais Cíveis- J3

Funcionária Judicial: MM

Processo: Acompanhamento de Maior nº 308/22....

Requerente: AA

Mandatária: Dra. NN

Beneficiária: BB

Mandatário: Dr. OO

Após efetuar a chamada pelas 10:00, verifiquei que se encontram presentes:

Neste tribunal, o Dr. PP, Procurador da República, os Il. Mand. das partes acima identificados, a filha da Beneficiária EE.

Mais presentes, através do sistema de videoconferência, os Peritos Médicos, do INML, Dr. KK e Dra. JJ.

*

A presente audiência de julgamento vai ser devidamente gravada no sistema Habilus Media Studio, ficando a constar em ata o início da gravação, assim como o final da mesma, nos termos do artº 155º, nº1 do C.P.C.

*

Iniciada a audiência, pelas 10:10, a Mmª Juiz proferiu o seguinte DESPACHO

Considerando que a diligência, para hoje agendada, já foi adiada por duas vezes (a primeira, marcada para 5-7-2023, por ausência dos Srs. Peritos Médicos e a segunda, prevista para 4-10-2023, por impossibilidade de comparência da Sr.ª Perita, Dr.ª II) e ainda que se trata de processo de natureza urgente, determino que os Srs. Peritos presentes prestem os esclarecimentos necessários.

Notifique.

*

Assim, foram tomados esclarecimentos aos Srs. Peritos Médicos, já identificados nos presentes autos:

- Dr. KK, médico do INML

- Dra. JJ, médica do INML

Esclarecimentos dos Srs. Peritos, tendo por base o relatório de perícia médico legal que elaboraram, bem como o relatório de psicologia, que consta dos autos e ainda o requerimento da requerente de 24/4/2013, em que são colocadas algumas questões.

Mmª Juiz - Uma das questões que a requerente coloca em relação aos relatórios, resulta de não ter sido valorizada a circunstância de nas duas idas às urgências, mencionadas no relatório, a beneficiária se encontrar num estado confusional, em contexto de infeção urinária?

Drª JJ - No nosso relatório consta a informação relativa a essas idas à urgência, bem como o relato das medidas confusionais, que acompanharam essas idas à urgência, sendo esses estados confusionais resultantes de episódios agudos, o que significa que se instalam de forma rápida, em reação a um surto, que pode ser uma infeção, pode ser um desequilíbrio eletrolítico, ou seja dos iões no corpo, pode ser um estado de desidratação, pode ser uma queda e que também se resolve de forma rápida, assim que a situação que lhe deu origem se resolve. Portanto, não é um estado permanente, é transitório, agudo e breve. Daí que, ainda que tenhamos essa informação, é relevante, mas não condicionou a nossa observação da D. BB, às datas em que a observámos.

Mmª Juiz - Então e estes tais estados confusionais não se verificam apenas quando já existe uma deterioração cognitiva?

Drª JJ - Não. Podem acontecer a qualquer pessoa. São muito frequentes em crianças, em idosos e ainda que aconteçam em pessoas que tenham um grau de declínio cognitivo, em estados de confusão ou já demenciais já, pode acontecer em qualquer circunstância.

Mmª Juiz - Há uma outra questão que se prende com a tomografia computorizada realizada em episódio de urgência, à beneficiária, em 13-06-2021 e a questão que se coloca é que, de acordo com este exame, à data em que o mesmo foi realizado, o cérebro da beneficiária já se encontrava em atrofia?

Drª JJ - Encontrava-se e encontra. Agora, a verdade é que, alterações imagiológicas não traduzem necessariamente alterações funcionais. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que o cérebro da D. BB está a envelhecer, e, portanto, está a diminuir de volume. Pode, inclusive, estar a diminuir de volume de forma um bocadinho mais significativa em relação àquilo que seria esperado, para a idade e ainda assim, isso não se traduzir numa perda de competências cognitivas e funcionais. Portanto, a imagiologia serve de suporte, digamos para as avaliações dos quadros de deterioração cognitiva e de demência, mas não servem de diagnóstico. Não é por alguém ter uma ressonância com alterações do valorimetria encefálica que faz qualquer diagnóstico de disfuncionalidade cognitiva ou demência.

Mmª Juiz - Relativamente a outra questão, a requerente questiona a circunstância da beneficiária, em contexto de audição, neste tribunal, não se ter sabido situar temporalmente?

Drª JJ - De facto, em contexto de tribunal, a D. BB teve algumas dificuldades ligeiras de orientação. O que nós pudemos verificar, foi que ela se apresentava notoriamente ansiosa durante a audição, o que é compreensível e explicável pelo contexto da audição em tribunal terá sido por ver muita gente, vários advogados, conseguimos justificar por aí. Por esse motivo também, foi solicitado por nós, uma segunda entrevista, no instituto, já num ambiente mais tranquilo, sereno, com mais espaços para a D. BB estar à vontade e nesse contexto, de facto, esta ansiedade subsistiu e não se verificaram as mesmas dificuldades em termos de orientação. Adicionalmente, de facto, a D. BB foi submetida a uma bateria bastante extensa, de fórmulas neuropsicológicas, que avaliam uma série de competências, entre as quais a orientação e o desempenho dela foi acima da média. Houve algum prejuízo ligeiro em algumas funções, a orientação não sendo aquela que foi mais relevante. Por nós foi considerado pouco relevante esta falha ligeira de orientação, que se apurou, em sede de audiência.

Mmª Juiz - Relativamente à confusão quanto à moeda corrente em Portugal, que surgiu na própria audição, o que é que a Sr. Drª pode dizer?

Drª JJ - Nesse contexto, considerando que é uma senhora que tramita regularmente com duas moedas, confundir uma moeda pela outra também não se nos mostrou particularmente despaupério. Uma vez mais, em sede de ambiente mais tranquilo e calmo, teve oportunidade de fazer uma série de provas de cálculo bastante complexas, sem que tenha demostrado dificuldades desse ponto de vista. E, uma vez mais, em sede de audiência, algum nervosismo que ela pudesse ter, associado ao contexto, facilitaria esta troca. Também é verdade, que ela trocou duas moedas que existem, saõ correntes, estão em circulação e que manipula. Portanto, não considerámos particularmente gravoso.

Mmª Juiz - Srª Dra. e já agora, relativamente à avaliação cognitiva, refere-se aqui que a beneficiária esteve acompanhada pela sua filha EE, perguntava se a mesma esteve presente durante toda a realização dos exames, como é que funciona, digamos, a presença ou ausência e a participação, de alguma forma, desta pessoa que acompanhou a beneficiária?

Drª JJ - Tipicamente o que acontece, ou seja, o nosso protocolo, pedimos sempre às pessoas para virem acompanhadas de alguém da confiança, da família, algum elemento de proximidade, que consiga fornecer informações colaterais, esperam juntos na sala de espera, depois é chamada a pessoa que irá ser examinada, é examinada individualmente, só com o perito, na ausência de familiares, que depois posteriormente, num segundo tempo, ou a sós, ou na presença do examinado, se assim for considerado adequado, podem prestar algumas informações adicionais. Mas nunca estão presentes na avaliação propriamente dita.

Mmª Juiz - Srª Dr. quer acrescentar alguma coisa?

Dr. Máximo - Não. Queria esclarecer que a entrevista com um familiar, foi feita num segundo tempo, e na entrevista da requerida foi examinada a sós. Posteriormente na avaliação psicológica, falámos com a acompanhante, também a sós. Em nenhum momento estiveram juntas.

Mmª Juiz - Portanto, falaram individualmente com cada uma das pessoas, não é assim?

Dr. Máximo - Sim.

Mmª Juiz - Indo agora à perícia psicológica, bem sei que não foram os Srs. Drs. que a elaboraram, mas de todo o modo, responderão àquilo que puderem responder, se é que o vão puder fazer. Pedia-lhes que passassem, neste relatório, diretamente ao ponto 3.2, da página 5. Mas antes pedia-lhes que fizessem uma legendagem, relativamente à própria tabela, onde consta ACE-R Total 75/100 e depois M igual e DP?

Drª JJ - M é a média e DP o desvio padrão.

Mmª Juiz - Portanto, relativamente a este ponto 3.2, Srs. Drs., refere aqui a requerente que não foi devidamente valorizado, o facto de, nesta prova de despiste, precisamente, no que respeita ao domínio da memória, a beneficiária apresentar apenas 12 em 26 pontos, o que já implica uma alteração moderada.

Drª JJ - Não foi devidamente valorizado? Foi. Está aqui que a maior fragilidade se regista no domínio das tarefas de memória. Em todos os outros domínios o desempenho é normativo.

Mmª Juiz - Mas até que ponto, é que este défice, se é que assim pode chamar, pode ou não afetar, efetivamente, aquilo que são as competências da requerida e a sua autonomia?

Drª JJ - Há aqui outras questões a levar em consideração. Para além destas provas, este ponto 3.2 refere-se a uma escala específica, que é Addenbrooke Cognitive Examination, que é uma prova de avaliação de funções cognitivas. Contudo, tratando-se de uma pessoa com um elevado grau de escolaridade e atendendo ser necessário caracterizar as múltiplas formas, para ser o mais exaustivo possível, as várias funções que poderiam ter algum grau de implicação nas competências funcionais da D. BB, ela foi submetida, concretamente a uma WAIS, que é uma escala de inteligência global, que é uma escala muito extensa e que avalia todos estes parâmetros e, na qual ela pontuou de forma normativa, aliás, até acima da média. Onde ela pontuou um bocadinho mais abaixo, foi em funções de manipulação. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que, o facto de já haver uma perda ligeira, e que se pode enquadrar na idade avançada da D. BB, de funções mais manipulativas, mais executivas. Essas sim, poderiam causar mais facilmente interferência em termos de funcionalidade, até de gestão patrimonial da D. BB. Contudo, ainda que se verifique esta ligeira perda, o funcionamento dela continua a ser normativo, aliás, normal/alto. E, portanto, mesmo valorizando as alterações que podem surgir individualmente em provas, globalmente o funcionamento da D. BB mantém-se ainda em níveis desejáveis, ou seja, ela consegue ir compensando através de outras funções, as lacunas que possa ter em funções específicas.

Mmª Juiz - Precisamente no que respeita a essas funções executivas, a pontuação também é de 8 em 14, 3º item, funções Executivas / Fluência.

Drª JJ - Sendo que a média populacional é de 9.15 com desvio padrão 2.58, para baixo e para cima, não se valoriza, está dentro do desvio padrão.

Drª JJ - É porque está dentro do desvio padrão. Ou seja, há uma média populacional e calcula-se o desvio padrão, dentro do qual a maioria dos indivíduos da média se distribuirão e, portanto, ela está ainda dentro desses valores e não se considera o valor alterado. O valor do teste é sempre referenciado à média, mais ou menos o desvio padrão que vem mencionado à frente.

Mmª Juiz - Passando agora à página seguinte, ao ponto 3.5, neste item quanto ao inventário de avaliação funcional, resulta ter-se apurado perda de capacidades, verificando-se uma incapacidade global de realização de atividades da vida diária de 27,7%. Srª Drª, explicando um bocadinho melhor e de uma forma percetível, na perspetiva daquilo que é efetivamente o impacto, deste valor na realização das atividades da vida diária, o que poderia esclarecer?

Drª JJ - Isto é um impacto baixo, ou seja, para a idade da D. BB, é um valor considerado normal dentro do processo de envelhecimento. Isto é, é uma dependência muito ligeira e é facilmente funcionável por apoio de terceiros, que solicita autonomamente.

Mmª Juiz - Dr. Máximo tem alguma coisa a acrescentar, relativamente aos demais pontos que a Dra. JJ tem estado aqui a esclarecer?

Dr. Máximo - Sim, importa esclarecer que estamos perante uma pessoa que tem umas capacidades intelectuais muito acima da média, com um QI altíssimo e, portanto, algum declínio próprio da idade, temos uma mulher de 87 anos, tem uma grande reserva funcional e consegue desempenhar, de forma normal, apesar de mostrar envelhecimento, já mostra algum grau de declínio, próprio da idade mas não tradutor de um processo de deterioração mental patológico, nomeadamente cognitivo.

Mmª Juiz - Sr. Dr. e relativamente ao ponto específico das atividades instrumentais da vida diária avançadas, em que essa percentagem de incapacidade se situa em 22,2%?

Dr. Máximo - Não vou responder qual é o valor dessa percentagem. Se verificarmos ela tem alguns défices, atividades básicas da vida diária é zero por cento. Eu conheço o IAFAI mas não conheço a interpretação do quadro. Significa que tem alguma dificuldade em desempenhar algumas tarefas. De facto, ela referiu que para compensar essas dificuldades, normamelmente se suporta da filha, para algumas atividades, não porque precise mas para ter a garantia que corre tudo bem. Atendendo à idade, não me parece significativo.

Drª JJ - Eu acrescentaria uma outra questão, que é de IAFAI é um instrumento que está validado, mas que é de suporte, é preenchido com a presença de um examinador, é apenas de relato daquilo que são as dificuldades percecionadas pelo próprio, ou pelo relato que é fornecido por um cuidador. Portanto, tem sempre um valor que está ligado àquilo que é a própria descrição de terceiros, daquilo que são as limitações que existem e são percecionadas, que podem, e há um ponto do relatório da Dra. II em que isso está mencionado, a D. BB tem uma perceção das próprias competências um bocadinho inferior àquilo que são as competências reias dela. Porque, provavelmente, este resultado da WAIS, que é um resultado muito acima da média, já com algum grau de declínio face à idade, a D. BB tem ainda um funcionamento ainda cognitivo superior a este há uns anos atrás e, é natural que ela tenha alguma perceção do diferencial de velocidade de processamento, ou facilidade em fazer as coisas, até porque tem oitenta e sete anos de idade, atualmente, e que reporte essa perceção que tem, que sinta que precisa atualmente de alguma supervisão ou ajuda para a execução de determinadas atividades mais complexas e as atividades da vida diária avançadas, são isso mesmo, são atividades mais complexas, nomeadamente gestão de contas bancárias, aspetos burocráticos complexos, é natural que ela reporte esta necessidade, à data da audição, que já se socorria, para garantir que tudo era tramitado corretamente, do apoio de terceiros, como forma de garantir que não cometia erros. É uma estratégia adequada de forma a compensar uma perda, não patológica, de competências cognitivas e que é normal e expectável para a idade, mas que não é patológica e ainda que existindo, não compromete neste momento a capacidade funcional de execução. Agora que é se sinta mais salvaguardada com o apoio, sem dúvida.

Dada a palavra aos ilustres mandatários foram solicitados os seguintes esclarecimentos:

Drª NN - Tendo ouvido atentamente os esclarecimentos prestados pela Srª Drª que provêm do relatório da Srª Psicóloga, que está ausente por motivos de doença, eu concluo que as vossas conclusões que foram escritos no relatório da perícia médico legal, no sentido de que não se justifica do ponto de vista psiquiátrico forense, a necessidade de quaisquer medidas de acompanhamento, agora terão suscitado já algumas alterações a esta conclusão. A Drª JJ acaba por dizer que a Srª Beneficiária necessitará de acompanhamento de terceiro. Eu pergunto, eu não estou aqui a interditar ou não uma pessoa, não é isto, nós estamos num acompanhamento de maior, e os senhores sabem por formação, como nós também temos o dever, eu pergunto, esta senhora tem condições, perante os seus últimos esclarecimentos, para administrar total ou parcialmente os seus bens?

Drª JJ - Eu não disse que a D. BB necessitava de apoio, o que eu disse foi que a D. BB solicitava apoio. Tem todo o direito a solicitá-lo. Eu se tiver dificuldade em tramitar alguma coisa, também posso pedir ajuda a quem bem entender.

Drª NN - Responda à pergunta, a Dra. JJ não é aqui parte e não posso estar aqui a falar no meu exemplo.

Drª JJ - A D. BB tem toda a capacidade para gerir o seu património.

Drª NN - Sozinha?

Drª JJ - Sim. Pode decidir não o fazer.

Drª NN - Não ouvimos e não tivemos aqui outra especialidade, que eu não lhe vou dizer qual é aquela, que, no meu entender, depois de ouvidos outros peritos, sugeria ao tribunal. Acha que o relatório da psicóloga é bastante e suficiente para as vossas conclusões, mantêm estas conclusões hoje, apesar das dúvidas que foram aqui pedidas que fossem esclarecidas, considera?

Drª JJ - Se não achasse suficiente não teria emitido um relatório.

Drª NN - Não, eu pergunto-lhe o relatório é escrutinado como todos os nossos atos são. No escrutínio, a Srª Drª Juiz colocou-lhe as dúvidas que é legítimo que tivessem colocado e apesar de terem sido perguntadas aquelas questões e aquelas dúvidas mantém as conclusões. Não se justifica qualquer interferência, qualquer acompanhamento, em qualquer momento da vida desta senhora, não?

Drª JJ - Não. Mantenho exatamente as mesmas conclusões e penso que como eu, mantém o Dr. Máximo e explico porquê. De facto, é compreensível que o Tribunal, os advogados, todas as pessoas que recebem este relatório, possam ter algumas dúvidas que queiram ver esclarecidas, precisamente por isto se tratar de matéria de psicologia, psiquiatria que pode não estar adequadamente explicitada de forma a não ser completamente compreensível a alguém que não tem formação na área, por isso é que estamos aqui para prestar os esclarecimentos e não para alterar as nossas conclusões.

Drª NN - Então, eu pergunto-lhe só isto, esta avaliação cognitiva foi feita por um relatório de psicologia que vos fundamentou as vossas conclusões, eu pergunto-lhe, a avaliação cognitiva da Beneficiária deveria, ou não, ter sido feita, ou não, por um especialista em neurologia, é esta ou não a especialidade médica indicada, para se encontrar a caracterização do quadro mental da beneficiária?

Drª JJ - Não. A avaliação é uma avaliação neuropsicológica, é realizada por neuropsicólogos, ou por psicólogos com formação na aplicação de baterias neuropsicológicas. Os neurologistas que são médicos na especialidade de neurologia. Já agora, vale a pena talvez mencionar que a D. BB já havia sido submetida a uma bateria, também extensa, que penso que consta do processo, e cujos resultados são razoavelmente sobreponíveis aos resultados elaborados pela psicóloga, que aplicou as provas aqui à D. BB. Portanto, em dois momentos temporais diferentes os resultados são razoavelmente sobreponíveis. E não será um neurologista a realizar avaliações neuropsicológicas.

Drª NN - Então, eu perguntava-lhe se, perante este quadro, que é de há um ano atrás, é previsível, do ponto de vista clínico, dizer-se que esta senhora, com esta idade e com este quadro, desde há um ano que foi ouvida em tribunal, e há dez meses foi observada no Instituto de Medicina Legal, é previsível que este quadro estará na mesma situação?

Dr. Máximo - Se me é permitido, a requerida não apresenta nenhum quadro e, portanto, em bom rigor clínico, não é preciso fazer um prognóstico de uma situação clínica que não foi diagnosticada. Podem acontecer a uma pessoa de 87 anos muitas coisas num ano. Raro é estar vivo. Não há um quadro clínico às datas da nossa observação e não é possível fazer uma previsão de coisa nenhuma.

Dr. OO - Considero que os Srs. Peritos prestaram os suficientes esclarecimentos ao tribunal. Todavia, há apenas uma questão que eu gostaria de saber, ao que julgo entender os neurologistas ocupam-se de situações patológicas, o relatório neuropsicológico não configura uma situação patológica, é isso?

Drª JJ - Não é bem isso, a neurologia é uma especialidade médica que trata doenças do sistema nervoso do corpo humano, a avaliação neuropsicológica é uma avaliação psicométrica, de aplicação de baterias standardizadas, que permitem avaliar funções nervosas superiores, funções cognitivas, de memória, atenção, orientação, funções executivas. São coisas diferentes. O neurologista trata de doenças do sistema nervoso. A avaliação neuropsicológica serve para apreciar a qualidade e a forma das funções neurocógnitivas, para medir.

Dada a palavra ao Exmo Senhor Procurador da República foi dito nada ter a solicitar aos peritos presentes.

*

Findos os esclarecimentos dos Srs. Peritos, foi pedida a palavra pela ilustre mandatária da Requerente, Dra. NN, tendo dito que:

- Os presentes autos têm natureza urgente. Foram instaurados a 19-01-2022. A beneficiária foi ouvida há mais de um ano, neste Tribunal, e examinada há dez meses, em presença, no Instituto de Medicina Legal.

Os interesses em presença nos presentes autos são de índole não exclusivamente patrimonial, mas visam também o bem-estar emocional da beneficiária.

A requerente é filha da beneficiária, está impedida de visitar a sua mãe, há mais de dois anos a esta parte, por alegar a instituição, na qual reside, que esta não quer ser visitada pela beneficiária.

Saber se beneficiária tem, ou não, as funções cognitivas necessárias para reger a sua vida patrimonial e pessoal, tem reflexo na sua vida, também pessoal.

Como depôs uma testemunha, no processo de inquérito nº 2354/22...., amiga da beneficiária, processo de inquérito esse que foi arquivado, mas está em prazo para se requerer a abertura da instrução ou apresentar reclamação hierárquica, disse QQ, "foram todos impedidos de falar com a vítima, estão todos impedidos de visitar a vítima no lar". Disse mais a testemunha, "a vítima está infeliz", declara a vítima à testemunha que lhe liga fora das horas e da vigilância das pessoas que lhe estão próximas, que passa o dia sem falar com ninguém e que está a ser controlada, manipulada e aprisionada, disse a testemunha e não a visada.

Posto isto, entende a requerente, filha da beneficiária, que o tribunal deve atender, à urgência do desfecho dos presentes autos, para tutela judicial dos interesses em causa e que deve, por mera cautela, e porque a ciência assim o impõe, que seja a beneficiária examinada por neurologista ou um neuropsicólogo, como disse, e acabou por concluir, a Srª Perita legal, Drª JJ. Renova-se por isso mesmo, que a avaliação seja repetida por especialista, como foi indicado pela requerente.

*

Dada a palavra ao ilustre mandatário da Beneficiária, Dr. OO, foi dito que:

- O parecer da requerida é que o requerimento em apreço deve ser indeferido por perfeitamente desnecessário.

Desde logo, tendo em conta os esclarecimentos claros e inequívocos que aqui foram prestados pelos Srs. Peritos, pessoas cuja sua independência, relativamente aos interesses em presença, não está aqui colocado em causa.

Relativamente às questões que a requerente coloca, relativamente ao seu acesso à requerida, a requerente devia ter tido o pudor nestes autos de não invocar situações que ali estão invocadas e não foi por ela. Dado que é obrigada a fazê-lo, e apenas porque o é obrigada a fazê-lo, apenas tem a dizer que, os autos em apreço foram intentados, na medida em que correm, no Brasil, processos crime contra a requerente, intentados pela requerida, por furto qualificado, de bens no valor de alguns milhões de euros e, que inclusivamente, nas semanas anteriores a esta, deram origem a apreensões judiciais feitas à requerente.

Por aqui nos ficamos para não irmos mais longe, Mmª. E, se o presente processo está a demorar, não é certamente por culpa da requerente.

Relativamente à fiabilidade dos dados que foram aqui comentados pelos Srs. Peritos, penso que estamos todos esclarecidos. Eles são fiáveis, ainda hoje. Pelo que urge, no entender da requerida, que este Tribunal decida esta causa.

Admite a requerida, que seja qual for a decisão, e designadamente se a decisão for a de julgar improcedente, como nos parece ser o caso, esta causa, este processo vai conhecer inúmeros recursos, como aliás, tem sucedido ultimamente, num conjunto de processos que a requerente aqui tem intentado contra a requerida e, que têm todos tido a mesma decisão, ou decisões parecidas e, sempre no mesmo sentido.

Pede, a requerente, que este Tribunal, faça aquilo que neste momento pode fazer, que é decidir esta causa.

Dada a palavra ao Exmo Sr. Procurador da República, Dr. PP, foi dito que:

- Como bem referiu a ilustre mandatária da requerente, os presentes autos têm natureza urgente.

A posição do Ministério Público, da análise que eu pude fazer do processo e também da audição dos Srs. Peritos, é que, no meu entender, este processo já tem os elementos clínicos e os relatórios periciais necessários e suficientes para que seja proferida uma decisão.

Além do mais, relativamente ao requerente da ilustre mandatária da requerente, salvo o devido respeito por opinião contrária, aquilo que me parece, é que a Dra. JJ explicou de uma forma muito clara e precisa, que não haverá necessidade de a beneficiária ser examinada por um neurologista. Remeto-me, nesse circunstancialismo, para os esclarecimentos que a Sr. Perita médica prestou, como já referi, me pareceram bastante claros e precisos.

Por tudo isso, e em face do exposto, e por tudo o que acabo de referir, eu entendo que V. Exª deve indeferir o ora requerido pela requerente.

(Gravação contínua das 10:12 às 10:54)”

Avaliando.

A Lei n.º 49/2018, de 14/8, criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação, previstos no Código Civil – será o diploma a citar sem menção de origem.

O art.º 138.º, nº 1 preceitua que “O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.”.

Por seu turno, o nº 1, do art.º 140.º, esclarece que “O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença.”.

Estabelece o Artigo 141.º:

[...] 1 - O acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público.

2 - O tribunal pode suprir a autorização do beneficiário quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível.

3 - O pedido de suprimento da autorização do beneficiário pode ser cumulado com o pedido de acompanhamento.

Semelhantemente, no âmbito da regulamentação do processo de acompanhamento de maior, preceitua no seu art.º 892º:

“1 - No requerimento inicial, deve o requerente, além do mais:

a) Alegar os factos que fundamentam a sua legitimidade e que justificam a proteção do maior através de acompanhamento;

b) Requerer a medida ou medidas de acompanhamento que considere adequadas;

c) Indicar quem deve ser o acompanhante e, se for caso disso, a composição do conselho de família;

d) Indicar a publicidade a dar à decisão final;

e) Juntar elementos que indiciem a situação clínica alegada.

2 - Nos casos em que for cumulado pedido de suprimento da autorização do beneficiário, deve o requerente alegar os factos que o fundamentam.”.

E nesse processo, em que, com as necessárias adaptações, se aplica o disposto nos processos de jurisdição voluntária - o processo especial de acompanhamento de maiores aplicam-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária, nomeadamente o critério de decisão, pelo que nas providências a tomar o tribunal deve adoptar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna -, designadamente, no que respeita aos poderes do juiz - n.º 1 do artigo 891.º do CPC -, que pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes - cfr. n.º 2 do artigo 986.º de tal diploma -, importa, ainda, salientar o seguinte:

- Para além da resposta do beneficiário, que se prevê no artº896. nº 1, do CPC, e que pode já indicar a posição deste face à instauração do processo e à da factualidade alegada no Requerimento inicial, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e directa do Beneficiário - artºs 897.º, nº 2, e 898, nº 1 do CPC;

O juiz ordena as diligências que considere convenientes – art.º 897.º, nº 1 -, podendo determinar que o perito ou os peritos elaborem um relatório que precise, sempre que possível, entre o mais, a afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, bem como, em caso de dúvida, autorizar o exame numa clínica da especialidade – art.º 899º, nºs 1 e 2;

Ou seja, dada a sua natureza de processo de jurisdição, o juiz só tem que admitir as provas que considere necessárias para proferir a decisão; logo, pode rejeitar diligências de prova, designadamente a inquirição de testemunhas oferecidas pelas partes, novo relatório pericial, se considerar que tais diligências não aportariam aos autos qualquer contributo útil para apreciar e decidir da questão essencial - é-lhe conferida a prerrogativa de apenas admitir as provas que considere necessárias para a boa decisão da causa/ neste preciso sentido, por ex. o Acórdão da Relação de Lisboa de 26.9.2019, pesquisável em www,dgsi.pt.

Nas palavras do Acórdão da Relação do Porto de 8.2.2024, pesquisável em www.dgsi.pt, “O tribunal aprecia as provas necessárias e suficientes para decidir a questão prévia do suprimento da autorização do requerido para a propositura da ação; para o fazer não tem de realizar todas as diligências probatórias pedidas pelo requerente. Se pela audição pessoal e direta do requerido for evidente que este está no uso de faculdades plenas, ou, pelo menos, mais do que suficientes para poder livre e conscientemente dar autorização, simplesmente não a quer dar, não vislumbrando o tribunal a existência de um fundamento atendível para o suprimento (por exemplo, grave risco para a vida ou saúde do visado, na falta de acompanhamento), a autorização requerido não deve ser suprida”.

Rezando o nº 2, ainda do artº 899º que “ Permanecendo dúvidas, o juiz pode autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento nunca superior a um mês e sob responsabilidade do director respectivo, ou ordenar quaisquer outras diligências “, e , atendendo ao carácter urgente do processo, tudo aponta para que tenha o legislador querido introduzir no processo de acompanhamento de maior uma clara simplificação de procedimentos, reduzindo-os inclusive, sendo a regra a realização no mesmo de apenas um exame pericial e ainda assim por determinação do juiz .

O suprimento da autorização deve ser concedido – mas só deve ser concedido - quando o beneficiário não o possa dar livre e conscientemente ou quando o tribunal considere que existe fundamento atendível para o conceder. Ao tribunal cabe, pois, controlar se se justifica suprir a falta de autorização do beneficiário.

Tal suprimento da autorização do eventual beneficiário deve, evidentemente, ser cuidadosamente ponderado pelo tribunal, dado que não é justificável partir do princípio nem de que a falta de autorização pelo eventual beneficiário não é justificada, nem de que este beneficiário não está sequer em condições de conceder a autorização - Miguel Teixeira de Sousa, O regime de acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais», AA.VV., O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, Centro de Estudos Judiciários – Coleção Formação Contínua, 2019, pág. 47.

O tribunal deve recusar o suprimento se, em face das provas produzidas, se dever concluir, sem hesitação, que o beneficiário dispõe da capacidade para conceder a autorização ao requerente - A situação factual relevante para decidir se o tribunal deve suprir a autorização do Requerido é a situação existente na data dessa decisão.

Nas palavras do Acórdão da Relação do Porto de 6.9.2021, pesquisável em www.dgsi.pt , “no processo de acompanhamento de maior, dada a natureza dos poderes atribuídos ao juiz em sede de instrução, nos termos do art.891º/1 e art.897º CPC, a realização de segunda perícia, ao abrigo do art. 487º CPC, ou a realização de outra perícia permanecendo dúvidas, nos termos do art. 899º/2 CPC, fica sempre dependente do juízo de conveniência por parte do juiz”.

Apenas a audição do requerido é obrigatória. O legislador pretende que o beneficiário seja sempre ouvido pelo juiz, no sentido de verificar a situação real e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas. Conforme se escreve no Acórdão da Relação de Coimbra de 19.05.2020 - Proc. nº 312/19.0T8CNT-A.C1, in www.dgsi.pt:

“1. As palavras da lei são às vezes tão explícitas e categóricas que não podem exprimir mais do que um pensamento - sem prejuízo do eventual contributo de outros elementos interpretativos (v. g., o racional-teleológico e o histórico-evolutivo), em tais situações, o significado linguístico absolutamente nítido e preciso do texto da lei apenas consente uma única interpretação.

2. A interpretação literal/elemento linguístico ou gramatical do art.º 897º, n.º 2 do CPC (poderes instrutórios no processo especial de acompanhamento de maiores) mostra que o legislador pretende que o beneficiário seja sempre ouvido pelo juiz, no sentido de verificar a situação real e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas (art.º 898º, n.º 1 do CPC), o que apenas pode ser feito na sua presença - o juiz procede à audição “pessoal e directa” e fá-lo “sempre”, “em qualquer caso”.

Consequentemente, tendo presente os poderes instrutórios que o art.º 897º, nº1, lhe confere, a natureza urgente dos presentes autos e o disposto no nº2, do art.º 986º, -  só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias -, tudo visto e ponderado, é nossa convicção que a decisão ora apelada não é merecedora de censura, máxime não se mostra que tenha o mesmo sido proferido no uso de poderes discricionários ou de arbítrio, logo, infundadamente, bem pelo contrário.

Assim, não se justifica o suprimento do consentimento do beneficiário, ao abrigo do art.º 141º do Código Civil, quando os factos provados e concretas circunstâncias não revelam que o beneficiário se encontre impedido de livre e conscientemente dar o consentimento para a acção e os argumentos apresentados não constituírem um fundamento atendível, por não terem sustentação nos factos provados – não esquecer, que em função do principio da subsidiariedade decorrente do disposto no art.º 140º do Código Civil, só se pode recorrer ao regime do maior acompanhado quando se deva concluir na situação concreta que as limitações de que padece o maior não podem ser colmatadas através dos deveres de cooperação e assistência aplicáveis ao caso.

Por isso, teremos de concluir como a 1.ª instância, quando escreve:

“Do suprimento da autorização da Beneficiária, considerando que a presente acção foi instaurada pela sua filha

(…)

O regime do maior acompanhado foi introduzido pela Lei nº 49/2018, de 14 de agosto, em substituição do anterior regime dualista da interdição e da inabilitação, alterando, além do mais, as disposições legais dos art.ºs 131º e 138º e seg.s do Código Civil e os art.ºs 891º e seg.s do Código de Processo Civil.

O foco deixou de ser a salvaguarda do tráfego e segurança jurídicas e do património familiar da pessoa então considerada incapaz, face às limitações desta, para passar a ser fundamentalmente a própria pessoa e o respeito devido enquanto ser humano, sujeito de direitos e obrigações, com dignidade própria e direito à liberdade e autodeterminação.

São destinatários de acompanhamento os maiores impossibilitados, “por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres” (art.º 138º do Código Civil).

(…)

Pese embora alguns lapsos factuais no decurso da audição pessoal e directa da Requerida (quanto à localização temporal e à moeda em circulação em Portugal, explicáveis pelo nervosismo e ansiedade manifestados durante a audição e, em relação à moeda, pela circunstância de, tendo vivido no Brasil, onde ainda possui património, contactar frequentemente com a moeda em circulação nesse país), certo é que da mesma resultou que a Requerida tem um discurso coerente e enquadrado no contexto em que se encontrava, o que foi confirmado pela perícia médico-legal e a avaliação neuropsicológica e de psicologia forense. Reconheceu o dinheiro e o seu valor, mostrando-se capaz de governar a sua pessoa e bens, socorrendo-se, por escolha sua, de apoio de terceiros da sua confiança, no que concerne a negócios de vida mais complexos.

E acima de tudo, e para o que ora interessa, contrariamente ao alegado pela Requerente, a Requerida revelou reunir as necessárias condições físicas e mentais para dar livre e conscientemente autorização para a instauração da presente acção. Tampouco se considera existir fundamento atendível para conceder o suprimento da autorização (art.º 141.º, n.º 2, do Código Civil).

Tal como no caso sobre o qual se debruçou no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-6-2022, como decorre da perícia médico-legal e a da avaliação neuropsicológica, a Requerida experimenta um inevitável declínio fisiológico, associado ao normal processo de envelhecimento. Simplesmente, esse declínio, designadamente cognitivo, não a priva da capacidade para, de modo autodeterminado, decidir sobre a concessão ou não da autorização que deve pedir-se à Requerente – Proc. n.º 289/21.1T8CVL.C1, publicado em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/c0a1be4520f5a62c8025888c00541d0d?OpenDocument.

A legitimidade da Requerente, filha da Requerida, para a presente ação pressupõe o consentimento da visada ou o seu suprimento; sem estes, a Requerente não pode despoletar o processo especial de acompanhamento previsto nos art.ºs 891º e seg.s do Código de Processo Civil.

Conforme se refere no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-6-2022, supra citado, o tribunal deve recusar o suprimento se, em face das provas produzidas, se dever concluir, sem hesitação, que o beneficiário dispõe da capacidade para conceder a autorização ao requerente e que não existe motivo ponderoso para aquele suprimento – Proc. n.º 289/21.1T8CVL.C1, publicado em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/c0a1be4520f5a62c8025888c00541d0d?OpenDocument.

Constituindo a autorização do acompanhando um dos requisitos da legitimidade da Requerente (artigo 141º nº 1 do Código Civil), a sua falta leva à ilegitimidade da parte, configurando a exceção dilatória a que alude o artigo 577º, alínea e) do C.P.C., a qual obsta ao conhecimento do mérito da causa, (artigo 576.º, n.º 2 do C.P.C.) impossibilitando o prosseguimento da ação.

Não se mostrando suprida a ilegitimidade da Requerente, impõe-se a extinção dos autos ao abrigo do disposto no artigo 277.º, e) do C.P.C”.

Razões pelas quais, neste enquadramento fáctico e jurídico, se terá agora que manter intacta, na ordem jurídica, a decisão proferida pelo Juízo Local Cível de Coimbra - Juiz 3, em consequência do que se tem, também, que julgar improcedente o presente recurso de apelação.

As conclusões (sumário):

(…).


3.Decisão
Assim, na improcedência do recurso, mantemos a decisão proferida pelo Juízo Local Cível de Coimbra - Juiz 3.
As custas do recurso ficam a cargo da Apelante.
Coimbra, 23 de Abril de 2024

(José Avelino Gonçalves - Relator)
(Catarina Gonçalves - 1.ª adjunta)
(Paulo Correia – 2.º adjunto)