Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
875/22.2T9CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: CRIME DE TRÁFICO DE SUBSTÂNCIAS E MÉTODOS PROIBIDOS
IMPUGNAÇÃO AMPLA DA MATÉRIA DE FACTO
TRANSCRIÇÕES DAS ESCUTAS TELEFÓNICAS
DECLARAÇÕES DOS ARGUIDOS EM INQUÉRITO
PROVA INDICIÁRIA
IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 05/14/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO – JUIZ 1 - TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 57.º, N.º 1, DA LEI N.º 81/2021, DE 30/11; PORTARIA N.º 312/2021, DE 21/12; ARTIGOS 124º, 125º, 126º, 357º, 410º E 412º, TODOS DO CPP.
Sumário: 1. As transcrições das escutas telefónicas não constituem declarações dos arguidos prestadas em inquérito, sujeitas ao disposto no artigo 357º do CPP – norma específica dirigida às declarações prestadas pelos arguidos -, mas sim prova documental, que vale em audiência de julgamento, mesmo que aí não se tenha procedido à sua leitura.

2. Atentas as naturais dificuldades de reconstituição do facto delituoso, há que recorrer, por vezes, à prova indirecta para basear a convicção da entidade decidente sobre a existência ou não da situação de facto.

3. Ao ser valorada a prova indiciária não se está a violar o princípio da presunção da inocência, uma vez que aquela valoração tem de ser objectivável, motivável e não arbitrária, baseada numa pluralidade de indícios.

4. O princípio «in dubio pro reo» só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO
           
           1. A CONDENAÇÃO RECORRIDA

No processo comum singular nº 875/22.2T9CTB do Juízo Local Criminal da Comarca de Castelo Branco (Juiz 1), por sentença datada de 19 de Dezembro de 2024, foi decidido:  
· Condenar o arguido AA pela prática, em abril de 2022, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, p. p. pelo art. 57.º, n.º 1 da Lei n.º 81/2021, de 30 de novembro, e S.1 da Lista de Substâncias e Métodos Proibidos, em anexo à Portaria n.º 312/2021, de 21 de dezembro, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
· Condenar o arguido BB pela prática, em abril de 2022, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, p. p. pelo art. 57.º, n.º 1 da Lei n.º 81/2021, de 30 de novembro, e S.1 da Lista de Substâncias e Métodos Proibidos, em anexo à Portaria n.º 312/2021, de 21 de dezembro, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
· Condenar a arguida CC pela prática, em abril de 2022, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, p. p. pelo art. 57.º, n.º 1 da Lei n.º 81/2021, de 30 de novembro, e S.1 da Lista de Substâncias e Métodos Proibidos, em anexo à Portaria n.º 312/2021, de 21 de dezembro, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
· Substituir a pena de 2 (dois) anos de prisão aplicada à arguida CC pela pena de suspensão da execução da pena de prisão, pelo mesmo período de tempo, com regime de prova, assente em plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP, o qual deverá promover o acompanhamento da arguida, demonstrando-lhe que deve agir de acordo com o direito e as suas normas, consciencializando o desvalor da sua conduta, e deve estruturar a sua vida, afastando-se de comportamentos de risco e mantendo inserção profissional regular;
· Condenar os arguidos AA, BB e CC no pagamento das custas do processo penal, bem como dos encargos a que deu causa, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC, nos termos dos arts. 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais;
· Declarar perdidos a favor do Estado os comprimidos de esteróides androgénicos anabolizantes apreendidos à ordem dos presentes autos e determina a sua destruição, nos termos do art. 109.º, n.ºs 1 e 4 do Código Penal.

            2. OS RECURSOS

2.1. RECURSO Nº 1
Inconformado, o arguido AA recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«1. O arguido AA, de ora em diante identificado como Recorrente, não se conforma com a Sentença (referência 38048958) proferida nos autos acima indicados a 19/12/2024, e no qual o Recorrente foi condenado, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, com os restantes co-arguidos BB e CC, de:
2. Um crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, p. e p. pelo artigo 57º nº 1 da Lei nº 81/2021, de 30-11, e S.1 da Lista de Substâncias e Métodos Proibidos, em anexo à portaria nº 312/2021 de 21-12, na pena de 3 (três) anos e 6 (meses) de prisão, e,
3. mais foi ainda o recorrente condenado no pagamento das custas do processo penal, com taxa de justiça que se fixou em 2 UC, nos termo dos artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal e Tabela III do Regulamento da Custas Processuais.
4. É pois desta condenação, no seu todo, que o arguido vem interpor recurso, para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, pelos seguintes motivos:
5. Não existe prova suficiente, produzida nos autos, documentalmente, nem testemunhal, na audiência de julgamento, que demonstre que o Recorrido tenha tenha praticado os crimes em que foi condenado.
6. O Recorrente, vem pois recorrer da Douta Sentença, quanto aos seus fundamentos, em que foi condenado, quanto ao âmbito da matéria de Facto, recurso amplo, devendo pois o Tribunal da Relação proceder à visualização da documentação infra indicada e a audição do depoimento das testemunhas também infra indicadas.
7. O tribunal recorrido não tinha prova suficiente para dar como provado para se chegar à solução de direito a que se chegou, assim, não ficou provado que:
8. Facto 2) dos Factos provados da Sentença recorrida: “Os arguidos AA, BB e CC elaboraram conjuntamente um plano para introduzir substâncias anabolizantes no interior do EP ... e ali as vender, trocar ou ceder a terceiros”.
9. Facto 4) dos Factos provados da Sentença recorrida: “No dia 3 de abril de 2022, pelas 18h36, o arguido BB deslocou-se até à Rua ..., ..., na proximidade do Estabelecimento Prisional ..., e arremessou para o seu interior um embrulho composto por meias de cor preta contendo no seu interior: a) 199 comprimidos de metandienona, de marca Naposim (esteróides androgénicos anabolizantes) e b) 202 comprimidos de oxandrolona, de marca Oxaver(esteróides androgénicos anabolizantes)”.
10. Facto 5) dos Factos provados da Sentença recorrida: “Devido à imperícia do arguido BB, o embrulho referido em 4., após arremessado, caiu no telhado do Pavilhão C do Estabelecimento Prisional, onde ficou, não caindo para o solo no interior do espaço do mesmo, onde AA o iria recolher”.
11.Facto 7) dos Factos provados da Sentença recorrida: “Os arguidos conheciam a natureza das substâncias em causa e sabiam que não tinham licença para as adquirir, deter, ceder, trocar, vender, ministrar ou comercializar, mas fizeram-no e pretendiam continuar a fazê-lo, através da introdução no Estabelecimento Prisional e cedência a quem os procurasse nesse   sentido, com o propósito de obterem vantagens económicas em benefício próprio.”.

12. Facto 8) dos Factos provados da Sentença recorrida: “Os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, e tinham a liberdade necessária para se determinarem de acordo com a mesma avaliação.”
13. A prova documental e testemunhal que existe não é suficiente para que o Tribunal “A Quo” tivesse condenado o Recorrente, por não se ter feito prova dos Factos provados 2), 4), 5), 7) e 8) da Sentença recorrida devia o Tribunal recorrido ter absolvido o Recorrente, que é o que se vem peticionar ao Tribunal da Relação de Coimbra.
14. O Recorrente e os restantes co-arguidos, negaram a prática dos factos, neste sentido conferir página 1, último parágrafo da Sentença recorrida.
15. Sendo certo também que o Recorrente e os restantes co-arguidos recusaram prestar declarações sobre os factos que lhes eram imputados e sobre as suas condições pessoais neste sentido confira-se página 7, quarto parágrafo da Sentença recorrida.
16. Quanto à concreta prova, que o Tribunal “A Quo” fundamentou a sua condenação, foi com base no depoimento testemunhal e documental, ora observando com rigor as ditas provas, não se pode extrair objetivamente a convicção formulada pelo Tribunal recorrido, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal,
17. Quanto à prova documental, que foi valorada positivamente pelo Tribunal recorrido, e constante na página 6 (último parágrafo) e seguintes da Sentença recorrida, foram: O Auto de notícia a fls. 5; Auto de Visionamento a fls. 16-17; Auto de Busca e Apreensão de fls 18-19; Relatório a fls 26; Teste Rápido a fls 27; Cota a fls 30; Informação da ADOP a fls 78; Relatório Pericial a fls 100-101; As transcrições de interceções telefónicas a fls 260-265, 296-303 e 335-399.
18. Qualquer destes documentos supra, conjugados ou não com a prova testemunhal, não provam tais Factos Provados 2) 4), 5), 7), 8) da Sentença recorrida e acima mencionados, estes documentos não ligam diretamente o Recorrente e até os restantes co-arguidos, e esses factos, e até alguns desses documentos levantam dúvidas, não existe pois qualquer nexo, nos factos descritos nesses documentos que permitam estabelecer qualquer ligação dos factos em apreço com o Recorrente (e restantes co-arguidos), com efeito, quanto ao,
19. Auto de Notícia a fls. 5, documento elaborado, no Estabelecimento Prisional ..., datado de 5/4/2022, faz menção que no dia 5/4/2022, pelas 13:45 horas, no qual o Guarda Prisional DD, detetou através do sistema CCTV, um embrulho suspeito no telhado do pavilhão C, onde estão alocados reclusos vulneráveis, o qual acompanhado por EE, Guarda Prisional e também testemunha, apreenderam o embrulho e faz-se a descrição do seu conteúdo,
20. Ora tal documento não faz menção nem do Recorrente nem do co-arguido BB, e muito menos que tenha sido o arguido BB a efetuar o arremesso do dito embrulho, nem faz prova que o embrulho tenha sido arremessado no dia 3/4/2022, pelas 18:36 horas, para o interior do EP .... E nem que aquele embrulho era dirigido para o Recorrente…
21. conjugando este documento com o depoimento da testemunha DD, o mesmo não sabe quem o arremessou o embrulho, nem quando foi arremessado o dito embrulho, que apenas foi recolher aquele embrulho detetado no dia 5/4/2022, mais fez menção que “estão sempre a cair coisas que não deviam estar”, mais afirmou que o embrulho caiu naquele dia, pois quando entra ao serviço costuma visualizar com as câmaras aquele local,
22. mais também afirmou esta testemunha que o Recorrente não tinha acesso ao Pavilhão C do Estabelecimento Prisional ..., sendo certo, que no auto de visionamento, o aludido pavilhão, encontra-se isolado do restante recinto do Estabelecimento Prisional em causa, por uma rede encimada com arame farpado….
23. Por sua vez a testemunha EE, também Guarda Prisional, apenas acompanhou e ajudou a testemunha DD a retirar o embrulho do telhado, nem sabe o que havia dentro do embrulho, não sabe quem atirou o objecto, confirmou que de vez em quando atiram objetos para o telhado.
24. Neste sentido, quanto ao acima invocado quanto ao depoimento das testemunhas DD e EE, confira-se a transcrição dos seus depoimentos infra.
25. Por sua vez, o Auto de Visionamento a fls 16-17, que foi visionado pelo OPC e testemunha FF, no dia 19 de Maio de 2022. pelas 12:45 horas, onde é visionado que os Guardas Prisionais e testemunhas DD e EE, dentro do Estabelecimento Prisional ..., colocam uma escada, para aceder ao telhado do pavilhão C, de onde retiraram um embrulho, Fotograma nº 1, no Fotograma nº 2 vê-se a mesma imagem, mas ampliada, não se vê que quem atirou o embrulho em apreço que ficou preso no dito telhado, mas existe uma conclusão em sentido contrário, nesse visionamento que não é suportada pelo visionamento do arguido BB a arremessar tal embrulho.
26. Ou seja, tal documento não se visualiza o alegado arremesso do embrulho em apreço (3/4/2022) e a deteção do mesmo (5/4/2022), passaram cerca de 2 dias, pelo que não pode haver uma certeza absoluta que o embrulho foi arremessado no dia 3/4/2022 pelas 18:36 horas, para lá de qualquer dúvida razoável, tenha sido arremessado pelo co-arguido BB para dentro do EP ....
27. Quanto ao Auto de busca e apreensão a fls 18-19, tal documento diz respeito a uma diligência que foi efetuada à residência da co-arguida CC, realizada no dia 7/6/2022, pelas 20:10 até às 21:45, sita na Rua ..., ..., ... ..., sendo certo que o Recorrente se encontrava preso naquela data, pelo que não é possível associar tal documento e facto aí descrito ao Recorrente, nem aos factos que lhe são diretamente imputados.
28. No que diz respeito ao Relatório a fls. 26, tal documento elaborado, no Estabelecimento Prisional ..., datado de 6/4/2022, faz menção que no dia 5/4/2022, pelas 15:45 horas, que o Guarda Prisional e testemunha nos autos DD, detetou através do sistema CCTV, um embrulho suspeito no telhado do pavilhão C, onde estão alocados reclusos vulneráveis, o qual acompanhado pelo Guarda Prisional e também testemunha nos autos EE, e apreenderam o embrulho e faz-se a descrição do seu conteúdo.
29. Dá-se aqui por reproduzido os que as testemunhas DD e EE disseram no seu depoimento infra transcrito.
30. Este documento, sozinho ou conjugado com a prova testemunhal não faz prova que tenha sido o arguido BB a efetuar o arremesso do dito embrulho, nem faz prova que o embrulho tenha sido arremessado no dia 3/4/2022, pelas 18:36 horas, para o interior do EP ..., pelo que tal documento, em si ou conjugado com o depoimento testemunhal de todas as testemunhas não comprova os Factos 2), 4), 5), 7) e 8) da Sentença recorrida, pelo que também se impugna a motivação de facto da Sentença recorrida.
31. Quanto ao Teste Rápido a fls 27, este teste rápido diz respeito a um teste positivo a Cocaína/Crack, ora tal estupefaciente nada tem a haver com esteróides androgénicos anabolizantes, descritos no Facto provado 4), alíneas a) e b) da Sentença recorrida, nem na previsão da norma do crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, e contradiz a informação da ADOP, abaixo mencionada.
32. A Cota a fls. 30, apenas prova e bem o Facto não provado descrito na página 6, 1.2. Factos Não Provados da Sentença recorrida, pelo que tal documento, em si ou conjugado com o depoimento testemunhal de todas as testemunhas não comprova os Factos 2), 4), 5), 7) e 8) da Sentença recorrida, pelo que também se impugna a motivação de facto da Sentença recorrida.
33. A Informação da ADOP (Autoridade Antidopagem de Portugal), a fls 78, datado de 11/10/2022, e que deu entrada nos autos a 13/10/2022, nessa entidade comunica que: “Vem esta Autoridade informar que as substâncias apreendidas nos autos (Naposim e Oxaver) são esteróides anabolizantes, conforme a secção S1 Agentes anabolizantes da Lista de Substâncias e Métodos Proibidos em vigor proibidas em competição e fora da competição…”, ora, tal documento faz prova da existência dos esteróides androgénicos anabolizantes, mas não faz o nexo de ligação desses produtos ao Recorrente, nem ao co-arguido BB, pelo que também se impugna a motivação de facto da Sentença recorrida.
34. O O Relatório pericial a fls. 100-101, formulado pela Srª Perita, indicada pela ADOP, datado de 26/07/2023, e que deu entrada nos autos no dia 27/07/2023, identificando os 199 comprimidos como sendo “Naposim” tendo como substância química Metandienona, e, identificando o 202 comprimidos como sendo “Oxaver” tendo como substância química Oxandrolona, sendo pois tais substâncias proibidas de acordo com a legislação em vigor, ora,
35. tal documento faz prova da existência dos esteróides androgénicos anabolizantes, mas não faz o nexo de ligação desses produtos ao Recorrente, nem ao co-arguido BB, pelo que também se impugna a motivação de facto da Sentença recorrida.
36. Quanto à transcrição da interceções telefónicas a fls 260-265, 296-303, e, 335-339, entende o Recorrido, que o Tribunal “A Quo” cometeu vários erros, quanto à valoração das escutas telefónicas transcritas,
37. Se dirá que o primeiro erro, é que tais transcrições das escutas telefónicas, deviam estar descritas ou ao menos mencionadas na própria acusação pública, com a referência 37058930, nos seus artigos 1º a 8º da dita acusação, e não vêm nem mencionadas e muito menos transcritas na acusação pública, apenas referenciadas em sede de prova na acusação pública, assim,
38. entende o Recorrente que as transcrições para valerem como prova em sede de julgamento, têm que constar no articulado da acusação pública, indicando na acusação pública as concretas transcrições que fundamentam os factos alegados na acusação,
39. o Tribunal recorrido cometeu uma violação ao princípio da vinculação temática, o Juiz recorrido, encontra-se vinculado ao conteúdo da acusação pública, e só dentro da acusação tem o poder jurisdicional para atuar, não podendo pois condenar o Recorrente por factos distintos que não constam da acusação, nesse sentido confira-se artigo 339º nº 4 do CPP, sendo certo que o objeto da causa (factos) pode alargar-se, mas tal não foi invocado nem pela acusação (Ministério Público) nem pela defesa (Mandatários),
40. Indicar como meio de prova, nos termos do artigo 188º nº 9 alínea a) do CPP, é indicar as concretas transcrições que sustentam a os factos alegados na acusação pública, e, não apenas remeter para sede de prova, pelo que, não se encontram reunidos os requisitos legais, para este meio de obtenção da prova se converter em prova, ficando assim prejudicados os factos provados 2), 4), 5), 7) e 8) da Sentença recorrida,
41. Por sua vez a própria transcrição das interseções telefónicas não fazem prova que o Recorrente e o co-arguido BB tenham tido na sua posse os esteróides androgénicos anabolizantes descritos em Facto provado 4) alíneas a) e b) da Sentença recorrida…, apenas que ocorreu uma conversa…
42. A Sentença recorrida, na sua página 7, primeiro, segundo parágrafos, tem razão, mas não em relação ao terceiro parágrafo, pois, no caso em apreço, os elementos probatórios recolhidos, de carácter documental, testemunhal, não encaixam entre si, como as peças de um puzzle, como pretende e invoca a Sentença recorrida.
43. A interceção de conversas telefónicas são meios de obtenção da prova, a transcrição de dessas conversas, apenas provam que houve essas conversas, mas não provam os factos que essas conversas tiveram, nomeadamente o facto de o co-arguido BB no dia 3/4/2022, pelas 18:36 horas, estivesse na Rua ..., ..., na Proximidade do EP ..., ficando prejudicados os factos 2), 4), 5), 7) e 8).
44. Pela analise conjunta ou isolada das provas documentais, que criticamente supra se expôs, e a prova testemunhal que infra se também descreverá, chegamos a uma conclusão, que o Recorrente e os restantes arguidos foram apenas condenados pelas Gravações transcritas, e tal é inadmissível legalmente, e da jurisprudência.

45. Neste sentido, confira-se Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07/10/2008, processo nº 6406/2008-5, Relator Ana Sebastião, disponível em www.dgsi.pt , que se transcreve parcialmente o seu sumário: “1 A intercepção e gravação de conversas telefónicas não constituem, no sentido técnico, meios de prova, através exclusivamente do conteúdo de uma conversação interceptada, e sem a concorrência dos adequados meios de prova sobre os factos, não se poderá considerar directamente provado um determinado facto, que não seja a mera existência e o conteúdo da própria conversação…
46.   Mais ainda confira-se também Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 06/10/2020, processo nº 90/16.4JASTB.E1, Relator Gomes de Sousa, disponível e www.dgsi.pt, que se transcreve o seu sumário:“1 Ser escutado a falar sobre estupefacientes, a referir a sua qualidade e falar na sua aquisição não são actividades ilícitas. A concretização desses diálogos é que é uma actividade ilícita. E essa concretização não pode ser dispensada. 2 Estas actividades são relevantes porque indiciária e demonstrativas de um eventual ambiente envolvente, mas têm como requisito essencial a prova de – ao menos – posse de material ilícito ou actividade outra confirmada por outra forma que revele ou demonstre a posse  /ou tráfico de substâncias ilícitas. 3. O que não se pode fazer é presumir a posse e tráfico a partir de escutas telefónicas. 4. Isto porquanto as escutas telefónicas não são um meio de prova, são um meio de obtenção de prova. São uma forma de obter prova, não são prova de tráfico.” (Sublinhados do Recorrente)
47. Também confira-se Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 23/06/2020, processo nº 635/17.2T9LRS.L1-5, Relator Cid Geraldo, disponível em www.dgsi.pt, que se transcreve o seu sumário: -Diferentemente do que se passa no processo civil, em que basta a existência de uma «probabilidade prevalecente», em processo penal deve adoptar-se um padrão mais exigente, nomeadamente de origem anglo-saxónica, da «prova para além de qualquer dúvida razoável». - O standard de prova exigido em processo penal é muito mais elevado do que o utilizado no processo civil. - Se a versão dos factos narrada na acusação não encontra suporte nas provas que foram produzidas em audiência e por mais “circunstanciados” e “sem hesitações” que tenham sido os depoimentos prestados, não permitem formular, dada a notoriedade da existência de erro na apreciação da prova, a conclusão que foi alcançada pelo tribunal recorrido, com base numa mais que diminuta exigência quanto ao standard de prova necessário para uma condenação penal, quanto à ocorrência dos factos e à sua autoria pela arguida, impõe-se dar como “não provados” os factos impugnados.”
48. Pela prova testemunhal não se confirma que o Recorrente, tenha cometido o crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, p. e p. pelo artigo 57º nº 1 da Lei nº 81/2021, de 30 - 11 (Lei Antidopagem no desporto) e S.1 da Lista de Substâncias e Métodos Proibidos, em anexo à Portaria nº 312/2021, de 21 – 12, que determinou que o tribunal recorrido condenasse o Recorrente numa pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
49. Quanto à prova testemunhal, confira-se o depoimento da testemunha DD, realizado no dia 15/11/2024, o seu depoimento encontra-se gravado no Sistema Habilus Media Studio, através de sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal “A Quo””, cujo início ocorre (10:55:40), seu termo às (10:48:20), conforme Ata de  audiência de Julgamento com a referência 37900497, afirma o seguinte, do qual se transcreve o seguinte excerto:
50. “…Sr. Procurador da República: O Senhor sabe o que é que estamos aqui a tratar hoje? Testemunha: Presumo que seja por causa de comprimidos, telemóveis que estavam no telhado de um edifício do Estabelecimento Prisional…Senhor Procurador da República: O Senhor estava de guarda, a fazer a ronda, estava nas câmaras de vigilância, como é que aquilo se chama CCTV… Testemunha: CCTV aquilo foi detetado através das câmaras, ocasionalmente a gente faz busca ao espaço no Estabelecimento Prisional, tem várias câmaras… detetamos em cima do telhado uma coisa diferente, pronto, estava diferente Senhor Procurador da República: Mas eu não percebi, o Senhor estava nas câmaras Testemunha: Nas câmaras, nas câmaras. Senhor Procurador da República: E apercebeu-se de alguma coisa? Testemunha: Sim, no telhado. Senhor Procurador da República: Mas viram alguma coisa a cair no telhado, foi isso? Testemunha: Não, não, não vi cair, estava em cima do telhado, estava em cima do telhado, quando eu vi. ...Testemunha: Não câmaras …, numa câmara que a gente tem longo alcance, e a gente cima do telhado, aquele telhado sistematicamente estão sempre Senhor Procurador da República: Estão sempre a cair coisas? Testemunha: Sim. Senhor Procurador da República: Pois há, pois há, mas como o Senhor estava lá, tenho que lhe perguntar, então mas o Senhor viu quem é que atirou aquele, aquela meia com esses objetos? Testemunha: Não. Senhor Procurador da República: Não viu? Testemunha: Não. Senhor Procurador da República: O Senhor à pouco, estava a dizer que isto é vulgar a cair mais Testemunha: Ocasionalmente cai lá, são arremessados do exterior, para fazer chegar ao interior. Advogado do Recorrente: Sabe quanto tempo aquele embrulho estava em cima do telhado? Testemunha: Não podia ser muito tempo, porque ele foi detetado perto do meio dia, talvez meio dia menos um quarto, e foi naquela manhã. Advogado do Recorrente: Foi naquela manhã?» Testemunha: Sim Advogado do Recorrente: O que é que se costuma fazer de atividade no pavilhão C? Drª Juiz de Direito: O Senhor diz que terá sido naquela manhã, porque é que o Senhor diz isso? Testemunha: Porque quando eu entrei ao serviço não visualizei nada, e àquela hora, foi quando eu visualizei aquela, aquele suposto Drª Juiz de Direito: O Senhor viu nas câmaras? Testemunha: Vi Drª Juiz de Direito: O Senhor diz que o pavilhão C, era o pavilhão da escola? Testemunha: Sim, a escola, e ao lado da escola tem tinha à data reclusos alocados também… Drª Juiz de Direito: Que reclusos são esses? Testemunha: Penso que à data seriam reclusos que tinham algumas debilidades, como hei-de dizer, de doenças mais, houve uma altura em que aquele pavilhão tinha reclusos que era doenças, mais débeis. Drª Juiz de  Direito: Lembra-se que se o Senhor AA estava nessa ala? Testemunha: Não, não. Drª Juiz de Direito: Não estava ou não se lembra? Testemunha: Não estava, não estava
51. Da transcrição acima descrita, do depoimento desta testemunha DD, foi esta quem detetou o embrulho pelas câmaras de vigilância, foi ao telhado recorrer aquele embrulho, mesmo não sabe quem arremessou o embrulho, nem quando foi arremessado o dito embrulho, que apenas foi recolher aquele embrulho detetado no dia 5/4/2022, mais fez menção que “estão sempre a cair coisas que não deviam estar”, mais afirmou que o embrulho caiu naquele dia, pois quando entra ao serviço costuma visualizar com as câmaras aquele local, mais também afirmou que o Recorrente não tinha acesso ao Pavilhão C do Estabelecimento Prisional ..., sendo certo, que do Auto de Visionamento o mesmo pavilhão, encontra-se isolado do restante recinto do Estabelecimento Prisional em causa, por uma rede encimada com arame farpado….
52. Pelo que, pelo depoimento desta testemunha, terá que se dar como não provado, o facto provado 4) e 5) 7) e 8) da Sentença recorrida, quanto à data do arremesso daquele embrulho, bem como não de pode dar como provado que tenha sido o arguido BB a arremessar aquele embrulho, nem o Recorrido AA o poderia recolher, por não ter acesso àquela ala do Estabelecimento Prisional, pelo que também se impugna a motivação de facto da Sentença recorrida, pois existem dúvidas de quando, como e quem tenha praticado tal facto, devia, pois o Tribunal “A Quo” recorrer-se, nos casos de dúvida sobre os factos, do princípio do “In Dúbio Pro Reo”.
53. O depoimento da testemunha EE, realizado no dia 15/11/2024, o seu depoimento foi gravado no Sistema Habilus Media Studio, através de sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal “A Quo””, cujo início ocorre às (11:07:04), seu termo às (11:12:36), conforme Ata de Audiência de Julgamento com a referência 37900497, afirma o seguinte, e do qual se retira este excerto do seu depoimento:
54. “… Senhor Procurador da República: Em abril de 2022, o Senhor trabalhava no Estabelecimento Prisional ...? Testemunha: Sim. Senhor Procurador da República: O Senhor é Guarda Prisional, Chefe? Testemunha: Guarda Prisional. Senhor Procurador da República: O Senhor sabe o que é que estamos a tratar aqui hoje? Tem uma ideia? Testemunha: Penso que será de uma situação de arremessão de um objeto que estava em cima de um telhado. Senhor Procurador da República: Então o Senhor assistiu? Testemunha: A minha intervenção, nesse, nesse, nesse facto, nesse dia, foi, foi-me pedido, foi-me pedido que acompanhasse, foi-me ordenado que acompanhasse o Chefe DD, portanto, com equipamento para remover um objeto que estava, um objeto negro, que estava em cima do um telhado, no estabelecimento prisional, em cima, na lateral. Testemunha: Não fui eu que subi, foi-me ordenado que, que, portanto, fosse buscar uma escada, portanto, em colaboração com o Senhor Chefe DD, o mesmo subiu ao telhado, e com o auxílio de um outro utensílio, portanto, removeu-se, portanto, o embrulho que estava no telhado, não é. Senhor Procurador da República: O Senhor apercebeu-se quem é que tirou aquele objeto? Testemunha: Não Senhor Doutor. Senhor Procurador da República: Não sabe?Testemunha: Não faço ideia. Senhor Procurador da República: Mas é normal objeto em cima do telhado?Testemunha: De vez em quando, aquilo é ali contínuo ali à via pública Senhor Procurador da República: O que sabe, o que assistiu? Testemunha: Precisamente.”
55. A transcrição do depoimento desta testemunha EE, também Guarda Prisional, apenas acompanhou e ajudou a anterior testemunha DD a retirar o embrulho do telhado, nem sabe o que havia dentro do embrulho, não sabe quem atirou o objeto, confirmou que de vez em quando atiram objetos para o telhado.
56. Também com o depoimento desta testemunha, por si ou conjugada com a anterior testemunha, e com a prova documental, não faz prova dos Facto provados 4) e 5) da Sentença recorrida, daí o fundamento do pedido desta alteração ao Tribunal da Relação de Coimbra.
57. os restantes depoimentos das testemunhas , GG (Agente da PSP), FF (Agente da PSP), o seu conhecimento também é indireto, que retiram ilações, deduções e presunções, que não são prova da gravação das interceções telefónicas, com efeito,
58. Do depoimento da testemunha GG, realizado no dia 15/11/2024, o seu depoimento foi gravado no Sistema Habilus Media Studio, através de sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal “A Quo””, cujo início ocorre às (11:13:13), seu termo às (11:25:04), conforme Ata de Audiência de Julgamento com a referência 37900497, afirma o seguinte, que se retira um excerto:
59. “… Senhor Procurador da República: Qual foi a sua intervenção aqui neste processo?Testemunha: Portanto, este processo nasceu do 2/21.3, portanto, era responsável pelas diligências de investigação, e este, em certo e determinado aspeto, fui eu, em certa parte, eu e o meu colega FF, portanto, éramos os responsáveis pela
invetigação, portanto das diligências de investigação que foram efetuadas.…Senhor Procurador da República: Mas era possível concluir-se dos objetos que foram apreendidos em cima do telhado, a quem é que eles se destinavam? Testemunha: Sim, através, portanto, nós tínhamos escutas telefónicas. Senhor Procurador da República: Há, mas através das escutas? Testemunha: Sim. Senhor Procurador da República: Podia haver eventualmente, no meio daqueles objetos, estar uma menagem “Ó fulano tal” não quero dizer os nomes, não é, algum dos arguidos que estava preso, havia dois, “isto é para ti”, ou coisas assim do género. O Senhores chegaram por causa das escutas? Testemunha: Exatamente. Senhor Procurador da República: Pronto, olhe, em relação à, o Senhor viu as imagens que, onde se deteta o arremesso do objeto para o telhado? Ficaram registadas? Testemunha: Não, portanto não se conseguiu através das imagens de CCTV, não se conseguiu, portanto, apurar, quando é que foi jogado, portanto, a tal meias que trazia os tais itens. Senhor Procurador da República: Sim senhor. Testemunha: No entanto foi localizado, em cima do telhado, e foi através da análise que a gente efetuou através das escutas, que apurámos que tinha sido o BB a arremessar, portanto, o tal conteúdo, e quem estaria à espera, portanto, quem estava do outro lado da linha, era o AA, no momento em que aconteceram os factos. Senhor Procurador da República: chegaram à relação entre os produtos que estavam na casa da arguida CC e o arguido AA, eles foram companheiros até por isso, ou eram companheiros até aí, e têm filhos, e ou também por causa das escutas? Testemunha: Não, através também das escutas Advogado do AA: Diga-me uma coisa, entre a realização das escutas e a audição do Senhor agente, das ditas escuta, quantos dias passaram? Testemunha: Neste momento não lhe consigo precisar, mas posso-lhe dizer que nós íamos buscar, portanto as escutas, portanto, isto é em Lisboa e Advogado do AA: As escutas são realizadas em Lisboa? Testemunha: Exatamente, nós vamos recolher em tempo real não, em Lisboa temos tempo real para o efetuar, como não podemos estar todos os dias em Lisboa, geralmente marcamos ali uns 5 dias, 6 dias, vamos buscar, gravamos, trazemos, ouvimos e analisamos. Advogada do BB: Foi chamado ao Estabelecimento Prisional para fazer portanto esta busca à cela do Senhor AA, porque o Estabelecimento Prisional o chamou lá, ou foi no seguimento Testemunha: Não, isso foi no seguimento do processo 2/21...., foram solicitadas as buscas Advogada do BB: Sim, mas eu estou a falar aqui destes comprimidos, destes anabolizantes, o enhor foi à cdeia, não é? Advogada da CC: O Senhor agente fez uma ligação ou uma suposição, no sentido de dizer, se eu não estiver errada naquilo que percebi, que os comprimidos que foram encontrados no telhado do Estabelecimento Prisional, seriam saídos ou não Testemunha: São da mesma marca. Advogada da CC: Só? Testemunha: Só, não consigo apurar, portanto, se eram daquela embalagem, ou se saíram de outra embalagem, como é óbvio, não existe, julgo eu, não devem existir meios técnicos, portanto, científicos para fazer um apuramento a 100% relativamente a essa situação. Advogada da CC: É mesmo essa ligação? Era única e exclusivamente a mesma marca, é a única coisa que sabe? Testemunha: Sim. Drª Juiz de Direito: Eu penso que a pergunta da Senhora Doutora era se tinha sido através das escutas que tinham solicitado informações ao Estabelecimento Prisional, se tinha sido encontrado alguma coisa, ou se era ao contrário, ou seja, se foi depois de o embrulho ter sido encontrado, que foram procurar nas escutas, se havia aqui alguma peça do puzzle, que podia encaixar, se tem alguma ideia sobre isso?Testemunha: Eu acho que foi posterior às escutas, que a gente teve conhecimento, neste momento, não consigo precisar, ma julgo que foi posterior às escutas..”
60. Do depoimento desta testemunha GG, conclui-se que o mesmo nada viu, o que sabe, foi por intermédio das escutas, mais mencionou que entre as escutas e a audição das mesmas decorreram 6 dias, pois as mesmas são feitas em Lisboa, mais afirmou que não pode apurar se os comprimidos do embrulho saíram da mesma embalagem dos que estavam na residência da arguida CC, apenas eram mesma marca dos que foram encontrados na casa
61. Esta testemunha é uma testemunha indireta dos factos, por intermédio das escutas, faz conjeturas, por intermédio das gravações, que tenha sido o arguido BB a arremessar e que o Recorrente estaria dentro do Estabelecimento Prisional à espera de um embrulho, que a testemunha presume que era aquele embrulho que foi detetado.
62. Por sua vez, do depoimento da testemunha FF, realizado no dia 15/11/2024, o seu depoimento foi gravado no Sistema Habilus Media Studio, através de sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal “A Quo””, cujo início ocorre às (11:25:41), seu termo às 11 (11:30:48), conforme Ata de Audiência de Julgamento com a referência 37900497, afirma o seguinte, e do qual se transcreve o seguinte excerto:
63. “… Senhor Procurador da República: Sua participação nestes autos, foi enquanto Órgão de Polícia Criminal? Testemunha: Sim, exatamente. Senhor Procurador da República: E participou na recolha dos objetos, no Estabelecimento Prisional? Testemunha: Não Senhor Doutor, eu não fui que apreendi os objetos. Senhor Procurador da República: Portanto não participou nas buscas? Testemunha: Eu não sei se estive na busca, não me lembro, mas não fui eu, garantidamente não fui eu que apreendi. Senhor Procurador da República: Portanto, este processo nasceu de uma certidão de um outro processo de tráfico, não é ? Testemunha: Em que havia interceções, e daí, daí tive conhecimento da situação. Senhor Procurador da República: Os Senhores, foi através das buscas que depois se aperceberam que havia , havia o arremesso dos objetos para dentro do Estabelecimento Prisional, destinado a um dos arguidos? Testemunha: Não Senhor Doutor. Senhor Procurador da República: Ou foi ao contrário, foi depois da apreensão dos objetos que estavam no telhado, foram olhar para as buscas, e juntaram um mais um, e chegaram à conclusão, que seriam aquelas as pessoas envolvidas na entrega dos objetos? Testemunha: É essa a segunda situação, e porque Senhor Doutor, porque nós quando vamos buscar as interceções, geralmente vamos gravar as interceções, portanto quando nós tivemos conhecimento através das interceções, os objetos tinham sido entregues e apreendidos, a gente apercebeu-se, foi que aquilo que foi apreendido, era, estava relacionado com o que estava nas intercetações, portanto a situação foi exatamente essa. Senhor Procurador da República: Sim senhor e foi possível apurar-se a qual dos arguidos é que se destinam? estes produtos? Testemunha: Através das interceções, a gente percebeu que isto foi um esquema, o AA, o Senhor AA, tentou arranjar para que chegassem a ele, através da sua companheira CC, que preparou o objeto que foi enviado, além dos comprimidos e outras coisas iam nesse objeto, e o arguido BB foi quem enviou para dentro da cadeia, era percetível nas interceções Drª Juiz de Direito: Ó Senhor Francisco, portanto, a sua intervenção foi na audição das escutas, não participou nas apreensões? Testemunha: Não estive nas apreensões.
64. Do depoimento desta testemunha FF, também se conclui que o mesmo nada viu diretamente, o que sabe, foi por intermédio das escutas, é uma testemunha indireta dos factos, por intermédio das escutas, faz conjeturas, por intermédio das gravações, que tenha sido o arguido BB a arremessar e que o Recorrente estaria dentro do Estabelecimento Prisional à espera de um embrulho, que a testemunha presume que era aquele embrulho que foi detetado, com comprimidos, os esteróides androgénicos anabolizantes.
65. Pelo acima exposto, Senhores Juízes Desembargadores os factos provados 2), 4), 5), 7) e 8) da Sentença recorrida, devem ser dados como não provados, em consequência, o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, deverá proferir Acórdão revogando a Sentença recorrida, e absolver o Recorrente do crime em que foi condenado pelo Tribunal a Quo, peticionando, pedindo assim a absolvição do ora Recorrente.

Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, revogando a douta sentença e substituindo-a por Acórdão que determine a absolvição do arguido ora Recorrente do crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, pelo qual o Recorrente AA foi condenado, acima indicados, estarão Vªs. Exªs. a fazer a costumada JUSTIÇA».

2.2. RECURSO Nº 2
Inconformado, o arguido BB recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. «O arguido/recorrente BB, de ora em diante identificado como Recorrente, não se conforma com a Sentença (referência 38048958) proferida nos autos acima indicados a 19/12/2024, e no qual o Recorrente foi condenado, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, com os restantes co- arguidos AA e CC, de:
2. Um crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, p. e p. pelo artigo 57º nº 1 da Lei nº 81/2021, de 30-11, e S.1 da Lista de Substâncias e Métodos Proibidos, em anexo à portaria nº 312/2021 de 21-12, na pena de 2 (dois) anos e 6 (meses) de prisão, e,
3. mais foi ainda o recorrente condenado no pagamento das custas do processo penal, com taxa de justiça que se fixou em 2 UC, nos termo dos artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal e Tabela III do Regulamento da Custas Processuais.
4. É pois desta condenação, no seu todo, que o arguido vem interpor recurso, para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, pelos seguintes motivos:
5. Não existe prova suficiente, produzida nos autos, documentalmente, nem testemunhal, na audiência de julgamento, que demonstre que o Recorrente tenha praticado os crimes em que foi condenado.
6. O Recorrente, vem pois recorrer da Douta Sentença, quanto aos seus fundamentos, em que foi condenado, quanto ao âmbito da matéria de Facto, recurso amplo, devendo pois o Tribunal da Relação proceder à visualização da documentação infra indicada e a audição do depoimento das testemunhas também infra indicadas.
7. O tribunal recorrido não tinha prova suficiente para dar como provado para se chegar à solução de direito a que se chegou, assim, não ficou provado que:
8. Facto 2) dos Factos provados da Sentença recorrida: “Os arguidos AA, BB e CC elaboraram conjuntamente um plano para introduzir substâncias anabolizantes no interior do EP ... e ali as vender, trocar ou ceder a terceiros”.
9. Facto 4) dos Factos provados da Sentença recorrida: “No dia 3 de abril de 2022, pelas 18h36, o arguido BB deslocou-se até à Rua ..., ..., na proximidade do Estabelecimento Prisional ..., e arremessou para o seu interior um embrulho composto por meias de cor preta contendo no seu interior: a) 199 comprimidos de metandienona, de marca Naposim (esteróides androgénicos anabolizantes) e b) 202 comprimidos de oxandrolona, de marca Oxaver(esteróides androgénicos anabolizantes)”.
10. Facto 5) dos Factos provados da Sentença recorrida: “Devido à imperícia do arguido BB, o embrulho referido em 4., após arremessado, caiu no telhado do Pavilhão C do Estabelecimento Prisional, onde ficou, não caindo para o solo no interior do espaço do mesmo, onde AA o iria recolher”.
11. Facto 7) dos Factos provados da Sentença recorrida: “Os arguidos conheciam a natureza das substâncias em causa e sabiam que não tinham licença para as adquirir, deter, ceder, trocar, vender, ministrar ou comercializar, mas fizeram-no e pretendiam continuar a fazê-lo, através da introdução no Estabelecimento Prisional e cedência a quem os procurasse nesse sentido, com o propósito de obterem vantagens económicas em benefício próprio.”.

12. Facto 8) dos Factos provados da Sentença recorrida: “Os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, e tinham a liberdade necessária para se determinarem de acordo com a mesma avaliação.”
13. A prova documental e testemunhal que existe não é suficiente para que o Tribunal “A Quo” tivesse condenado o Recorrente, por não se ter feito prova dos Factos provados 2), 4), 5), 7) e 8) da Sentença recorrida devia o Tribunal recorrido ter absolvido o Recorrente, que é o que se vem peticionar ao Tribunal da Relação de Coimbra.
14. O Recorrente e os restantes co-arguidos, negaram a prática dos factos, neste sentido conferir página 1, último parágrafo da Sentença recorrida.
15. Sendo certo também que o Recorrente e os restantes co-arguidos recusaram prestar declarações sobre os factos que lhes eram imputados e sobre as suas condições pessoais neste sentido confira-se página 7, quarto parágrafo da Sentença recorrida.
16. Quanto à concreta prova, que o Tribunal “A Quo” fundamentou a sua condenação, foi com base no depoimento testemunhal e documental, ora observando com rigor as ditas provas, não se pode extrair objetivamente a convicção formulada pelo Tribunal recorrido, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal,
17. Quanto à prova documental, que foi valorada positivamente pelo Tribunal recorrido, e constante na página 6 (último parágrafo) e seguintes da Sentença recorrida, foram: O Auto de notícia a fls. 5; Auto de Visionamento a fls. 16-17; Auto de Busca e Apreensão de fls 18-19; Relatório a fls 26; Teste Rápido a fls 27; Cota a fls 30; Informação da ADOP a fls 78; Relatório Pericial a fls 100-101; As transcrições de interceções telefónicas a fls 260-265, 296-303 e 335-399.
18. Qualquer destes documentos supra, conjugados ou não com a prova testemunhal, não provam tais Factos Provados 2) 4), 5), 7), 8) da Sentença recorrida e acima mencionados, estes documentos não ligam diretamente o Recorrente e até os restantes co-arguidos, e esses factos, e até alguns desses documentos levantam dúvidas, não existepoisqualquernexo, nos factos descritosnessesdocumentosquepermitam estabelecerqualquerligação dos factos em apreço com o Recorrente (e restantes co-arguidos), com efeito, quanto ao,
19. Auto de Notícia a fls. 5, documento elaborado, no Estabelecimento Prisional ..., datado de 05.04.2022, faz menção que no dia 05.04.2022, pelas 13:45 horas, no qual o Guarda Prisional DD, detetou através do sistema CCTV, umembrulhosuspeito no telhadodopavilhãoC, onde estãoalocados reclusos vulneráveis, o qual acompanhado por EE, Guarda Prisional e também testemunha, apreenderam o embrulho e faz-se a descrição do seu conteúdo,
20. Ora tal documento não faz menção nem do Recorrente nem do arguido AA, e muito menos que tenha sido o recorrente BB a efetuar o arremesso do dito embrulho, nem faz prova que o embrulho tenha sido arremessado no dia 03.04.2022, pelas 18:36 horas, para o interior do EP .... E nem que aquele embrulho era dirigido para o arguido AA …
21. conjugando este documento com o depoimento da testemunha DD, o mesmo não sabe quem o arremessou o embrulho, nem quando foi arremessado o dito embrulho, que apenas foi recolher aquele embrulho detetado no dia 05.04.2022, mais fez menção que “estão sempre a cair coisas que não deviam estar”, mais afirmou que o embrulho caiu naquele dia, pois quando entra ao serviço costuma visualizar com as câmaras aquele local,
22. mais também afirmou esta testemunha que o arguido AA não tinha acesso ao Pavilhão C do Estabelecimento Prisional ..., sendo certo, que no auto de visionamento, o aludido pavilhão, encontra-se isolado do restante recinto do Estabelecimento Prisional em causa, por uma rede encimada com arame farpado….
23. Por sua vez a testemunha EE, também Guarda Prisional, apenas acompanhou e ajudou a testemunha DD a retirar o embrulho do telhado, nem sabe o que havia dentro do embrulho, não sabe quem atirou o objeto, confirmou que de vez em quando atiram objetos para o telhado.
24. Neste sentido, quanto ao acima invocado quanto ao depoimento das testemunhas DD e EE, confira-se a transcrição dos seus depoimentos infra.
25. Por sua vez, o Auto de Visionamento a fls 16-17, que foi visionado pelo OPC e testemunha FF, no dia 19 de Maio de 2022. pelas 12:45 horas, onde é visionado que os Guardas Prisionais e testemunhas DD e EE, dentro do Estabelecimento Prisional ..., colocam uma escada, para aceder ao telhado do pavilhão C, de onde retiraram um embrulho, Fotograma nº 1, no Fotograma nº 2 vê-se a mesma imagem, mas ampliada, não se vê que quem atirou o embrulho em apreço que ficou preso no dito telhado, mas existe uma conclusão em sentido contrário, nesse visionamento que não é suportada pelo visionamento do recorrente BB a arremessar tal embrulho.
26. Ou seja, tal documento não se visualiza o alegado arremesso do embrulho em apreço (03.042022) e a deteção do mesmo (05.04.2022), passaram cerca de 2 dias, pelo que não pode haver uma certeza absoluta que o embrulho foi arremessado no dia 03.04.2022 pelas 18:36 horas, para lá de qualquer dúvida razoável, tenha sido arremessado pelo Recorrente BB para dentro do EP ....
27. Quantoao Auto de busca e apreensão a fls18-19, taldocumentodizrespeito aumadiligênciaquefoi efetuada à residência da co-arguida CC, realizada no dia 07.06.2022, pelas 20:10 até às 21:45, sita na Rua ..., ..., ... ..., pelo que não é possível associar tal documento e facto aí descrito ao Recorrente, nem aos factos que lhe são diretamente imputados.
28. No que diz respeito ao Relatório a fls. 26, tal documento elaborado, no Estabelecimento Prisional ..., datado de 06.04.2022, faz menção que no dia 05.04.2022, pelas 15:45 horas, que o Guarda Prisional e testemunha nos autos DD, detetou através do sistema CCTV, um embrulho suspeito no telhado do pavilhão C, onde estão alocados reclusos vulneráveis, o qual acompanhado pelo Guarda Prisional e também testemunha nos autos EE, e apreenderam o embrulho e faz-se a descrição do seu conteúdo.
29. Dá-se aqui por reproduzido os que as testemunhas DD e EE disseram no seu depoimento infra transcrito.
30. Este documento, sozinho ou conjugado com a prova testemunhal não faz prova que tenha sido o recorrente BB a efetuar o arremesso do dito embrulho, nem faz prova que o embrulho tenha sido arremessado no dia 03.04.2022, pelas 18:36 horas, para o interior do EP ..., pelo que tal documento, em si ou conjugado com o depoimento testemunhal de todas as testemunhas não comprova os Factos 2), 4), 5), 7) e 8) da Sentença recorrida, pelo que também se impugna a motivação de facto da Sentença recorrida.
31. Quanto ao Teste Rápido a fls 27, este teste rápido diz respeito a um teste positivo a Cocaína/Crack, ora tal estupefaciente nada tem a haver com esteróides androgénicos anabolizantes, descritos no Facto provado 4), alíneas a) e b) da Sentença recorrida, nem na previsão da norma do crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, e contradiz a informação da ADOP, abaixo mencionada.
32. A Cota a fls. 30, apenas prova e bem o Facto não provado descrito na página 6, 1.2. Factos Não Provados da Sentença recorrida, pelo que tal documento, em si ou conjugado com o depoimento testemunhal de todas as testemunhas não comprova os Factos 2), 4), 5), 7) e 8) da Sentença recorrida, pelo que também se impugna a motivação de facto da Sentença recorrida.
33. A Informação da ADOP (Autoridade Antidopagem de Portugal), a fls 78, datado de 11/10/2022, e que deu entrada nos autos a 13/10/2022, nessa entidade comunica que: “Vem esta Autoridade informar que as substâncias apreendidas nos autos (Naposim e Oxaver) são esteróides anabolizantes, conforme a secção S1 Agentes anabolizantes da Lista de Substâncias e Métodos Proibidos em vigor proibidas em competição e fora da competição…” , ora, tal documento faz prova da existência dos esteróides androgénicos anabolizantes, mas não faz o nexo de ligação desses produtos ao Recorrente, nem ao co-arguido AA, pelo que também se impugna a motivação de facto da Sentença recorrida.
34. O O Relatório pericial a fls. 100-101, formulado pela Srª Perita, indicada pela ADOP, datado de 26/07/2023, e que deu entrada nos autos no dia 27/07/2023, identificando os 199 comprimidos como sendo “Naposim” tendo como substânciaquímicaMetandienona, e, identificando o 202 comprimidos como sendo “Oxaver” tendo como substância química Oxandrolona, sendo pois tais substâncias proibidas de acordo com a legislação em vigor, ora,
35. tal documento faz prova da existência dos esteróides androgénicos anabolizantes, mas não faz o nexo de ligação desses produtos ao Recorrente, nem ao co-arguido AA, pelo que também se impugna a motivação de facto da Sentença recorrida.
36. Quanto à transcrição da interceções telefónicas a fls 260-265, 296-303, e, 335-339, entende o Recorrido, que o Tribunal “A Quo” cometeu vários erros, quanto à valoração das escutas telefónicas transcritas,
37. Se dirá que o primeiro erro, é que tais transcrições das escutas telefónicas, deviam estar descritas ou ao menos mencionadas na própria acusação pública, com a referência 37058930, nos seus artigos 1º a 8º da dita acusação, e não vêm nem mencionadas e muito menos transcritas na acusação pública, apenas referenciadas em sede de prova na acusação pública, assim,
38. entende o Recorrente que as transcrições para valerem como prova em sede de julgamento, têm que constar no articulado da acusação pública, indicando na acusação pública as concretas transcrições que fundamentam os factos alegados na acusação,
39. o Tribunal recorrido cometeu uma violação ao princípio da vinculação temática, o Juiz recorrido, encontra-se vinculado ao conteúdo da acusação pública, e só dentro da acusação tem o poder jurisdicional para atuar, não podendo pois condenar o Recorrente por factos distintos que não constam da acusação, nesse sentido confira-se artigo 339º nº 4 do CPP, sendo certo que o objeto da causa (factos) pode alargar-se, mas tal não foi invocado nem pela acusação (Ministério Público) nem pela defesa (Mandatários),
40. Indicar como meio de prova, nos termos do artigo 188º nº 9 alínea a) do CPP, é indicar as concretas transcrições que sustentam a os factos alegados na acusação pública, e, não apenas remeter para sede de prova, pelo que, não se encontram reunidos os requisitos legais, para este meio de obtenção da prova se converter em prova, ficando assim prejudicados os factos provados 2), 4), 5), 7) e 8) da Sentença recorrida,
41. Por sua vez a própria transcrição das interseções telefónicas não fazem prova que o Recorrente e o co-arguido AA tenham tido na sua posse os esteróides androgénicos anabolizantes descritos em Facto provado 4) alíneas a) e b) da Sentença recorrida…, apenas que ocorreu uma conversa…
42. A Sentença recorrida, na sua página 7, primeiro, segundo parágrafos, tem razão, mas não em relação ao terceiro parágrafo, pois, no caso em apreço, os elementos probatórios recolhidos, de carácter documental, testemunhal, não encaixam entre si, como as peças de um puzzle, como pretende e invoca a Sentença recorrida.
43. A interceção de conversas telefónicas são meios de obtenção da prova, a transcrição de dessas conversas, apenas provam que houve essas conversas, mas não provam os factos que essas conversas tiveram, nomeadamente o facto de recorrente BB no dia 03.04.2022, pelas 18:36 horas, estivesse na Rua ..., ..., na Proximidade do EP ..., ficando prejudicados os factos 2), 4), 5), 7) e 8).
44. Pela análise conjunta ou isolada das provas documentais, que criticamente supra se expôs, e a prova testemunhal que infra se também descreverá, chegamos a uma conclusão, que o Recorrente e os restantes arguidos foram apenas condenados pelas Gravações transcritas, e tal é inadmissível legalmente, e da jurisprudência.
45. Neste sentido, confira-se Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07/10/2008, processo nº 6406/2008-5, Relator Ana Sebastião, disponível em www.dgsi.pt , que se transcreve parcialmente o seu sumário: “1 A intercepção e gravação de conversas telefónicas não constituem, no sentido técnico, meios de prova, através exclusivamente do conteúdo de uma conversação interceptada, e sem a concorrência dos adequados meios de prova sobre os factos, não se poderá considerar directamente provado um determinado facto, que não seja a mera existência e o conteúdo da própria conversação…
46. Mais ainda confira-se também Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 06/10/2020, processo nº 90/16.4JASTB.E1, Relator Gomes de Sousa, disponível e www.dgsi.pt, que se transcreve o seu sumário:“1 Ser escutado a falar sobre estupefacientes, a referir a sua qualidade e falar na sua aquisição não são actividades ilícitas. A concretização desses diálogos é que é uma actividade ilícita. E essa concretização não pode ser dispensada. 2 Estas actividades são relevantes porque indiciária e demonstrativas de um eventual ambiente envolvente, mas têm como requisito essencial a prova de – ao menos – posse de material ilícito ou actividade outra confirmada por outra forma que revele ou demonstre a posse e/ou tráfico de substâncias ilícitas. 3. O que não se pode fazer é presumir a posse e tráfico a partir de escutas telefónicas. 4. Isto porquanto as escutas telefónicas não são um meio de prova, são um meio de obtenção de prova. São uma forma de obter prova, não são prova de tráfico.” (Sublinhados do Recorrente)
47. Também confira-se Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 23/06/2020, processo nº 635/17.2T9LRS.L1-5, Relator Cid Geraldo, disponível em www.dgsi.pt, que se transcreve o seu sumário: -Diferentemente do que se passa no processo civil, em que basta a existência de uma «probabilidade prevalecente», em processo penal deve adoptar-se um padrão mais exigente, nomeadamente de origem anglo-saxónica, da «prova para além de qualquer dúvida razoável». - O standard de prova exigido em processo penal é muito mais elevado do que o utilizado no processo civil. - Se a versão dos factos narrada na acusação não encontra suporte nas provas que foram produzidas em audiência e por mais “circunstanciados” e “sem hesitações” que tenham sido os depoimentos prestados, não permitem formular, dada a notoriedade da existência de erro na apreciação da prova, a conclusão que foi alcançada pelo tribunal recorrido, com base numa mais que diminuta exigência quanto ao standard de prova necessário para uma condenação penal, quanto à ocorrência dos factos e à sua autoria pela arguida, impõe-se dar como “não provados” os factos impugnados.”
48. Pela prova testemunhal não se confirma que o Recorrente, tenha cometido o crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, p. e p. pelo artigo 57º nº 1 da Lei nº 81/2021, de 30 - 11 (Lei Antidopagem no desporto) e S.1 da Lista de Substâncias e Métodos Proibidos, em anexo à Portaria nº 312/2021, de 21 – 12, que determinou que o tribunal recorrido condenasse o Recorrente numa pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
49. Quanto à prova testemunhal, confira-se o depoimento da testemunha DD, realizado no dia 15/11/2024, o seu depoimento encontra-se gravado no Sistema Habilus Media Studio, através de sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal “A Quo””, cujo início ocorre(10:55:40), seu termoàs (10:48:20),conforme Ata de Audiência de Julgamento com a referência 37900497, afirma o seguinte, do qual se transcreve o seguinte excerto:
50. “…Sr. Procurador da República: O Senhor sabe o que é que estamos aqui a tratar hoje? Testemunha: Presumo que seja por causa de comprimidos, telemóveis que estavam no telhado de um edifício do Estabelecimento Prisional… Senhor Procurador da República: O Senhor estava de guarda, a fazer a ronda, estava nas câmaras de vigilância, como é que aquilo se chama CCTV… Testemunha: CCTV aquilo foi detetado através das câmaras, ocasionalmente a gente faz busca ao espaço no Estabelecimento Prisional, tem várias câmaras… detetamos em cima do telhado uma coisa diferente, pronto, estava diferente Senhor Procurador da República: Mas eu não percebi, o Senhor estava nas câmaras Testemunha: Nas câmaras, nas câmaras. Senhor Procurador da República: E apercebeu-se de alguma coisa? Testemunha: Sim, no telhado. SenhorProcuradordaRepública:Masviramalguma coisaa cair no telhado, foiisso? Testemunha: Não, não, não vi cair, estava em cima do telhado, estava em cima do telhado, quando eu vi. Testemunha: Não câmaras …, numa câmara que a gente tem longo alcance, e a gente cima do telhado, aquele telhado sistematicamente estão sempre Senhor Procurador da República: Estão sempre a cair coisas? Testemunha: Sim.… SenhorProcuradordaRepública: Pois há, poishá, mascomo o Senhorestava lá, tenho que lhe perguntar, então mas o Senhor viu quem é que atirou aquele, aquela meia com esses objetos? Testemunha: Não. Senhor Procurador da República: Não viu? Testemunha: Não. Senhor Procurador da República: O Senhor à pouco, estava a dizer que isto é vulgar a cair mais Testemunha: Ocasionalmente cai lá, são arremessados do exterior, para fazer chegar ao interior. Advogado de AA: Sabe quanto tempo aquele embrulho estava em cima do telhado? Testemunha: Não podia ser muito tempo, porque ele foi detetado perto do meio dia, talvez meio dia menos um quarto, e foi naquela manhã. Advogado de AA: Foi naquela manhã?» Testemunha: Sim Advogado de AA: O que é que se costuma fazer de atividade no pavilhão C? Drª Juiz de Direito: O Senhor diz que terá sido naquela manhã, porque é que o Senhor diz isso? Testemunha: Porque quando eu entrei ao serviço não visualizei nada, e àquela hora, foi quando eu visualizei aquela, aquele suposto Drª Juiz de Direito: O Senhor viu nas câmaras? Testemunha: Vi Drª Juiz de Direito: O Senhor diz que o pavilhão C, era o pavilhão da escola? Testemunha: Sim, aescola, e ao lado daescolatem… tinhaàdataláreclusos alocados também… Drª Juiz de Direito: Que reclusos são esses? Testemunha: Penso que à data seriam reclusos que tinham algumas debilidades, como hei-de dizer, de doenças mais, houve uma altura em que aquele  pavilhão tinha reclusos que era doenças, mais débeis. Drª Juiz de Direito: Lembra-se que se o Senhor AA estava nessa ala? Testemunha: Não, não. Drª Juiz de Direito: Não estava ou não se lembra? Testemunha: Não estava, não estava
51. Da transcrição acima descrita, do depoimento desta testemunha DD, foi esta quem detetou o embrulho pelas câmaras de vigilância, foi ao telhado recorrer aquele embrulho, mesmo não sabe quem arremessou o embrulho, nem quando foi arremessado o dito embrulho, que apenas foi recolher aquele embrulho detetado no dia 05.04.2022, mais fez menção que “estão sempre a cair coisas que não deviam estar”, mais afirmou que o embrulho caiu naquele dia, pois quando entra ao serviço costuma visualizar com as câmaras aquele local, mais também afirmou que o arguido AA não tinha acesso ao Pavilhão C do Estabelecimento Prisional ..., sendo certo, que do Auto de Visionamento o mesmo pavilhão, encontra-se isolado do restante recinto do Estabelecimento Prisional em causa, por uma rede encimada com arame farpado….
52. Pelo que, pelo depoimento desta testemunha, terá que se dar como não provado, o facto provado 4) e 5) 7) e 8) da Sentença recorrida, quanto à data do arremesso daquele embrulho, bem como não de pode dar como provado que tenha sido o Recorrente BB a arremessar aquele embrulho, nem o arguido AA o poderia recolher, por não ter acesso àquela ala do Estabelecimento Prisional, pelo que também se impugna a motivação de facto da Sentença recorrida, pois existem dúvidas de quando, como e quem tenha praticado tal facto, devia, pois o Tribunal “A Quo” recorrer-se, nos casos de dúvida sobre os factos, do princípio do “In Dúbio Pro Reo”.
53. O depoimento da testemunha EE, realizado no dia 15/11/2024, o seu depoimento foi gravado no Sistema Habilus Media Studio, através de sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal “A Quo””, cujo início ocorre às (11:07:04), seu termo às (11:12:36), conforme Ata de Audiência de Julgamento com a referência 37900497, afirma o seguinte, e do qual se retira este excerto do seu depoimento:
54. “… Senhor Procurador da República: Em abril de 2022, o Senhor trabalhava no Estabelecimento Prisional ...? Testemunha: Sim. SenhorProcuradordaRepública: O Senhor é Guarda Prisional, Chefe? Testemunha: Guarda Prisional. Senhor Procurador da República: O Senhor sabe o que é que estamos a tratar aqui hoje? Tem uma ideia? Testemunha: Penso que será de uma situação de arremessão de um objeto que estava em cima de um telhado. Senhor ProcuradordaRepública:EntãooSenhorassistiu?…Testemunha:Aminhaintervenção,nesse,nesse,nesse facto, nesse dia, foi, foi-me pedido, foi-me pedido que acompanhasse, foi-me ordenado que acompanhasse o Chefe DD, portanto, com equipamento para remover um objeto que estava, um objeto negro, que estava em cima do um telhado, no estabelecimento prisional, em cima, na lateral. Testemunha: Não fui eu que subi, foi-me ordenado que, que, portanto, fosse buscar uma escada, portanto, em colaboração com o Senhor Chefe DD, o mesmo subiu ao telhado, e com o auxílio de um outro utensílio, portanto, removeu-se, portanto, o embrulho que estava no telhado, não é. SenhorProcurador daRepública: O Senhor apercebeu-se quem é que tirou aquele objeto? Testemunha: Não Senhor Doutor. Senhor Procurador da República: Não sabe?Testemunha: Não faço ideia. Senhor Procurador da República: Mas é normal objeto em cima do telhado?Testemunha: De vez em quando, aquilo é ali contínuo ali à via pública SenhorProcuradordaRepública: O que sabe, o que assistiu? Testemunha: Precisamente.”
55. A transcrição do depoimento desta testemunha EE, também Guarda Prisional, apenas acompanhou e ajudou a anterior testemunha DD a retirar o embrulho do telhado, nem sabe o que havia dentro do embrulho, não sabe quem atirou o objeto, confirmou que de vez em quando atiram objetos para o telhado.
56. Também com o depoimento desta testemunha, por si ou conjugada com a anterior testemunha, e com a prova documental, não faz prova dos Facto provados 4) e 5) da Sentença recorrida, daí o fundamento do pedido desta alteração ao Tribunal da Relação de Coimbra.
57. os restantes depoimentos das testemunhas ,GG (Agente da PSP), FF (Agente da PSP), o seu conhecimento também é indireto, que retiram ilações, deduções e presunções, que não são prova da gravação das interceções telefónicas, com efeito,
58. Do depoimento da testemunha GG, realizado no dia 15/11/2024, o seu depoimento foi gravado no Sistema Habilus Media Studio, através de sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal “A Quo””, cujo início ocorre às (11:13:13), seu termo às (11:25:04), conforme Ata de Audiência de Julgamento com a referência 37900497, afirma o seguinte, que se retira um excerto:
59. “… Senhor Procurador da República: Qual foi a sua intervenção aqui neste processo? Testemunha: Portanto, este processo nasceu do 2/21.3, portanto, era responsável pelas diligências de investigação, e este, em certo e determinado aspeto, fui eu, em certa parte, eu e o meu colega FF, portanto, éramos os responsáveis pela invetigação, portanto das diligências de investigação que foram efetuadas.…Senhor Procurador da República: Mas era possível concluir-se dos objetos que foram apreendidos em cima do telhado, a quem é que eles se destinavam? Testemunha: Sim, através, portanto, nós tínhamos escutas telefónicas. Senhor Procurador da República: Há, mas através das escutas? Testemunha: Sim. Senhor Procurador da República: Podia haver eventualmente, no meio daqueles objetos, estar uma menagem “Ó fulano tal” não quero dizer os nomes, não é, algum dos arguidos que estava preso, havia dois, “isto é para ti”, ou coisas assim do género. O Senhores chegaram por causa das escutas? Testemunha: Exatamente. Senhor Procurador da República: Pronto, olhe, em relação à, o Senhor viu as imagens que, onde se deteta o arremesso do objeto para o telhado? Ficaram registadas? Testemunha: Não, portanto não se conseguiu através das imagens de CCTV, não se conseguiu, portanto, apurar, quando é que foi jogado, portanto, a tal meias que trazia os tais itens. Senhor Procurador da  República: Sim senhor. Testemunha: No entanto foi localizado, em cima do telhado, e foi através da análise que a gente efetuou através das escutas, que apurámos que tinha sido o BB a arremessar, portanto, o tal conteúdo, e quem estaria à espera, portanto, quem estava do outro lado da linha, era o AA, no momento em que aconteceram os factos. Senhor Procurador da República: chegaram à relação entre os produtos que estavam na casa da arguida CC e o arguido AA,eles foram companheiros até por isso, ou eram companheiros até aí, e têm filhos, e ou também por causa das escutas? Testemunha: Não, através também das escutas Advogado de AA: Diga-me uma coisa, entre a realização das escutas e a audição do Senhor agente, das ditas escuta, quantos dias passaram? Testemunha: Neste momento não lhe consigo precisar, mas posso-lhe dizer que nós íamos buscar, portanto as escutas, portanto, isto é em Lisboa e Advogado de AA: As escutas são realizadas em Lisboa? Testemunha: Exatamente, nós vamos recolher em tempo real não, em Lisboa temos tempo real para o efetuar, como não podemos estar todos os dias em Lisboa, geralmente marcamos ali uns 5 dias, 6 dias, vamos buscar, gravamos, trazemos, ouvimos eanalisamos.… AdvogadadeHélderMarques:Foichamado ao Estabelecimento Prisionalparafazer  portanto esta busca à cela do Senhor AA, porque o Estabelecimento Prisional o chamou lá, ou foi no seguimento Testemunha: Não, isso foi no seguimento do processo 2/21...., foram solicitadas as buscas Advogada de BB: Sim, mas eu estou a falar aqui destes comprimidos, destes anabolizantes, o enhor foi à cdeia, não é? Advogada de CC: O Senhor agente fez uma ligação ou uma suposição, no sentido de dizer, se eu não estiver errada naquilo que percebi, que os comprimidos que foram encontrados no telhado do Estabelecimento Prisional, seriam saídos ou não Testemunha: São da mesma marca. Advogada de CC: Só? Testemunha: Só, não consigo apurar, portanto, se eram daquela embalagem, ou se saíram de outra embalagem, como é óbvio, não existe, julgo eu, não devem existir meios técnicos, portanto, científicos para fazer um apuramento a 100% relativamente a essa situação. Advogada de CC: É mesmo essa ligação? Era única e exclusivamente a mesma marca, é a única coisa que sabe? Testemunha: Sim. Drª Juiz de Direito: Eu penso que a pergunta da Senhora Doutora era se tinha sido através das escutas que tinham solicitado informações ao Estabelecimento Prisional, se tinha sido encontrado alguma coisa, ou se era ao contrário, ou seja, se foi depois de o embrulho ter sido encontrado, que foram procurar nas escutas, se havia aqui alguma peça do puzzle, que podia encaixar, se tem alguma ideia sobre isso? Testemunha: Eu acho que foi posterior às escutas, que a gente teve conhecimento, neste momento, não consigo precisar, ma julgo que foi posterior às escutas..”
60. Do depoimento desta testemunha GG, conclui-se que o mesmo nada viu, o que sabe, foi por intermédio das escutas, mais mencionou que entre as escutas e a audição das mesmas decorreram 6 dias, pois as mesmas são feitas em Lisboa, mais afirmou que não pode apurar se os comprimidos do embrulho saíram da mesma embalagem dos que estavam na residência da arguida CC, apenas eram mesma marca dos que foram encontrados na casa.
61. Esta testemunha éumatestemunha indireta dosfactos, por intermédiodas escutas, faz conjeturas, porintermédio das gravações, que tenhasido o Recorrente BB a arremessar e queo arguido AA estaria dentro do Estabelecimento Prisional à espera de um embrulho, que a testemunha presume que era aquele embrulho que foi detetado.
62. Por sua vez, do depoimento da testemunha FF, realizado no dia 15/11/2024, o seu depoimento foi gravado no Sistema Habilus Media Studio, através de sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal “A Quo””, cujo início ocorre às (11:25:41), seu termo às 11 (11:30:48), conforme Ata de Audiência de Julgamento com a referência 37900497, afirma o seguinte, e do qual se transcreve o seguinte excerto:
63. “… Senhor Procurador da República: Sua participação nestes autos, foi enquanto Órgão de Polícia Criminal? Testemunha: Sim, exatamente. Senhor Procurador da República: E participou na recolha dos objetos, no Estabelecimento Prisional? Testemunha: Não Senhor Doutor, eu não fui que apreendi os objetos. Senhor Procurador da República: Portanto não participou nas buscas? Testemunha: Eu não sei se estive na busca, não me lembro, mas não fui eu, garantidamente não fui eu que apreendi. Senhor Procurador da República: Portanto, este processo nasceu de uma certidão de um outro processo de tráfico, não é ? Testemunha: Em que havia interceções, e daí, daí tive conhecimento da situação. Senhor Procurador da República: Os Senhores, foi através das buscas que depois se aperceberam que havia , havia o arremesso dos objetos para dentro do Estabelecimento Prisional, destinado a um dos arguidos? Testemunha: Não Senhor Doutor. Senhor Procurador da República: Ou foi ao contrário, foi depois da apreensão dos objetos que estavam no telhado, foram olhar para as buscas, e juntaram um mais um, e chegaram à conclusão, que seriam aquelas as pessoas envolvidas na entrega dos objetos? Testemunha: É essa a segunda situação, e porque Senhor Doutor, porque nós quando vamos buscar as interceções, geralmente vamos gravar as interceções, portanto quando nós tivemos conhecimento através das interceções, os objetos tinham sido entregues e apreendidos, a gente apercebeu-se, foi que aquilo que foi apreendido, era, estava relacionado com o que estava nas intercetações, portanto a situação foi exatamente essa. Senhor Procurador da República: Sim senhor e foi possível apurar-se a qual dos arguidos é que se destinam? estes produtos? Testemunha: Através das interceções, a gente percebeu que isto foi um esquema, o AA, o Senhor AA, tentou arranjar para que chegassem a ele, através da sua companheira CC, que preparou o objeto que foi enviado, além dos comprimidos e outras coisas iam nesse objeto, e o arguido BB foi quem enviou para dentro da cadeia, era percetível nas interceções Drª Juiz de Direito: Ó Senhor Francisco, portanto, a sua intervenção foi na audição das escutas, não participou nas apreensões? Testemunha: Não estive nas apreensões.
64. Do depoimento desta testemunha FF, também se conclui que o mesmo nada viu diretamente, o que sabe, foi por intermédio das escutas, é uma testemunha indireta dos factos, por intermédio das escutas, faz conjeturas, por intermédio das gravações, que tenha sido o recorrente BB a arremessar e que o arguido AA estaria dentro do Estabelecimento Prisional à espera de um embrulho, que a testemunha presume que era aquele embrulho que foi detetado, com comprimidos, os esteróides androgénicos anabolizantes.
65. Pelo acimaexposto, Senhores Juízes Desembargadores osfactos provados 2), 4), 5), 7) e8) daSentençarecorrida, devem ser dados como não provados, em consequência, o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, deverá proferir Acórdão revogando a Sentença recorrida, e absolver o Recorrente do crime em que foi condenado pelo Tribunal a Quo, peticionando, pedindo assim a absolvição do ora Recorrente.

Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, revogando a douta sentença e substituindo-a por Acórdão que determine a absolvição do arguido ora Recorrente do crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, pelo qual o Recorrente BB foi condenado, acima indicados, estarão Vªs. Exªs. a fazer a costumada JUSTIÇA».

3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu aos recursos, de forma conjunta, opinando que eles não merecem provimento, defendendo o sentenciado em 1ª instância.

4. Admitidos os recursos e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se neles, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido da negação de provimento aos recursos.

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por deverem ser os recursos aí julgados, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].
            Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.
Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
Mas também é grave quando o recorrente apresenta fundamentação nas conclusões que não tratou de modo nenhum na motivação.
Estas conclusões (deduzidas por artigos, nas palavras da lei) não devem trazer nada de novo; os fundamentos têm de estar no corpo motivador e são aqueles e só aqueles que são resumidos nas conclusões.
Os recorrentes impugnam a MATÉRIA DE FACTO dada como provada, tendo sido cumprido – mesmo que deficientemente quanto à formulação das conclusões - o determinado nos nºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP.
Não nos ancoraremos em argumentos formais e ouviremos a prova gravada quanto ao RECURSO (apenas abrangendo os depoimentos das 4 testemunhas de acusação), abdicando de fazer a notificação para a correcção das conclusões para agilização dos tempos processuais.
Desta forma, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso (absolutamente iguais nos dois recursos), são estas as questões a decidir por este Tribunal:
· Existe algum vício do artigo 410º, nº 2 do CPP, nomeadamente, a prevista na sua alínea a)?
· Há erro de julgamento quanto aos factos provados nºs 2, 4, 5, 7 e 8?
· Foi violado do princípio «in dubio pro reo»?

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA

            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição):
1) «Em abril de 2022 o arguido AA encontrava-se recluso no Estabelecimento Prisional ..., sendo sua companheira a arguida CC, que se encontrava em liberdade.
2) Os arguidos AA, BB e CC elaboraram conjuntamente um plano para introduzir substâncias anabolizantes no interior do EP ... e ali as vender, trocar ou ceder a terceiros.
3) Para tal, a arguida CC adquiriu diversos comprimidos de Naposim e de Oxaver, a pessoa e por valores não concretamente apurados.
4) No dia 3 de abril de 2022, pelas 18h36, o arguido BB deslocou-se até à Rua ..., ..., na proximidade do Estabelecimento Prisional ..., e arremessou para o seu interior um embrulho composto por meias de cor preta contendo no seu interior:
· 199 comprimidos de metandienona, de marca Naposim (esteróides androgénicos anabolizantes) e
· 202 comprimidos de oxandrolona, de marca Oxaver (esteróides androgénicos anabolizantes).
5) Devido à imperícia do arguido BB, o embrulho referido em 4., após arremessado, caiu no telhado do Pavilhão C do Estabelecimento Prisional, onde ficou, não caindo para o solo no interior do espaço do mesmo, onde AA o iria recolher.
6) No dia 7 de junho de 2022, pelas 2h30, no interior da residência sita em Rua ..., ..., ..., a arguida CC detinha 122 comprimidos de metandienona, de marca Naposim (esteróides androgénicos anabolizantes).
7) Os arguidos conheciam a natureza das substâncias em causa e sabiam que não tinham licença para as adquirir, deter, ceder, trocar, vender, ministrar ou comercializar, mas fizeram-no e pretendiam continuar a fazê-lo, através da sua introdução no Estabelecimento Prisional e cedência a quem os procurasse nesse sentido, com o propósito de obterem vantagens económicas em benefício próprio.
8) Os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, e tinham a liberdade necessária para se determinarem de acordo com essa mesma avaliação.
Mais se provou que:
9) O arguido AA encontra-se recluído em estabelecimento prisional, onde desempenha as funções de faxina; em contexto prisional, tem mantido um comportamento ajustado às normas institucionais; em abril de 2022, recebia visitas da companheira CC; atualmente, recebe visitas da mãe, irmãos e filho; concluiu o 6.º ano de escolaridade e, antes da reclusão, desenvolveu trabalhos pontuais, sem vínculo, na distribuição de publicidade, como operário fabril e na distribuição de bebidas; quando sair do estabelecimento prisional, pretende ir morar com a mãe, na ..., mantendo proximidade com a restante família, designadamente com a sua irmã com quem o seu filho menor vive; a irmã e a mãe do arguido manifestam disponibilidade para apoiar o arguido do ponto de vista financeiro; foi consumidor de produto estupefaciente; apresenta diminuta capacidade reflexiva e consequencial.
10) O arguido BB reside com a progenitora, com quem mantém uma relação próxima, coesa e de apoio mútuo; tem uma irmã, já autónoma, com quem mantém proximidade; concluiu o 9.º ano de escolaridade no Curso de Formação Profissional; trabalha como empregado de bar num estabelecimento de diversão noturna, auferindo, mensalmente, o equivalente ao salário mínimo nacional; a progenitora é funcionária de uma unidade hoteleira; o arguido apoia as despesas do agregado familiar quando necessário.
11) A arguida CC é oriunda de uma família numerosa, tendo duas irmãs uterinas e três irmãs germanas; o progenitor suicidou-se quando a arguida tinha dois anos de idade, devido ao envolvimento em comportamentos ilícitos; a progenitora abdicou das quatro filhas mais velhas, deixando-as ao cuidado dos avós; a arguida alternou entre os avós e uma tia, durante o seu desenvolvimento; frequentou o ensino em idade adequada e concluiu o ensino secundário, no curso de cozinha/pastelaria; vive com o companheiro, em casa arrendada; tem dois filhos, menores de idade, os quais não vivem consigo, mas com quem mantém contactos; trabalha, por conta própria, na área da restauração; conta com o apoio dos avós maternos, que demonstram preocupação com o seu estado emocional.
12) Por decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Castelo Branco, em 29.08.2008, transitada em julgado em 18.09.2008, no âmbito do proc. n.º 17/08...., foi o arguido AA condenado pela prática, em 28.08.2008, de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, num total de 350,00€, já extinta em 15.10.2009.
13) Por decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Castelo Branco – 1.º Juízo, em 24.02.2011, transitada em julgado em 14.03.2011, no âmbito do proc. n.º 23/08...., foi o arguido AA condenado pela prática, em 15.12.2008, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 5 anos de prisão.
14) Por decisão proferida pela 5.ª Vara Criminal de Lisboa, em 28.05.2010, transitada em julgado em 04.05.2011, no âmbito do proc. n.º 1015/07...., foi o arguido AA condenado pela prática, em 16.11.2008, de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, já extinta em 21.09.2016.
15) Por decisão proferida pelo Juízo de Média Instância Criminal de Sintra – 1.ª Secção – J1, em 02.05.2013, transitada em julgado em 03.06.2013, no âmbito do proc. n.º 1386/09...., foi o arguido AA condenado pela prática, em 24.12.2009, de um crime de roubo, na pena de 15 meses de prisão.
16) Por decisão proferida pelo Juízo de Grande Instância Criminal de Sintra – 1.ª Secção – J2, em 10.04.2014, transitada em julgado em 20.05.2014, no âmbito do proc. n.º 29278/13...., foi aplicada ao arguido AA a pena única de 5 anos e 6 meses de prisão, em cúmulo jurídico das penas aplicadas nos procs. n.ºs 23/08.... e 1386/09...., já extinta em 06.10.2016.
17) Por decisão proferida pelo Juízo Local Criminal da Amadora – J2, em 27.11.2019, transitada em julgado em 13.12.2019, no âmbito do proc. n.º 326/18...., foi o arguido AA condenado pela prática, em 23.04.2018, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 5,50€, num total de 1.100,00€, já extinta em 27.06.2020.
18) Por decisão proferida pelo Juízo Local Criminal da Amadora – J3, em 13.02.2020, transitada em julgado em 05.05.2021, no âmbito do proc. n.º 1040/17...., foi o arguido AA condenado pela prática, em 09.08.2017, de um crime de tráfico de menor gravidade, na pena de 3 anos de prisão.
19) Por decisão proferida pelo Juízo Central Criminal de Castelo Branco – J1, em 23.04.2024, transitada em julgado em 23.05.2024, no âmbito do proc. n.º 2/21...., foi o arguido AA condenado pela prática, em 2021, de um crime de tráfico de estupefacientes e um crime de detenção de arma proibida, na pena única de 7 anos e 9 meses de prisão.
20) Por decisão proferida pelo Juízo Central Criminal de Castelo Branco – J1, em 17.01.2020, transitada em julgado em 17.02.2020, no âmbito do proc. n.º 136/19...., foi o arguido BB condenado pela prática, em 01.2019, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, com regime de prova.
21) Por decisão proferida pelo Juízo Central Criminal de Castelo Branco – J2, em 15.11.2022, transitada em julgado em 15.12.2022, no âmbito do proc. n.º 20/21...., foi o arguido BB condenado pela prática, em 09.03.2022, de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, num total de 750,00€.
22) A arguida CC não tem antecedentes criminais registados».
2.2. São estes os FACTOS NÃO PROVADOS (transcrição):
a) «O embrulho composto por meias de cor preta arremessado pelo arguido BB continha no seu interior 188 comprimidos de metandienona, de marca Naposim (esteróides androgénicos anabolizantes) e 230 comprimidos de oxandrolona, de marca Oxaver (esteróides androgénicos anabolizantes).
b) O arguido BB adquiriu diversos comprimidos de Naposim e de Oxaver, a pessoa e por valores não concretamente apurados».

2.3. Foi esta a Motivação da decisão de facto (transcrição):
«O Tribunal fundamentou a sua convicção na prova produzida em sede de audiência de julgamento, globalmente analisada e concatenada, em conjugação com as regras da lógica e da experiência comum.
Concretizando.
No que concerne à factualidade provada nos pontos 1 a 6, o Tribunal formou a sua convicção com base nos depoimentos das testemunhas DD, EE, GG e FF, em conjugação com o auto de notícia a fls. 5, o auto de visionamento a fls. 16-17, o auto de busca e apreensão a fls. 18-19, o relatório a fls. 26, o teste rápido a fls. 27, a cota a fls. 30, a informação da ADOP a fls. 78, o relatório pericial a fls. 100-101 e as transcrição de interceções telefónicas a fls. 260-265, 296-303 e 335-399.
Em primeiro lugar, cumpre assinalar que as interceções telefónicas são, nos termos do art. 187.º do Código de Processo Penal, um meio de obtenção de prova.
No entanto, quando transcritas, constituem um verdadeiro meio de prova, o qual deve ser analisado pelo Tribunal e conjugado com os demais meios de prova recolhidos (art. 188.º, n.º 9 do Código de Processo Penal).
No caso em apreço, os elementos probatórios recolhidos, de caráter documental e testemunhal, encaixam entre si como as peças de um puzzle.
Vejamos.
Os arguidos, presentes em audiência de julgamento, recusaram prestar declarações sobre os factos que lhes são imputados e sobre as suas condições pessoais e económicas, com exceção, nesta parte, para a arguida CC, no exercício de um direito próprio (art. 61.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Penal).
No entanto, desde logo, na sessão 270 do alvo 124850050, transcrita a fls. 340-346, compreende-se, sem margem para dúvidas, que, no dia 30 de março de 2022, o arguido AA recrutou o arguido BB a fim deste arremessar para o interior do estabelecimento prisional um pacote previamente preparado pela arguida CC, contendo esteróides anabolizantes, a consumir por si e por terceiros (“pá gente rebentar logo as t-shirts”; “pá malta rasgar logo as t-shirts”), dentro do estabelecimento prisional.
O referido recrutamento e explicação sobre o modo de proceder estendeu-se pela sessão 356 do alvo 124850050, de 1 de abril de 2022 (transcrita a fls. 347-352).
Posteriormente, o arguido BB combinou com o arguido AA a recolha do pacote a arremessar para dentro do estabelecimento prisional em casa deste, onde a sua companheira, a arguida CC, se encontrava e onde, previamente, tinha procedido à preparação do referido pacote (sessões 394, 395, 396, 397, 400, 402, 404, 406, 408 e 409 do alvo 124850050, de 1 de abril de 2022, transcritas a fls. 355-362).
Após, no dia 3 de abril de 2022, pelas 16h09, o arguido AA chegou mesmo a enviar uma mensagem escrita ao arguido BB, perguntando-lhe se poderia contar consigo (sessão 410 do alvo 124849040, transcrita a fls. 303).
O certo é que, conforme decorre das sessões 2198, 2199 e 2200 do alvo 124851040 (transcritas a fls. 260-261), o arguido AA pôde mesmo contar com a colaboração do arguido BB que, no dia 3 de abril de 2022, pelas 18h36, arremessou um pacote para o interior do estabelecimento prisional onde o arguido AA se encontrava recluído, enquanto mantinha uma chamada telefónica com este, a qual foi intercetada.
Por esse motivo, não restam quaisquer dúvidas ao Tribunal do dia e hora em que o arguido BB efetuou o arremesso.
De todo o modo, por imperícia, conforme resulta das transcrições a fls. 260-261, o pacote previamente preparado pela arguida CC caiu em cima do telhado do estabelecimento prisional, não tendo sido possível ao arguido AA recolhê-lo.
De facto, após se aperceber que o pacote arremessado pelo arguido BB não caiu onde era suposto, o arguido AA contactou, de imediato, com a sua companheira CC, questionando-a sobre a cor da meia que formava o referido pacote, bem como sobre o modo dela proceder na preparação, designadamente se tinha deixado registos ou impressões digitais, mais a informando que o plano tinha “corrido mal” (sessões 2202 e 2205 do alvo 124851040, de 3 de abril de 2022, às 18h45 e às 19h05, transcritas a fls. 262-263).
Posteriormente, no dia 10 de abril de 2022, pelas 21h37, o arguido AA manteve uma conversação telefónica com o arguido BB, na qual dialogaram sobre a recuperação do mencionado pacote pelas autoridades (sessão 4062 do alvo 124851040, transcrita a fls. 265).
Na verdade, as testemunhas DD, EE, GG e FF descreveram o modo como foi visualizado um pacote no telhado do estabelecimento prisional, o que foi feito para o recuperar e o que continha o mencionado pacote.
As referidas testemunhas, além de deporem de forma lógica, coerente, pormenorizada e objetiva, apresentaram versões dos factos coincidentes entre si e com o auto de notícia a fls. 5, o auto de visionamento a fls. 16-17, o relatório de fls. 26 e o teste rápido de fls. 27, narrando os factos de que tiveram conhecimento direto, na medida da intervenção de cada um.
A este propósito, cumpre assinalar que, apesar da testemunha DD ter garantido que o pacote não se encontrava no telhado há muito tempo, mas apenas, possivelmente, desde a manhã do dia 5 de abril de 2022, o Tribunal entendeu que, não obstante a testemunha possa estar convencida desse facto, o certo é que não restam dúvidas que o pacote intercetado foi o arremessado pelo arguido BB.
São as próprias conversações entre os arguidos, devidamente transcritas, que o confirmam.
Por outro lado, é perfeitamente possível que o referido pacote já estivesse no telhado do estabelecimento prisional e, apesar da diligência dos guardas-prisionais, o mesmo não tenha sido visualizado.
Acresce que, efetuadas buscas à residência da arguida CC, no dia 7 de junho de 2022, foram encontrados 122 comprimidos da marca Naposim, ou seja, precisamente da marca dos 199 comprimidos que estavam dentro do pacote arremessado pelo arguido BB para o interior do estabelecimento prisional (auto de busca e apreensão a fls. 18-19).
Cumpre acentuar que, conforme resulta do auto de busca e apreensão a fls. 18-19, foram encontradas na residência da arguida CC carteiras de comprimidos da marca Naposim completas e incompletas, denotando que alguns comprimidos já haviam sido retirados em momento anterior, o que se coaduna com o conteúdo do pacote intercetado.
Portanto, tudo devidamente ponderado e concatenado, não restam quaisquer dúvidas que foram os arguidos a praticar os factos, conforme descritos nos pontos 1 a 6.
Já a prova dos factos n.ºs 7 a 8 resultou da prova dos restantes factos, em conjugação com as regras da lógica e experiência comuns.
Com efeito, quem atua da forma como os arguidos se comportaram, age de modo livre, deliberado e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, na medida em que todos conheciam a natureza das substâncias em causa, o que decorre, de forma cristalina, das conversações entre os arguidos, e que não tinham licença para as adquirir, deter, ceder, trocar, vender, ministrar ou comercializar, mas, apesar disso, conjugaram esforços para as introduzir no estabelecimento prisional onde o arguido AA se encontrava recluído, visando cedê-las a terceiros e, assim, obter benefícios.
Note-se que, caso os arguidos não conhecessem a natureza das substâncias e que não se encontravam autorizados a detê-las e cedê-las a terceiros, teriam, simplesmente, enviado a encomenda para o estabelecimento prisional pelos meios regulares de comunicação, o que não sucedeu.
Pelo contrário, os arguidos, sabendo que o seu comportamento não era permitido, ainda assim, prosseguiram com os seus intentos, na execução de um plano onde cada um teve a sua participação própria.
Quanto aos factos provados n.ºs 9 a 11, o Tribunal teve em consideração os relatórios sociais com refªs. 3784903, 3784559 e 3763333, em conjugação, no que respeita à arguida CC, com as declarações que a própria prestou, a este propósito.
Já os factos provados n.ºs 12 a 22 foram extraídos dos Certificados de Registo Criminal com refªs. 37898658, 3770594 e 3770593.
*
No que diz respeito ao facto não provado na alínea a), resulta do relatório de fls. 26 e da cota de fls. 30 que a referência constante do auto de notícia a 188 comprimidos de Naposim e 230 comprimidos de Oxaver se tratou de mero lapso, sendo, ao invés, 199 comprimidos de Naposim e 202 comprimidos de Oxaver, conforme facto provado n.º 4.
Relativamente ao facto não provado na alínea b), não foi produzida qualquer prova nesse sentido.
Na verdade, da transcrição de interceções telefónicas a fls. 260-265, 296-303 e 335-399 resulta que a participação do arguido BB (à parte de outras atividades que aqui não se encontram em apreciação) era apenas a de arremessar o pacote para o interior do estabelecimento prisional onde o arguido AA o iria recolher. Ou seja, dos elementos probatórios juntos aos autos, e quanto aos comprimidos de esteróides anabolizantes, não se extrai que o arguido BB participasse na sua aquisição.
Aliás, das sessões 2202 e 2205 do alvo 124851040, transcritas a fls. 262-263, resulta que quem adquiria os comprimidos de esteróides anabolizantes era a arguida CC, por indicação do arguido AA».

            3. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS
           
Trataremos os dois recursos em conjunto pois as alegações de ambos os arguidos são absolutamente iguais.

       3.1. IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

3.1.1. Ambos os recursos invocam que estão mal julgados os factos provados n.ºs 2, 4, 5, 7 e 8.
Fazem alusão ao vício do artigo 410º/2, alínea a) do CPP, quanto à prova que dizem não ter sido feita relativamente à actividade de tráfico dos arguidos naquele dia 3.4.2022.
Contudo, concomitantemente, aludem a um erro de julgamento.

3.1.2. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto sob dois prismas:
· o da impugnação ampla, se tiver sido suscitada;
· e dos vícios do nº 2 do art. 410º do CPP.

3.1.3. Na 1ª situação estamos perante um típico erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 – que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Como bem acentua o Juiz Desembargador Jorge Gonçalves nos seus acórdãos desta Relação e da Relação de Lisboa, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do STJ, de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www.dgsi.pt)».
E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, já aqui aludida, prevista no artigo 412º, nº 3, do CPP.
A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto. Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova.
E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.

3.1.4. Na 2ª situação, apela-se ao normatizado no artigo 410º, nº 2 do CPP que estipula que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
1. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
2. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
3. Erro notório na apreciação da prova.
           Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426º do CPP.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – nº 2 do artigo 410º do CPP.
Ao determinar-se que tais vícios sejam cognoscíveis com base no texto da decisão, adoptou-se uma solução de recurso-remédio e não de reexame da causa.
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito[1].
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão[2].
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cfr. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo nº 1509/97).
O vício de erro notório ocorre, não só quando um erro é evidente, crasso, escancarado à luz dos olhos do cidadão comum, mas também à luz da análise feita por um tribunal de recurso ou de um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada.
Segundo os Juízes Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, tal erro ocorrerá "quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”.
Consideram os mesmos autores que “existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro"[3].

3.1.5. Os conceitos podem confundir-se à primeira vista mas têm palco próprio e distinto entre si.
O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova ocorrem respectivamente quando:
a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado;
b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º nº 2 a) CPP;
c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida (cfr. Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740) ou quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.

3.1.6. Há no acórdão recorrido algum vício do artigo 410º/2 do CPP?
Os arguidos invocam a existência de um – o da alínea a).
Vejamos.
Falamos do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
São insuficientes para a decisão final tomada os factos narrados e dados como provados?
Recordemos o que atrás se deixou escrito sobre este vício – ele só ocorre quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão, reportando-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova.
Alega a defesa que não foi feita prova do tráfico naquele dia 3 de Abril – entendem que não foi feita a ligação entre o arremesso mencionado no facto nº 4 e as pessoas dos dois recorrentes.
Entendem que não foi feita prova de que tenha sido o BB o autor desse arremesso e que o mesmo se destinaria ao AA, já recluso nesse EP, a fim de aí traficar tais comprimidos.
Ora, e antes de saber se aqui reside algum erro de julgamento, há que concluir que, sob o ponto de vista dos vícios do artigo 410º/2 do CPP, inexiste qualquer deficiência na sentença, referindo-se ainda que para a prova de um facto não se afere pelo número de testemunhas que corroboram o facto aludido mas pela pertinência do depoimento prestado, mesmo que isolado.
Não nos podendo nós socorrer, nesta fase, da prova gravada mas apenas do texto literal da sentença, ela permanece limpa e lógica e sem sombra de pecado.
Não faltam factos para justificar a condenação dos recorrentes, só podendo, assim improceder a alegação do vício do artigo 410º/1 a) do CPP.

3.1.7. Não há, ainda, qualquer incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão, não ocorrendo também qualquer erro notório na apreciação da prova.
Nem qualquer outro dos vícios do nº 2 do artigo 410º do CPP.
Resta, assim, o erro de julgamento.

3.1.8.    Ouvidas as gravações das testemunhas indicadas, a que conclusão se chega então?
É verdade que nenhuma das 4 testemunhas ouvidas assistiu ao arremesso mencionado no facto nº 4.
Estamos a falar de dois guardas prisionais e de dois agentes da PSP, estes dois últimos envolvidos no Inqº que deu origem a estes autos (o nº 2/21....) - a sentença sobre eles escreveu:
«Na verdade, as testemunhas DD, EE, GG e FF descreveram o modo como foi visualizado um pacote no telhado do estabelecimento prisional, o que foi feito para o recuperar e o que continha o mencionado pacote.
As referidas testemunhas, além de deporem de forma lógica, coerente, pormenorizada e objetiva, apresentaram versões dos factos coincidentes entre si e com o auto de notícia a fls. 5, o auto de visionamento a fls. 16-17, o relatório de fls. 26 e o teste rápido de fls. 27, narrando os factos de que tiveram conhecimento direto, na medida da intervenção de cada um.
A este propósito, cumpre assinalar que, apesar da testemunha DD ter garantido que o pacote não se encontrava no telhado há muito tempo, mas apenas, possivelmente, desde a manhã do dia 5 de abril de 2022, o Tribunal entendeu que, não obstante a testemunha possa estar convencida desse facto, o certo é que não restam dúvidas que o pacote intercetado foi o arremessado pelo arguido BB.
São as próprias conversações entre os arguidos, devidamente transcritas, que o confirmam.
Por outro lado, é perfeitamente possível que o referido pacote já estivesse no telhado do estabelecimento prisional e, apesar da diligência dos guardas-prisionais, o mesmo não tenha sido visualizado».
Ou seja, nada é trazido aos autos nestes dois recursos que infirme as conclusões do tribunal, na leitura que fez destes 4 depoimentos.
É certo e sabido que nenhum dos 4 assistiu ao arremesso mencionado no facto nº 4 (embrulho de cor preta).
Faz é o tribunal uma ligação hábil e razoável entre tal factualidade e o teor das intercepções telefónicas, devidamente transcritas nos autos a fls 260-265, 296-303, 335-399 [sessões 270, 356, 394, 395, 396, 397, 400, 402, 404, 406, 408, 409 (do alvo 124850050), 401 (do alvo 124849040) e 2198, 2199, 2200, 2202, 2205 e 4062 (do alvo 124851040)].
E fá-lo através da assunção da chamada prova indirecta, ligando duas realidades – por um lado, foi feita prova de que houve certas conversas entre os arguidos; por outro, retira, de forma indirecta, a prova de que foi o BB o autor do arremesso do facto nº 4 e o AA o destinatário da encomenda.
É verdade que a transcrição de uma conversa telefónica apenas prova que houve essa conversa, não provando eles directamente os factos mencionados na dita conversa.
Mas, neste nosso caso, o raciocínio feito pelo tribunal recorrido é exemplar, ligando a prova:
· «desde logo, na sessão 270 do alvo 124850050, transcrita a fls. 340-346, compreende-se, sem margem para dúvidas, que, no dia 30 de março de 2022, o arguido AA recrutou o arguido BB a fim deste arremessar para o interior do estabelecimento prisional um pacote previamente preparado pela arguida CC, contendo esteróides anabolizantes, a consumir por si e por terceiros (“pá gente rebentar logo as t-shirts”; “pá malta rasgar logo as t-shirts”), dentro do estabelecimento prisional;
· O referido recrutamento e explicação sobre o modo de proceder estendeu-se pela sessão 356 do alvo 124850050, de 1 de abril de 2022 (transcrita a fls. 347-352);
· Posteriormente, o arguido BB combinou com o arguido AA a recolha do pacote a arremessar para dentro do estabelecimento prisional em casa deste, onde a sua companheira, a arguida CC, se encontrava e onde, previamente, tinha procedido à preparação do referido pacote (sessões 394, 395, 396, 397, 400, 402, 404, 406, 408 e 409 do alvo 124850050, de 1 de abril de 2022, transcritas a fls. 355-362);
· Após, no dia 3 de abril de 2022, pelas 16h09, o arguido AA chegou mesmo a enviar uma mensagem escrita ao arguido BB, perguntando-lhe se poderia contar consigo (sessão 410 do alvo 124849040, transcrita a fls. 303);
· O certo é que, conforme decorre das sessões 2198, 2199 e 2200 do alvo 124851040 (transcritas a fls. 260-261), o arguido AA pôde mesmo contar com a colaboração do arguido BB que, no dia 3 de abril de 2022, pelas 18h36, arremessou um pacote para o interior do estabelecimento prisional onde o arguido AA se encontrava recluído, enquanto mantinha uma chamada telefónica com este, a qual foi intercetada;
· Por esse motivo, não restam quaisquer dúvidas ao Tribunal do dia e hora em que o arguido BB efetuou o arremesso;
· De todo o modo, por imperícia, conforme resulta das transcrições a fls. 260-261, o pacote previamente preparado pela arguida CC caiu em cima do telhado do estabelecimento prisional, não tendo sido possível ao arguido AA recolhê-lo.
· De facto, após se aperceber que o pacote arremessado pelo arguido BB não caiu onde era suposto, o arguido AA contactou, de imediato, com a sua companheira CC, questionando-a sobre a cor da meia que formava o referido pacote, bem como sobre o modo dela proceder na preparação, designadamente se tinha deixado registos ou impressões digitais, mais a informando que o plano tinha “corrido mal” (sessões 2202 e 2205 do alvo 124851040, de 3 de abril de 2022, às 18h45 e às 19h05, transcritas a fls. 262-263);
· Posteriormente, no dia 10 de abril de 2022, pelas 21h37, o arguido AA manteve uma conversação telefónica com o arguido BB, na qual dialogaram sobre a recuperação do mencionado pacote pelas autoridades (sessão 4062 do alvo 124851040, transcrita a fls. 265)».
Límpido como água.
Sobre as intercepções telefónicas, diremos:
Como se pode ler do Acórdão da Relação de Coimbra de 9.05.2012, Proc. nº 222/09.9JACBR.C2, in www.dgsi.pt, “1. As escutas telefónicas constituindo, embora, um meio de obtenção de prova, não deixam de ser simultaneamente um meio de prova, dado que, regularmente efetuadas, uma vez transcritas no processo, passam a constituir prova documental.
A transcrição das escutas assim realizadas constitui prova documental sujeita a livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art.º 127º, do Código de Processo Penal, mesmo que não lida nem examinada em audiência. (…)
Mal se compreendem as referências que por vezes ainda surgem em alegações quanto à não leitura integral das escutas operadas nos autos, e menos ainda quando os arguidos que as suscitam (através dos respetivos Defensores) não prestaram declarações em julgamento… (não se alcançando como podiam pretender ser com as mesmas confrontados?!)."[4]
Também neste sentido se refere o Acórdão da Relação de Coimbra de 29.02.2012, Proc. nº 1109/09.0JACBR.C1: “As gravações das escutas telefónicas, realizadas na sequência de autorização judicial face a suspeitas fundadas de crimes (…), mandadas transcrever pela autoridade judiciária competente em auto e juntas ao processo, são um meio de prova documental a valorar pelo Tribunal de acordo com o princípio da livre apreciação da prova previsto no art.º 127.º do Código de Processo Penal”.
Daí que as transcrições das escutas telefónicas não constituam declarações dos arguidos prestadas em inquérito, sujeitas ao disposto no artigo 357º do CPP – norma específica dirigida às declarações prestadas pelos arguidos -, mas sim prova documental, que vale em audiência de julgamento[5], mesmo que aí não se tenha procedido à sua leitura[6].
Diga-se que as transcrições das escutas telefónicas - prova documental - podem mesmo surgir como único meio de prova.
Nesse nosso caso, elas são a base – depois o tribunal juntou os outros elementos de prova (o Tribunal formou a sua convicção com base nos depoimentos das testemunhas DD, EE, GG e FF, em conjugação com o auto de notícia a fls. 5, o auto de visionamento a fls. 16-17, o auto de busca e apreensão a fls. 18-19, o relatório a fls. 26, o teste rápido a fls. 27[7], a cota a fls. 30, a informação da ADOP a fls. 78 e o relatório pericial a fls. 100-101[8], ligando tudo a esta transcrição de intercepções telefónicas – as de fls 260-265, 296-303 e 335-399), chegando à prova da culpabilidade dos dois arguidos, sem margem para dúvidas.
Falamos de prova indirecta a que veio a ser levada a cabo, após a audição das escutas em causa.
Ela está sujeita à livre apreciação do tribunal, exige um particular cuidado na sua apreciação, apenas se podendo extrair o facto probando do facto indiciário quando seja corroborado por outros elementos de prova, por forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente plausíveis.
Doutrinou o Acórdão desta Relação de 25/11/2009 o seguinte:
«Nos casos de prova indirecta o que está em causa é «o tribunal inferir racionalmente a prova dos factos a partir da prova indirecta ou indiciária desde que seja seguido um processo dedutivo baseado na lógica e nas regras de experiência comum (recto critério humano e correcto raciocínio) – cf. Ac. R. Coimbra de 2008, proc. 495/002.
A prova indirecta, sendo um meio de prova absolutamente legítimo, pode ser livremente utilizada e valorada pelo Tribunal, em todas as circunstâncias que entender como útil à sua utilização, assumindo relevância específica em circunstâncias de défice da prova directa, seja por virtude de inexistência, seja pela sua debilidade valorativa.
Nesse sentido «a prova indirecta ou indiciária pode ser valorada preferencialmente pelo julgador e, só por si, conduzir à sua convicção, tal qual a prova directa», cf. Ac. RC 26.11.2008 proc. 341/06 in www.dgsi.pt.
Já nos referimos à prova indirecta em vários dos nossos arestos desta Relação, escritos desde 2009 a 2011, e desde 2021.
Sabemos que fundamental em muitos casos da vida judiciária em que não é possível obter prova directa dos factos é a valoração da chamada “prova indirecta”.
Neste sentido: J. M. Asencio Mellado, in “Presunción de inocência em Matéria Criminal”, 1992: “Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir, a todo o custo, a existência deste tipo de provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente: a tortura”.
Entendemos, assim, que há que ultrapassar os rígidos cânones da valoração pelo julgador exclusivamente da prova directa, para atribuir à prova indirecta, indiciária ou por presunções judiciais o seu específico relevo nos casos de maior complexidade.
Mittermayer, in “Tratado de La Prueba em Matéria Criminal”, 1959, dizia já o seguinte: “…o talento investigador do Magistrado deve saber encontrar uma mina fecunda para o descobrimento da verdade no raciocínio, apoiado na experiência e nos procedimentos que adopta para o exame dos factos e das circunstâncias que se encadeiam e acompanham o crime. Estas circunstâncias são outras tantas testemunhas mudas, que a Providência parece ter colocado à volta do crime para fazer ressaltar a luz da sombra em que o criminoso se esforçou por ocultar o facto principal; são como um farol que ilumina o entendimento do juiz e o dirige até aos vestígios seguros que basta seguir para chegar à verdade”.
Por outro lado, há que afirmar que ao ser valorada a prova indiciária não se está a violar o princípio da presunção da inocência, uma vez que aquela valoração tem de ser objectivável, motivável e não arbitrária, baseada numa pluralidade de indícios.
Este entendimento, que já começou a ser seguido na jurisprudência nacional, tem sido defendido pela jurisprudência de Espanha, conforme os seguintes Ac do Tribunal Supremo de Espanha: Ac nº 190/2006, de 1 de Março de 2006; Ac nº 392/2006, de 6 de Abril de 2006; Ac nº 562/2006, de 11 de Maio de 2006; Ac nº 560/2006, de 19 de Maio de 2006; Ac nº 557/2006, de 22 de Maio de 2006; e Ac nº 970/2006, de 3 de Outubro de 2006.
(ver todas estas referências in Revista Julgar, nº 2, 2007 –
Euclides Dâmaso Simões – “Prova Indiciária).
A convicção do Tribunal “a quo” é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
Por isso, resulta que, para respeitarmos os princípios da oralidade e imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.
Como opina o acórdão da Relação de Coimbra de 6 de Março de 2002 (C.J., ano XXVII, 2º, página 44) , “quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
Nesta parte, importa realçar que o objecto da prova pode incidir sobre os factos probandos (prova directa), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este (prova indirecta ou indiciária).
A prova indirecta “…reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova” – cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “Curso de Processo Penal”, Vol. II, pág. 289.
Como acentua o acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 1996, “a inferência na decisão não é mais do que ilação, conclusão ou dedução, assimilando-se todo o raciocínio que subjaz à prova indirecta e que não pode ser interdito à inteligência do juiz.” – cfr. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6.º, tomo 4.º, pág. 555.
No mesmo sentido veja-se o acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Fevereiro de 2000, ano XXV, 1.º, pág. 51.
Como já se disse, em matéria de apreciação da prova, o artigo 127.º do C.P.P. dispõe que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Na expressão regras de experiência, incluem-se as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, devendo as inferências basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, nos princípios da experiência e nos conhecimentos científicos a partir dos quais o raciocínio deve ser orientado e formulado (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª edição, p. 127, citando F. Gómez de Liaño, La Prueba en el Proceso Penal, 184).
Atentas as naturais dificuldades de reconstituição do facto delituoso, há que recorrer, por vezes, à prova indirecta para basear a convicção da entidade decidente sobre a existência ou não da situação de facto.
Como acentua Euclides Dâmaso, no seu artigo «Prova indiciária (contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente)», publicado na Revista Julgar, n.º 2, 2007, «vale isto por dizer-se que a “prova indirecta, indiciária, circunstancial ou por presunções”, que alguns decisores por vezes (infelizmente raras e apenas em crimes contra as pessoas) meticulosa e exigentemente praticam sem claramente assumirem fazê-lo, tem que ganhar adequada relevância jurisprudencial e dogmática também entre nós. Sob pena de a Justiça não se compatibilizar com as exigências do seu tempo e de se agravar insuportavelmente o sentimento de impunidade face aos desafios criminosos de maior complexidade e desvalor ético-jurídico, mormente os “crimes de colarinho branco” em geral e a corrupção e o branqueamento em particular».
Prieto-Castro Y Fernandiz e Gutiérrez de Cabiedes opinam mesmo que «o indício apresenta grande importância no processo penal, já que nem sempre se têm à disposição provas directas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então, ante a realidade do facto criminoso, é necessário fazer uso dos indícios, com o esforço lógico-jurídico intelectual necessário, antes que se gere impunidade».
Ana Brito, em brilhante artigo intitulado «A valoração da prova e a prova indirecta», publicado em e-book do CEJ («Da Prova Indirecta ou por Indícios», Julho de 2000), disserta sobre a figura da prova indirecta, resumindo muito do que atrás se escreveu:
«(…)
Nas lições escritas em 1975, Figueiredo Dias, realça a “deslocação do fulcro de compreensão do próprio direito das normas gerais e abstractas para as circunstâncias concretas do caso”. Ensina que livre apreciação significa ausência de critérios legais pré-fixados e, simultaneamente, “liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e susceptíveis de motivação e controlo”.
Não poderá tratar-se de uma convicção puramente subjectiva ou emocional. Curando-se sempre de uma convicção pessoal, ela é necessariamente objectivável e motivável. Esclarece ainda Figueiredo Dias que a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, resultado de um convencimento do juiz sobre a verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.
(…)
Paulo Sousa Mendes adverte que “o julgador moderno tem, cada vez mais, de produzir abundante fundamentação dos seus juízos probatórios. Para o efeito ele faz apelo não só aos meios de prova científicos, mas também às chamadas regras da experiência”.
(…)
Como se sabe, a prova indiciária é aquela que permite a passagem do facto conhecido ao facto desconhecido. É neste campo que as regras da experiência se tornam necessárias, na medida em que ajudam à realização dessa passagem. Seja como for, a apreensão do facto principal terá, no final, de ser feita de um modo totalizante, pois o juiz historiador nunca pode perder de vista que lhe cabe fazer um juízo objectivo, concreto e atípico acerca do caso decidendo”.
O juiz terá sempre que “averiguar em que medida os factos concretos e individualizados do caso, confirmam ou infirmam aquelas inferências gerais, típicas e abstractas…
As regras da experiência, os critérios gerais, não serão aqui mais do que índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas, mas apenas isso – é assim em geral, em regra, mas sê-lo-á realmente no caso a julgar?” (aqui, Paulo de Sousa Mendes cita Castanheira Neves).
Revemo-nos nas conclusões deste autor, que são as seguintes: “as regras da experiência servem para produzir prova de primeira aparência, na medida em que desencadeiam presunções judiciais simples, naturais, de homem, de facto ou de experiência, que são aquelas que não são estabelecidas pela lei, mas se baseiam apenas na experiência de vida”. “Então, elas ficam sujeitas à livre apreciação do juiz”.
(…)
No acórdão do STJ, de 06/10/2010, relatado por Henriques Gaspar, afirma-se que “a verdade processual, na reconstituição possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica. A verdade possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos, princípios e regras estabelecidos. Estando em causa comportamentos humanos da mais diversa natureza, que podem ser motivados por múltiplas razões e comandados pelas mais diversas intenções, não pode haver medição ou certificação segundo regras e princípios cientificamente estabelecidos. Por isso, na análise e interpretação – interpretação para retirar conclusões – dos comportamentos humanos há feixes de apreciação que se formaram e sedimentaram ao longo dos tempos: são as regras da experiência da vida e das coisas que permitem e dão sentido constitutivo à regra que é verdadeiramente normativa e tipológica como meio de prova – as presunções naturais.”
Também no acórdão do TRL, de 13/02/2013, relatado por Carlos Almeida, se desenvolve: “Nas questões humanas não pode haver certezas… Também não se pode pensar que é possível, sem mais, descobrir “a verdade” (…). A reconstrução que o tribunal deve fazer para procurar determinar a verdade de uma narrativa de factos passados irrepetíveis assenta essencialmente na utilização de raciocínios indutivos que, pela sua própria natureza, apenas propiciam conclusões prováveis. Mais ou menos prováveis, mas nunca conclusões necessárias como são as que resultam da utilização de raciocínios dedutivos, cujo campo de aplicação no domínio da prova é marginal. O cerne da prova penal assenta em juízos de probabilidade e a obtenção da verdade é, em rigor, um objectivo inalcançável, não tendo por isso o juiz fundamento racional para afirmar a certeza das suas convicções sobre os factos. A decisão de considerar provado um facto depende do grau de confirmação que esses juízos de probabilidade propiciem. Esta exigência de confirmação impõe a definição de um “standard” de prova de natureza objectiva, que seja controlável por terceiros e que respeite as valorações da sociedade quanto ao risco de erro judicial, ou seja, que satisfaça o princípio in dubio pro reo”.
(…)
A prova indirecta determina especiais exigências de fundamentação.
Nas várias classificações das provas, a distinção mais importante segundo Taruffo, é a que distingue entre provas directas e indirectas.
Seguindo de perto este autor, a distinção assenta na conexão entre o facto objecto do processo “e o facto que constitui o objecto material e imediato do meio de prova”.
“Quando os dois enunciados têm que ver com o mesmo facto, as provas são directas”, pois incidem directamente sobre um facto principal.
“O enunciado acerca deste facto é o objecto imediato da prova”.
“Quando os meios de prova versam sobre um enunciado acerca de um facto diferente, acerca do qual se pode extrair razoavelmente uma inferência acerca de um facto relevante, então as provas são indirectas ou circunstanciais”.
Trata-se de uma distinção funcional que depende da conexão entre as provas e os factos
Indirectas podem ser quaisquer provas, obtidas por qualquer meio.
(…)
Cavaleiro Ferreira declara que a apreciação das provas indirectas pressupõe “grande capacidade e bom senso do julgador”, que “as complexas operações mentais que o manejo da prova indiciária implica exigem raras qualidades” E enumera: “inteligência clara e objectiva, experiência esclarecida, integridade de carácter, ausência de fácil ou emotiva impressionabilidade”.
(…)
Também Santos Cabral, em estudo sobre a prova indiciária e a sua valoração, conclui:
“As regras da experiência ou regras de vida como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou a reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte para efectuar a generalização. Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes, a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa, ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária”.
(…)
Destaco dois pontos do sumário do acórdão STJ de 06/10/2010, relatado por Henriques Gaspar, que deve merecer leitura integral:
“O julgamento sobre os factos, devendo ser um julgamento para além de toda a dúvida razoável, não pode, no limite, aspirar à dimensão absoluta de certeza da demonstração acabada das coisas próprias das leis da natureza ou da certificação cientificamente cunhada. Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de descontinuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência segundo as regras da experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões”».

A sentença explica que se partiu dos factos conhecidos por prova directa para o facto desconhecido, retirando dos primeiros as ilações que, na sua óptica, se impunham.
E isso é lícito fazer.
Ou seja, neste contexto de leitura unitária da prova no seu conjunto, não se alcança como não deixar de concluir, sem sombra de dúvida razoável (e com pleno e legítimo apelo à prova indirecta), quanto à intervenção dos arguidos em toda esta factualidade 2 a 6 e quanto à sua culpabilidade na eclosão deste tráfico:
· Houve conversas interceptadas que dão conta que o AA recrutou o BB para arremessar para o interior do EP um pacote previamente preparado pela CC, contendo substâncias esteróides anabolizantes (sessões nºs 270 e 356);
· Houve conversas telefónicas entre o BB e o AA no qual se combina a recolha do pacote em causa (sessões nºs 394, 395, 396, 397, 400, 402, 404, 406, 408 e 409);
· O mesmo AA envia uma SMS ao BB no dia 3.4.2022, horas antes do arremesso real, perguntando-lhe se «podia contar consigo» (sessão nº 410);
· Das sessões nºs 2189, 2199 e 2200 retira-se que o arremesso foi mesmo feito pelo BB (enquanto mantinham ambos entre si uma chamada telefónica, a qual foi interceptada);
· Das sessões nºs 2202 e 2205 retira-se da conversa havida entre o AA e a CC, sua companheira, que algo «correu mal» naquele anterior arremesso;
· Mais tarde, em 10.4.2022, o AA volta a falar com o BB, «na qual dialogam sobre a recuperação do mencionado pacote pelas autoridades».  
Raciocínio este completo e razoável, só havendo que o validar, não sendo o mesmo temerário ou ousado, ultrapassando as regras da razoabilidade ou do normal acontecer da vida.
E como bem acentua o Exmº PGA em douto parecer nesta Relação (o qual secundamos em pleno):
«Na sessão 270 do alvo 124850050, transcrita a fls. 340-346, compreende-se, sem margem para dúvidas, como se refere na sentença, que, no dia 30 de março de 2022, o arguido AA recrutou o arguido BB a fim deste arremessar para o interior do estabelecimento prisional um pacote previamente preparado pela arguida CC, contendo esteróides anabolizantes, a consumir por si e por terceiros (“pá gente rebentar logo as t-shirts”; “pá malta rasgar logo as t-shirts”), dentro do estabelecimento prisional.
O referido recrutamento e explicação sobre o modo de proceder estendeu-se pela sessão 356 do alvo 124850050, de 1 de abril de 2022 (transcrita a fls. 347-352).
Posteriormente, o arguido BB combinou com o arguido AA a recolha do pacote a arremessar para dentro do estabelecimento prisional em casa deste, onde a sua companheira, a arguida CC, se encontrava e onde, previamente, tinha procedido à preparação do referido pacote (sessões 394, 395, 396, 397, 400, 402, 404, 406, 408 e 409 do alvo 124850050, de 1 de abril de 2022, transcritas a fls. 355-362).
Após, no dia 3 de abril de 2022, pelas 16h09, o arguido AA chegou mesmo a enviar uma mensagem escrita ao arguido BB, perguntando-lhe se poderia contar consigo (sessão 410 do alvo 124849040, transcrita a fls. 303).
Conforme decorre das sessões 2198, 2199 e 2200 do alvo 124851040 (transcritas a fls. 260-261), o arguido AA pôde mesmo contar com a colaboração do arguido BB que, no dia 3 de abril de 2022, pelas 18h36, arremessou um pacote para o interior do estabelecimento prisional onde o arguido AA se encontrava recluído, enquanto mantinha uma chamada telefónica com este, a qual foi intercetada.
Por imperícia, conforme resulta das transcrições a fls. 260-261, o pacote previamente preparado pela arguida CC caiu em cima do telhado do estabelecimento prisional, não tendo sido possível ao arguido AA recolhê-lo.
De facto, após se aperceber que o pacote arremessado pelo arguido BB não caiu onde era suposto, o arguido AA contactou, de imediato, com a sua companheira CC, questionando-a sobre a cor da meia que formava o referido pacote, bem como sobre o modo dela proceder na preparação, designadamente se tinha deixado registos ou impressões digitais, mais a informando que o plano tinha “corrido mal” (sessões 2202 e 2205 do alvo 124851040, de 3 de abril de 2022, às 18h45 e às 19h05, transcritas a fls. 262-263).
Posteriormente, no dia 10 de abril de 2022, pelas 21h37, o arguido AA manteve uma conversação telefónica com o arguido BB, na qual dialogaram sobre a recuperação do mencionado pacote pelas autoridades (sessão 4062 do alvo 124851040, transcrita a fls. 265).
A este propósito, cumpre assinalar que, apesar da testemunha DD ter garantido que o pacote não se encontrava no telhado há muito tempo, mas apenas, possivelmente, desde a manhã do dia 5 de abril de 2022, o Tribunal entendeu que, não obstante a testemunha possa estar convencida desse facto, o certo é que não restam dúvidas que o pacote intercetado foi o arremessado pelo arguido BB.
São as próprias conversações entre os arguidos, devidamente transcritas, que o confirmam.
Por outro lado, como se diz na sentença, é perfeitamente possível que o referido pacote já estivesse no telhado do estabelecimento prisional e, apesar da diligência dos guardas-prisionais, o mesmo não tenha sido visualizado.
Acresce que, efetuadas buscas à residência da arguida CC, no dia 7 de junho de 2022, foram encontrados 122 comprimidos da marca Naposim, ou seja, precisamente da marca dos 199 comprimidos que estavam dentro do pacote arremessado pelo arguido BB para o interior do estabelecimento prisional (auto de busca e apreensão a fls. 18-19).
Cumpre acentuar que, conforme resulta do auto de busca e apreensão a fls. 18-19, foram encontradas na residência da arguida CC carteiras de comprimidos da marca Napo-sim completas e incompletas, denotando que alguns comprimidos já haviam sido retirados em momento anterior, o que se coaduna com o conteúdo do pacote intercetado.
Portanto, tudo devidamente ponderado e concatenado, não restam quaisquer dúvidas que foram os arguidos a praticar os factos, conforme descritos nos pontos 1 a 6».
Sem mais comentários ou argumentos.

3.1.9. Pergunta-se: foi violado o princípio do «in dubio pro reo»?
O princípio in dubio pro reo[9] «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» – Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997 -, sendo certo que a «dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» - Ac. STJ de 25-10-2007, in proc. 07P3170.
A diversidade das versões expostas não faz, necessariamente, operar o princípio in dubio pro reo. Este pressupõe um juízo positivo de dúvida resultante de um inultrapassável impasse probatório.
Circunstância que não ocorre in casu, já que consideramos que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos – e provas bastantes - que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 7/1/2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133).
Deu o tribunal crédito aos testemunhos que indica na sua motivação, explicando bem a sua opção, ligando toda a prova documental e testemunhal.

3.1.10. O artigo 127.º do CPP consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Os poderes do tribunal na procura da verdade material estão limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, guiado pelo princípio das garantias de defesa do artigo 32º da CRP.
Sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento em benefício do arguido.
Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios:
os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas);
A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável;
Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais;
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso;
Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.
A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência
           Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.
            A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe.
É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.
As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
           Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).
           Quer isto dizer que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
A operação intelectual em que se traduz a formação da convicção não é, assim, uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cf. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss. e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 205).
Ora, no nosso caso, o JLC de Castelo Branco, usando métodos lícitos de valoração da prova produzida, criou uma convicção. E explicou-a em sentença, sem saltos ilógicos ou temerários.
E nem sequer foi violado qualquer princípio constitucional de presunção da sua inocência – colado ao da livre apreciação da prova – na medida em que o tribunal não acreditou na sua versão negatória.
No fundo, o que os recorrentes pretendem, nos termos em que formulam as suas impugnações, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que eles próprios entendem que deveria ter sido a retirada da prova produzida.
Os recorrentes limitam-se a divulgar a sua interpretação e valoração pessoal das declarações prestadas e da credibilidade que deveriam ter merecido, exercício que, no entanto, é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova.
Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que, fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso -, o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir, eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância, não se procurando encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso.
Decidiu-se, no douto Acórdão da Relação de Coimbra de 9/9/2009 (Pº 564/07.8PAVCD.P1) o seguinte:
«Acresce que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum».
Na realidade, ao tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar.
«Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253).
Portanto, a prova produzida foi coerentemente valorada.
Se há duas versões dos factos (mesmo que uma delas tenha dois veículos), não é uma maioria matemática que faz escolher a versão verdadeira.
O facto de haver duas afirmações opostas, não conduz necessariamente a uma “dúvida inequívoca”, por força do princípio in dubio pro reo.
Não está em causa a igual valoração de declarações ou depoimentos, mas a valoração de cada um dos meios de prova em função da especial credibilidade que mereçam.
As declarações e depoimentos produzidos em audiência são livremente valoráveis pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereçam.
Voltamos ao Acórdão de 9.9.2009:
«Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal».
Sabemos que o julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal.
Se a primeira ainda é susceptível de ser escrutinada pelo tribunal de recurso mediante a audição do gravado (e foi o que se fez nesta sede de recurso), fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar aquela.
Deste modo, quando a opção do julgador se centra em prova oral, o tribunal de recurso só estará em condições de a sindicar se esta for contrária às regras da experiência, da lógica, dos conhecimentos científicos, ou não tiver qualquer suporte directo ou indirecto nas declarações ou depoimentos prestados.
E repetimos: o juiz pode formar a sua convicção com base em apenas um testemunho (ou numa só declaração), desde que se convença que nele reside a verdade do ocorrido.
Não basta que o recorrente diga que determinados factos estão mal julgados.
É necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador injustificadamente retirou credibilidade.
Atente-se que o art.º 412º/3 alínea b) do CPP fala em provas que imponham decisão diversa.
Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente.
Ao reapreciar-se a prova por declarações, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido desde que o seu juízo seja compatível com os critérios de apreciação devidos.
Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados.
Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa».
O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido.
Não ficou o Tribunal de Castelo Branco em estado de dúvida.
E este tribunal de recurso também não fica em dúvida, assente que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133).
Em suma:
Não é qualquer dúvida que há-de levar o tribunal a decidir “pro reo”: tem de ser uma dúvida razoável, objectiva, que impeça a convicção do tribunal. E tal como acontece com os vícios da sentença, a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal, a eventual violação do in dubio pro reo há-de resultar do texto da decisão recorrida, constatando-se que o tribunal decidiu contra o arguido apesar de, na motivação da convicção, reconhecer que não tem suporte probatório bastante.
Ora, o mesmo princípio não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, sendo antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa – contudo, daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio.
Portanto, e em conclusão, se este tribunal recorrido, analisada e valorada a prova produzida, não ficou na dúvida em relação a qualquer facto, não pode dizer-se que, na dúvida, decidiu contra os arguidos, pelo que não tem qualquer base de sustentação a imputação de violação do princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo, não violados in casu.

           3.1.11. Assim sendo, podemos dizer que a argumentação expendida pelos recorrentes esbarra naquilo que foi o conjunto da prova (directa e indirecta) produzida, e com eco na decisão proferida, exemplarmente fundamentada.
Decorre, pois, de todo o exposto, que não demonstram os recorrentes que a decisão recorrida tenha incorrido em ilógico ou arbitrário juízo na valoração da prova, ou se tenha afastado das regras da normalidade do acontecer, ou da experiência comum, não existindo razões para afastar o raciocínio lógico do tribunal a quo, tampouco os recorrentes indicaram prova que imponha decisão diversa da tomada na decisão em crise, não podendo senão concluir-se que a argumentação e prova por eles indicadas não impõem decisão diversa, nos termos da al. b) do nº 3 do artigo 412º do CPP, apenas sendo exemplificativas de outra interpretação da prova, não havendo, pois, qualquer razão para alterar a matéria de facto provada decidida pelo Tribunal a quo.
Aqui chegados e, face a todo o exposto, parece-nos evidente a falta de razão dos recorrentes, no que se refere também à invocada violação princípio do in dubio pro reo, ínsito no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.

3.2. SOBRE O DIREITO
Não está colocada em causa a subsunção jurídico-penal dos factos ao Direito – ou seja, cometeram, assim, os arguidos, como autores materiais, um crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, p. e p. pelo artigo 57º, nº 1 da Lei nº 81/2021, de 30/11 e S.1 da Lista de Substâncias e Métodos Proibidos, em anexo à Portaria nº 312/2021, de 21/12 [estão perfectibilizados os seus elementos objectivos e subjectivos – cfr. factos provados nºs 2 a 6 (objectivos) e 7-8 (subjectivos)], validando-se todo o raciocínio dogmático-penal feito pelo tribunal recorrido quanto ao dito crime.
As defesas, nem sequer de forma subsidiária, requerem qualquer diminuição das penas aplicadas.

3.3. Improcedem, assim, todos os fundamentos dos recursos.

            III – DISPOSITIVO
           
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - desta Relação em:
· julgar NÃO PROVIDOS os recursos intentados pelos arguidos AA e BB, mantendo na íntegra a sentença recorrida.

            Custas pelos arguidos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça (individual) em 4 UCs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa].

            Comunique o teor deste aresto de imediato à 1ª instância, com nota de não trânsito em julgado.
Coimbra, 14 de Maio de 2025
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94.º, n.º2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do art.º 19.º da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20/09)


                                                    Relator: Paulo Guerra
Adjunta: Maria da Conceição Miranda
Adjunta: Sandra Ferreira


[1] «Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exata do que seja o objeto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa.
Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objeto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339º, nº 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz. Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objeto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa.
Em suma, existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340º do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição» (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).
[2] «Teremos uma contradição da fundamentação, impeditiva da função que a esta cabe, se no respetivo texto verificarmos existir uma incompatibilidade entre duas ou mais proposições, cuja conjugação não permita chegar uma conclusão logicamente coerente. Será o caso, por exemplo, de se afirmar que, “nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, “A é B” e que “A não é B”, pois as duas afirmações não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Ou dar-se como provado que, nas mesmas circunstâncias descritas na acusação, e na sequência de uma discussão entre Alberto, Bernardo e Daniel, Alberto desferiu uma bofetada no rosto de Bernardo, e de seguida, na mesma decisão, dar-se como não provado que Alberto tivesse dado uma bofetada no rosto de Bernardo. Ou que, para motivar a primeira proposição, o Tribunal considerasse unicamente o depoimento da testemunha Carlos, referindo quanto à razão de ciência desta testemunha que ela se encontrava junto a Alberto e Bernardo, mas na mesma motivação da decisão de facto, de seguida, se acrescentasse que, precisamente, por se encontrar junto de Alberto e Carlos, viu presencialmente Daniel a desferir a bofetada no rosto de Bernardo. Sendo a estrutura interna da própria lógica que aqui é posta em causa, na medida em que esta exige como uma das suas regras fundamentais a inexistência de contradição entre enunciados, assim como exige que a sequência desses mesmos enunciados, no raciocínio lógico, obedeça a “uma ordem do fundamento e da consequência”, com o sentido de que o raciocínio, através do qual se obtém a ilação ou inferência, por via indutiva ou dedutiva, não utiliza os enunciados ou proposições de forma arbitrária ou casual.
Podendo dizer-se que as possibilidades de vir a ser posta em causa a fundamentação e a relação entre esta e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410º, nº 2, al. b), do CPP, são essencialmente reconduzíveis à violação da relação lógica que deve existir entre enunciados ou proposições, por violação do princípio da não contradição (contradição da fundamentação) e à violação do princípio do fundamento ou da ordem do fundamento e da consequência (contradição entre a fundamentação e a decisão). Nesta última hipótese caberá o seguinte exemplo: o tribunal dá como provados factos constitutivos do crime de furto, crime pelo qual vinha o arguido acusado, mas na fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica entende que, dado o arguido não ter restituído a coisa furtada, os factos integram também o crime de abuso de confiança, mas na decisão final, julgando procedente a acusação do Ministério Público, acaba por condenar o arguido apenas pelo crime de furto». (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).


[3] Francisco Mota Ribeiro é suficientemente eloquente e exemplificativo ao escrever no e-book já aqui assinalado: «Existirá um erro de tal magnitude quando, por exemplo, se se dá como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica.
Tal vício é oficiosamente cognoscível e tem de resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Poderá suceder um tal erro, como vimos supra, quando na motivação da decisão de facto se invoca facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso.
Também haverá erro notório na apreciação da prova quando se declare ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido.
Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá como provado que o arguido apenas havia bebido um ou dois copos de vinho, quando resulta provado que a esse mesmo arguido lhe havia sido detetada uma TAS de 2,05g/l.
Presumindo-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial (nº 1 do artigo 163º do CPP), constitui erro notório na apreciação da prova [alínea c) do nº 2 do artigo 410º] divergir--se dele sem fundamentação – Ac. do STJ, de 15/10/97, Pº 97P1494.
No âmbito da apreciação da prova indireta, quando o tribunal infere de um facto (a entrada frequente de indivíduos numa casa com volumes) aquele outro facto (de, dentro da casa, uns indivíduos irem adquirir estupefacientes), sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão, está a cometer um erro notório na apreciação da prova, que vicia o acórdão e não permite ao STJ conhecer de fundo – Ac. do STJ, de 04/01/1996, Pº 048666.
Na aplicação do princípio in dubio pro reo, quando da decisão recorrida resultar que, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, o tribunal a quo decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar, no entanto, evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo assim de concluir que a dúvida só não foi reconhecida, no sentido de fazer operar aquele princípio, em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 410º do CPP – Ac. do STJ, de 22/05/98, Pº 98P930».
[4] «De facto, as escutas telefónicas constituindo, embora, um meio de obtenção de prova, não deixam de ser simultaneamente um meio de prova, dado que regularmente efectuadas uma vez transcritas no processo passam a constituir prova documental.
Ambivalência que transparece das palavras do Professor Germano Marques da Silva quando, depois de traçar a distinção entre meios de obtenção de prova e meios de prova, refere: É claro que através dos meios de obtenção de prova se podem obter meios de prova de diferentes espécies, v.g., documentos, coisas, indicação de testemunhas, mas o que releva de modo particular é que, nalguns casos, o próprio meio de obtenção da prova acaba por ser também um meio de prova. Assim, por exemplo, enquanto a escuta telefónica é um meio de obtenção de prova, as gravações são já um meio de prova. Por isso que só tendencialmente os critérios acima referidos para distinguir os meios de obtenção de prova dos meios de prova são válidos, pois pode suceder que a distinção resulte apenas da lei ter dado particular atenção ao modo de obtenção da prova, como nos parece acontecer, v.g., com as escutas telefónicas. – [cf. “Curso de Processo Penal”, II, págs. 209/210].
Entendimento, igualmente, perfilhado além “fronteiras” como, de resto, evidencia a seguinte passagem do recente acórdão, de 29.02.2012, deste Tribunal da Relação: … como se pode ver, nomeadamente, na obra “La prueba penal”, do Magistrado e Doutor em Direito Carlos Climent Durán, onde, para além da transcrição de trechos de sentenças do Tribunal Supremo, se diz: “Tras las escuchas telefónicas, y una vez recibidas en el Julgado de Instrucçion las grabaciones íntegras e originales, entregadas por los funcionarios policiales que han realizado las escuchas, se entra en una fase processual diferente, en la que se trata de formalizar el resultado de las escuchas telefónicas a fin de que puedan servir de medio probatorio durante el juicio oral. Dicho de outra manera, la infomácion en bruto que existe en las citas magnetefónicas, o sea, el contenido de las conversaciones telefónicas, integras y originales, se ha de transformar en un instrumento probatorio preconstituido capaz de destruir la presunción de inocencia durante el acto del juicio oral – cf. [proc. nº 1109/09.0JACBR.C1]
São vários, aliás, os arestos do Supremo Tribunal de Justiça onde se «acolhe» a natureza ambivalente das escutas telefónicas. É o caso do acórdão do STJ de 15.02.2007: Em matéria de escutas telefónicas, tem acentuado este Tribunal que as escutas telefónicas regularmente efectuadas durante o inquérito, uma vez transcritas em auto, passam a constituir prova documental, que o tribunal de julgamento pode valorar de acordo com as regras da experiência … mas também, entre muitos outros, dos acórdãos de 09.03.1996, 14.11.1996, 20.11.2002, 03.06.2004, 31.05.2006 – [cf, procs. n.º 46690, 48588, 3173/02, 519/03-3, 1412/06- 3.ª].
Impõe-se, pois, concluir falecer razão ao recorrente na medida em que não estava vedado ao tribunal a quo a valoração das transcrições das «escutas telefónicas», as quais não consubstanciam prova proibida – artigos 125º e 126º, nº 3 do CPP [este, ad contrarium sensu]».
[5] A palavra de novo ao douto aresto desta Relação, datado de 9.5.2012:
«A questão não é nova e tem sido objecto, no essencial, de resposta unívoca por parte do Supremo Tribunal de Justiça.
Assim, contrariando a tese preconizada pelo recorrente, vd. os acórdãos do STJ de 24.02.1993, 09.11.1994, 05.02.98 – [cf. CJ, 1993, I, 202, CJ, 1994, III, 245, CJ 1998, I, 194].

Posição reafirmada no acórdão do STJ de 31.05.2006 [proc. n.º 1412/06 – 3.ª], onde se mostra consignado: As escutas telefónicas … são meio legitimo de obtenção de prova; a transcrição das escutas assim realizadas constitui prova documental sujeita a livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art. 127º do CPP, mesmo que não lida nem examinada em audiência, porquanto se trata de prova contida em acto processual cuja leitura em audiência é permitida – artº 355º do CPP; … estando nos autos a transcrição das escutas efectuadas, o arguido sempre poderia ter contraditado, no decurso da audiência, o seu conteúdo e conformidade com os respectivos suportes; se não o fez «sibi imputat», bem como nos acórdãos do mesmo Supremo Tribunal de 15.02.2007, 17.11.2009 e 4.11.2009 – [cf. procs. 06P4092, 169/07.3GCBNV.S1, 680/07.6GCBRG.G1.S1].
E diferente conclusão não se retira do acórdão do Tribunal Constitucional nº 87/99, o qual debruçando-se sobre a questão de saber se «I – As normas dos arts. 127º, 355º e 165º, nº 2, CPP, quando interpretados no sentido de que o Tribunal de 1.ª instância pode formar a sua livre convicção com base em documentos constantes dos autos, não lidos nem explicados na audiência, frustra o princípio da publicidade da audiência e do julgamento do arguido, consagrado no artigo 209º da CRP, por impedir o controlo público da aplicação da justiça II. – A leitura e a explicação do conteúdo dos documentos na audiência é indispensável ao acompanhamento por parte do público, da formação da convicção do julgador, melhor garantindo o direito de defesa do arguido, consagrado no art. 32º da CRP» - [cf. Vinício Ribeiro, “Código de Processo Penal, Notas e Comentários”, 2.ª Edição, Coimbra Editora, págs. 977/978], pronunciou-se pela sua não inconstitucionalidade, posição não abalada pelo mais recente acórdão do mesmo TC n.º 110/2011 [proc. n.º 691/10].
Neste conspecto, constituindo as transcrições das escutas prova documental, a valorar nos termos do artigo 127º do CPP, resultando terem sido as mesmas, como no caso, efectivamente, o foram, indicadas como prova na acusação pública, não se detecta na circunstância de surgirem a suportar a decisão de facto ofensa ao direito de defesa, ao contraditório, a um processo justo e equitativo [artigos 32º CRP e 6º da CEDH], ou a quaisquer outros princípios ou normas constitucionais, tão pouco ao artigo 355º do CPP, pois que sempre teve o recorrente a oportunidade de as contraditar e delas se defender, e menos ainda aos princípios da oralidade, da publicidade e da imediação, estes conforme melhor resulta da argumentação expendida no citado acórdão do TC nº 87/99».
Portanto, não tem de constar da acusação senão em alusão a meios de prova.
[6] Do disposto na alínea a) do nº 9 do artigo 188º do CPP [que disciplina as formalidades das operações das escutas telefónicas], decorre que só podem valer como prova as comunicações que o Ministério Público mandar transcrever ao órgão de polícia criminal que tiver efetuado a interceção e a gravação e indicar como meio de prova na acusação.
O nº 9 do artigo 188º do CPP estabelece o regime legal das provas das conversações e comunicações telefónicas suscetíveis de serem utilizadas em juízo e que permitem a formação da convicção do juiz de julgamento.
Tendo sido ordenada a transcrição de todas as sessões indicadas na acusação do MP (ponto iv da prova documental da acusação), poderiam tais conversas valer como prova em julgamento, não havendo que as reproduzir em audiência.

De facto:
1º- A formação da convicção do tribunal pode apoiar-se nas transcrições das escutas telefónicas que constem do processo, sem necessidade da leitura prévia dos respectivos autos na audiência de julgamento (Ac. de 29.11.2006, CJ 195, Tomo 3/2006);
2º- «Consagra-se a possibilidade de as pessoas cujas conversações e comunicações foram escutadas e transcritas (incluindo, naturalmente, o arguido e o assistente) examinarem os respectivos suportes técnicos até ao encerramento da audiência (nº 11), a fim de controlarem a legalidade e regularidade da transcrição, detectarem e corrigirem erros, identificarem vozes e reagirem contra transcrições proibidas ou irrelevantes (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 660/20006, citado)» (in Santos Cabral, CPP comentado, Almedina, 2014, p. 825).
[7] Teste que diz respeito a cocaína constante da nossa meia arremessada, droga essa pela posse da qual foram já os arguidos punidos no Pº 2/21....) – a ligação entre os dois processos é premente e latente, assim se compreendendo a alusão a este teste.
[8] Os meios de prova referidos singularmente pelas defesas em III-A), só por si, não chegam para a ligação desta ilicitude aos dois arguidos – o que os cola aos arguidos são as intercepções telefónicas, lidas habilmente pelo tribunal na sua motivação.
[9] Aludamos aqui ao teor do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.1.2008 (proc. 07P4198, em www.dgsi.pt, o qual cita profusamente Cristina Líbano Monteiro:
«De todo o modo, não haverá, na aplicação da regra processual da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio «in dubio pro reo» exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida [ainda que «indirecta»], depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir – como aqui não conduziu - «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto». O “in dubio pro reo”, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (cfr. Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997).
Até porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade» (idem, p 17): «O juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» (idem, p. 13). E, por isso, é que, «nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade («a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, “uma firme certeza do julgador”, sem que concomitantemente “subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto”), não há lugar à intervenção da «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o in dubio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (idem).
Ademais, «são admissíveis [em processo penal] as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125º do CPP), nelas incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto conhecido»: art. 349º do CC). Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir «prova directa» não contrarie o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a «prova» (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a sua livre convicção (art. 127º do CPP). Não estaria por isso vedado às instâncias, ante factos conhecidos, a extracção – por presunção judicial – de ilações capazes de «firmar um facto desconhecido».
A este propósito, convém de resto recordar que «verificar cada um dos enunciados factuais pertinentes para a apreciação e decisão da causa é o que se chama a prova, o processo probatório» e que «para levar a cabo essa tarefa, o tribunal está munido de uma racionalidade própria, em parte comum só a ela e que apelidaremos de razoável». E isso porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador-juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável ("a doubt for which reasons can be given”)». Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» (ibidem).
Daí que, nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade (repete-se: «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, «uma firme certeza do julgador», sem que concomitantemente «subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto»), não haja - seguramente - lugar à intervenção dessa «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que, fundada na presunção de inocência, é o "in dubio pro reo" (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência [aqui ausente] de uma firme certeza do julgador)».