Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA CATARINA GONÇALVES | ||
Descritores: | COMPROPRIEDADE INVERSÃO DO TÍTULO DE POSSE USUCAPIÃO SERVIDÃO DE PASSAGEM | ||
Data do Acordão: | 01/23/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LAMEGO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 1251.º, 1263.º, AL.ª D), 1265.º, 1287.º E 1406.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL | ||
Sumário: | I – A inversão do título da posse em situação de compropriedade pressupõe e exige que um dos comproprietários adopte, a partir de certo momento, uma determinada actuação (um ou mais actos, sejam eles materiais ou jurídicos) que, sendo dirigida aos restantes comproprietários e levada ao seu conhecimento, evidencie, de forma inequívoca, que passou a actuar em relação à coisa como titular exclusivo do respectivo direito de propriedade e que, nessa medida, se opõe ao direito (de compropriedade) dos outros e a qualquer uso que estes pretendam fazer enquanto titulares desse direito. II – Estando em causa uma situação de compropriedade de uma faixa de terreno usada para acesso aos prédios, a colocação, por parte de um dos comproprietários, de um portão munido de fechadura à entrada do caminho (a partir da via pública), que mantinha fechado e cuja chave estava na sua posse exclusiva, constitui um acto idóneo para inverter o título da posse. III – A posse correspondente ao exercício de um direito de compropriedade sobre uma faixa de terreno usada para acesso aos prédios que conduziu à aquisição, por usucapião, desse direito (de compropriedade) não é uma posse relevante e não pode ser invocada posteriormente, após a perda desse direito – por força da inversão do título da posse e da posse exclusiva que, a partir desse momento, passou a ser exercida pelo outro comproprietário e com fundamento na qual este veio a adquirir, por usucapião, o direito de propriedade sobre a totalidade daquela faixa de terreno –, para efeitos de constituição, por usucapião, de uma servidão de passagem sobre essa faixa de terreno. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
Decisão Texto Integral: | Apelação nº 233/06.6TBAMM.C2 Tribunal recorrido: Comarca de Viseu - Lamego - JL Cível Relatora: Maria Catarina Gonçalves 1.º Adjunto: Maria João Areias 2.º Adjunto: Paulo Correia
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. AA e mulher, BB, residentes na Rua ..., freguesia ... concelho e comarca ..., instauraram a presente acção contra a Herança Ilíquida e Indivisa, por óbito de CC, representada pelos seus únicos e universais herdeiros DD (entretanto falecida e agora representada pelos herdeiros habilitados), EE, casada sob o regime de comunhão de adquiridos com FF e GG, casado com HH, formulando os seguintes pedidos: - Que seja declarado o direito de propriedade dos Autores sobre os prédios identificados no art.º 1.º da petição inicial, assim como a sua compropriedade do caminho identificado na p.i. que serve de acesso àqueles prédios a partir da rua pública e ao longo da fachada da casa da Ré; Ou subsidiariamente (caso não se demonstre a compropriedade sobre o referido caminho): - Que seja reconhecido aos prédios identificados em 1.º da PI um direito de servidão de passagem sobre o caminho identificado: E, em qualquer dos casos: - Que a Ré seja condenada a manter, livre e desimpedido, o espaço do referido caminho de forma que os AA por ele possam transitar livremente como acesso de e para os seus prédios; - Que a Ré seja condenada a não impedir que os AA., caso assim o entendam, pavimentem o chão do caminho; - Que a Ré seja condenada a retirar da parede da casa dos AA o estendal de roupa que nela mantém, assim como restituir essa parede à sua situação original, nomeadamente tapando os buracos e reparando a pintura da área afectada; e, - Que a Ré seja condenada a indemnizar os AA. de todos os danos morais que lhes causaram no montante que resultar de liquidação de sentença.
Para fundamentar essas pretensões, alegaram em síntese: - Que são proprietários dos prédios que identificam, propriedade que adquiriram por usucapião, estando essa aquisição registada a seu favor na Conservatória do Registo Predial; - Que no património da herança Ré está integrado um prédio urbano que confronta com um dos prédios dos Autores; - Que o acesso a essas casas sempre se fez por um caminho, com 15 m de comprimento e dois de largura, que tem início na rua pública e que, prolongando-se ao longo da casa da Ré, termina junto à entrada da segunda das casas dos Autores; - Que sempre utilizaram esse caminho na convicção de que esse caminho era comum às casas de Autores e Réu, tendo, por isso, adquirido, por usucapião, o direito de compropriedade sobre o mesmo; - Que, há cerca de dois anos, a primeira representante da Ré vem impedindo os Autores de utilizar esse caminho, fechando com um cadeado o portão de entrada e mantendo ocupada uma grande parte do espaço desse caminho e tendo impedido os Autores de pavimentar esse caminho; - Que, além do mais, a Ré também vem mantendo cravado na parede da casa dos Autores um estendal de roupa que, além de ter implicado a abertura de buracos nessa parede, também danificou a respectiva pintura; - Que toda essa situação tem causado incómodos, aborrecimentos e preocupações aos Autores.
A Ré contestou, aceitando o direito de propriedade dos Autores sobre os referidos prédios urbanos – direito que alega nunca ter questionado – e negando a existência de qualquer direito de compropriedade dos Autores sobre o referido caminho. Mais alega: - Que a faixa de terreno em questão é de sua propriedade, sendo certo que foi sempre o autor da herança e mulher que exerceram actos de posse sobre o caminho, utilizando e limpando esse caminho e nele colocando um portão de madeira que, mais tarde, substituíram por um portão de ferro munido de fechadura (de cuja chave eram exclusivos possuidores) e onde, há cerca de vinte anos, colocaram um cadeado cujas chaves também estiveram sempre na sua posse exclusiva; - Que, ainda que em tempos longínquos, o terreno tivesse servido de acesso às casas dos Autores, sempre a Ré teria adquirido, por usucapião, a sua propriedade exclusiva por ter existido inversão do título da posse quando ali colocaram um portão com chave dotado de chave que mais ninguém possui; - Que também não existe qualquer servidão de passagem – que, a ter existido, já estaria extinto pelo não uso – sendo certo que, desde Novembro de 1961 (data em que a Ré adquiriu o prédio), nem os Autores nem os seus antepossuidores passaram pela referida faixa de terreno, a não ser ocasionalmente, por mera tolerância e favor ou sem o conhecimento do autor da herança ou respectivos representantes; - Que o estendal da roupa está cravado numa parede do prédio da Ré (parede que os Autores, abusivamente e contra a vontade dos representantes da Ré, aproveitaram quando reconstruíram as suas casas). Com esses fundamentos e impugnando ainda os danos alegados pelos Autores, concluem pela improcedência da acção, pedindo, em reconvenção que, em caso de procedência do pedido subsidiário dos AA, seja reconhecido o direito de propriedade exclusiva da Ré sobre o “caminho” identificado e que se declare a extinção da servidão alegada pelos AA, pelo seu não uso durante vinte anos, condenando-se os AA no reconhecimento desse direito e dessa extinção.
Os Autores responderam, pugnando pela improcedência do pedido reconvencional.
Proferido o despacho saneador e na sequência dos demais trâmites legais – com realização da audiência de julgamento – foi proferida sentença onde se decidiu: - Declarar extinta a instância, por inutilidade, referente ao pedido de declaração de propriedade dos Autores sobre os prédios urbanos identificados na p.i. (o primeiro inscrito na matriz respectiva da freguesia ..., sob o artigo ...9, e o segundo sob os artigos ...0, ...1 e ...7 da mesma matriz e freguesia, descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...10 e ...99, respectivamente, os quais foram adquiridos, por compra e o correspondente à inscrição G” por doação); - Declarar improcedentes os demais pedidos formulados pelos Autores, com a consequente absolvição da Ré desses pedidos; - Declarar procedente o pedido reconvencional, declarando a Ré proprietária do caminho identificado nos autos (caminho com início na via pública junto ao imóvel propriedade da Ré inscrito matricialmente sob o artigo ...4.º, que se prolonga ao longo deste e termina junto à entrada do prédio urbano, sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...99).
Na sequência de recurso interposto pelos Autores, veio a ser proferido Acórdão nesta Relação – em 22/09/2021 – que, com fundamento na contradição que considerou existir entre as decisões proferidas em relação aos pontos 7 e 18 da matéria de facto, decidiu nos seguintes termos: “1) Anulam a sentença proferida na 1.ª instância. 2) Anulam parcialmente a audiência de discussão e julgamento e determinam que se proceda à repetição da prova, relativamente à matéria contante dos pontos 7. e 18. dos Factos Provados, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições”.
Após baixa dos autos à 1.ª instância, foi determinada a notificação das partes para informarem, em dez dias, se pretendiam produzir nova prova e, em caso afirmativo, para indicarem a mesma.
Regularmente notificadas, as partes nada disseram.
Perante essa situação, foi proferido – em 10/11/2022 – novo despacho com o seguinte teor: “Notifique novamente as partes para que em dez dias venham dizer se pretendem voltar a ouvir as testemunhas já ouvidas ou se pretendem produzir nova prova, advertindo que caso nada venham dizer, o silêncio será entendido como não querendo voltar a ouvir as mesmas testemunhas ou produzir nova prova. Caso nada venham dizer no prazo de dez dias, notifique as partes para querendo, informarem se concordam em produzir alegações por escrito sobre a questão suscitada pelo Venerando Tribunal da Relação, advertindo que o silêncio será tido como concordância. Caso nada venham dizer neste segundo prazo, notifique as partes para, em dez dias, produzirem alegações escritas sobre a contradição apontada pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra”.
Regularmente notificadas nos termos da 1.ª parte do referido despacho, as partes nada disseram; o mesmo aconteceu na sequência da notificação ordenada na 2.ª parte do despacho.
As partes foram então notificadas nos termos e para os efeitos da 3.ª e última parte daquele despacho e, na sequência dessa notificação, ambas as partes apresentaram alegações escritas, propondo, com base na prova que já havia sido produzida, as alterações à decisão da matéria de facto que entendiam relevantes para eliminar a contradição existente e daí retirando as devidas ilações ao nível da decisão final.
Na sequência desses actos, foi proferida nova sentença que, com excepção das correcções efectuadas aos citados pontos de facto, reproduziu a sentença anterior, aí se decidindo (em termos idênticos aos que constavam da primeira sentença) nos seguintes termos: - Declarar extinta a instância, por inutilidade, referente ao pedido de declaração de propriedade dos Autores sobre os prédios urbanos identificados na p.i. (o primeiro inscrito na matriz respectiva da freguesia ..., sob o artigo ...9, e o segundo sob os artigos ...0, ...1 e ...7 da mesma matriz e freguesia, descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...10 e ...99, respectivamente, os quais foram adquiridos, por compra e o correspondente à inscrição G” por doação); - Declarar improcedentes os demais pedidos formulados pelos Autores, com a consequente absolvição da Ré desses pedidos; - Declarar procedente o pedido reconvencional, declarando a Ré proprietária do caminho identificado nos autos (caminho com início na via pública junto ao imóvel propriedade da Ré inscrito matricialmente sob o artigo ...4.º, que se prolonga ao longo deste e termina junto à entrada do prédio urbano, sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...99).
Inconformados, os Autores vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões: (…).
Não houve resposta ao recurso. ///// II. Questões a apreciar: Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir: · Incumprimento do Acórdão da Relação proferido nos autos (saber se foi dado cumprimento ao que aí se determinou e apurar as consequências emergentes do eventual incumprimento): · Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto (saber se a decisão da matéria de facto deve ser alterada nos termos propostos pelos Apelantes); · Inversão do título da posse (saber se a colocação do portão fechado cuja chave ficou na exclusiva disponibilidade do autor da herança Ré e, subsequentemente, dos seus sucessores é um acto idóneo para inverter o título da posse em relação a uma faixa de terreno – caminho – de que os Apelantes e o autor da herança eram comproprietários); · Servidão de passagem (saber – caso se conclua pela existência de inversão do título da posse e pela aquisição, por parte da Ré, do direito de propriedade exclusivo sobre o referido caminho – se estão verificados os pressupostos necessários para reconhecer a constituição, por usucapião, de uma servidão de passagem a favor dos prédios dos Autores/Apelantes sobre a referida faixa de terreno). ///// III. Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto: 1. Encontram-se inscritos a favor dos Autores, pelas inscrições n.º G1, G1, G2 e G3, dois prédios urbanos, sitos no lugar ..., ambos compostos de casa de habitação, um deles de dois andares, e o outro de três andares, o primeiro inscrito na matriz respectiva da freguesia ..., sob o artigo ...9, e o segundo sob os artigos ...0, ...1 e ...7 da mesma matriz e freguesia, descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...10 e ...99, respectivamente. 2. Por si e respectivos antecessores cuja posse podem juntar à sua, já há mais de 20, 30 anos continuada e ininterruptamente, que os demandantes vêm possuindo a referida casa, nela habitando, guardando produtos e alfaias agrícolas assim como todos os seus bens pessoais, transformando-a melhorando-a como entendem, pagando as respectivas contribuições e impostos e, enfim, praticando os demais actos próprios de seus donos, como tal se afirmando e sendo reputados por toda a gente. 3. A 06/07/1999, no Cartório Notarial ..., DD, viúva, natural da freguesia ..., declarou: “que é cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC e que, nessa qualidade declara, que no dia .../.../1998 na freguesia ... onde residia, faleceu CC, (no estado de casado em primeiras e únicas núpcias de ambos, sob o regime de comunhão geral de bens com ela cabeça de casal. Que o falecido não deixou testamento ou qualquer disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido a sua referida mulher DD (…) e dois filhos: II (…) e GG (…)”. 4. Na relação de bens da Ré constam dois prédios urbanos sitos na proximidade dos imóveis dos AA: uma casa de habitação com dois andares, inscrita matricialmente sob o art. 94 e um armazém, actualmente com um andar, inscrito matricialmente sob o art. ...3.º. 5. Existe um caminho/quelho com início na via pública junto a um dos imóveis da Ré, que se prolonga ao longo desta e termina junto à entrada da segunda das referidas casas pertencentes aos AA. 6. O referido caminho tem cerca de 15metros de cumprimento e de 1metro e 50centímetros de largura média e durante muitos anos e, pelo menos, até 1970, esteve livre para passagem dos donos das referidas quatro casas, bem como das demais pessoas que a elas se dirigiam. 7. Os donos dessas casas, nomeadamente os Autores, por si e respectivos antecessores utilizaram esse caminho, até por volta de 1970, tanto como acesso de e para as suas casas, como para colocação momentânea de materiais e produtos destinados à sua vida doméstica e agrícola, na convicção de tal caminho ser comum a todas as casas. 8. Situação que se verificou, durante mais de 20,30 anos, até cerca de 1970. 9. Até por volta de 1970, tal situação verificou-se continuada e ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem alguma vez se terem defrontado com a oposição ou, sequer, contestação de alguém. 10. Pelo menos em 2004, a primeira representante da Ré fechou com um cadeado o portão de entrada para o caminho, que se encontrava junto à via pública, sendo ela a única detentora das respectivas chaves. 11. Acresce que parte do caminho, principalmente na parte correspondente à fachada da casa da Ré, encontra-se ocupada com um tanque, um fogão velho, madeiras diversas e lenha. 12. Foram CC e mulher que colocaram, por volta de 1970, na parte que confronta com a via pública, um portão, que inicialmente era de madeira e uma tranca e que, pouco tempo depois, ainda na década de 1970, o substituíram por um portão de ferro, que muniram de fechadura com chave da qual eram os exclusivos possuidores e a quem era preciso pedir as chaves para se passar no caminho. 13. A colocação do portão referida em 12, não mereceu oposição de ninguém mormente dos proprietários dos prédios ali existentes até 2004. 14. Desde que colocaram o portão de madeira, o mesmo encontrou-se fechado de dia e de noite. 15. E pelo menos desde 1961, data em que se tornaram proprietários dos imóveis descritos, foram eles que limparam a faixa de terreno, desbastando as ervas que nela crescem, na parte em que era terra batida, cimentando grande parte dela e sempre lavaram, varreram e repararam. 16. Desde a colocação do portão de madeira, cerca de 1970, até 2004, os proprietários dos imóveis da segunda Ré, usavam o caminho para acederem à sua casa, para colocar objectos diversos, o que fizeram à frente de toda a gente, sem a oposição de ninguém e ininterruptamente. 17. Os prédios dos Autores têm acesso directo para a via pública, ou para um pátio sua pertença, o qual tem acesso directo à via pública, acessos esses que sempre foram utilizados pelos seus proprietários e por quem os visitasse. 18. Pelo menos a partir da colocação do portão de ferro com chave, os autores apenas utilizaram o caminho ocasionalmente, por mera tolerância e favor ou sem o conhecimento e consentimento de CC e mulher ou dos representantes da Ré. * Julgaram-se não provados os seguintes factos: a) O acesso às casas dos Autores e da Ré sempre se fez pelo caminho indicado em 5. b) O caminho referido em 5 sempre esteve livre para passagem dos donos das referidas quatro casas bem como das demais pessoas que a elas se dirigiam. c) Os Autores fizeram sempre o descrito em 7, bem como faziam a limpeza e manutenção do caminho. d) O caminho encontra-se ocupado com lixo diverso. e) Os Autores propuseram pavimentar o chão do ajuizado caminho. f) Tal sendo necessário também para evitar infiltrações de água para o interior da segunda das referidas casas dos Autores. g) Mas disso os Autores foram imediatamente impedidos pela primeira representante da Ré. h) A Ré vem mantendo cravado na parede da casa dos Autores um estendal de roupa cuja colocação implicou a abertura de vários buracos na mesma parede, assim como danificou a respectiva pintura. i) Foram várias as interpelações dos Autores à Ré, na pessoa da sua primeira representante para desimpedir o acesso ao caminho, limpar todo o respectivo espaço, permitir a sua pavimentação. j) E retirar o referido estendal, limpando os buracos e reparando a pintura na área afectada. k) O que ficou descrito relativamente ao caminho tem causado os maiores incómodos, aborrecimentos e preocupações aos autores. l) E também, por afectar o projecto turístico em desenvolvimento e exploração nas suas casas, pela má impressão (de sujidade e desarrumação) que possa causar aos clientes. m) Pelo menos desde a colocação do portão de madeira, apenas os proprietários dos imóveis da Ré utilizaram o caminho para aceder à sua casa. n) Os proprietários dos imóveis pertencentes à segunda Ré, fizeram o descrito em 16 com a convicção de que não lesavam o direito de ninguém. o) O estendal da roupa referido em 13 encontra-se cravado numa parede que é parte integrante do prédio urbano inscrito matricialmente sob o artigo ...3.º. ///// IV. Passamos a apreciar as questões colocadas no recurso.
Incumprimento do Acórdão da Relação proferido nos autos A primeira questão abordada pelos Apelantes no recurso que vieram interpor prende-se com o alegado incumprimento do que havia sido determinado no Acórdão da Relação proferido nos autos, em virtude de, ao contrário do que neste se havia determinado, não ter sido repetida a prova em relação à matéria constantes dos pontos 7 e 18. Em rigor, poder-se-á dizer que assim foi efectivamente. De facto, o referido Acórdão havia determinado que se procedesse “...à repetição da prova, relativamente à matéria constante dos pontos 7. e 18. dos Factos Provados...” e tal não aconteceu. Refira-se, no entanto, que a prova não foi repetida porque as partes não manifestaram qualquer interesse nesse sentido, evidenciando, portanto, que, na sua perspectiva, essa repetição não era relevante e nada acrescentaria à prova que já havia sido produzida e estava gravada. Veja-se: - As partes foram notificadas – por notificação elaborada em 10/10/2022 – para informar se pretendiam produzir nova prova e, em caso afirmativo, para indicarem a mesma; nenhuma delas respondeu a essa notificação; - As partes foram novamente notificadas – por comunicação datada de 10/11/2022 – para dizer se pretendiam voltar a ouvir as testemunhas já ouvidas ou se pretendiam produzir nova prova, com expressa advertência de que o seu silêncio seria entendido como não querendo voltar a ouvir as mesmas testemunhas ou produzir nova prova; mais uma vez as partes nada disseram; - Por comunicação de 02/12/2022, as partes foram notificadas para informar se concordavam em produzir alegações por escrito sobre a questão suscitada pelo Tribunal da Relação (o que significava, naturalmente, que, como resultava das notificações anteriores e da subsequente inação das partes, a questão iria ser julgada sem produção ou repetição de qualquer prova); as partes nada disseram na sequência dessa notificação; - Por comunicação de 21/12/2022, as partes foram notificadas para apresentar alegações por escrito, o que vieram fazer, sem que, em momento algum, tenham aludido à necessidade de produzir ou repetir qualquer prova. Nessas circunstâncias e perante todas essas notificações, não poderão agora os Autores/Apelantes invocar essa questão, quando é certo que tiveram várias oportunidades para o fazer e nunca invocaram qualquer irregularidade que pudesse resultar da falta de repetição da prova (prova que – reafirma-se – nunca disseram qual deveria ser). Além do mais, os Apelantes nem sequer retiram as devidas consequências da sua alegação, sendo certo que não pedem – como seria expectável – nova anulação da sentença e do julgamento para o efeito de dar efectivo cumprimento ao que havia sido ordenado, ou seja, para repetir a produção de prova em relação aos citados pontos de facto. Aparentemente – ao que nos é dado perceber – a única consequência que os Apelantes pretendem retirar daquela circunstância é a de que, sem produção ou repetição da prova (ou seja, com a mesma prova), a sentença não podia alterar os pontos 7 e 18 dos factos provados porque não tinha elementos para tal. Mas isso, salvo o devido respeito, é questão que apenas se prende com eventual erro de julgamento da decisão que julgou provados esses factos que, como tal, será apreciado – e, eventualmente, reparado – aquando da apreciação dessa decisão e da impugnação que lhe foi dirigida pelos Apelantes, caso estejam reunidos os pressupostos necessários para tal apreciação.
Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto Os Apelantes impugnam a decisão que julgou provados os factos constantes dos pontos 7 e 18, sustentando que o ponto 7 deve manter-se com a redacção que constava da primeira sentença e que o ponto 18 deve ser eliminado da matéria de facto provada (julgando-se, portanto, não provado), julgando-se provado que os AA. continuaram a passar no caminho em causa, mesmo após a colocação do portão de ferro com fechadura, ainda que tendo que pedir a chave à primeira R. O ponto 7 tem a seguinte redacção: “Os donos dessas casas, nomeadamente os Autores, por si e respectivos antecessores utilizaram esse caminho, até por volta de 1970, tanto como acesso de e para as suas casas, como para colocação momentânea de materiais e produtos destinados à sua vida doméstica e agrícola, na convicção de tal caminho ser comum a todas as casas”. O ponto 18 tem a seguinte redacção: “Pelo menos a partir da colocação do portão de ferro com chave, os autores apenas utilizaram o caminho ocasionalmente, por mera tolerância e favor ou sem o conhecimento e consentimento de CC e mulher ou dos representantes da Ré”. Em relação ao ponto 7, os Apelantes pretendem apenas que se elimine a expressão “até por volta de 1970”, já que foi apenas isso que agora se acrescentou em relação à redacção que constava da primeira sentença e que, segundo os Apelantes, deve manter-se. Em relação ao ponto 18, os Apelantes pretendem que se julgue provado que os AA. continuaram a passar no caminho em causa, mesmo após a colocação do portão de ferro com fechadura, ainda que tendo que pedir a chave à primeira R., julgando-se não provado que apenas o fizeram ocasionalmente e por mera tolerância e favor ou sem o conhecimento e consentimento de CC e mulher ou dos representantes da Ré.
No que diz respeito ao ponto 7, a pretensão dos Apelantes não tem qualquer utilidade/relevância e, por isso, não merece procedência. Na verdade, os Autores pretendem apenas que ele passe a ter a redacção que constava da primeira sentença, eliminando-se, portanto, a expressão que agora foi acrescentada “até por volta de 1970” (porque, na sua perspectiva, sem a repetição da prova, não poderia ser alterado o que havia sido julgado provado na primeira sentença). Sucede que aquilo que agora foi acrescentado ao ponto 7 já resultava do ponto 8 da primeira sentença, como continua a constar da segunda. Com efeito, lendo o ponto 7 da primeira sentença em conjunto com o ponto 8, o que daí resultava era que a situação referida no ponto 7 se havia verificado até, pelo menos, 1970 e, portanto, a redacção introduzida pela segunda sentença ao ponto sete nada acrescentou de útil ao que já se havia considerado provado na primeira sentença nos pontos 7 e 8 e apenas incluiu no ponto 7 um facto que já constava do ponto 8. Significa isso, portanto, que a eliminação da expressão acrescentada ao ponto 7 – conforme pretendem os Apelantes – não teria qualquer utilidade, uma vez que aquilo que ela pretende exprimir já resulta do ponto 8.
A pretensão dos Apelantes em relação ao ponto 18 também não está em condições de proceder, desde logo porque não estão reunidos os pressupostos necessários para apreciação da impugnação deduzida em relação ao citado ponto de facto. Como é sabido e como resulta expressamente do art.º 640.º do CPC, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto implica e exige – sob pena de rejeição – o cumprimento de uma série de ónus. Além do ónus de indicar os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados (cfr. alínea a) do n.º 1 da citada disposição legal) e de indicar a decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c) do n.º 1 do citado art.º 640.º) – ónus que os Apelantes cumpriram nos termos acima mencionados – a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto exige ainda o cumprimento do ónus de indicar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo), acrescendo ainda o ónus de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso quando os meios probatórios invocados para fundamentar a impugnação tenham sido gravados, (cfr. n.º 2, alínea a), do mesmo art.º 640.º). Ora, os Apelantes não cumpriram o último ónus referido, pois é certo que não indicaram as passagens da gravação em que se funda o recurso; não o fizeram com exactidão, como impõe a lei, e não o fizeram de qualquer outra forma (ainda que inexacta ou deficiente). Com efeito, apesar de aludirem a determinados depoimentos (depoimentos dos Autores e depoimentos das testemunhas JJ, KK e LL), os Apelantes não fazem, em momento algum das suas alegações, qualquer alusão às passagens da gravação e nem sequer procedem à transcrição de qualquer excerto dos respectivos depoimentos, limitando-se a fazer alusão ao teor das declarações que, segundo a decisão recorrida, teriam sido produzidas pelos Autores e pelas referidas testemunhas. Ou seja, a menção que fazem ao conteúdo desses depoimentos é sempre feita por referência ao que, a esse propósito, foi dito na decisão recorrida e não por referência directa aos depoimentos, sem proceder, portanto, à transcrição de qualquer excerto e sem indicar as passagens da gravação onde teriam sido produzidas as declarações que pretendem invocar para fundamentar o recurso. Não ignoramos que o STJ tem vindo a entender que essa exigência legal deve ser interpretada e aplicada em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade e que, como tal, não se justificará a imediata e liminar rejeição do recurso quando, apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado[1]. No entanto, ainda que assim se deva entender, será sempre necessário, sob pena de a exigência legal se tornar “letra morta”, um cumprimento mínimo (ainda que em termos deficientes) dessa exigência, o que, no caso, não aconteceu, sendo certo que os Apelantes não esboçaram qualquer tentativa de indicar as concretas declarações (fosse por referência à gravação, fosse por transcrição das mesmas) em que se fundam. Tal situação implica, conforme determinado pela alínea a) do n.º 2 do citado art.º 640.º, que, na parte em que se funda nos depoimentos prestados, o recurso não possa ser apreciado. De qualquer forma, ainda que assim não fosse, dificilmente se justificaria a alteração da matéria de facto nos termos peticionados pelos Apelantes. Em relação ao citado ponto de facto (18), os Apelantes pretendem que se julgue provado que os AA. continuaram a passar no caminho em causa, mesmo após a colocação do portão de ferro com fechadura, ainda que tendo que pedir a chave à primeira R., julgando-se não provado que apenas o fizeram ocasionalmente e por mera tolerância e favor ou sem o conhecimento e consentimento de CC e mulher ou dos representantes da Ré. Resultando já do referido ponto 18 que os AA. continuaram a passar no caminho em causa, mesmo após a colocação do portão de ferro com fechadura, o que os Apelantes pretendem, na verdade, é que, ao contrário do que aconteceu, não se julgue provado que apenas o tenham feito ocasionalmente e por mera tolerância e favor ou sem o conhecimento e consentimento de CC e mulher ou dos representantes da Ré. Todavia, reconhecendo os Apelantes, nas suas alegações de recurso, que apenas utilizam o caminho ocasionalmente (apenas no Verão, tendo em conta que residem na ...) e aceitando que o portão tinha fechadura e que a passagem pelo caminho implicava a necessidade de pedir a chave à Ré (resultando provado – sem que os Apelantes impugnem – que os Réus eram os exclusivos possuidores da chave e que a passagem pelo caminho implicava a necessidade de lhes pedir a chave), dificilmente se poderia concluir que a passagem dos Apelantes naquele local não fosse feita por mera tolerância e favor ou sem o conhecimento e consentimento de CC e mulher ou dos representantes da Ré. Com efeito, não tendo a chave do portão, parece evidente que os Apelantes só poderiam aceder ao caminho se CC e mulher ou os representantes da Ré lhe abrissem o portão e tal significa, naturalmente, que não tinham liberdade para aceder ao caminho quando quisessem e que apenas o poderiam fazer se e quando isso lhes fosse permitido pelos possuidores da chave do portão que vedava o acesso, ou seja, se e quando estes autorizassem essa passagem. Seja como for e conforme se referiu, os Apelantes não cumpriram os ónus legais com vista à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e, portanto, o recurso não está, nessa parte, em condições de ser efectivamente apreciado com audição e reapreciação dos depoimentos prestados. Mantém-se, portanto, pelas razões expostas, a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Inversão do título da posse A sentença recorrida considerou que, até 1970 e durante mais de 30 anos, os Autores e seus antecessores teriam efectivamente exercido sobre o caminho em causa nos autos uma posse correspondente ao exercício do direito de compropriedade e que, nessa medida, era apta para aquisição, por usucapião, desse direito. Considerou, no entanto, a decisão recorrida que, em 1970 e com a colocação de um portão munido de fechadura pelo autor da herança Ré e mulher, ocorreu inversão do título da posse, passando estes a comportar-se como exclusivos proprietários do caminho e passando, portanto, a exercer uma posse exclusiva que perdurou, de forma pública e pacífica, durante mais de 20 anos e que, como tal, conduziu à aquisição, por usucapião, desse direito (exclusivo) de propriedade. Assim, – considerou a decisão recorrida – ainda que os Autores tivessem adquirido por usucapião a (com)propriedade do caminho, vieram a perdê-la, na década de 70. Com esses fundamentos, julgou-se improcedente a pretensão dos Autores por via da qual pretendiam ver reconhecido o seu direito de compropriedade sobre o caminho referido nos autos e, julgando-se procedente a reconvenção, declarou-se que era a Ré a proprietária desse caminho. É sobre esta questão (a inversão do título da posse) que incide o presente recurso, sustentando os Apelantes que a colocação do referido portão não tem aptidão para inverter o título da posse e que, para que tal inversão ocorresse, era necessário que existisse uma comunicação expressa da R. aos AA., que deveria consistir numa declaração de vontade inequívoca de se apropriar do caminho. Mais argumentam os Apelantes que não viram razões para se manifestarem contra a colocação do portão, pois não viram o seu direito lesado/impedido e que apenas se sentiram lesados quando, no ano de 2004, a primeira representante da R. colocou um cadeado no portão impedindo de forma definitiva o acesso daqueles ao caminho. Daí que – sustentam – o prazo de 20 anos para a R. adquirir a parte dos AA. no caminho em discussão apenas se possa começar a contar a partir de 2004. Analisemos então essa questão.
Dando como assente – uma vez que isso não é questionado no presente recurso – que os Autores e Réus, por si e pelos seus antecessores, exerceram sobre o referido caminho uma posse correspondente ao exercício do direito de compropriedade (com fundamento na qual adquiriram esse direito por usucapião), é certo que, como resulta do disposto no n.º 2 do art.º 1406.º do CC, só a inversão do título da posse poderia justificar a existência de posse exclusiva por um dos comproprietários. Na verdade, sendo permitido a qualquer dos comproprietários o uso da coisa comum, esse uso/detenção da coisa não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior àquela que lhe pertence (cfr. citado art.º 1406.º), existindo, portanto, em relação à parte que excede a sua quota, uma situação de mera detenção ou posse em nome de outrem que não basta, só por si e independentemente da intenção ou animus que lhe esteja subjacente, para aquisição de uma posse em nome próprio; para que tal aconteça é necessário que tenha existido inversão da posse. A inversão do título da posse – que é um dos meios de aquisição da posse (cfr. art.º 1263.º, alínea d) do CC) – e que supõe, segundo as palavras de Pires de Lima e Antunes Varela[2], “...a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio”, pode dar-se, segundo o disposto no art.º 1265º do CC, por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse. Não sendo invocada e não estando configurada nos autos qualquer intervenção de terceiro, centremo-nos na análise da inversão do título da posse por oposição do detentor do direito contra aquele em nome de quem possuía, já que só essa situação poderá verificar-se nos autos. Tal inversão supõe – como resulta claramente da norma citada – um acto do detentor que evidencie a sua oposição ao direito da pessoa em nome de quem possuía e a sua intenção de passar a actuar como titular do direito, oposição que, naturalmente, tem que ser dirigida a essa pessoa (em nome de quem possuía) e tem que ser feita chegar ao seu conhecimento. Mais quais são as características desse acto de oposição? Ele deve ser, seguramente, inequívoco no sentido de significar que, a partir daquele momento, o detentor quer possuir para si e não em nome de outrem. Não basta, portanto, que o detentor continue a deter o objecto ou que deixe de cumprir as obrigações impostas pelo acto jurídico em virtude do qual detém a coisa[3]. Assim, no caso específico da compropriedade (situação em causa nos autos) – e como referem Pires de Lima e Antunes Varela[4] – não basta a prova de actos incompatíveis com a posse dos restantes condóminos, ou seja, actos de uso que privem os outros consortes do uso a que também têm direito; é necessária a prova da oposição do utente contra o uso que os outros pretendam fazer da coisa. Mas será necessário que essa oposição seja manifestada através de uma declaração expressa/explícita (oral ou escrita) que seja dirigida à pessoa em nome de quem possuía? Essa será, naturalmente, a forma mais eficaz de evidenciar a intenção de se opor ao direito da pessoa em nome de quem possui e de passar a actuar como titular do direito, designadamente quando outros actos que sejam praticados com esse objectivo tenham um carácter equívoco. Mas não tem que ser assim. Na verdade, como explica Orlando de Carvalho[5], a oposição é um acto declarativo e, portanto, de acordo com a teoria da declaração de vontade, ele pode ser explícito ou implícito (cfr. art.º 217.º do CC). O que é absolutamente necessário é que ele seja inequívoco no sentido de revelar uma alteração da posição do detentor em relação à coisa que detém no sentido de passar a actuar, em relação a ela, como titular do direito. Explica, a propósito, Orlando de Carvalho[6]: “Há oposição implícita se através de um acto inequívoco o detentor revelar que se arroga uma posição jurídica real, ou uma posição mais densa do que aquela de que já desfruta. Não há, pois, declaração nenhuma, no sentido de uma declaração por meios notificativos directos. Há, porém, um ou vários factos concludentes e até, ao invés do que se exige na declaração de vontade tácita (em que basta uma concludência probabilisticamente segura), factos absolutamente concludentes. Esses factos podem ser factos empíricos –v.g., a aposição de marca ou cunho próprio –, como factos jurídicos e judiciários”. O que é absolutamente necessário, como se referiu, é a existência de um acto (material ou jurídico) – ou mais do que um – que seja inequívoco no sentido de revelar uma alteração da posição do detentor em relação à coisa que detém no sentido de passar a actuar, em relação a ela, como titular do direito e que esse acto (ou actos) sejam praticados na presença ou com conhecimento daquele a quem se opõem[7]; ou seja, um acto que traduza uma alteração do comportamento que até aí vinha sendo adoptado em termos de o detentor da coisa se apresentar perante aquele em nome de quem detinha “...com uma atitude ou um comportamento diverso daquele que havia assumido até esse momento, isto é, confrontando o titular do direito com um comportamento típico de quem passou a possuir sem qualquer constrangimento ou liberto de peias que tolhessem o uso, a fruição e a disposição plenas da coisa...”, actuando, portanto, em termos “...que anunciem e façam representar aos observadores normais uma alteração qualitativa da situação jurídica especifica e típica em que se manifesta a actuação e a acção do sujeito ” (cfr. Acórdão do STJ 09/02/2012 (processo n.º 3208/04.6TBBRR.L1.S1)[8]. Concluimos, portanto que, em relação a uma situação de compropriedade – como é o caso da situação dos autos –, para que ocorra inversão do título da posse não é necessário que o comproprietário que vinha usando a coisa comum (como lhe era permitido à luz do disposto no art.º 1406.º do CC) comunique, oralmente ou por escrito, ao(s) outro(s) comproprietário(s) que se arroga proprietário exclusivo da coisa e que é nessa qualidade que continua a usá-la; o que é necessário para que ocorra essa inversão do título da posse é que o comproprietário adopte, a partir de determinado momento, uma determinada actuação (um ou mais actos, sejam eles materiais ou jurídicos) que seja dirigida aos restantes comproprietários e seja levada ao seu conhecimento e que evidencie, de forma inequívoca, que passou a actuar em relação à coisa como titular exclusivo do respectivo direito de propriedade e que, nessa medida, se opõe ao direito (de compropriedade) dos outros e a qualquer uso que estes pretendam fazer enquanto titulares desse direito. Na situação dos autos, o acto em relação ao qual se coloca a questão de saber se constitui (ou não) um acto idóneo para inverter o título da posse corresponde ao acto por via do qual o autor da herança Ré (CC) e mulher colocaram à entrada do caminho (a partir da via pública) um portão munido de fechadura, que permanecia fechado (de dia e de noite) e cuja chave estava na sua posse exclusiva. A sentença recorrida considerou que essa actuação tinha aptidão para inverter o título da posse e nós também pensamos assim. Na verdade, aquela actuação revela – de modo inequívoco, a nosso ver – que CC e mulher pretendiam actuar em relação àquele caminho como proprietários exclusivos, opondo-se – por via da colocação daquele portão cuja chave reservaram apenas para si – à livre utilização do caminho pelos proprietários dos prédios dos Autores que resultaria do seu direito de compropriedade, traduzindo uma mensagem/declaração clara de que a utilização do caminho por qualquer outra pessoa (designadamente os Autores e seus antecessores a quem não entregaram qualquer chave) estava dependente da sua vontade e da sua autorização, na medida em que implicava necessariamente que abrissem o portão ou facultassem a chave para o efeito. Era claro, portanto, para os Autores e respectivos antecessores que, a partir daquele momento, só poderiam utilizar o caminho se e quando tal lhes fosse permitido (como sucedeu ocasionalmente – cfr. ponto 18 da matéria de facto), o que, na prática, correspondia a uma utilização dependente de consentimento e favor de quem detinha a chave e a não a uma utilização correspondente ao exercício de um direito de compropriedade, direito este que, por via daquela actuação e das restrições dela resultantes, lhes estava claramente a ser negado. Argumentam os Apelantes que a colocação do referido portão não é suficiente para haver inversão do título da posse, ainda que para o abrirem precisassem de pedir as chaves, sendo certo que o acesso nunca lhe foi vedado e nunca os RR. disseram aos AA. que só por favor ou “mera tolerância” os deixavam passar. Segundo os Apelantes, a inversão do título da posse apenas poderia ter ocorrido em 2004 quando o portão foi fechado com um cadeado, passando a ser impedido o acesso pelos Autores. Salvo o devido respeito, não vislumbramos qual seja a diferença entre uma fechadura normal e um cadeado, pois é certo que, em qualquer caso, o acesso está vedado a quem não detenha a chave para abrir a fechadura ou o cadeado. Por outro lado, ainda que os Réus nunca tenham dito (por palavras) aos AA. que só por favor ou “mera tolerância” os deixavam passar, não deixaram de o dizer mediante os actos que praticaram, já que a circunstância de os Autores terem de pedir a chave para usar o caminho significava, naturalmente, que não poderiam fazer esse uso quando quisessem (como era suposto acontecer se dele fossem comproprietários) e que, para o efeito, estavam sempre dependentes da vontade/consentimento dos Réus, ou seja, do favor que estes lhes quisessem (ou não) prestar de abrir o portão ou facultar a chave. Assim e em face do exposto, improcede a questão suscitada.
Nessas circunstâncias, sendo certo que – conforme se considerou na decisão recorrida –, após a inversão do título da posse (em 1970), a Ré e antecessores passaram a exercer uma posse exclusiva que perdurou, de forma pública e pacífica, durante mais de 20 anos e que conduziu à aquisição, por usucapião, desse direito (exclusivo) de propriedade, com a consequente extinção da compropriedade dos Autores e sendo certo que os Apelantes não suscitaram, sobre essa matéria, qualquer outra questão, impõe-se confirmar a decisão recorrida na parte em que julgou improcedente o pedido de reconhecimento do direito de compropriedade dos Autores sobre o referido caminho e na parte que, julgando procedente o pedido reconvencional, declarou e reconheceu o direito de propriedade da Ré sobre tal caminho.
Servidão de passagem Subsidiariamente e para o caso de não lhes ser reconhecido o direito de compropriedade sobre o caminho – como, de facto, aconteceu –, pediam os Autores que fosse reconhecido um direito de servidão de passagem sobre o mesmo caminho que, alegadamente, teriam adquirido por usucapião. Tal pretensão foi também julgada improcedente pela sentença recorrida por se ter considerado que não estavam verificados os pressupostos de que dependia a constituição dessa servidão, uma vez que a matéria de facto provada não permitia concluir pela existência de uma utilização permanente, ou sequer regular, do caminho em causa após a inversão do título da posse e o que havia resultado provado é que os Autores apenas haviam usado esse caminho ocasionalmente e por mera tolerância da Ré a quem tinham de pedir as chaves do portão. Argumentam, no entanto, os Apelantes que esse direito deve ser reconhecido, uma vez que: - Ao contrário do que se considerou na decisão recorrida a posse a considerar para efeito da existência de uma servidão de passagem não poderá ser apenas a exercida a partir de 1970 (data da pretensa inversão do título de posse), mas sim de toda a posse anterior que, conforme resulta dos factos provados nos pontos 7, 8 e 9, foi pelo tempo e demais condições exigidas para a constituição do alegado direito de servidão. - Ainda que tivesse ocorrido a inversão do título de posse, sempre subsistiria a servidão baseada na posse exercida pelos AA. durante todo o tempo anterior, uma vez que a inversão do título de posse e consequente aquisição da propriedade exclusiva do caminho por parte dos RR. não é incompatível com a servidão; bem ao contrário, uma vez que só há servidão sobre propriedade alheia. - Ao contrário do que se considerou, a circunstância de apenas utilizarem o caminho em causa ocasionalmente (uma vez que residiam na ... e quase só se deslocavam à localidade no Verão) não excluiu o direito de servidão de passagem.
Pensamos não assistir razão aos Apelantes. Ao contrário do que sustentam os Apelantes, a posse que exerceram até 1970 não pode ser considerada para efeitos de constituição, por usucapião, de uma servidão de passagem. Com efeito, conforme resulta do disposto no art.º 1287.º do CC, o direito cuja aquisição, por usucapião, é facultada ao possuidor é o direito a cujo exercício corresponde a sua actuação. Ora, conforme resulta da matéria de facto provada e conforme se considerou na sentença recorrida (sem que tal tenha sido questionado no âmbito deste recurso), a posse exercida pelos Autores/Apelantes até 1970 não era uma posse correspondente a qualquer direito de servidão de passagem, mas sim uma posse correspondente a um direito de compropriedade sobre a faixa de terreno em questão (caminho). Nessas circunstâncias, o direito que os Autores poderiam adquirir com fundamento nessa posse e na usucapião era o direito de compropriedade. Importa notar, além do mais, que essa posse (exercida até 1970) foi invocada pelos Autores/Apelantes para efeitos de aquisição do direito de compropriedade (direito que era objecto da posse) e essa aquisição foi efectivamente reconhecida pela sentença recorrida, sucedendo, no entanto, que os Autores vieram a perder esse direito (adquirido com base nessa posse) por força da inversão do título da posse (que ocorreu em 1970 nos termos acima mencionados) e da posse exclusiva que, a partir desse momento, passou a ser exercida pelo outro comproprietário (o autor da herança Ré) e com fundamento na qual a Ré veio a adquirir, por usucapião, o direito de propriedade sobre a totalidade daquela faixa de terreno. Ora, se a referida posse (exercida até 1970) já serviu para fundamentar a aquisição, por usucapião, do direito de compropriedade, é certo que ela já não poderia agora ser invocada e utilizada para, depois de os Autores terem perdido o direito de compropriedade que haviam adquirido, fundamentar a constituição, por usucapião, de uma servidão de passagem. A posse dos Autores em questão – entretanto perdida – não constitui, portanto, posse relevante para efeitos de constituição de qualquer servidão de passagem sobre a referida faixa de terreno. A constituição, por usucapião, de uma servidão de passagem pressupunha, portanto, que, após a inversão do título da posse (em 1970), os Autores tivessem adquirido e exercido uma nova posse (diferente da anterior) que tivesse como objecto esse direito e que a tivessem mantido pelo lapso de tempo legalmente exigido (cfr. art.º 1287.º do CC). A verdade, porém, é que a matéria de facto que se julgou provada não permite concluir pela aquisição e existência dessa posse. A posse – que, segundo o disposto no art.º 1251.º, “é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real” – é integrada por dois elementos estruturais: o corpus e o animus possidendi, definindo-se o corpus como o exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, enquanto o animus possidendi se caracteriza como a intenção de agir como titular do direito correspondente aos actos realizados. Daí que o acto de aquisição da posse que releva para a usucapião tenha de conter os dois elementos definidores do conceito de posse: o corpus e o animus. Não se equacionando no caso dos autos a possibilidade de essa posse ter sido adquirida por uma das formas previstas nas alíneas b) a c) do art.º 1263.º do CC, é seguro afirmar que ela apenas poderia ter sido adquirida nos termos previstos na alínea a), ou seja, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito. Ora, à luz da matéria de facto que se julgou provada, pensamos não ser possível concluir pela aquisição da posse em questão. O que se julgou provado sobre essa matéria foi apenas que, a partir da colocação do portão de ferro com chave (em 1970), os Autores utilizaram o caminho ocasionalmente, por mera tolerância e favor ou sem o conhecimento e consentimento de CC e mulher ou dos representantes da Ré. Ora, os actos materiais em causa (utilização ocasional do caminho) não têm a consistência bastante para integrar o corpus da posse correspondente ao exercício de uma servidão de passagem, tanto mais que nem sequer sabemos a real frequência dessa utilização ao longo dos anos e as razões pelas quais ela não era mais permanente e regular. Estando em causa prédios que, segundo os Apelantes, apenas eram usados no Verão, até se poderia dizer que a circunstância de apenas usarem o caminho nesse período (não o usando, portanto, durante o resto do ano) não constituiria obstáculo ao reconhecimento da existência do corpus da posse, uma vez que, estando em causa um bem de uso sazonal, é normal que o uso de uma servidão de passagem em favor desse prédio também estivesse limitado a esse período. Mas a verdade é que, além de essa circunstância não constar da matéria de facto, também não sabemos qual era a efectiva regularidade dessa utilização durante o Verão e, portanto, perante o que consta da matéria de facto, torna-se difícil concluir pela prática reiterada de actos materiais (passagem pelo caminho) com energia e consistência bastantes para integrar o corpus da posse. Mas, de qualquer forma, ainda que se concluísse pela existência do corpus, não se poderia concluir pela existência de posse, uma vez que sempre faltaria o animus, ou seja, a intenção de actuar como titular do direito correspondente a uma servidão de passagem, resultando da matéria de facto provada que a utilização (ocasional) que os Autores faziam do caminho era feita por mera tolerância e favor de CC e mulher ou dos representantes da Ré, ou sem o conhecimento e consentimento, sendo certo que a faixa de terreno em questão estava vedada com um portão que se encontrava fechado sem que os Autores fossem detentores da respectiva chave e, portanto, sempre que queriam aceder a essa faixa de terreno para nela passar, os Autores tinham que pedir as chaves ao autor da herança Ré ou mulher e, mais recentemente, aos seus sucessores. Nessas circunstâncias, impõe-se concluir pela inexistência de posse e, não resultando provada a posse, é certo não poder concluir-se pela aquisição, por usucapião, de qualquer servidão de passagem. Improcede, portanto, esta questão.
Em face de tudo o exposto e perante a improcedência de todas as questões suscitadas no recurso, impõe-se a confirmação (integral) da sentença recorrida.
****** SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção): (…). ///// V.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves) (Maria João Areias) (Paulo Correia) [1] Cfr. Acórdãos do STJ de 29/10/2015 (processo n.º 233/09.4TBVNC.G1.S1); 31/05/2016 (processo n.º 889/10.5TBFIG.C1-A.S1); 02/06/2016 (processo n.º 725/12.8TBCHV.G1.S1) e 21/03/2019 (processo n.º 3683/16.6T8CBR.C1.S2), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt. [2] Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição revista e actualizada, pág. 30. [3] Cfr. Manuel Rodrigues, A Posse, 1981, páginas 232 e 233. [4] Ob. cit., pág. 360. [5] Direito das Coisas, Coimbra Editora, 2012, págs. 300 e 301. [6] Ob. cit., pág. 302. [7] Cfr. Acórdão do STJ de 29/10/2009, proferido no processo n.º 151/20..., disponível em http://www.dgsi.pt. [8] Disponível em http://www.dgsi.pt. |