Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
87/20.0T8FCR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
PRESUNÇÃO RESULTANTE DO REGISTO
LIMITES DO PRÉDIO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 12/13/2022
Votação: S
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 7.º DO CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL E 342.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A falta de alegação de factos de que possa resultar a aquisição originária de determinada parcela de terreno apenas seria relevante se não se pudesse conjugar a presunção de titularidade resultante do art. 7.º do Código do Registo Predial com a prova dos limites do prédio.

II – Assim, resultando provados os concretos limites do prédio, a presunção resultante do registo estender-se-á à totalidade da área que esteja incluída dentro desses limites, dispensando o respetivo titular de fazer prova da efetiva aquisição (originária) do direito de propriedade em relação a qualquer parcela ou área que esteja incluída dentro daqueles limites e transferindo para a parte contrária o ónus de ilidir essa presunção.

Decisão Texto Integral:

Apelação nº 87/20.0T8FCR.C1

Tribunal recorrido: Comarca da Guarda - F.C.Rodrigo - Juízo C. Genérica

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: Maria João Areias

                               Paulo Correia

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

AA e BB, residentes na Rua ..., ..., em ..., no concelho ..., vieram instaurar acção, sob a forma de processo comum, contra CC e DD, residentes na Rua ..., na freguesia ..., no concelho ..., pedindo que os Réus sejam condenados:

a) a reconhecerem o direito de propriedade dos Autores sobre a totalidade do prédio rústico, sito em ..., na freguesia ... no concelho ..., terra de centeio e pastagem, com a área de 45.124m2, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...96, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...14;

b) a reconhecerem como limite da sua propriedade o muro em toda a volta na extremidade do prédio dos Autores;

c) a absterem-se de ocupar a parcela de terreno que vai para além do limite definido pelos respectivos marcos.

Alegam, para fundamentar essa pretensão:

- Que são donos do prédio referido, tendo adquirido a sua propriedade através de compra realizada em 27/04/2015;

- Que os Réus são donos de um prédio rústico que confronta do lado sul com o prédio dos Autores;

- Que os referidos prédios sempre estiveram delimitados, do lado sul, por um muro em pedra, sendo que o prédio dos Autores se encontra murado a toda a volta;

- Que os Réus ocupam, ilegitimamente e sem qualquer título, uma área de cerca de 1,25 ha do prédio dos Autores, lavrando essa parcela de terreno onde semeia a aveia e plantou meia dúzia de árvores;

- Que os Réus marcaram tal parcela, junto do IFAP, para poder auferir de subsídios agrícolas, ilegitimamente, alegando, ao tempo, que pastoreavam tal terreno e recusando proceder à sua desmarcação;

- Que, apesar de tal lhes ter sido solicitado por várias vezes, os Réus não procederam à entrega da referida parcela.

Os Réus contestaram e deduziram reconvenção, alegando, em resumo:

- Que a referida área de 1,25 ha faz parte do seu prédio e não do prédio dos Autores, sendo certo que estão na posse dela há mais de 30 anos e adquiririam o direito de propriedade por usucapião;

- Que, além do mais, beneficiam da presunção de titularidade do direito de propriedade por via do registo efectuado a seu favor.

Com estes fundamentos concluem pela improcedência da acção e pedem, em reconvenção:

a) que se declare serem os RR. donos e legítimos proprietários do prédio identificado no artigo 4º da petição inicial;

b) que se declare serem os RR. donos e legítimos proprietários da parcela de terreno com a área de 1,25 ha, referida nos artigos 7º a 12º da petição inicial;

c) que os Autores sejam condenados a reconhecerem o direito de propriedade dos RR sobre os prédios mencionados em a) e b) supra.

Os Autores replicaram, reafirmando os factos alegados na petição inicial e concluindo pela improcedência da reconvenção.

Admitida a reconvenção, foi proferido despacho saneador e foi fixado o objecto do litigio.

Os temas da prova foram delimitados e enunciados nos seguintes termos:

a. Área e delimitação do prédio dos autores referido em 1.º da petição inicial e do prédio dos réus referido em 3.º da petição e inicial (art.º 2.º da contestação)

b. sua configuração designadamente quanto aos muros que demarcavam os limites dos prédios identificados em 1.º da petição inicial (art.5.º a 10.º da petição inicial);

c. saber se integra o prédio dos AA. identificado em 1.º da petição inicial o trato de terreno com a área de 1,25 há identificado no artigo 12.º da petição inicial;

d. saber se integra o prédio dos RR. identificado em 3.º da petição inicial o trato de terreno com a área de 1,25 ha identificado no artigo 12.º da petição inicial;

e. actos de posse exercidos pelos autores e seus ante possuidores no prédio identificado no art.º 1.º da petição inicial e no trato de terreno de 1,25ha referido em 12.º da petição inicial, duração da posse, caracteres da posse.

f. actos de posse exercidos pelos réus e seus ante possuidores no prédio identificado no art.º 3.º da petição inicial e no trato de terreno de 1,25ha em 12.º da petição inicial, duração da posse, caracteres da posse.

Posteriormente e na sequência de reclamação apresentada pelos Réus, foi eliminado o tema constante da alínea e) por corresponder a matéria não alegada pelos Autores.

Observados os demais trâmites legais e realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu nos seguintes termos:

1. Condenam-se os réus CC e DD a reconhecerem que os autores BB e AA são donos e legítimos proprietários do prédio identificado em 1.º dos factos provados e que dele faz parte integrante a parcela de terreno descrita em 11.º dos factos provados e consequentemente a absterem-se de ocupar a referida parcela de terreno.

2. Julga-se parcialmente procedente o pedido reconvencional deduzido pelos Réus CC e DD e, em consequência, declara-se que os réus são donos e legítimos proprietários do prédio identificado em 3.º dos factos provados, condenando-se os autores BB e AA no seu reconhecimento, absolvendo-se os autores do demais peticionado”.

Inconformados com essa decisão, os Réus, CC e DD, vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

A) – A sentença é nula, nos termos previstos no art. 615º, nº 1, al. d), in fine, porquanto considera provados os factos dos pontos 9º, 10º e 14º que as partes não alegaram.

B) – Tendo-se pronunciado sobre questões que não podia tomar conhecimento.

C) – Considerando a causa de pedir e pedidos dos presentes autos, conclui-se que a factualidade que vertida nos referidos pontos 9º, 10º e 14º da sentença não se integra em nenhuma das excepções previstas no citado artigo 5º nº 2, do CPC.

D) – Porquanto não estamos perante factos instrumentais, nem complementares que resultem da instrução da causa, sendo evidente também que não estamos perante factos notórios.

E) – Sem conceder, ainda que se entendesse que estamos perante factos concretizadores, o que não se aceita, a verdade é que não foi dada às partes a possibilidade de sobre eles se pronunciar.

F) – Os pontos 5º, 10º e 11º encerram somente matéria conclusiva e de direito em tudo o que vali além da menção à área da parcela.

G) – Na fundamentação da sentença, o juiz deve declarar quais os factos que julga provados e quais o que julga não provados (cfr. art. 607º, nº 4, do CPC).

H) – Não encerrando aqueles pontos 5º, 10º e 11º qualquer facto, para além da área da parcela neles referida, devem os mesmos ser eliminados do elenco dos factos da sentença.

I) – De resto, inexiste qualquer facto (e não meros juízos conclusivos ou de direito) de onde se possa concluir que os AA. são titulares do direito de propriedade sobre a parcela em discussão nos autos.

J) – Os AA. limitaram-se a alegar a aquisição derivada do referido prédio, o registo do direito de propriedade a seu favor e a dizer conclusivamente que desse prédio faz parte a parcela de terreno em discussão.

K) – Os AA. nem sequer alegaram e provaram que compraram também a parcela de terreno nos autos.

L) – A força probatória plena dos documentos autênticos, como seja a escritura pública e certidão registral, não abrange as áreas dos prédios neles mencionados, as suas confrontações ou quaisquer outros elementos ínsitos no documento, isto é, não cobre a veracidade ou a sinceridade do declarado.

M) – Por isso, a presunção da titularidade do direito estabelecida no art. 7º do Código de Registo Predial, que não foi ilidida, cinge-se somente ao facto jurídico inscrito e não também a totalidade dos elementos de identificação física, económica e fiscal do prédio.

N) – O pedido de reconhecimento de que a parcela faz parte de um terreno registado, sem invocação de materialidade integrante da usucapião, leva à ineptidão da petição inicial ou, pelo menos, à incontroversa improcedência da acção, por falta de alegação de factos necessários à procedência do pedido.

O) – Para se poder concluir que o prédio identificado no artigo 1), da petição, inclui a referida faixa de terreno, caberia aos AA, na petição, alegar factos concretos que o demonstrassem;

P) – Tendo os AA. se limitado a dizer que a faixa de terreno é parte integrante do prédio, formularam uma conclusão, não apresentando factos susceptíveis de serem levados a julgamento e a serem demonstrados, não podendo dizer-se que, numa situação destas, bastaria a indicação das confrontações do prédio para se poder concluir pela extensão ou delimitação do mesmo.

Q) – Assim sendo, a presente acção deve ser julgada não provada e improcedente na parte relativa à propriedade da parcela em questão nos autos.

R) – Impondo-se, a revogação da sentença em conformidade.

S) – O tribunal a quo violou o disposto nos artigos 3º, nº 3, 186º, 607º, nº 4, e 615º, nº 1, al. d) do CPC.

Conclui pedindo a revogação da sentença recorrida e a improcedência dos pedidos formulados na petição inicial.

Não foram apresentadas contra-alegações.


/////

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

- Saber se os factos constantes dos pontos 9, 10 e 14 podiam ter sido considerados – e julgados provados – sem que tivessem sido alegados pelas partes;

- Saber se o teor dos pontos 5, 10 e 11 deve ser eliminado da matéria de facto por estar em causa matéria conclusiva e de direito;

- Saber se, em face da matéria de facto, estão reunidos os pressupostos necessários para a procedência da acção, o que equivale a saber se existem elementos bastantes para concluir que os Autores são titulares do direito de propriedade sobre a parcela de terreno que está em discussão nos autos.


/////

III.

Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:

1.º - Os AA. são donos e legítimos possuidores do prédio rústico, sito em ..., na freguesia ... no concelho ..., terra de centeio e pastagem, a confrontar a norte com EE, a sul com FF, a nascente e poente com caminho, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...96, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...14, com a área de 38.446,78 m2.

2.º - Os ora AA. adquiriram a propriedade do referido prédio através de compra realizada em vinte e sete de Abril de dois mil quinze, outorgada por escritura pública.

3.º - Os RR. são donos e legítimos possuidores do prédio rústico, sito em ..., na freguesia ... no concelho ..., terreno de vinha, centeio, pastagem, oliveiras e figueiras, a confrontar a norte e nascente com GG, a sul com HH e a poente com II, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...32, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...78, com a área de 28.485,20m2

4.º - Os ora RR. adquiriram a propriedade do referido prédio através de compra realizada em três de Novembro de mil novecentos e noventa e quatro outorgada por escritura pública

5.º - As confrontações correctas do prédio dos ora RR. são as que constam da mencionada matriz predial, porquanto as mesmas se mantêm inalteráveis desde a sua inscrição matricial.

6.º - O prédio rústico inscrito a favor dos RR. não é circundado, a sul e nascente, com caminho público.

7.º - O prédio dos RR. confronta com o lado Sul do prédio dos AA.

8.º - Os prédios, do lado confinante, sempre estiveram perfeitamente definidos e delimitados por muro em pedra, sendo que o prédio dos AA. se encontra murado, em toda a sua volta, com muro em pedra, baixo e que hoje se encontra bastante danificado.

9.º - O prédio dos Réus é vedado em toda a sua delimitação por muro de pedra todo ele com as mesmas características físicas, com cerca de 1,20/1,30m de altura, muro esse que na parte em que o seu prédio confina com o prédio dos Autores também assume a função de suportar as terras, atenta a ligeira inclinação que o terreno apresenta.

10.º - O trato de terreno com uma área de cerca 1,6146 que os Autores reivindicam não está incluído no perímetro do prédio dos Réus delimitado pelo muro referido em 9.

11.º - Do prédio referido em 1.º faz parte um trato de terreno com uma área de cerca 1,6146 ha, que os RR ocupam.

12.º - Os RR., sem respeitar os referidos limites da propriedade dos AA., invadem parte do prédio rústico daqueles, numa área de cerca 1,6146 ha, tendo ali plantado meia dúzia de sobreiros há 5/6 anos, semeando aveia como se de sua propriedade se tratasse, desde data não concretamente apurada.

13.º - Sempre que o R., marido, lavra o seu prédio rústico, identificado em 3, entra no prédio dos AA., identificado em 1, lavrando parte do mesmo, numa área de 1,6146 ha, como se de sua propriedade se tratasse,

14.º - Por período não concretamente apurado, foi permitido, aos RR. pela anterior proprietária do prédio dos AA, pastorearem tal terreno.

15.º - Os AA. interpelaram os RR. para proceder à entrega imediata da parcela indicada, informando-os que, com a sua conduta, estavam a lesar, e lesam, o seu direito de propriedade

16.º - Até à presente data, os RR. ainda não procederam à entrega da referida parcela e não se abstêm de a usar.

Não se julgaram provados os seguintes factos:

a) O prédio dos RR confronta de Norte e Poente - EE e Sul e Nascente – Caminho público.

b) Estas confrontações constam aliás do respectivo registo predial, pelo menos desde o ano de 1978.

c) O prédio dos RR. inclui a alegada parcela.

d) Os Réus procederam a uma abertura no muro para ali aceder,

e) Actualmente, o prédio dos RR, é conforme consta da referida matriz predial “atravessado por caminho”.

f) Os RR. marcaram tal parcela, junto do IFAP, para poder auferir de subsídios agrícolas, alegando, ao tempo, que pastoreavam tal terreno, recusando proceder à sua desmarcação.

g) Há mais de 20 e 30 anos, se encontram na posse dessa parcela, ignorando lesar direitos de outrem, à vista de toda a gente da região, sem violência ou oposição de quem quer que seja e praticando sobre o mesmo os actos próprios de um proprietário, designadamente pagando os impostos, agricultando a dita parcela, nele semeando e colhendo cereais, plantando arvores e colhendo os seus frutos, fazendo-o de forma contínua.

h) Assim actuando na intenção e convicção de exercer sobre a dita parcela como seu titular, o direito de propriedade sobre a mesma.

i) Durante o tempo em que o prédio dos AA. pertenceu aos anteriores proprietários e a si próprios é esta a primeira vez, que os mesmos puseram em causa os limites do prédio dos RR., tal como o mesmo se encontra no respectivo registo predial.


/////

IV.

Apreciemos então as questões colocadas no recurso.

Começamos por apreciar as questões colocadas em relação à decisão da matéria de facto, já que, apesar de não impugnarem tal decisão com fundamento em erro na apreciação da prova, os Apelantes peticionam a eliminação de alguns pontos de facto por entenderem que estão em causa factos que não foram alegados (que, como tal, não poderiam ser considerados pelo Tribunal) ou meros juízos conclusivos (que também não poderiam ser levados à matéria de facto).

Em relação aos factos constantes dos pontos 9, 10 e 14, dizem os Apelantes:

- Que eles não foram alegados pelas partes;

- Que não podem ser considerados como factos instrumentais ou complementares;

- Que, ainda que se entendesse que eram factos concretizadores – o que não aceitam – não foi dada às partes a possibilidade de sobre eles se pronunciar;

- Que, nessas circunstâncias, o tribunal estava impedido de conhecer desses factos e, ao fazê-lo, extravasou os seus poderes de cognição, em violação do disposto no artigo 5º do CPC, o que configura nulidade da sentença, nos termos do artigo 615º, nº 1, al. d) do CPC.

Os factos em causa são os seguintes:

9.º - O prédio dos Réus é vedado em toda a sua delimitação por muro de pedra todo ele com as mesmas características físicas, com cerca de 1,20/1,30m de altura, muro esse que na parte em que o seu prédio confina com o prédio dos Autores também assume a função de suportar as terras, atenta a ligeira inclinação que o terreno apresenta.

10.º - O trato de terreno com uma área de cerca 1,6146 que os Autores reivindicam não está incluído no perímetro do prédio dos Réus delimitado pelo muro referido em 9.

14.º - Por período não concretamente apurado, foi permitido, aos RR. pela anterior proprietária do prédio dos AA, pastorearem tal terreno.

Antes de mais, importará fazer algumas considerações a propósito dos limites de cognição do tribunal relativamente aos factos.

Essa matéria é regulada no art.º 5.º do CPC que dispõe nos seguintes termos:

1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.

2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:

a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;

b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;

c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.

(…)”.

Resulta, portanto, da referida disposição legal que, além dos factos notórios e daqueles que tenha conhecimento em virtude das suas funções (situação que não ocorre no caso em análise), o juiz só pode considerar factos que não tenham sido alegados e tenham resultado da instrução da causa se esses factos forem factos instrumentais ou se forem factos complementares ou concretizadores dos que hajam sido alegados pelas partes, importando notar que, neste último caso, será sempre necessário dar às partes a possibilidade de sobre eles se pronunciarem.

Os factos instrumentais correspondem a factos acessórios – não essenciais – que têm como função auxiliar a prova dos factos principais e essenciais, seja porque indiciam a sua verificação, seja porque, ajudando a compreender as circunstâncias e o contexto em que eles ocorreram, permitem ajuizar, com maior rigor e segurança, a sua consistência e relevância e dessa forma contribuir para a formação da convicção relativamente à sua efectiva verificação. Utilizando as palavras de Anselmo de Castro[1], “…são factos que não pertencem à norma fundamentadora do direito e em si lhe são indiferentes, e que apenas servem para, da sua existência, se concluir pela dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção (constitutivos). Por outras palavras: têm apenas a função possível de factos-base de presunção…”.

Ao contrário do que acontece com os factos instrumentais, os factos concretizadores ou complementares são factos essenciais ou decisivos para a procedência da acção, excepção ou reconvenção; é por isso, aliás, que eles só podem ser considerados se as partes tiverem tido a possibilidade de sobre eles se pronunciar (cfr. alínea b) do n.º 2 do citado art.º 5.º).

Tais factos (concretizadores ou complementares) pressupõem, no entanto, como parece óbvio e como resulta também da norma legal (cfr. alínea b) do n.º 2 do citado art.º 5.º), que tenham sido oportunamente alegados outros factos; são estes factos – oportunamente alegados – que podem vir a ser concretizados ou complementados por outros factos que, apesar de não terem sido alegados, venham a resultar da instrução da causa. Com efeito, não é possível concretizar ou complementar um facto que não existe e não foi alegado; a noção de concretização ou complementaridade pressupõe uma relação com algo pré-existente, no caso um facto (ou factos) que tenha sido oportunamente alegado ainda que em termos que estejam carecidos de concretização ou complementação.

Conforme refere Abrantes Geraldes[2], estão em causa factos que servem para “…complementar ou concretizar outros já alegados, ainda que de forma imperfeita ou conclusiva, desde que tenham algum cunho factual e não puramente normativo (…) tanto a complementaridade como a concretização, que delimitam os poderes de ampliação da matéria de facto, implicam a prévia alegação de factos pelo autor na petição, como fundamento da pretensão, do mesmo modo que, na perspectiva do réu, se impõe a prévia alegação de factos em que se materializa a defesa por excepção peremptória” (sublinhado nosso).

Miguel Teixeira de Sousa tem vindo, aliás, a manifestar – no Blog do IPPC[3] – o entendimento de que os factos complementares são factos que, embora essenciais para a procedência da acção, não integram a causa de pedir; esta (a causa de pedir) teria que ser sempre alegada na petição inicial sob pena de ineptidão.

Seja como for, ou seja, considere-se ou não que os factos complementares ainda integram (ou podem integrar) a causa de pedir, é indiscutível que, sob pena de ineptidão, pelo menos o núcleo essencial da causa de pedir tem que ser alegado e é, sobretudo, indiscutível que os factos concretizadores ou complementares pressupõem – sempre e necessariamente – um facto anterior que tenha sido alegado: o facto que é concretizado ou complementado pelo facto concretizador ou complementar.

Vejamos agora os factos concretos que estão aqui em causa (constantes dos pontos 9, 10 e 14).

Assiste razão aos Apelantes quando afirmam que tais factos não foram alegados por nenhuma das partes

Entendemos, no entanto, que tais factos não são essenciais – ou sequer relevantes – para a procedência da acção, assumindo, por isso, uma natureza meramente instrumental (pelo menos em relação à pretensão dos Autores).

Aquilo que era relevante para a procedência da pretensão dos Autores era o facto de o seu prédio estar murado em toda a volta e de esse prédio estar delimitado do prédio dos Réus por esse muro (facto constante do ponto 8) e esse facto era relevante e essencial porque era com referência a esse muro que os Autores estabeleciam os limites do seu prédio e, em especial, a linha delimitadora do seu prédio relativamente ao prédio dos Réus. Para a procedência dessa pretensão já era, no entanto, irrelevante que o prédio dos Réus também estivesse vedado a toda a volta com um muro (para a procedência da pretensão apenas relevava o muro existente na confrontação dos prédios, ou seja, o muro referido em 8), tal como era irrelevante o facto de o trato de terreno com a área de cerca 1,6146 que os Autores reivindicam não estar incluído no perímetro do prédio dos Réus delimitado pelo muro referido em 9 (até porque o facto de essa parcela não estar incluída no prédio dos Réus não significaria necessariamente que ela estivesse incluída no prédio dos Autores). O mesmo acontece com o facto que consta do ponto 14 que nenhuma relevância teria para estabelecer o direito de propriedade dos Autores e os respectivos limites.

Na verdade, esses factos relevavam, sobretudo, para o pedido reconvencional na parte em que ele se reporta ao direito de propriedade dos Réus sobre aquela parcela de terreno (e relevavam, não para determinar ou fundamentar a procedência desse pedido, mas sim para fundamentar a sua improcedência), sendo certo, no entanto, que o presente recurso não  tem como objecto a decisão que julgou improcedente essa pretensão (formulada em reconvenção), visando apena a decisão que julgou procedente a pretensão dos Autores em relação à mesma parcela e, em relação a esta pretensão, a eliminação daqueles factos não determinaria a alteração da decisão que a julgou procedente.

Não releva aqui saber se esses factos podiam (ou não) ter sido considerados para efeitos de improcedência do pedido reconvencional, uma vez que a decisão que julgou improcedente esse pedido não é objecto do presente recurso. Em relação à pretensão dos Autores – única que está em causa no recurso – aqueles factos são irrelevantes, na medida em que não condicionam essa pretensão e a sua eliminação não tinha a virtualidade de alterar a decisão que sobre ela foi proferida; tais factos teriam, quando, muito, uma relevância indirecta na medida em que poderiam, de algum modo, contribuir para a prova dos factos principais e essenciais, assumindo-se, portanto, como factos meramente instrumentais que, como tal, poderiam ser considerados pelo juiz independentemente de alegação das partes.

Em relação aos pontos 5, 10 e 11, alegam os Apelantes que, em tudo o que vai além da menção à área da parcela, apenas contêm matéria conclusiva e de direito.

Em relação aos pontos 5 e 10, não nos parece que assim seja.

No ponto 5 faz-se menção às efectivas confrontações do prédio dos Réus dizendo-se que elas correspondem às que constam da matriz predial, o que equivale a dizer que ele confronta, efectivamente, a norte e nascente com GG, a sul com HH e a poente com II. Não está em causa, portanto, qualquer juízo conclusivo, mas sim o facto que traduz as efectivas e reais confrontações do prédio dos Réus.

O mesmo acontece com o ponto 10, onde se diz – e isso é um facto e não um juízo conclusivo – que a parcela de terreno em causa nos autos (que os Autores reivindicam) não está incluída no perímetro do muro que está referido no ponto 9. Além do mais e conforme se disse supra, essa matéria é irrelevante para a decisão do presente recurso.

Relativamente ao ponto 11, é verdade que a sua leitura aponta para a existência de um juízo conclusivo, na medida em que a afirmação de que uma determinada parcela de terreno faz parte de determinado prédio corresponde, em bom rigor, a uma conclusão a extrair de outros factos. No entanto, ainda que a sua redacção não tenha sido a mais adequada, a afirmação em causa não deixa de expressar e de ter subjacente uma determinada realidade física (que, como tal, traduz um facto): o facto de a referida parcela (com a área com cerca 1,6146 ha, que os RR ocupam) estar integrada dentro dos limites do muro referido no ponto 8 que delimita o prédio dos Autores. Refira-se que os Apelantes não impugnam a decisão que julgou provado o que consta do ponto 8, tal como não impugnam a decisão que julgou provado o que consta dos pontos 12 e 13 e o que resulta desses pontos de facto é que os limites físicos do prédio dos Autores correspondem ao muro em questão e que a parcela de terreno em causa – que os Réus têm lavrado e onde têm semeado aveia e plantado árvores – se encontra dentro dos limites do prédio dos Autores, ou seja, dentro do perímetro que é definido pelo muro que delimita esse prédio. Se, ao invés de se julgar provado que “do prédio referido em 1.º faz parte um trato de terreno com uma área de cerca 1,6146 ha, que os RR ocupam”, se tivesse julgado provado que a parcela de terreno em causa está integrada dentro dos limites do muro referido no ponto 8, não existiria – pensamos nós – qualquer fundamento para afirmar que estaria em causa um juízo conclusivo, porquanto estaria seguramente em causa a afirmação de uma realidade física. Ora, ainda que a redacção do citado ponto de facto (em jeito conclusivo) possa não ter sido a mais adequada, a verdade é que aquilo que daí se colhe (designadamente quando conjugado com os pontos 8, 12 e 13) é a realidade física – e, como tal, um facto do mundo real – acima mencionada, ou seja, que a área em questão está dentro do muro referido no ponto 8 e, por conseguinte, dentro daqueles que, conforme se julgou provado, correspondem aos limites do prédio dos Autores.

Nas circunstâncias descritas, entendemos manter os referidos pontos de facto.

Resolvidas as questões relacionadas com a matéria de facto, resta saber se estão (ou não) reunidos os pressupostos necessários para a procedência da acção.

Os Apelantes entendem que não, dizendo, em resumo:

- Que não existe qualquer facto de onde se possa concluir que os AA. são titulares do direito de propriedade sobre a parcela em discussão nos autos;

- Que na acção de reivindicação, recai sobre o autor o ónus de alegação e prova de uma forma de aquisição originária da propriedade (como a ocupação - art.1318º do C.C., a usucapião – art.1287º do C.C., ou a acessão – art. 1325º do C.C) ou a presunção resultante do registo predial, sob pena de a sua pretensão ser desatendida;

- Que os Autores limitaram-se a alegar a aquisição derivada do prédio, sem que tivessem indicado a aquisição originária;

- Que o pedido de reconhecimento de que a parcela faz parte de um terreno registado, sem invocação de materialidade integrante da usucapião, leva à ineptidão da petição inicial ou, pelo menos, à incontroversa improcedência da acção, por falta de alegação de factos necessários à procedência do pedido;

- Que, para se poder concluir que o prédio identificado no artigo 1), da petição, inclui a referida faixa de terreno, caberia aos AA, na petição, alegar factos concretos que o demonstrassem, o que não fizeram.

É certo, conforme dizem os Apelantes, que estamos perante uma acção de revindicação, pretendendo os Autores – como é típico dessas acções – obter o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre uma concreta parcela de terreno e a inerente restituição dessa parcela que, alegadamente, havia sido ocupada pelos Réus (cfr. artigo 1311º do CC).

Refira-se que não está em causa – nem é controvertido nos autos – o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio identificado no ponto 1 da matéria de facto; os Réus não questionam e não põem em causa esse direito. O que está em causa é apenas o direito de propriedade dos Autores sobre a concreta parcela que está em causa nos autos e que, alegadamente, é parte integrante daquele prédio; está em causa, portanto, o apuramento dos limites do prédio em questão e a extensão do direito de propriedade dos Autores com vista a saber se ele inclui (ou não) a concreta parcela de terreno que vêm reivindicar.

Refira-se que, apesar de isso não ter ficado expresso na matéria de facto, não há dúvida (perante a certidão junta aos autos) – e os Réus/Apelantes não o põem em causa – que a aquisição do direito de propriedade sobre o referido prédio está inscrita no registo predial a favor dos Autores, o que, em conformidade com o disposto no art.º 7º do Código de Registo Predial faz presumir a titularidade desse direito por parte dos Autores que, como tal e por força dessa presunção, estavam dispensados de fazer essa prova.

É indiscutível, no entanto, que, como é pacífico, essa presunção não abrange os elementos de identificação dos prédios e, portanto, o registo não faz presumir que o prédio tenha, efectivamente, a composição, área e confrontações que constam da respectiva descrição predial e que o prédio abranja a concreta área que é aqui reivindicada pelos Autores. Nessas circunstâncias, cabia naturalmente aos Autores – em conformidade com o disposto no artigo 342º, nº 1, do CC – o ónus de provar o seu direito de propriedade sobre essa parcela de terreno.

É certo que, por regra, a prova desse direito haverá de ser feita mediante a alegação e prova dos factos constitutivos de um modo de aquisição originária desse direito (como é o caso da usucapião) com referência aos concretos limites do prédio que eram alegados e, mais concretamente, com referência à concreta faixa de terreno que aqui está em causa, sendo certo, no entanto, que, no caso em análise, esses factos não resultaram provados, uma vez que nem sequer foram alegados.

Deverá, por isso, improceder a acção, como sustentam e pretendem os Apelantes?

Talvez não.

A propósito dessa matéria, convocamos aqui o Acórdão do STJ de 15/09/2022[4] (que, aliás, revogou um acórdão que havia sido relatado pela aqui Relatora e subscrito pela aqui 1.ª Adjunta), onde se diz, a dado passo, que a falta de alegação de factos dos quais possa resultar a aquisição originária de determinada parcela de terreno “…só seria relevante se não se pudesse conjugar a presunção de titularidade resultante do artigo 7.º do Código do Registo Predial com a prova dos limites do prédio…”.

Ou seja, resultando provados os concretos limites do prédio, a presunção resultante do registo estender-se-á à totalidade da área que esteja incluída dentro desses limites, dispensando, portanto, o respectivo titular de fazer prova da efectiva aquisição (originária) do direito de propriedade em relação a qualquer parcela ou área que esteja incluída dentro daqueles limites e transferindo para a parte contrária o ónus de ilidir essa presunção.

Ora, é isso que aqui acontece.

Na verdade, resulta do ponto 8 da matéria de facto que o prédio em questão (o prédio dos Autores) se encontra murado em toda a sua volta – designadamente do lado em que confina com o prédio dos Réus – sendo, portanto, esse muro que define os limites do prédio.

Nessas circunstâncias, conjugando esse facto com a presunção resultante do registo – de acordo com a posição adoptada no Acórdão do STJ acima citado – impor-se-á concluir que aquela presunção se estende à totalidade da área que se encontra dentro desse muro, presumindo-se, portanto, o direito de propriedade dos Autores em relação a toda essa área. Assim, sabendo-se que a parcela em litígio se encontra dentro desses limites – sendo certo que é essa a conclusão inequívoca que se retira dos pontos 8, 11, 12 e 13 da matéria de facto –impõe-se presumir, em face do registo, que os Autores são os titulares do respectivo direito de propriedade.

Consequentemente e porque os Réus não ilidiram essa presunção, importará reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre a aludida parcela e condenar os Réus a absterem-se da respectiva ocupação, tendo em conta que não provaram deter qualquer título que legitime tal ocupação.

Confirma-se, portanto, em face do exposto, a decisão recorrida,


/////

V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo dos Apelantes.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                  (Maria João Areias)

                                                      (Paulo Correia)                     





[1] Cfr. ob. cit., Vol. III, 1982, págs. 275 e 276.
[2] Temas da Reforma do Processo Civil, I vol., 1997, págs. 55 e 56.
[3] https://blogippc.blogspot.pt/2014/07/factos-complementares-e-causa-de-pedir.html].
[4] Proferido no processo n.º 113/14.1T8SEI.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.