Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1101/09.5JACBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: CÚMULO JURÍDICO
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
CRIME EXAURIDO
Data do Acordão: 06/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (INSTÂNCIA CENTRAL – SECÇÃO CRIMINAL – JUIZ 2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 77.º E 78.º DO CP; ART. 21.º, N.º 1, DO DL N.º 15/93
Sumário: I - Havendo uma pluralidade de crimes da autoria do mesmo agente e praticados num determinado período de tempo limitado pela data do trânsito em julgado mais antiga, haverá necessariamente a aplicação de uma pena única, independentemente do momento em que seja conhecida a situação de concurso.

II - O crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, é o que vem sendo denominado de crime exaurido, ou seja, um crime que se consuma através da comissão de um primeiro ato de execução, que não corresponde a uma execução completa mas que se irá aperfeiçoando com a prática de novos factos, cada um integrando um hipotético novo crime do mesmo tipo matricial mas que é imputado à ação inicial.

III - No caso em apreciação, o crime pelo qual o recorrente foi condenado consumou-se com a prática dos factos do dia 27 de fevereiro de 2011 (embora se fosse aperfeiçoando com os factos que foram cometidos até 27 de junho de 2012).

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

No âmbito do processo acima identificado foi proferido o despacho que passamos a transcrever:

“Compulsados os autos, verifica-se que os pressupostos que foram tidos em consideração aquando da designação de data para realização de cúmulo jurídico de penas, por referência ao certificado de registo criminal do arguido A... não se vieram a confirmar, uma vez que a data da realização dos factos perpetrado no processo n.º 1101/09.5JACBR ocorreu posteriormente à data do trânsito em julgado dos processos n.º 28/11.5PTCBR e 178/11.8GDCNT, respectivamente em 20 de Fevereiro de 2012 e 13 de Fevereiro de 2012. Efectivamente, apesar de no certificado de registo criminal constar como data dos factos praticados neste processo o dia 1 de Março de 2011, certo é, que escalpelizado o acórdão verifica-se que os factos ocorreram durante os anos de 2011 e 2012, mais concretamente até 27 de Junho de 2012, dia em que foi apreendida uma quantidade considerável de droga em casa deste arguido (página 39 e 40 do acórdão proferido em 1ª Instância e que, nesta parte, não sofreu alterações).

Assim, os factos aqui versados vão para além da data em que os trânsitos ocorreram, pelo que a pena aqui aplicada terá que ser cumprida sucessivamente.

Notifique, dando-se sem efeito a diligência designada para o próximo dia 19 de Novembro e determinando-se que, oportunamente, se corrija o boletim enviado, em conformidade com o que agora se assinala.”

Inconformado, o arguido recorreu, tendo apresentado as seguintes conclusões (transcrição):

“Primeiro. O Recorrente foi notificado do Despacho ora em crise, proferido a 17.11.2015, o qual impugna, por não concordar com a motivação inserta em tal Despacho que lhe nega a possibilidade de realizar cúmulo jurídico, pelos motivos e com os fundamentos acima descritos na motivação, para a qual se remete - VIDE Motivação.

Segundo. O Recorrente entende que o crime de tráfico de estupefacientes pelo qual foi condenado nos presentes autos é um crime exaurido e como tal fica perfeito com a consumação do primeiro ato ilícito, o qual, face à matéria dada como provada no Acórdão condenatório ocorreu em 2011 - VIDE Motivação.

Terceiro. Os factos que se encontram em concurso com o ilícito praticado nos presentes autos, transitaram em julgado no ano de 2012, pelo que, os factos ilícitos de todos esses processos (178/11.8GDCNT, 28/11.5PTCBR e 1101/09.5JACBR) estão em situação de concurso nos termos definidos na Lei Penal e reclamam a aplicação do disposto nos artigos 77° aplicado por remissão do artigo 78°, ambos do Código Penal - VIDE Motivação.

Quarto. Deverá a decisão em crise proferida pelo douto Tribunal a quo ser revogada e substituída por outra decisão judicial que conceda provimento ao Recorrente, proferindo decisão judicial que realize cúmulo jurídico e aplique uma pena único ao Recorrente.”

Respondeu o Ministério Público, tendo concluído pela seguinte forma (transcrição):

“1- Não sendo o tipo criminal preenchido pelo arguido, aqui recorrente, um crime instantâneo, o que releva, designadamente para efeitos de aferir da realização de cúmulo jurídico, não é a data da sua consumação com a verificação da primeira das acções típicas, mas apenas a data do termo do derradeiro dos seus múltiplos actos reiterados, como previsto nos artigos 119°, n.º 2, al. b), do Código Penal, e 19°, n.º 3, do Código de Processo Penal.

2- No caso, a sua consumação só se estabilizou com a prática do último acto que teve lugar em 27 de Junho de 2012, isto é, em momento claramente posterior ao do trânsito em julgado das anteriores decisões condenatórias 'proferidas contra o mesmo arguido, registadas no ccrrespondente certificado de registo criminal e certificadas nos presentes autos.

3- Com efeito, a decisão condenctõric proferida no, Processo n. 17/11.8GDCNT transitou em julgado em 6.03.2012; e o trânsito em julgado da decisão que, no Processo n.º 28/11.5PTCBR data de 20.02.2012.

4- O trânsito em julgado da condenação que primeiramente tiver ocorrido é o limite temporal intransponível, no âmbito do concurso de crimes, à determinação de uma pena único, excluindo desta os crimes cometidos depois.

5- Assim as penas parcelares dos processos n.º 17/11.8GDCNT e n.º 28/11.5PTCBR, não estão em relação de cúmulo Jurídico com a pena determinada nos presentes autos.

6- O douto despacho recorrido não interpretou deficientemente qualquer preceito legal e, designadamente, os mencionados pelo recorrente.

Bem pelo contrário, observou e fez correctas interpretação e aplicação dos normativos legais e, nomecdcmente. do disposto nos artigos 77°, n.º 1, 78°, n.º 1, e 119°, n.º 2, al.b), do Código Penal, e 19º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Nestes termos e pelo mais que, V.as Ex.as, Venercndos Juízes Desembargadores, por certo e com sabedoria, não deixarão de suprir, julgando-se improcedente o recurso interposto e, consequentemente, confirmando-se o douto despacho recorrido.”

Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual consigna duas questões prévias (o efeito do recurso deve ser alterado de suspensivo para devolutivo [já decidida] e o recorrente deve ser notificado nos termos do n.º 3, do art.º 417º do Código de Processo Penal para dar cumprimento ao disposto na alínea a., do n.º 2, do art.º 412º do mesmo diploma legal) e se manifesta pela improcedência do recurso.

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal não houve resposta.

Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.

Cumpre conhecer do recurso

Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objeto e o âmbito dos mesmos, exceto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.

É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (exceto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras)[[1]].

Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” a quer se refere o artº 379º, nº 1, alínea c., do Código de Processo Penal, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entende-se por “questões” a resolver, as concretas controvérsias centrais a dirimir[[2]].

***

Questão prévia

Diz o Exmo. Procurador-Geral Adjunto:

“1.2. Como podemos verificar das conclusões da motivação do recurso em questão - circunscrito exclusivamente a matéria de direito - , a fls. 7, não constam das mesmas as norma jurídicas violadas, nos termos do estatuído no arte 412.° n.º 2 a) do C.P.P.

Nesta conformidade, deverá dar-se cumprimento ao disposto no arte 417.° n.º 3, do mesmo diploma legal, sob pena de rejeição do recurso.”

Tem razão o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, pois é evidente que o disposto no art.º 412º, n.º 2, alíneas a. e b. do Código de Processo Penal[[3]] se mostra incumprido.

Contudo, tendo em vista não protelar a decisão, optamos por não ordenar tal notificação e socorrermo-nos do teor da motivação.

Apreciemos agora o recurso

Ainda que apresentando o objeto do recurso de uma forma algo confusa e formulando um pedido sem qualquer base legal, mas que deixa perceber o que efetivamente pretende (pede que este tribunal efetue o cúmulo das penas quando o que está em causa é o despacho em que foi decidida a não realização do julgamento para esse efeito), sempre se pode concluir que o recorrente considera que o tribunal a quo errou ao não realizar a audiência de julgamento para cumular as penas em que foi condenado no processo n.º 1101/09.5JACBR com as que lhe foram aplicadas nos processos n.º 28/11.5PTCBR e n.º 178/11.8GDCNT.

Vejamos:

Diz-nos o art.º 78º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal que “se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior”, sendo certo que tal “só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado”.

 Por seu turno, estipula o art.º 77º, n.ºs 1 e 2 que “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, sendo que “a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”

Temos assim que havendo uma pluralidade de crimes da autoria do mesmo agente e praticados num determinado período de tempo limitado pela data do trânsito em julgado mais antiga, haverá necessariamente a aplicação de uma pena única, independentemente do momento em que seja conhecida a situação de concurso.

Neste caso, ou seja, no caso de conhecimento superveniente do concurso, tudo se deve passar como se o conhecimento tivesse sido contemporâneo.

Vejamos o caso “sub judice”:

1 – No processo n.º 28/11.5PTCBR, o recorrente foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo art.º 3º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 16 (dezasseis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e com sujeição a regime de prova, tendo a sentença transitado em 20 de fevereiro de 2012

2 – No processo n.º 178/11.8GDCNT, foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo art.º 3º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 16 (dezasseis) meses de prisão, tendo a sentença transitado em 13 de fevereiro de 2012

3 – No processo n.º 1101/09.5JACB o arguido foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.º 21º, n.º 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 6 (seis) anos de prisão, tendo a decisão transitado em 10 de abril de 2015.

4 – Quanto à factualidade respeitante ao recorrente e relevante para a decisão, ou seja, quanto à factualidade integradora dos elementos objetivos do crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.º 21º, n.º 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro pelo qual foi condenado, ficou provado que o primeiro ato de tráfico teve lugar em 27 de fevereiro de 2011 e o último em 27 de junho de 2012.

Perante este quadro não restam dúvidas de que o tribunal a quo errou ao preferir o despacho recorrido uma vez que o crime praticado pelo recorrente e que foi julgado no processo n.º 1101/09.5JACB, está em concurso com os crimes julgados no âmbito dos processos n.º 28/11.5PTCBR e n.º 178/11.8GDCNT.

Com efeito, tomando em consideração a data de 13 de fevereiro de 2012 (data do primeiro trânsito entre os processos em causa), dúvidas não podem existir de que todos os crimes foram praticados antes de transitar em julgado a primeira condenação.

Ora, o crime do processo n.º 1101/09.5JACB — crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.º 21º, n.º 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro — é o que vem sendo denominado de crime exaurido, ou seja, um crime que consuma através da comissão de um primeiro ato de execução, que não corresponde a uma execução completa mas que se irá aperfeiçoando com a prática de novos factos, cada um integrando um hipotético novo crime do mesmo tipo matricial mas que é imputado à ação inicial (neste sentido, v.g., Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16/06/2010, de 12/06/2006, de 16/04/2009, de 3/09/2008, de 5/12/2007, de 19/04/2007, de 8/02/2007, de 5/11/2003, de 13/11/2014, de 26/09/2012, de 12/06/2013, de 16/06/2010, de 18/04/1996, de 25/11/1996, de 29/11/2012, de 9/02/2012, de 12/07/2006, de 16/04/2009, de 19/04/2007 e de 8/02/2007).

No caso em apreciação, o crime pelo qual o recorrente foi condenado consumou-se com a prática dos factos do dia 27 de fevereiro de 2011 (embora se fosse aperfeiçoando com os factos que foram cometidos até 27 de junho de 2012), ou seja, está em concurso com os crimes julgados nos processos n.º 28/11.5PTCBR e n.º 178/11.8GDCNT.

Assim sendo, errou o Meritíssimo Juiz ao proferir o despacho sob recurso.

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Face ao exposto, julgamos procedente o recurso e consequentemente, revogando o despacho recorrido, determinamos que em sua substituição se profira um outro em que seja designada data para a realização de audiência de julgamento para efeitos de realização de cúmulo em que serão considerados os crimes respeitantes aos processos n.º 1101/09.5JACB, n.º 28/11.5PTCBR e n.º 178/11.8GDCNT.

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Sem tributação

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Coimbra, 7 de junho de 2016

(Luís Ramos - relator)

(Olga Maurício - adjunta)


[1] Neste sentido, v.g., Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23 de Maio de 2012 (acessível in www.dgsi.pt, tal como todos os demais arestos citados neste acórdão cuja acessibilidade não esteja localmente indicada).
[2] “(…) quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista. O que importa é que o tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que as partes se apoiam para sustentar a sua pretensão” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2011.
[3] Diploma a que pertencerão, doravante, todos os normativos sem indicação da sua origem