Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PAULO GUERRA | ||
Descritores: | CRIME DE VIOLAÇÃO AGRAVADO ERRO DE JULGAMENTO | ||
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Data do Acordão: | 06/07/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA | ||
Texto Integral: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 50.º, N.º 1, 53.º, 69.º-B, N.º 2, 69.º-C, N.º 2, 72.º, 73.º, 164.º, N.º 2, ALÍNEA A), E 177.º, N.º 6, DO CÓDIGO PENAL ARTIGO 4.º DO D.L. Nº 401/82, DE 23 DE SETEMBRO | ||
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Sumário: | 1. O relato da vítima é muitas vezes o único elemento de prova e por isso é muito relevante a importância da avaliação da sua credibilidade, não havendo, por isso, obstáculo legal à valoração em audiência de julgamento das declarações de um qualquer ofendido, ainda que assistente ou demandante cível, no âmbito da imediação e na oralidade, mesmo que desacompanhadas de outra prova.
2. Um perito apenas pode e deve pronunciar-se sobre a capacidade da testemunha conservar em memória e reproduzir os acontecimentos que presenciou, ou seja, sobre os aspectos perceptivos e cognitivos do depoimento, e não sobre a sua credibilidade, juízo esse que pertence, inexoravelmente ao tribunal. 3. Quanto à credibilidade de um testemunho, sabemos que não existem técnicas seguras, ou suficientemente seguras, que permitam distinguir uma declaração verdadeira de uma declaração não verdadeira, mas existem certamente indicadores ou comportamentos, para além daqueles que podem ser observados num depoimento prestado em tribunal e directamente percepcionados pela autoridade judiciária, que estarão ao alcance do perito e que podem e devem contribuir para o julgador fundamentar a sua convicção quanto à credibilidade de determinado depoimento. 4. Não se deve diabolizar a não reacção da vítima, ao não gritar, perante um acto de violação, podendo o seu interior estar esmagado com o que lhe está a acontecer. 5. Na agressão, a vontade do autor impõe-se pela força, seja através de violência ou de intimidação, não se podendo pedir à vítima uma constante atitude perigosamente heroica. 6. A inexistência de qualquer reacção ou resistência de uma vítima de violência sexual radica no facto de estar a sentir a agressão como uma ofensa à sua integridade física, ou mesmo à sua vida, pelo que adopta um comportamento orientado para a sua preservação, podendo optar por diferentes estratégias de sobrevivência. 7. Algumas das formas mais comuns de reacção das vítimas de violência sexual são precisamente aquelas que o público muitas vezes tem dificuldade em compreender, assente que as mulheres que sofrem violência sexual nem sempre são capazes de tomarem decisões que as protejam. 8. Aqui, como em tantos outros aspectos, é mister da magistratura não se deixar levar por juízos de valor com base em apreciações pessoais ou mitos, que estão assentes em pura especulação e estereótipos. 9. A delimitação do conceito de violência para efeitos do crime de violação reporta-se à utilização de força física como meio de vencer a resistência oferecida ou esperada por parte da vítima como reacção à actuação do agente, força essa que, não tendo que revestir características específicas, há-de em todo o caso de, no contexto dos factos, revelar-se como meio adequado e idóneo a vencer a resistência real ou presumível que a vítima oponha à acção. Sumário elaborado pelo relator | ||
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Decisão Texto Integral: |
Proc. nº 793/21.1JALRA.C1 PROCESSO COMUM COLECTIVO Crime de violação agravado Erro de julgamento JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA – Juiz ... Tribunal Judicial da Comarca de Leiria
Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I - RELATÓRIO
1. … foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido AA, tendo sido o mesmo, por acórdão datado de 17/1/2023, ABSOLVIDO da prática de um crime de violação agravado, p. e p. pelos artigos 164º, nº 2, alínea a) e 177º, nº 6 do Código Penal, doravante CP. Em consequência, foram também julgados totalmente improcedentes os pedidos de indemnização civil deduzidos …[1] …
2. Desta sentença recorreu o Magistrado do Ministério Público, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição):
3. Não houve qualquer resposta.
4. O Exmº Procurador da República neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá proceder.
5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo penal (doravante CPP), foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso … Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, a questão a decidir consiste essencialmente em saber 1º- se houve ou não uma incorrecta apreciação da prova produzida em julgamento: 2º- Julgando-se existente tal erro notório, que consequências processuais penais haverá a tirar? 3º- Julgando-se existente tal erro de julgamento, deverá o arguido ser condenado pelo crime imputado na acusação? Se sim, em que penas ou penas? E quanto aos pedidos cíveis intentados?
2. DA MATÉRIA DADA COMO PROVADA E NÃO PROVADA NA SENTENÇA RECORRIDA (em transcrição) 2.1. A matéria de facto PROVADA é a seguinte: 2.2. A matéria de facto NÃO PROVADA é a seguinte: «… não se provou que: …
2.3. Motivou-se assim esta decisão de FACTO (transcrição): «… Desde logo, nas suas declarações prestadas em audiência, o arguido (à data menor de 16 anos de idade) assume ter praticado coito vaginal com a menor DD, todavia, nega que o tenha feito contra a vontade e sem o consentimento desta, afirmando peremptoriamente que a relação sexual foi querida e consentida pela menor DD, a uma distância de cerca de 2/3 metros de distância da amiga desta, e sem que a DD tenha manifestado qualquer recusa ou discordância; antes pelo contrário. … É certo que as declarações do arguido estão em clara oposição com as declarações para memória futura prestadas pela menor DD. Todavia, verificou-se, da audição da respectiva gravação em audiência, que a menor DD foi ouvida pelo Juiz de Instrução Criminal por videoconferência, a partir de ..., na residência do seu pai (cujo agregado familiar integra actualmente), e encontrando-se este presente a assistir ao depoimento, o que poderá ter condicionado a espontaneidade e veracidade do mesmo. … … a menor DD referiu que ela e o arguido apenas se beijaram uma vez, que saíram da festa no bar “A...” e foram para a zona dos “montes” (dunas) com a sua amiga EE, sem que tivesse explicado o porquê de saírem do bar e irem para aquele sítio ermo, àquela hora da madrugada. Mais disse que, na praia, a EE - que, posteriormente aos factos, deixou de falar à depoente - estava “ao pé de nós” (sic), a uma distância de cerca de 10 passos da depoente e do arguido, quando a depoente disse ao arguido que não querida praticar sexo com ele, não obstante, este puxou as calças da depoente para baixo, pôs-se em cima dela e manteve relações sexuais vaginais com a mesma, contra a sua vontade. Perguntada se nessa altura gritou ou chamou pela amiga, disse que não. Perguntada porque razão é que a sua amiga EE disse não se ter apercebido que a depoente tivesse ido para as dunas e tivesse mantido relações sexuais com o arguido contra a sua vontade, respondeu “não sei, ela sabia que ele me forçou”. … Todavia, os achados físicos encontrados nos genitais da menor … não permitem, só por si, concluir, de forma clara e inequívoca, para além de dúvida razoável, pela existência de força física suplementar (para além da força física inerente ao normal acto de penetração vaginal pelo pénis erecto) ou pela resistência ou falta de consentimento da menor à prática do acto sexual, tanto mais considerando que a menor DD se encontrava deitada na areia, um material com características abrasivas, quando em contacto com a pele, abrasividade que poderá ser potenciada pelos movimentos pendulares característicos do coito. Acresce que, contrariamente ao descrito na acusação, dos relatórios de perícia de natureza sexual juntos aos autos resulta que a menor DD já havia iniciado a sua vida sexual, anteriormente à data da ocorrência dos factos, … Assim sendo, pertencendo o arguido e a ofendida à mesma faixa etária (16 e 15 anos de idade, respectivamente), e tendo já ambos tido anteriores experiências sexuais, não é credível a versão dos factos apresentada pela menor DD (e que não foi corroborada por qualquer outro depoimento ou meio de prova) de que disse claramente ao arguido que não queria manter relações sexuais com ele, ou que lhe manifestou essa falta de consentimento por qualquer outro modo. … Termos em que, à míngua de outros meios de prova directa, bastante, credível e suficiente, e perante a manifesta oposição das versões dos factos apresentadas pelo arguido e pela menor DD, impõe-se concluir pela aplicação do princípio do “in dubio pro reo…”. …». 3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
3.1. SOBRE OS FACTOS
3.1.1. … É sabido que o Tribunal da Relação pode conhecer da questão de facto por duas formas: - pela impugnação alargada (com apelo à prova gravada), se tiver sido suscitada (veremos se foi ou não feita in casu)- cfr. artigo 431º do CPP; - pela análise dos vícios do nº 2 do art. 410º do CPP. Na 1ª situação estamos perante um típico erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 – que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Como bem acentua o Juiz Desembargador Jorge Gonçalves nos seus acórdãos desta Relação e da Relação de Lisboa, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do STJ, de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www.dgsi.pt)». E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder à tríplice especificação prevista no artigo 412º, nº 3, do CPP. … Deixemos, por ora, esse erro de julgamento e cuidemos dos vícios que podem levar a um reenvio para novo julgamento, ao abrigo do artigo 426º do CPP. Assim, comecemos por sindicar a decisão recorrida com base nos vícios oficiosos do artigo 410º, nº 2 do CPP, nomeadamente o da alínea c) pois é ó único expressamente invocado pelo MP recorrente. Não ignoramos que, havendo invocação de vícios decisórios do artigo 410º, nº 2 e, em simultâneo, impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto, o conhecimento desta deve ter precedência se, por essa via, puderem ser supridos os vícios decisórios invocados. Contudo, neste caso particular, há que começar pelos vícios formais.
3.1.2. Com este pano de fundo, analisemos mais concretamente o recurso intentado, explorando, de forma mais demorada, cada um dos vícios oficiosos ínsitos no nº 2 do artigo 410º do CPP. Na realidade, estabelece o artigo 410º, nº 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426º do CPP. Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento … De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – nº 2 do artigo 410º do CPP. …
3.1.3. Quais os vícios previstos no artigo 410º, nº 2 do CPP? A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito[2]. A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão[3]. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes). Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício. Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum. Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cfr. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo nº 1509/97). O vício de erro notório ocorre, não só quando um erro é evidente, crasso, escancarado à luz dos olhos do cidadão comum, mas também à luz da análise feita por um tribunal de recurso ou de um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada. Segundo os Juízes Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, tal erro ocorrerá "quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. Consideram os mesmos autores que “existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro"[4]. Os conceitos podem confundir-se à primeira vista mas têm palco próprio e distinto entre si. O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova ocorrem respectivamente quando: a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado; b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º nº 2 a) CPP; c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida (cfr. Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740) ou quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.
3.1.4. O recorrente alude apenas a este último vício do artigo 410º, nº 2 do CPP (erro notório na apreciação da prova), embora depois alegue também a existência de um erro de julgamento, sindicável por recurso às gravações dos depoimentos gravados. Ora, pelas razões acima expostas, a este nível, não é possível a esta Relação recorrer aos demais elementos constantes dos autos, para sindicar a formação da convicção do julgador, tendo apenas, para apreciar os fundamentos do recurso, o texto da decisão recorrida, designadamente a “fundamentação da decisão da matéria de facto”, podendo e devendo até fazer esta análise do sentenciado de forma oficiosa[5] [6]. … Pergunta-se: houve, de facto, erro notório na apreciação da prova? Ou seja, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, A todas as perguntas, respondemos NÃO, partindo tão somente do teor literal da sentença. Lendo a motivação do tribunal de Leiria, entendemos que a mesma é suficientemente elucidativa no sentido das dúvidas criadas no espírito dos julgadores que decidiram pela absolvição do arguido (a seguir veremos se foram tomadas as conclusões certas face à prova produzida). … Quando muito, as alegações da recorrente conterão argumentos que poderão apontar para um eventual erro de julgamento. Que iremos declarar já de seguida, sem qualquer hesitação. Dissertemos um pouco sobre PROVA. O artigo 127º do CPP consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais. Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional. Os poderes do tribunal na procura da verdade material estão limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, guiado pelo princípio das garantias de defesa do artigo 32º da CRP. Sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento em benefício do arguido. Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios: A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos. A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum. Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt). Quer isto dizer que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do nº3 do citado artigo 412º] – neste sentido, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt). A operação intelectual em que se traduz a formação da convicção não é, assim, uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cf. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss. e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 205). Foi ou não consensual esta relação sexual de cópula entre o arguido e a DD? É isso apenas o que se discute. O arguido nega tal falta de consensualidade. A DD diz que foi forçada. Fomos ouvir a prova referida no recurso, pois foi cumprido o ónus de impugnação especificada do artigo 412º, nºs 3 e 4 do CPP. Ora, ouvida toda a prova … NÃO temos a mesma opinião do tribunal recorrido. O tribunal recorrido chegou a uma dúvida que, naturalmente, resolveu a favor do arguido, porque:
Foi isto. Quanto a A), não está em lado nenhum do CPP que o depoimento de um arguido vale mais do que o de uma vítima, sendo ambos livremente apreciados, podendo apenas o arguido calar-se, sem que isso o venha a desfavorecer. Quanto a B), diremos que também em lado algum das nossas codificações está escrito que sempre tem de haver testemunhas presenciais de todos os crimes, podendo valer-se o tribunal de um depoimento isolado de uma vítima, caso a mesma se tenha revelado coerente e credível. O relato da vítima é muitas vezes o único elemento de prova e por isso a importância da avaliação da sua credibilidade (Blandon-Gitlin, Pezdek, Rogers, & Brodic, 2005; Craig, Scheibe, Raskin, Kircher, & Dodd, 1999; Daltoé Cezar, 2007; Gil, Schillagi, Squadrito, & Gómez, 2011; Herman, 2010; Santilla, Roppola, Runtti, & Niemi, 2000; Santos & Costa, no prelo; Schaefer et al., 2012; Welter & Feix, 2010; Werner, & Werner, 2008). E, por isso, não há obstáculo legal à valoração em audiência de julgamento das declarações de um qualquer ofendido, ainda que assistente ou demandante cível, no âmbito da imediação e na oralidade, ainda que desacompanhadas de outra prova. Ouça-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 25/2/2008, Processo n.º 557/07-1: «Ao contrário do sustentado pela recorrente, nada obsta que o tribunal alicerce a sua convicção no depoimento de uma única pessoa, no caso as declarações do assistente, desde que tais declarações se lhe afigurem pertinentes e credíveis, uma vez que há muito deixou de vigorar a velha regra do unus testis, testis nullius, ultrapassado que está o regime da prova legal ou tarifada, substituído pelo princípio da livre apreciação da prova (artigo 127º do Código de Processo Penal) [sobre aquela regra unus testis, testis nullius, cujas origens remontam a Moisés, as criticas que lhe foram sendo dirigidas ao longo da história (De Arnaud, Blackstone, Bentham, Meyer, Bonnier), a sua abolição e a possibilidade de um único depoimento, nomeadamente as declarações da vítima, poderem ilidir a presunção de inocência e fundamentarem uma condenação, cfr., desenvolvidamente, Aurélia Maria Romero Coloma, Problemática de la prueba testifical en el proceso penal, Madrid, 2000, Cuadernos Civitas, págs. 69 a 91; muito antes, no domínio do processo civil português, Alberto dos Reis afirmara que “No seu critério de livre apreciação o tribunal pode dar como provado um facto certificado pelo testemunho duma única pessoa, embora perante ela tenham deposto várias testemunhas” (Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, reimp., Coimbra, 1981, pág. 357)]». Isto faz todo o sentido, em casos como o dos presentes autos, em que não surgiram em audiência de julgamento testemunhas presenciais do facto da violação em si. Na verdade, estamos perante factos em que apenas aqueles que surgem como diretamente ofendidos podem trazer aos autos determinados elementos de prova, reportados ao momento da sua prática. Desvalorizar por completo os seus depoimentos sempre que não existissem testemunhas presenciais de factos ilícitos, como no caso presente, seria abrir caminho a uma total impunidade daqueles que agissem em situações nas quais estivessem apenas envolvidos os agressores e os agredidos. Tudo se resume a uma questão de credibilidade dos que surgem como ofendidos, devidamente enquadrada pela restante prova. Ora, nada existe nos autos que possa indicar que a DD tenha efabulado. Para nós, o seu depoimento foi escorreito e sem hesitações. Quanto a C, diremos: Aquando da sua inquirição para memória futura (cfr. fls 241), a jovem, estando em ..., estava acompanhada pelo pai, como foi, aliás, autorizada por expresso despacho do JIC de Leiria [cfr. fls 241[7] e artigo 36º, nº 1, alínea b) da Lei nº 88/2017, de 21/8], não nos parecendo que a presença do ascendente a tenha colocado em situação de poder mentir, assente que foi até o pai quem fez a denúncia à CPCJ relativamente ao que teria acontecido com a filha (fls 15), não se visualizando razão plausível para um maior constrangimento da depoente face à presença do pai, conhecedor que já era de toda a sua queixa. De facto, a interpretação feita pelo tribunal de julgamento desta inquirição é pouco apropriada - se isso tivesse acontecido, não teria o tribunal suspendido a inquirição? Além disso, o psicólogo refere na página 8 do seu relatório: "Finalmente, procurámos possíveis influências nas suas declarações: nenhuma foi encontrada". Acresce que se o Tribunal a quo tinha dúvidas quanto à sua espontaneidade e credibilidade, entendendo como entendeu que a presença do progenitor poderia ser susceptível de sugestionar a forma como a DD responderia às perguntas colocadas, impunha-se que chamasse a jovem a depor, a fim de dissipar qualquer dúvida a esse respeito, em abono da boa decisão da causa e da descoberta da verdade, nos termos do disposto nos artigos 271º, nº 8[8] e 340º, nº 1, ambos do CPP. Quanto a D), parece-nos pouco desacreditar um relatório pericial apenas porque aí tudo se opina por «ouvir dizer» - o que se pediu foi uma apreciação especialista quanto à forma como relata a jovem DD o que lhe aconteceu (vejam-se as tarefas atribuídas ao referido psicólogo francês expostas a fls 394-v), ninguém ignorando que a tomada de decisão final é do tribunal. O que pretende aferir à capacidade para testemunhar da DD – e tal capacidade, também designada competência para testemunhar (artigo 131º CPP), diz respeito à capacidade do sujeito para compreender a natureza do processo judicial e as consequências imediatas e futuras, para testemunhar de forma relevante, para saber relatar factos pertinentes sobre o caso, para manifestar um comportamento apropriado em tribunal, para distinguir a realidade da fantasia e a verdade da mentira. Tal capacidade mexe com os aspectos cognitivos de ser, ou não, capaz de dar um testemunho válido e pressupõe a ausência de doença mental, perturbações emocionais graves, perturbações da percepção, perturbações da memória e perturbações intelectuais globais. Mas, conforme se deixou escrito na nota 19 do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo nº 7071/2005-3 de 18/01/2006, «o perito “apenas pode e deve pronunciar-se sobre a capacidade da pessoa em causa conservar em memória e reproduzir os acontecimentos que presenciou, ou seja, sobre os aspectos perceptivos e cognitivos do depoimento, e não sobre a sua credibilidade. Este juízo pertence, inexoravelmente ao tribunal”. Quanto à credibilidade de um testemunho, sabemos que não existem técnicas seguras, ou suficientemente seguras, que permitam distinguir uma declaração verdadeira de uma declaração não verdadeira, mas existem certamente indicadores ou comportamentos, para além daqueles que podem ser observados num depoimento prestado em tribunal e directamente percepcionados pela autoridade judiciária, que estarão ao alcance do perito e que podem e devem contribuir para o julgador fundamentar a sua convicção quanto à credibilidade de determinado depoimento[9]. Lido o relatório de fls 394 a 397 (traduzido), ele é claro no cumprimento das tarefas que lhe foram atribuídas, não as extrapolando. Sempre aí se fala em «pretensa violação» e conclui que: Não opina sobre a possível ou não veracidade das palavras da jovem – apenas opina, cientificamente, que ela tem plena capacidade para testemunhar. Por isso, não fazem qualquer sentido as referências que são feitas ao dito relatório que apenas cumpriu o seu papel e não tem intuito de testemunho quanto aos factos históricos ocorridos (por isso, não é um qualquer e desabonatório «ouvir dizer»). Quanto a E), diremos apenas que o facto de uma jovem ir às escuras para um local ermo com um rapaz não significa que vai consentir em qualquer acto ou avanço sexual que signifique uma «violação». Estamos muito longe de aceitar a perversa ideia de que as vítimas só o são porque se predispuseram ao avanço do predador, quer por actos ou até por vestimentas. Quanto a F), diremos que o facto de uma vítima não gritar alto que não quer uma cópula com alguém não significa que a aceite. Veja-se que a jovem refere no seu depoimento (bem como ao psicólogo) que teve medo que fosse pior se reagisse (note-se até o teor do documento de urgência hospitalar de fls 49, onde ficou registado que a DD alegou que «não ofereceu resistência por medo»). …[11], … tu debateste-te? Ou seja, contorceste-te ou ficaste parada? DD: Eu, eu mexi-me, só que da maneira que ele estava, eu não me conseguia mexer e depois era o medo de fazer alguma coisa que ele não gostasse e de ele me bater. Eu não sabia… eu não o conhecia, não sabia se ele era agressivo, se ele me podia fazer mal, se não podia. MP: Pronto… Ok».
Desta forma, não se diaboliza a não reacção da vítima, ao não gritar, podendo o seu interior estar esmagado com o que lhe estava a acontecer. Na agressão, a vontade do autor impõe-se pela força, seja através de violência ou de intimidação, não se podendo pedir à vítima uma constante atitude perigosamente heroica. Como já se decidiu em aresto da Relação de Lisboa, «a inexistência de qualquer reação ou resistência de uma vítima de violência sexual radica no facto de esta a sentir a agressão como uma ofensa à sua integridade física, ou mesmo à sua vida, pelo que adota um comportamento orientado para a sua preservação, podendo optar por diferentes estratégias de sobrevivência». E aqui, como em tantos outros aspectos, é mister da magistratura não se deixar levar por juízos de valor com base em apreciações pessoais ou mitos, que estão assentes em pura especulação e estereótipos. Diremos mais: As expectativas sociais para corresponderem ao estereótipo do que deve ser uma vítima real ou “ideal” (Randal, 2010) pressupõem que as mulheres que são sexualmente agredidas devem fazer o seguinte: Isto são, obviamente, expectativas irrealistas. Não representam a forma como a maioria das mulheres sexualmente agredidas realmente reagem e respondem. Como consequência, estes mitos, preconceitos, pressupostos e expectativas interferem na forma como o testemunho das vítimas sobre as suas experiências é ouvido e interpretado nos julgamentos por violência sexual e na forma como os actores legais no sistema judiciário avaliam a sua credibilidade. Seguindo os sábios ensinamentos de Alexandra Anciães, psicóloga forense com enorme experiência nesta matéria, algumas das formas mais comuns de reacção das vítimas de violência sexual são precisamente aquelas que o público muitas vezes tem dificuldade em compreender. As mulheres que sofrem violência sexual nem sempre são capazes de tomarem decisões que as protejam. De facto, podem: No seguimento de um episódio traumático, as vítimas podem fazer declarações que parecem ser incompletas ou incoerentes. Podem também tentar esconder ou minimizar comportamentos que usaram para sobreviver, como apaziguamento ou lisonja, por medo de não serem acreditadas ou culpadas pela sua violência. Mas o que pode aparecer como uma “incoerência” na forma como a vítima reage ou conta o que lhe aconteceu, pode na realidade ser uma forma típica, previsível e comum de resposta a acontecimentos perigosos e de lidar com experiências traumáticas. Quanto a G), diremos que não faz sentido tomar partido pela tese da «não violação» pelo facto de as lesões encontradas nos genitais da jovem não permitirem concluir pela existência de força física suplementar para além da força física inerente ao normal acto de penetração vaginal de um pénis erecto). … Finalmente quanto a H), diremos que em lado algum da acusação do MP é dito que a DD era virgem aquando desta relação sexual (ao contrário do que se escreveu a fls 11 do aresto recorrido). Neste ponto, diremos que estamos perante um claro preconceito e desvalorização do dano por ela já não ser virgem. Quando o tribunal diz que teria sido razoável pedir auxilio, não está a ter em linha de conta o factor traumático e o choque que existe nestas situações e que faz com que a maior parte das vítimas fique petrificada e não reaja. Recordemos um aresto da Relação do Porto de 10/9/2014 que refere que “para prova da cópula violenta ou forçada a que se refere o art.º 164º CP não é necessária a existência de lesões físicas, nem de vestígios físicos e/ou biológicos masculinos. II - A paralisação da vítima devido ao temor causado pela ameaça a que foi sujeita pelo arguido não se confunde com consentimento para o acto”. O tribunal está no seu direito de não acreditar na palavra de uma vítima. Mas vale degladiar com argumentos sólidos que descredibilizem, de facto, um depoimento de vítima, o que não aconteceu neste caso. Por conseguinte, não encontramos no depoimento da vítima DD - O QUAL FOI OUVIDO NA ÍNTEGRA PELO COLECTIVO - quaisquer contradições ou incoerências que nos façam duvidar da sua veracidade (as suas respostas a perguntas simples e abertas mostram-se espontâneas, sem o mínimo de indicio de confabulação, fantasia ou sugestão, merecendo, por isso, toda a credibilidade, inexistindo ainda qualquer indício de que a DD estivesse toldada por álcool ao ponto de não se lembrar ou de se lembrar mal do que se passou consigo naquela noite ou que tivesse uma plausível razão para acusar falsamente um rapaz que nem sequer conhecia de lado algum). Tudo isto aliamos aos argumentos que se retiram dos seguintes e acrescidos elementos de prova: O que significa que a negação do arguido, ainda que feita de forma veemente (também a ouvimos), afirmando que a relação sexual foi consentida, não é suficiente para contrariar o manancial de prova carreado, suscitando qualquer dúvida razoável na mente do julgador. Na nossa não criou, diga-se. Ou seja: Com base na análise objectiva e racional, de acordo com os critérios legais e doutrinais de valoração de todos os elementos probatórios supra analisados, não podemos deixar de concluir, sem qualquer sombra de dúvida, muito menos razoável, que se devem julgar os factos impugnados e dados como não provados no Acórdão recorrido como provados (e a violência constante da acusação damo-la por provada atento o teor do depoimento da DD, credível também neste ponto[13]). Nestes termos, julga-se procedente a Impugnação da decisão sobre a matéria de facto, modificando a matéria de facto nos termos, do artigo 431º, b), do CPP, nos termos peticionados pelo Recorrente MP.
3.1.7. Na sequência da conclusão de que houve um efectivo erro de julgamento, consideram-se afinal provados os seguintes factos: 3.1.8. E constarão dos FACTOS NÃO PROVADOS os seguintes:
3.2. SOBRE O DIREITO 3.2.1.Tendo em consideração a mencionada alteração da matéria de facto, devemos concluir, então, como defende o recorrente, que se devem considerar preenchidos os elementos típicos do crime em causa? Foi imputada ao arguido a prática de um crime de violação agravada p. e p. pelos artigos 164º, nº 2, alínea a) e 177º, nº 6 do CP. Vejamos o que dizem as normas legais em causa: Artigo 164º Violação 1- Quem constranger outra pessoa a: a) Praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou b) Praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de um a seis anos. 2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa: a) sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou b) sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos; é punido com pena de prisão de três a dez anos. 3 - Para efeitos do disposto no nº 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima. Artigo 177º Agravação 1. As penas previstas nos artigos 163º a 165º e 167º a 176º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima: a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação; c) For pessoa particularmente vulnerável, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez. 2. As agravações previstas no número anterior não são aplicáveis nos casos da alínea c) do nº 2 do artigo 169º e da alínea c) do nº 2 do artigo 175º. 3. As penas previstas nos artigos 163º a 167º e 171º a 174º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o agente for portador de doença sexualmente transmissível. 4. As penas previstas nos artigos 163º a 168º e 171º a 175º, nos nºs 1 e 2 do artigo 176º e no artigo 176º-A são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o crime for cometido conjuntamente por duas ou mais pessoas. 5. As penas previstas nos artigos 163º a 168º e 171º a 174º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se dos comportamentos aí descritos resultar gravidez, ofensa à integridade física grave, transmissão de agente patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte da vítima. 6. As penas previstas nos artigos 163º a 165º, 168º, 174º, 175º e no nº 1 do artigo 176º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, quando os crimes forem praticados na presença ou contra vítima menor de 16 anos. 7. As penas previstas nos artigos 163º a 165º, 168º e 175º e no nº 1 do artigo 176º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos. 8. Se no mesmo comportamento concorrerem mais do que uma das circunstâncias referidas nos números anteriores só é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena». No que tange ao bem jurídico tutelado pela norma em apreço, este visa tutelar a liberdade de determinação sexual. No artigo 164°, n° 2, do CP, exige-se que a vítima do crime de violação seja constrangida a sofrer ou praticar cópula, coito anal ou oral ou penetração vaginal de partes do corpo ou objectos através de um de três meios típicos: i) violência; ii) ameaça grave; iii) ou actos geradores de inconsciência ou impossibilidade de resistir. Já na modalidade contemplada no n° 1 do mesmo artigo, apenas se impõe que o agente, por qualquer outro meio, constranja a vítima a sofrer ou a praticar os mesmos actos sexuais típicos, radicando este (sub)tipo na compreensão por parte do legislador de que nem todos os casos associados ao desvalor típico do crime de violação (e, em geral, da coação sexual - cfr. art. 163°, n° 2, do CP) se reconduzem ao padrão estrutural, de pendor mais objetivista (e exigente), definido no n° 2. Enquanto no n° 2 estão tipificados os meios de actuação através dos quais o sujeito activo do crime de violação atinge o resultado visado, no n° 1 apenas se exige que a conduta do agente produza na vítima um determinado efeito intimidatório, de natureza psicológica e subjetiva. Para este efeito, constrangimento será qualquer acto/processo intimidatório (ou de aproveitamento do temor/intimidação causado pelo agente) dirigido à ocorrência de um facto nocivo (para a vítima ou para terceiro), como é o caso, desde logo, da violência psíquica consubstanciada em ordens, ameaças não graves (uma vez que as ameaças graves, representando a forma mais concludente de violência psíquica, caiem logo no âmbito do art. 164°, n° 2, sendo ainda certo que "as ameaças insignificantes não preenchem a área de tutela típica") e, em geral, de qualquer situação de insegurança (mormente um ambiente intimidante, hostil, degradante, humilhante ou ofensivo) adequada/idónea a atemorizar a vítima e que - impedindo-a de eficazmente resistir ou de livremente consentir na prática de acto sexual indesejado - a obrigue a isso (cfr. argumentos ínsitos no Acórdão da Relação de Lisboa de 16/2/2021 no Pº 87/ 19.2T9SCG.L1-5). No nosso caso, verificam-se os elementos do crime agravado de violação, pois no caso: De facto, assistimos aqui a actos de força física que vão além da execução do acto sexual e também além do mero constrangimento tendente a essa execução - estamos perante a violência física e limitação de movimentos pelo uso da força exigida pelo tipo legal em causa (alínea a) do n° 2 do artigo 164° do CP). A delimitação do conceito de violência, na linha do sufragado por Figueiredo Dias, reporta-se à utilização de força física como meio de vencer a resistência oferecida ou esperada por parte da vítima como reacção à actuação do agente, força essa que, não tendo que revestir características específicas, há-de em todo o caso de, no contexto dos factos, revelar-se como meio adequado e idóneo a vencer a resistência real ou presumível que a vítima oponha à acção. Portanto, também nós nos afastamos do entendimento que apresenta como suficiente para identificar uma situação de violência relevante para efeitos ele tipificação criminal a inexistência de consentimento e/ou ele vontade livre da vítima para a prática da cópula. Mas no caso vertente, houve violência, a suficiente. Consumado o crime em causa, há que punir o seu agente, assente que o mesmo actuou de forma dolosa, inexistindo qualquer causa da exclusão da sua ilicitude ou culpa.
3.2.2. É chegado o momento de proceder à determinação da medida da pena, operação que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2016[14], publicado no Diário da República nº 36/2016, Série I de 2016-02-22, atribuiu ao Tribunal da Relação. É esta a moldura penal abstracta (atenta a agravação do artigo 177º/6 do CP): pena de prisão de 4 a 13 anos e 4 meses. Contudo, por aplicação da atenuação especial revista nos artigos 72º e 73º do CP, aqui aplicáveis por força da aplicação directa do artigo 4º do diploma relativo ao Regime Penal dos Jovens Adultos (DL 401/82, de 23/9), atenta a idade do jovem arguido, hoje com 18 anos, à data do evento, com 16 anos, a moldura penal abstracta passa a ser de 9 meses e 18 dias a 10 anos de prisão. De facto, está hoje perfeitamente adquirida na jurisprudência a ideia de que o poder de atenuar especialmente a pena aos jovens delinquentes é um verdadeiro poder-dever, isto é, perante a idade entre 16 e 21 anos do arguido, o tribunal não pode deixar de investigar se se verificam as sérias razões a que se refere o DL nº 401/82 de 23/09 e se tal acontecer não pode deixar de atenuar especialmente a pena. No caso dos autos, o arguido cometeu os crimes de violação agravado num período muito precoce da vida e sem aparentes manifestações de recidiva, inculcando a ideia de que a atenuação especial da sua pena irá facilitar o propósito da ressocialização da sua pessoa (note-se que já foi objecto de uma intervenção tutelar educativa que não queremos aqui usar contra si). Como bem decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 3/7/2017 (P 897/14.7JABRG.G1): «E mesmo algumas dificuldades que se pressentem pela fragilidade dos amparos sociais e familiares com que o arguido poderá contar - em face do quadro factual social, económico e familiar resultante dos autos - não deverão constituir-se em juízo desfavorável, «pois só perante a criação de algumas condições possíveis no encaminhamento na direcção dos valores se poderá testar o modo de reacção e o desempenho futuro da personalidade» do arguido. Em suma, questionando-se a aplicação do regime penal para jovens adultos, o juízo deve ser positivo desde que não existam razões fortes para duvidar da possibilidade de reinserção. Os factos, considerados no seu conjunto, fazem, ainda assim e apesar da sua gravidade, sobressair a prevalência das finalidades politico-criminais que estão no fundamento do regime penal para jovens». Deste modo, impõe-se concluir, in casu, pela aplicação do regime estabelecido do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, com a atenuação especial prevista no artº 4º, porquanto as condições e a idade do arguido fazem crer que da atenuação resultarão vantagens para a sua reinserção. Encontremos, então, o quantum da prisão. O artigo 71º, nº 1, do CP estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve encontrar-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. O nº 2 desse normativo estatui que, na determinação da pena, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido. A medida concreta da pena há-de ser, assim, o quantum que é encontrado, de forma intelectual pelo julgador, através do racional e ponderado funcionamento dos conceitos de «culpa» e «prevenção, sendo a culpa o limite inultrapassável da punição concreta e casuística. Dentro dos limites da moldura penal, há-de ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso será aplicada – a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa, aparentando-se mais com a prevenção especial de socialização, sendo esta a determinar, em última instância, a medida final da pena. Quando se fala em prevenção geral neste domínio, somos facilmente remetidos para as considerações de que este delito pretende obviar a uma das formas mais graves de violência contra um ser humano. Também são elevadas as necessidades de prevenção geral no que tange ao sentimento comunitário de insegurança, face à constante violação da norma. A determinação da pena dentro dos limites da moldura penal é um acto de discricionariedade judicial, mas não uma discricionariedade livre como a da autoridade administrativa quando esta tem de eleger, de acordo com critérios de utilidade, entre várias decisões juridicamente equivalentes, sendo antes uma discricionariedade juridicamente vinculada. O exercício dessa discricionariedade pelo juiz na individualização da pena depende de princípios individualizadores em parte não escritos, que se inferem dos fins das penas em relação com os dados da individualização - trata-se da aplicação do Direito e, como acontece com qualquer outra operação nesse domínio, e na feliz fórmula de Simas Santos, «mesclam-se a discricionariedade e vinculação, com recurso a regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, atos cognitivos e puras valorações». Neste domínio, o julgador tem de traduzir numa certa quantidade (exacta) de pena os critérios jurídicos de determinação dessa mesma pena. De facto, a determinação da pena envolve diversos tipos de operações: Já vimos que a fase da escolha da pena é aqui inexistente. Determinada a concreta medida da pena principal e, tendo esta de ser sempre uma pena de prisão, impõe-se verificar se ela pode ser objecto de substituição, em sentido próprio ou impróprio, e determinar a sua medida. Tais penas de substituição “podendo substituir qualquer uma das penas principais concretamente determinadas (…) se não são, em sentido estrito, penas principais (porque o legislador não as previu expressamente nos tipos de crime) …[são] penas que são aplicadas e executadas em vez de uma pena principal (penas de substituição)” - Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral II, As consequências jurídicas do crime, p. 91. No nosso caso, só será possível de aplicar a suspensão da execução da pena ao arguido se se aplicar uma pena de prisão igual ou inferior a 5 anos. Olhando para as circunstâncias previstas no artigo 71º/2[15] do CP, diremos que perante o quadro de elevado grau de desvalor objectivo e ético-subjectivo demonstrados, sendo o dolo intenso, os propósitos do arguido, nomeadamente, tendo em conta que actuou com dolo directo, o modus operandi, o período de tempo em que a conduta teve lugar, as baixas idades da ofendida edo próprioarguido à data dosfactos, o juízode censurabilidadeético-jurídica e, portanto, de culpabilidade revelante, ao que acresce o facto de existir grande alarme social relativamente a estes actos vis praticados contra mulheres ou homens, estando nós perante alguém que não assumiu a sua culpa e que apresenta baixa ressonância face aos danos e impacto nas vítimas destes crimes, relativizando-os, opinamos no sentido de julgar adequada, proporcional e necessária a pena de 4 anos de prisão.
3.2.3. E será de SUSPENDER a execução desta pena? O regime jurídico de tal pena está previsto nos artigos 50º a 57º do CP, e nos artigos 492º a 495º do CPP. O artigo 50º, nº 1, do CP – revisto em 2007 - dispõe: «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição». As finalidades da punição são, nos termos do disposto no artigo 40º, do C.P., a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Traduzindo-se na não execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos (outrora era de 3 anos), entendemos, com o apoio da melhor doutrina e jurisprudência, que a suspensão constitui uma verdadeira pena autónoma (cfr. Acórdão da Relação de Évora, de 10.07.2007, Proc. nº 912/07-1, www.dgsi.pt). … A revisão do Código Penal, introduzida pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, reforçou o princípio da ultima ratio da pena de prisão, valorizou o papel da multa como pena principal e alargou o âmbito de aplicação das penas de substituição, muito embora não contemple, como classificações legais, as designações de «pena principal» e de «pena de substituição». A classificação das penas como principais, acessórias e de substituição continua a ser válida e operativa, ainda que a lei não utilize expressamente estas designações, a não ser no tocante às penas acessórias. Deste modo, sob o prisma dogmático, penas principais são as que constam das normas incriminadoras e podem ser aplicadas independentemente de quaisquer outras; penas acessórias são as que só podem ser aplicadas conjuntamente com uma pena principal; penas de substituição são as penas aplicadas na sentença condenatória em substituição da execução de penas principais concretamente determinadas. Se assim é, ou seja, se a pena de suspensão de execução da prisão é uma pena de substituição em sentido próprio (em contraste com as penas de substituição detentivas ou em sentido impróprio), temos como pressuposto material da sua aplicação que o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, conclua pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente que se traduza na seguinte proposição: a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Assim entendeu-se que a aplicação de uma suspensão da execução da pena é um poder-dever que vincula o julgador, que a terá de decretar, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os citados pressupostos. O pressuposto formal está verificado in casu – a pena de prisão aplicada não é superior a 5 anos. E o pressuposto material? Ora, não vislumbramos ilicitude e culpa capaz de justificar a aplicação da pena privativa de liberdade A UM JOVEM, com 16 anos de idade à data do evento (quase a fazer 17 anos), hoje com 18 anos. Acreditamos que este terá sido um erro – enorme, é certo – na vida deste jovem algo perdido, com poucas ambições laborais mas já com um filho a cargo (e um erro na vida não significa, de facto, uma vida de erros). O seu impoluto passado criminal dá-nos garantias de que assim será e, por isso, não vemos qualquer necessidade de aplicar a pena capital a este arguido. Em conclusão, é hoje possível formular um juízo favorável da adequação futura do arguido às regras de convivência social. Por todos estes motivos, e por apelo à factualidade constantes dos pontos 54, 58, 63, 64 e 65 dos Factos Provados, só há que concluir que estão criadas as condições objectivas e subjectivas para que o tribunal possa suspender a execução desta pena de prisão, pelo período de 4 anos (artigo 50º, nº 5 do CP) [com sujeição a um obrigatório regime de prova, nos termos do artigo 53º/1, 2, 3 e 4 do CP]. Ora, neste caso concreto, entende-se que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão realizam, de forma adequada, as exigências e finalidades da punição. Assim aproveite este momento na sua vida para, enfim, se redimir e espiar dignamente o seu supremo erro.
3.2.4. Aplicam-se ainda ao arguido as penas acessórias previstas no artigo 69º-B, nº 2 e 69º-C, nº 2 do CP (proibição do exercício de funções, cujo exercício envolva contacto regular com «menores»/crianças, pela prática de crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual E proibição de confiança de «menores»/crianças), em ambas as situações por 5 anos.
3.2.5 PEDIDOS DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL Recuperamos aqui o texto do acórdão recorrido. Analisada a causa e o teor dos factos dados como provados e não provados, constata-se que estão reunidos os referidos pressupostos da responsabilidade civil, porquanto, desde logo, se provou a imputação dos factos lesantes ao arguido condenado, aqui demandado. Termos em que, desde logo, e sem necessidade de mais considerações, se conclui pela total procedência dos pedidos dos Hospitais (PEDIDOS 2 e 3 – face ao teor dos factos provados nºs 21 e 22). Já quanto ao PEDIDO 1, apenas fixaremos como indemnização, face ao teor dos factos provados nºs 15, 16, 17, 20 e 23 e do facto não provado nº 3, o valor pecuniário de € 12,500. Ou seja: Vai condenado o arguido nos valores indicados por ambos os Centros Hospitalares[16] e no valor de € 12.500 a favor da DD (em consequência dos factos de que foi vítima, a dita DD sofreu danos morais, vendo atingida a sua integridade física e moral e ainda o seu livre e pleno desenvolvimento psíquico-sexual e afectivo, direitos reconhecidos constitucionalmente nos artigos 25º, nº 1 e 26º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, sendo tais danos provocados pela prática de tais factos pelo demandado, gerando a sua responsabilidade civil, constituindo-se na esfera jurídica da DD um direito de indemnização, nos termos dos artigos 483º, nº 1 e 496º, nº 1 do Código Civil).
3.2.5. Tem, pois, procedência o recurso intentado, retirando-se depois as ilações civis tidas por legais.
3.3. Diremos em sumário:
III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em CONCEDER provimento ao recurso criminal interposto pelo Ministério Público, e, em consequência,
A 1ª instância cuidará de fazer as comunicações competentes ao Registo Criminal e à DGRSP. Sem tributação. Coimbra, ___________________________ (Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº 2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09)
Relator: Paulo Guerra Adjunto: Alcina da Costa Ribeiro Adjunto: Cristina Pêgo Branco
[1] … [2] «Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exata do que seja o objeto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa. Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objeto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339º, nº 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz. Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objeto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa. Em suma, existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340º do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição» (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019). [3] «Teremos uma contradição da fundamentação, impeditiva da função que a esta cabe, se no respetivo texto verificarmos existir uma incompatibilidade entre duas ou mais proposições, cuja conjugação não permita chegar uma conclusão logicamente coerente. Será o caso, por exemplo, de se afirmar que, “nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, “A é B” e que “A não é B”, pois as duas afirmações não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Ou dar-se como provado que, nas mesmas circunstâncias descritas na acusação, e na sequência de uma discussão entre Alberto, Bernardo e Daniel, Alberto desferiu uma bofetada no rosto de Bernardo, e de seguida, na mesma decisão, dar-se como não provado que Alberto tivesse dado uma bofetada no rosto de Bernardo. Ou que, para motivar a primeira proposição, o Tribunal considerasse unicamente o depoimento da testemunha Carlos, referindo quanto à razão de ciência desta testemunha que ela se encontrava junto a Alberto e Bernardo, mas na mesma motivação da decisão de facto, de seguida, se acrescentasse que, precisamente, por se encontrar junto de Alberto e Carlos, viu presencialmente Daniel a desferir a bofetada no rosto de Bernardo. Sendo a estrutura interna da própria lógica que aqui é posta em causa, na medida em que esta exige como uma das suas regras fundamentais a inexistência de contradição entre enunciados, assim como exige que a sequência desses mesmos enunciados, no raciocínio lógico, obedeça a “uma ordem do fundamento e da consequência”, com o sentido de que o raciocínio, através do qual se obtém a ilação ou inferência, por via indutiva ou dedutiva, não utiliza os enunciados ou proposições de forma arbitrária ou casual. Podendo dizer-se que as possibilidades de vir a ser posta em causa a fundamentação e a relação entre esta e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410º, nº 2, al. b), do CPP, são essencialmente reconduzíveis à violação da relação lógica que deve existir entre enunciados ou proposições, por violação do princípio da não contradição (contradição da fundamentação) e à violação do princípio do fundamento ou da ordem do fundamento e da consequência (contradição entre a fundamentação e a decisão). Nesta última hipótese caberá o seguinte exemplo: o tribunal dá como provados factos constitutivos do crime de furto, crime pelo qual vinha o arguido acusado, mas na fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica entende que, dado o arguido não ter restituído a coisa furtada, os factos integram também o crime de abuso de confiança, mas na decisão final, julgando procedente a acusação do Ministério Público, acaba por condenar o arguido apenas pelo crime de furto». (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019). [4] Francisco Mota Ribeiro é suficientemente eloquente e exemplificativo ao escrever no e-book já aqui assinalado: «Existirá um erro de tal magnitude quando, por exemplo, se se dá como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica. Tal vício é oficiosamente cognoscível e tem de resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Poderá suceder um tal erro, como vimos supra, quando na motivação da decisão de facto se invoca facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso. Também haverá erro notório na apreciação da prova quando se declare ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido. Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá como provado que o arguido apenas havia bebido um ou dois copos de vinho, quando resulta provado que a esse mesmo arguido lhe havia sido detetada uma TAS de 2,05g/l. Presumindo-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial (nº 1 do artigo 163º do CPP), constitui erro notório na apreciação da prova [alínea c) do nº 2 do artigo 410º] divergir--se dele sem fundamentação – Ac. do STJ, de 15/10/97, Pº 97P1494. No âmbito da apreciação da prova indireta, quando o tribunal infere de um facto (a entrada frequente de indivíduos numa casa com volumes) aquele outro facto (de, dentro da casa, uns indivíduos irem adquirir estupefacientes), sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão, está a cometer um erro notório na apreciação da prova, que vicia o acórdão e não permite ao STJ conhecer de fundo – Ac. do STJ, de 04/01/1996, Pº 048666. Na aplicação do princípio in dubio pro reo, quando da decisão recorrida resultar que, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, o tribunal a quo decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar, no entanto, evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo assim de concluir que a dúvida só não foi reconhecida, no sentido de fazer operar aquele princípio, em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 410º do CPP – Ac. do STJ, de 22/05/98, Pº 98P930». [6] São, portanto, vícios de conhecimento oficioso, que se traduzirão em nulidades da decisão: nuns casos, conduzirão à anulação integral do julgamento, noutros apenas à anulação da decisão, impondo sempre a reformulação desta, pela primeira instância, por via do reenvio parcial ou total, ou pelo tribunal de recurso, se este puder decidir da causa, eliminando ele próprio o vício – esta eliminação poderá acontecer, em regra, por duas vias: a primeira pelo artigo 410º do CPP; a segunda pelos artigos 412º, nºs 3, 4 e 6 (… audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa), e 430º, nº 1, do CPP, no caso destes dois últimos artigos, desde que haja sido impugnada a decisão da matéria de facto por essa via). «I- Em qualquer processo judicial, os julgadores dificilmente conseguem tomar uma decisão sem serem influenciados por pistas que os ajudam a organizar e a simplificar essa mesma informação (procurando tomar decisões com base numa quantidade menor de informação), sendo essa tendência tanto maior quanto maiores as pressões externas para que essas decisões sejam tomadas de uma forma rápida, ou quanto maior a incerteza. II - Estas pistas são designadas por heurísticas e são habitualmente usadas de uma forma automática ou inconsciente - apesar de terem como função ajudar a organizar e a simplificar a informação, tornam os processos de tomada de decisão menos fidedignos e, nesse sentido, com uma maior probabilidade de incluir erros ou enviesamentos. III - Como tal, terá de haver uma análise muito cuidada e profunda do caso concreto a fim de se evitarem tais enviesamentos que podem turbar a convicção criada. IV - Em delitos sexuais em que são vítimas crianças, é normal a vítima revelar grandes inibições e dificuldades em relatar os factos, quer pelo esforço que, certamente, fez ao longo do tempo para arredar da memória os abusos de que foi vítima, quer pelas reacções emocionais que sua memória lhe provocava, quer pelo prejuízo que dos mesmos resulta para a sua auto-imagem. V - Todas estas condicionantes contribuem de forma decisiva para que as referidas declarações contenham imprecisões, contradições, omissões e inconsistências, de tal forma que estranho seria que não padecessem dessas características. VI - De tais imprecisões, contradições, omissões e inconsistências não resulta, por si só, que a criança mentiu. VII - É certo que essas imprecisões, contradições, omissões e inconsistências fragilizam o valor indiciário de tais depoimentos, mas não mais do que isso, tanto mais que podem existir outros indícios que corroborem a essencialidade do depoimento e o núcleo central. VII - Para efeitos do artigo 173º do CP, a inexperiência da vítima pode ser motivada por uma forçada e tenebrosa experiência movida pelo medo, pela intimidação e pelo receio de desagradar a alguém a quem se está ligada emocionalmente. IX - Nesse sentido, há também imaturidade – além de impossibilidade física - nessa decisão de não se conseguir dizer não ao agressor, sendo determinante para a actuação dolosa do agente o abuso dessa inexperiência da sua vítima assim concebida e conseguida e que lhe vai garantir a desejada e desejável menor força de resistência por parte dela aos seus avanços sexuais. X - Se nas declarações da vítima para memória futura foram proporcionadas ao arguido todas as garantias de defesa, é de recusar uma reinquirição da vítima se o tribunal se aperceber que o recorrente apenas discorda da convicção dos julgadores no que à valoração da prova concerne, designadamente no se reporta aos depoimentos prestados pela ofendida, tecendo a esse propósito considerações sem que as mesmas tenham qualquer fundamento, querendo apenas impor aquilo que seria a sua própria convicção sobre os factos. XI - A possibilidade de prestar novamente depoimento na audiência de julgamento deve ser usada com alguma cautela, no caso de vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, nomeadamente, quando estão em causa vítimas especialmente vulneráveis, como são as crianças. XII - A não ser assim, transforma-se em regra o que deve ser uma excepção, sob pena de se desvirtuar todo o sistema de protecção de uma vítima que é vulnerável por ser criança e que vai reviver o seu passado de horror de forma impune e desnecessária, e apenas por razões que se prendem com o mero jogo processual de «partes» interessadas em forçar o tribunal a inverter alguma ideia pré-concebida que tenha sido criada após as declarações iniciais e desejavelmente únicas daquela. XIII - A prestação de eventuais novas declarações pela alegada vítima, em julgamento, apenas deve ter lugar quando se mostrarem absolutamente necessárias para o apuramento de circunstâncias ou factos novos ou para a obtenção de esclarecimentos considerados essenciais pelo foro». A vítima também demonstra no seu discurso que estava a viver uma situação que originou uma desorientação e confusão normal que ocorre após uma situação traumática … De acordo com a literatura, em muitas das situações, a vítima não tem oportunidade de se defender, sobretudo quando o ataque é feito de surpresa ou quando é colocada de forma inconsciente. Por outro lado, a heterogeneidade das características dos agressores sexuais e a motivação específica para o acto, faz com que uma dada estratégia possa resultar numa situação e não resultar ou agravar o comportamento em outra. Com efeito, a maioria das vítimas relata que teve medo de ser fisicamente agredida ou morta, pelo que não ofereceu resistência. Esta situação não significa que tenha consentido (Anciães, 2022, p. 285). A agressão é sentida como uma experiência de ameaça de vida, pelo que a principal preocupação é a sobrevivência e a segurança (Groth, 1981). Segundo Prentky & Burgess (2000), para a maior parte das vítimas, os sintomas têm uma elevada intensidade nos dois primeiros meses e depois começam a diminuir. Alguns sintomas (e.g. medo, baixa auto-estima, problemas sexuais), podem persistir por cerca de 18 meses e em algumas vítimas (cerca de ¼) mantém-se durante vários anos. Estas divisão está associada às teorias do stresse, nomeadamente as três fases de evolução do dano psíquico (Echeburúa et al., 2004): a) fase de choque ou desorganização, em que há uma certa turvação da consciência, com embotamento geral pautado por lentificação, pobreza de reacções e pensamentos de incredulidade; b) fase de reorganização, em que o sujeito vai tomando consciência da situação, mas em que surgem vivências afectivas com um colorido mais dramático, como expressão da raiva, dor, culpa, impotência, e c) fase de readaptação, em que ocorre a recuperação ou cronicidade da sintomatologia traumática (Soria, 2005). No caso de cronicidade, há uma tendência a reexperenciar o evento traumático, quer espontaneamente, quer pela exposição a determinados estímulos. Burgess e Holstrom (1976), referem-se em concreto ao trauma associado à violação, que caracterizam como sendo constituído por duas fases: |