Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1641/20.5T9CLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO
CRIME DE MAUS TRATOS
DESCRIÇÃO DOS ELEMENTOS SUBJECTIVOS DO CRIME
MAUS TRATOS A CRIANÇA DE TENRA IDADE
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO IMPUGNADA
SINDICÂNCIA DA PENA APLICADA
CONDIÇÕES IMPOSTAS À SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PROIBIÇÃO DE EXERCÍCIO DE ACTIVIDADE QUE IMPLIQUE A GUARDA DE MENORES
PAGAMENTO DE INDEMNIZAÇÃO À VÍTIMA EM CASO DE INEXISTÊNCIA DE PEDIDO CIVIL
Data do Acordão: 11/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA - JUIZ 4
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO A UM DOS RECURSOS E CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO OUTRO
Legislação Nacional: ARTIGOS 50.º, 51.º, N.º 1, 52.º, N.º 2, 71.º E 152.º-A, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 358.º, N.º 1, 374.º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - A deficiência da fundamentação só integra a nulidade de falta de fundamentação quando for de tal forma relevante que impeça o conhecimento da razão para determinado facto ter sido dado como provado ou não provado, ou os raciocínios subjacentes à qualificação jurídica da conduta do Arg., ou à determinação das medidas das penas.

II - Quando, embora não conste da decisão recorrida qualquer fundamento autónomo para se terem dado como provados os factos relativos aos elementos subjectivos dos crimes, decorre, necessariamente, dos restantes factos objectivos dados como provados que as Arg. conheciam as funções que desempenhavam, as respectivas obrigações, as características das crianças que tinham a seu cargo; sabiam que as suas acções molestavam física e psicologicamente as crianças; agiram com essa intenção, para que estas lhes obedecessem; agiram sempre livre e conscientemente, até porque foram, em algumas das situações, criticadas pelas suas acções, seria um formalismo de utilidade duvidosa remeter os autos ao tribunal recorrido para fazer essa fundamentação, com o inevitável atraso na resolução do caso.

III - Quando é absolutamente irrelevante para a decisão da causa, não deve fazer-se a alteração da matéria de facto impugnada, porque a prática de actos inúteis é proibida.

IV - Os bens jurídicos protegidos pelo crime de maus tratos, do artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal, que prevê vários tipos de crimes de naturezas diferentes, são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra, portanto também a saúde, enquanto integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica.

V - Integram o conceito de maus-tratos o tratamento fisicamente brusco, como pegar num criança de tenra idade por um braço, elevá-la no ar e deixá-la cair, como se fosse um saco de batatas, ou atirá-la para cima do catre, o puxar-lhe pelos cabelos para que a criança permaneça deitada, o retirar-lhe, à força, o biberão da boca quando se encontrava a beber leite, o bater com força, com uma colher ou um prato de metal, numa mesa em que se encontram crianças a comer, causando-lhes medo, o impedir outras funcionárias de acalmarem e confortarem uma criança que se encontrava a chorar, o não dar de comer a uma criança que se encontrava a chorar com fome, o alimentar uma criança, inserindo-lhe na boca colheres de sopo, com força, de forma repetida e sucessivamente, sem a deixar respirar nem engolir, o colocar, à força, a caneca na boca de uma criança, com uma das mãos e, com a outra mão, segurar a criança pelo queixo, obrigando-a a beber o leite, o agarrar uma criança por ambos os braços, junto às omoplatas e, por duas vezes, com força, abaná-la ao mesmo tempo que, com a mesma intensidade, ora a sentava e a abanava pelos braços, ora a levantava e a abanava do mesmo modo, o manter imobilizada uma criança, com um dos braços, mantendo-se debruçada sobre o mesmo, e inserir com a outra mão, repetidamente e à força, no ânus da mesma uma embalagem de bebegel e a exposição ao frio, sentando as crianças nuas nos bacios.

VI - Quando as penas aplicadas na 1ª instância se afastam relevantemente das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares, justifica-se a intervenção correctiva dos tribunais de recurso.

VII - Nos crimes de maus-tratos a crianças justifica-se, como reforço preventivo da

reincidência, o condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão aplicada à proibição de exercer qualquer actividade que implique ter menores à sua guarda e responsabilidade.

VIII - Como se justifica o condicionamento dessa suspensão, como reforço do conteúdo educativo e pedagógico da pena, ao pagamento de uma quantia à vítima, mesmo que esta não tenha feito pedido cível, não havendo qualquer impedimento legal ou constitucional a esse condicionamento.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *




No Juízo Central Criminal de Leiria, por acórdão de 21/12/2023, foram as Arg.[1] , absolvidas e condenadas nos seguintes termos:
“... Pelo exposto, acordam as Juízes que constituem este Tribunal Coletivo em julgar a acusação parcialmente procedente por parcialmente provada e, consequentemente, decidem:
Absolver as arguidas …, da imputada prática em co-autoria material, na forma consumada, e concurso efetivo, com os demais a seguir indicados, 1 (um) crime de maus tratos, na pessoa do menor AA, previsto e punido pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a) do Código Penal;
Absolver a arguida BB … da imputada prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efetivo de 3 (três) crimes de maus tratos, dois deles nas pessoas de duas crianças cujas identidades não se apuraram e o demais na pessoa de CC …, previstos e punidos pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
Absolver a arguida DD …  da imputada prática em autoria material, na forma consumada, e em concurso efetivo, de 5 (cinco) crimes de maus tratos, cinco deles nas pessoas de cinco crianças cujas identidades não se apuraram previstos e punidos pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
Condenar a arguida DD …, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efetivo, 6 (seis) crimes de maus tratos, nas pessoas dos menores:
CC …, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
EE …, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
FF … na pena de 2 (dois) anos de prisão;
GG …o na pena de 2 (dois) anos de prisão;
HH … na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão;
Crianças não identificadas na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão;
previstos e punidos pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
Condenar a arguida DD …, na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão;
Condenar a arguida II …, pela prática em autoria material, na forma consuma, e em concurso efetivo, 2 (dois) crimes de maus tratos, previstos e punidos pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a) do Código Penal, nas pessoas dos menores JJ e KK, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão pela prática de cada um dos crimes.
Condenar a arguida II …, na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período sujeita a regime de prova.
 ...”.
*
Não se conformando, a Arg. DD …, interpôs recurso, com os fundamentos constantes da motivação, com as seguintes conclusões:
“... a) …
b) O tribunal a quo considerou provados os factos numerados de 1 a 97 e constantes da Fundamentação: “Produzida a prova e discutida a causa, com interesse para a decisão provaram-se os seguintes factos” na douta sentença recorrida, os quais se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
c) E como não provados os factos numerados de 1 a 31.
d) A arguida, ora recorrente, não se conforma com a decisão do tribunal a quo relativamente aos factos mencionado em b), por entender que a prova produzida em audiência de julgamento é manifestamente insuficiente para que o tribunal de que se recorre pudesse decidir pela sua condenação e, consequentemente, para fundamentar a solução de direito adotada.

j)Não pode o tribunal a quo ao dar como provados os factos na versão que consta da fundamentação do acórdão, violando ,entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127.º, do C.P.P.
k) Não existem provas sólidas e inabaláveis para fundamentar a condenação da arguida na prática de todos, ou pelo menos, parte dos crimes que foi condenada na pessoa das crianças acima identificadas, alicerçada em factos que deveriam ter sido considerados não provados, face à inexistência de tal prova.
l) Verifica-se pois, um erro notório na apreciação da prova, sendo que estamos perante uma incorreta apreciação da prova produzida em sede de julgamento.

n) O tribunal a quo deu como provado o que não se sabe se aconteceu, pelo que, ignorou o princípio do in dubio pro reo. Este princípio constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.

t) Consigna o artigo 40º, nº1 do C.P. que a aplicação das penas tem por fim a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade:
u) E ao facto de a mesma não ter quaisquer antecedentes criminais no que toca ao crime em apreço, nem a outro de qualquer.
v) O relatório social da arguida mostra que a mesma está plenamente integrada no meio social onde vive, que presta cuidados diários ao seu companheiro, que sofre de doença prolongada e que já não trabalha com crianças.
w) Assim, atendendo aos bens jurídicos em causa, às pessoas visadas e à situação concreta em que se desenrolou o comportamento da arguida, a punição proferida pelo Tribunal a quo é claramente excessiva e desproporcionada ao caso concreto.
...”.
*
Também inconformada, a Arg. II …, interpôs recurso, com os fundamentos constantes da motivação, com as seguintes conclusões[2]:
“...
2. O Tribunal recorrido julgou incorretamente os factos dados como provados sob os n.ºs 54, 55, 56, 60, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88 e 89 atentos os elementos de prova carreados para os autos:

5. Concretizando, do Acórdão recorrido não é possível retirar em que depoimento concreto se baseou o Tribunal a quo para dar como provados os factos que conduziram à condenação da aqui recorrente.
6. O Tribunal a quo limitou-se a fazer uma síntese dos depoimentos prestados, a fazer sobre os mesmos, uma brevíssima apreciação crítica no que à recorrente respeita.

12. Os factos dados como provados sob os n.ºs 81, 82, 83, 84, 85 tinham de ter sido como não assentes pelo Tribunal.
13. É flagrante, o erro em que incorreu na apreciação da prova e no julgamento da matéria de facto, quer no que respeita ao preenchimento dos elementos do crime condenado, cfr se deixou evidenciado, como no que tange ao seu elemento subjetivo.

16. Os factos dados como provados pelo Acórdão recorrido, são “copy/paste” da acusação, desatendendo por completo a prova produzida em audiência de julgamento, tendente esta, a desmentir e descredibilizar o libelo acusatório.

26. O acórdão recorrido encerra ainda errada subsunção dos factos ao Direito aplicável:
27. O acórdão recorrido não fez efetiva subsunção dos factos provados ao Direito aplicável, ou seja o art.º 152.º A do Código Penal.
28. No tipo do art.º 152.º A do código Penal, tutela-se um bem jurídico complexo que radica na dignidade da pessoa humana, pelo que, para constituir maus tratos, a conduta do agente deve consubstanciar uma ofensa que, pelas suas caraterísticas se reflete negativamente na saúde física, psíquica ou mental da vítima e conduz à degradação da sua dignidade pessoal.
29. As condutas imputadas à arguida II, à luz do específico contexto relacional existente entre as mesmas e os menores são insuscetíveis de levar ao preenchimento do tipo legal do art.º 152.º A do Código Penal.
...”.
*
A Exm.ª Magistrada do MP[3]  respondeu ao recurso da Arg. DD …

E ao recurso da Arg. II …
[4]. …[5].… [6][7][8]
*
A Assistente … respondeu ao recurso da Arg. DD …
*
Neste tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer …
*
A sentença (ou acórdão) proferida em processo penal integra três partes distintas: o relatório, a fundamentação e o dispositivo. A fundamentação abrange a enumeração dos factos provados e não provados relevantes para a decisão e que o tribunal podia e devia investigar; expõe os motivos de facto e de direito que fundamentam a mesma decisão e indica, procedendo ao seu exame crítico e explanando o processo de formação da sua convicção, as provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal.
Tais provas terão de ser produzidas de acordo com os princípios fundamentais aplicáveis, ou seja, o princípio da verdade material; da livre apreciação da prova e “in dubio pro reo”. Tendo a prova sido produzida em sede de audiência de julgamento, está sujeita aos princípios da publicidade, da oralidade e da imediação.
O tribunal recorrido fixou da seguinte forma a matéria de facto:
“...
1. A Associação … é uma instituição particular de solidariedade social, …
2. Desde o início da sua constituição, a associação arguida tinha como objeto social “a criação e organização de centros, creches, escolas e jardins-de-infância, centros de acolhimento e acompanhamento de crianças e adultos marginalizados ou deficientes ou em situação de risco, centro de apoio a famílias carecidas económica e socialmente, centros de protecção e acompanhamento de idosos, inválidos e indivíduos sem capacidade para o trabalho, centros de apoio e protecção na saúde, preventiva e curativa, acções estas levadas com efeito através do fornecimento dos respectivos cuidados, educação e formação, ensino vocacional, profissional e ainda a colaboração com outras entidades sociais que prossigam objectivos idênticos.”

4. As arguidas DD … e II … exerciam, à data dos factos, respetivamente, as funções de educadora autorizada e de ajudante de ação educativa/administrativa …
5. A arguida II …, para além da referida função, auxiliava, também, as restantes Educadoras de Infância que ali exerciam funções a cuidar das crianças aquando do almoço destas no refeitório e substituindo-as, em eventuais, faltas ao trabalho.
6. Quanto à arguida BB …, a mesma integrava o quadro de pessoal do Berçário, exercendo as funções de Auxiliar.
7. À data dos factos infra, frequentavam essa Unidade de Desenvolvimento cerca de 49 (quarenta e nove) crianças, distribuídas pelas salas do berçário, 1.º ano e 2.º ano e pré-escolar, com idades compreendidas entre os três meses e os seis anos de idade, incluindo aquelas que a seguir concretamente se indicam, estando as mesmas ao cuidado e sob a responsabilidade educativa das arguidas:

8. No período compreendido de 2019 a maio de 2020, frequentemente, a arguida DD … sentava os bebés com menos de um ano de idade, ainda sem capacidade de marcha, no bacio completamente despidos.
9. Em consequência, as crianças começavam a chorar compulsivamente.
10. No mesmo período de tempo, em data  não concretamente apurada, na sala do berçário, a arguida BB …, batia, com força, com uma colher, na mesa, enquanto dava o almoço a uma criança.
11. Em consequência, a criança começou a chorar, sem parar.
12. Perante o comportamento da arguida BB, a Educadora de Infância … reportou a situação à Coordenadora Pedagógica …
13.Ainda no decurso do ano de 2018, em data não concretamente apurada no interior de uma das casas de banho da instituição, a arguida DD …, agarrou pelos cabelos uma menina …, com cerca de 11/12 meses de idade, que frequentava a creche, com o intuito de que a mesma permanecesse deitada no fraldário e em consequência de tal conduta, a criança sentiu dores na zona atingida e começou a chorar compulsivamente.
14. Em agosto de 2019, em data não concretamente apurada, na sala do Berçário, à hora de almoço, quando a auxiliar … se encontrava a dar sopa a uma criança …
15. A arguida DD … disse-lhe “essa é difícil para comer”.
16. Após, sem que nada o fizesse prever, a arguida DD … aproximou-se da bebé e desferiu-lhe uma chapada de mão aberta na face,
17. Motivo pelo qual a criança começou a chorar compulsivamente.
18. Perante o choro sofrido da criança, a referida auxiliar, tentou acalmar e confortar a criança;
19. Ainda no mesmo dia, no período da tarde, quando um menino …, se encontrava a beber o biberão, a arguida DD …, com força, retirou-lhe o biberão da boca,
20. Ao mesmo tempo que lhe dizia “Agora sou eu que não quero que bebas mais”.
21. Perante o sucedido, a auxiliar … reportou tais acontecimentos à Coordenadora Pedagógica, …
22. Em data não concretamente apurada de novembro de 2019, a arguida II … encontrava-se no interior do refeitório …, conjuntamente com várias crianças, dos 3 (três) aos 6 (seis) anos de idade, que aí se encontravam a almoçar.
23. A certa altura, sem que nada o fizesse prever, II … agarrou num prato de aço inoxidável e bateu com o mesmo vigorosamente numa mesa.
24. Com a conduta descrita a arguida, causou medo e consternação nas crianças aí presentes, tendo algumas delas começado a chorar.
25. No período compreendido entre o mês de agosto de 2019 e o início do mês de novembro de 2019, em data não concretamente apurada, a arguida DD …, entrou na casa de banho/muda fraldas, partilhada pelas salas do berçário e do 1.º ano, trazendo consigo nos braços …, nascido a 30 de outubro de 2018, …
26. Depois … projetou …, com força, para cima da bancada/muda fraldas existentes na casa de banho, com uma altura aproximada de 1,20 metros.
27. … disse à criança: “oh meu raio te parta que por tua culpa estás a acordar os outros bebés”.
28. Em consequência, … começou a chorar compulsivamente, tendo ficado com medo.
29. Em data não concretamente apurada, da última semana na mesma semana em que ocorreu o descrito em 26. e 27, após as crianças do berçário almoçarem, DD … entrou na sala das crianças com um ano de idade, trazendo uma criança não identificada nos braços.
30. De seguida, … projetou, com força, essa criança … em direção ao catre de plástico e duro, que se encontrava ao nível do chão, onde as crianças habitualmente dormem a sesta.
31. Na sequência de tal conduta, a referida criança começou a chorar compulsivamente, ficando com dores e assustado.
32. Após, DD … dirigiu-se, em tom exaltado, a …auxiliar de limpeza que se encontrava, naquela altura, a tomar conta das crianças que estavam naquela sala, nos seguintes termos: “toma conta dele, não pegues nele no colo, está sempre a chorar, já não o posso aturar”, impedindo-a de acalmar e de confortar a criança.
33. No período compreendido entre setembro e novembro de 2019, em data não concretamente apurada, DD … encontrava-se no interior da sala do berçário, acompanhada da criança …, nascido a 28/05/2019, …
34. Em virtude de se encontrar com fome, … chorava sofregamente.
35. Perante o choro da criança, DD … dirigiu-se-lhe nos seguintes termos: “vais comer quando eu quiser e não quando tu queres”.
36. Depois de … ter parado de chorar, e, enquanto tinha uma chupeta na boca, DD … disse-lhe: “agora é que vais comer”.
37. De seguida, a arguida retirou-lhe bruscamente a chupeta e começou a inserir na sua boca, com força, de forma repetida e sucessivamente.
38. Sem o deixar respirar e engolir, colheres com sopa.
39. Enquanto a arguida procedia da forma supra descrita, … chorava compulsivamente, ao mesmo tempo que se babava e expelia a sopa, pela boca.

41. No início de outubro de 2019, em data não concretamente apurada, no período da manhã, no interior da creche, DD … agarrou com força … por um dos braços, o qual tinha ao seu cuidado e sob a sua responsabilidade educativa, por força das referidas funções.
42. De seguida, a arguida elevou …, que tinha, à data, menos de um ano de idade, pelo respetivo braço e elevou-o, suspenso no ar, agarrando-o apenas por aquele membro superior, por uma distância superior a 2 metros.

44. Em data não concretamente apurada entre setembro e novembro de 2020, cerca das 08h30m/09h00m, no interior da creche, DD … agarrou num dos braços de uma criança …, de idade inferior a um ano, elevou-a do chão e deslocou-a, suspensa no ar, agarrada apenas por aquele membro, desde o tapete dos brinquedos até à sala do berçário.
45. Aí, … projetou pelo braço a referida criança para o tapete, tendo a mesma começado a chorar compulsivamente.
46. Em data não concretamente apurada, mas compreendida entre 28 de outubro e 2 de novembro de 2019, por volta das 16h30/17h00, na sala frequentada …, DD … colocou-o, sentado, com as pernas cruzadas, de frente para uma parede, enquanto todas as outras crianças brincavam,

48. Tal acontecimento foi presenciado pela mãe da criança, …, que, de imediato, solicitou esclarecimentos à arguida …
49. Tendo-lhe a arguida respondido “o seu filho estava de castigo porque não sabia partilhar os brinquedos”, “o seu filho é um preguiçoso, não come sozinho, não dorme sozinho, só quer colo, não me deixa fazer nada! É a ovelha negra da turma”.
50. Em consequência dos comportamentos da arguida DD …, sempre que a criança … se dirigia para a escola, começava a tremer e a chorar compulsivamente.
51. No dia 12/13 de novembro de 2019, após … ter gatinhado, em direção à porta, para ir ao encontro da sua avó paterna, … a arguida BB …, desconhecendo que se tratava da avó da criança, agarrou-o, bruscamente, e, de seguida, colocou-o numa cadeira, deixando a criança a chorar compulsivamente.
52. Perante o comportamento da arguida, e vendo o sofrimento do seu neto, …, não se identificando como sendo a avó …, disse … que podia pegar a criança ao colo, tendo-lhe, de imediato, a arguida, respondido “não, não pode, logo este!”
53. Após, a arguida BB deixou a criança … a chorar compulsivamente, na cadeirinha.
54. No final do ano de 2019, em data não concretamente apurada, a arguida II …, perante a resistência da criança …, em beber o leite, agarrou a criança pelas costas.
55. De seguida, não obstante a criança gritar que “não, não”, a arguida … colocou-lhe, à força, a caneca na boca, com uma das mãos e, com a outra mão, segurava a criança pelo queixo, obrigando-a a beber o leite.
56. Perante a insistência da arguida, a criança ficou completamente molhada na roupa e com leite a escorrer pela boca.
57. No decurso do ano de 2020, em data não concretamente apurada, uma criança autista, …, frequentou o citado estabelecimento, …
58. As arguidas DD … e II e, em conjugação de esforços e de vontades, enquanto a referida criança autista chorava, II … segurava-o vigorosamente, ao mesmo tempo que DD … inseria na sua boca, com força, de forma repetida e sucessiva, comida, sem o deixar respirar e engolir.
59. Tal conduta causou na criança sofrimento.
60. No período compreendido entre 1 de janeiro e 21 de março de 2020, a arguida II … encontrava-se a trabalhar no refeitório da referida instituição.
61. Em data não concretamente apurada, mas situada no período compreendido entre o mês de janeiro e fevereiro de 2020, pelas 14h30/15h00, … a arguida DD … trazia nos braços …, nascido a 01/03/2019, …
62. Repentinamente, e, sem que nada o fizesse prever, a arguida DD …projetou, com força, … para o chão, ao mesmo tempo que lhe dizia, em tom exaltado, “estou farta”.
63. De seguida, …, enquanto se encontrava prostrado no chão, começou a chorar compulsivamente.
64. Em data não apurada de 2020, no interior da Unidade de Desenvolvimento, a arguida DD … agarrou pelo braço, com força, uma criança …
65. Com tal conduta a arguida provocou sofrimento na criança.
66. No dia 25/09/2020, pelas 12h00m/12h30m, a auxiliar … encontrava-se na bancada da casa de banho partilhada pela sala do berçário e do 1.º ano, a mudar a fralda ao …, nascido a 7.1.2020, …
67. Nessa ocasião, como o … estava a chorar, DD … debruçou-se sobre o corpo da criança.
68. Após, a arguida … desferiu-lhe, com força, duas bofetadas na boca.
69. De seguida, num tom exaltado, disse-lhe “porque estás a chorar assim com essa boca toda aberta”.

71. No dia 20.10.2020, a arguida DD … encontrava-se na citada casa de banho, na companhia de …;
72. Após o que manteve … agarrada por ambos os braços, junto às omoplatas e, por duas vezes, com força, abanou-a ao mesmo tempo que, com a mesma intensidade, ora a sentava e a abanava pelos braços, ora a levantava e a abanava do mesmo modo.

74. No período compreendido entre os dias 2 e 14 de novembro de 2020, em data não concretamente apurada, a arguida DD … entrou no interior da referida casa de banho, agarrando …, com os braços.
75. Após, … projetou … em direção à bancada,

77. De seguida, DD … debruçou-se sobre …, fez força sobre o seu corpo com os seus braços, ao mesmo tempo que lhe disse: “agora onde é que tu vais fugir”.
78. De seguida, enquanto DD … mantinha imobilizado … com um dos braços, mantendo-se debruçada sobre o mesmo, inseriu com a outra mão, repetidamente e à força, no ânus … uma embalagem de bebegel.

80. No dia 17/11/2020, pelas 18h00m, …, nascido em 13/11/2017, …, estava no interior da sala, acompanhado pela arguida II …
81. A dada altura, ao ver que o seu pai, …, … começou a dirigir-se a ele.
82. Quando … chegou junto da porta de acesso, a arguida II … agarrou-o vigorosamente por um dos braços.
83. De seguida, … agarrou o outro braço de …, elevou-o no ar, com força, por ambos os braços e sentou-o à força numa cadeira.
84. Após, ao ver que … começou a rir-se, a arguida II …, num tom muito exaltado e na presença do pai da criança, disse-lhe: “Não te estejas a rir! Não estejas a brincar comigo! Aqui quem manda sou eu e não é por estar aqui o teu pai que vai ser diferente, pois quem manda aqui sou eu!

Factos não provados:
*
Como dissemos, o art.º 374º/2 do CPP[9] determina que, na sentença, ao relatório se segue a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A redacção deste preceito inculca a ideia, que a obediência a regras de bom senso, clareza e precisão apoiam, de que a fundamentação da decisão se repartirá pela enumeração dos factos provados, depois dos não provados e, seguidamente, pela exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão com o exame crítico das provas.
Necessário e imprescindível é que o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado.
No cumprimento desse dever, o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão de facto da seguinte forma:
“...
*
Isto posto, é pacífica a jurisprudência do STJ[10] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[11], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.
Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no recurso são as seguintes:
I – Falta de fundamentação; (ambos os recursos)
II - Impugnação da matéria de facto; (ambos os recursos)
III – Erro notório na apreciação da prova; (recurso da Arg. DD)
IV – Tipificação das condutas das Arg.; (recurso da Arg. II)
V - Medidas das penas (recurso da Arg. DD).
*
Cumpre decidir.
I – Entende a Arg. II … que a decisão recorrida padece do vício de falta de fundamentação, porque “... relativamente à verificação (ou não) do elemento subjetivo do crime previsto no art.º 152-º A do Código Penal, o Tribunal limitou- se as fazer considerações gerais: …
A falta de fundamentação da sentença constitui uma nulidade (art.ºs 374º/2 e 379º/1-a) do CPP).
Essa nulidade deve ser arguida e conhecida em sede de recurso (art.º 379º/2 do CPP).
É verdade que da decisão recorrida não consta qualquer fundamento autónomo para os factos provados 86 a 92 e devia constar.
Mas, a deficiência da fundamentação só constitui esta nulidade, quando for de tal forma relevante que impeça o conhecimento da razão para determinado facto ter sido dado como provado ou não provado, ou os raciocínios subjacentes à qualificação jurídica da conduta do Arg., ou à determinação das medidas das penas.
Os elementos subjectivos dos tipos de crime, como o dolo[12], quando não confessados, porque elementos da subjectividade humana, hão-de ser revelados por outros elementos objectivos apurados, ou seja por presunção[13].
Ora, no presente caso, decorre, necessariamente, dos restantes factos objectivos dados como provados que as Arg. conheciam as funções que desempenhavam, as respectivas obrigações, as características das crianças que tinham a seu cargo; sabiam que as suas acções molestavam física e psicologicamente as crianças; agiram com essa intenção, para que estas lhes obedecessem; agiram sempre livre e conscientemente, até porque foram, em algumas das situações, criticadas pelas suas acções.
Seria, pois, um formalismo de utilidade duvidosa, remeter os autos ao tribunal recorrido, para fazer essa fundamentação, com o inevitável atraso na resolução do caso.
O conjunto da fundamentação de facto[14], permite controlar a razoabilidade da convicção de facto do tribunal recorrido, quanto aos elementos subjectivos dos crimes, o que é suficiente.
*
II – Entendem as Recorrentes que o tribunal recorrido não devia ter fixado a matéria de facto como fez, porque não foi isso que resultou da prova produzida em audiência.
Uma vez que ambas as Arg. entendem que foi mal julgada a matéria de facto, o que invocam é a existência de erro na avaliação dos depoimentos e declarações dos intervenientes, bem como da restante prova produzida em audiência ou constante dos autos.
A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz.
Este princípio da livre apreciação da prova está consagrado no art. 127º do CPP nos seguintes termos «... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
E embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspectos fácticos (art.ºs 428º e 431º/b) do CPP), não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto[15],[16],[17].
A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto[18].
Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação da convicção do julgador «elementos intraduzíveis e subtis», tais como «a mímica e todo o aspecto exterior do depoente» e «as próprias reacções, por vezes quase imperceptíveis, do auditório» que vão agitando o espírito de quem julga (no mesmo sentido Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211, para acrescentar depois, a págs. 271, que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percebidos, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»)[19].
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado».
E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes.
Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal[20]; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram[21]; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado ou não provado um facto com base em presunção judicial erradamente aplicada.
As Recorrentes fizeram nos corpos das respectivas motivações as especificações previstas no art.º 412º/3 do CPP.
Mas, quanto à Arg. II …, mesmo que os elementos de prova que especificou permitissem as pretendidas alterações da matéria de facto, elas seriam irrelevantes para a sua condenação.
Na verdade, relativamente aos factos provados 54 a 56, como veremos a propósito da tipificação das condutas das Arg., é irrelevante se a mãe da criança permitia a conduta da Arg. ou também a forçava a beber leite daquela maneira, porque neste caso, também cometeria um crime de maus-tratos.
Relativamente aos factos dados provados em 80 a 89, também é irrelevante se a criança se encontrava à porta da sala de aula ou à porta da rua, porque o que conta são os actos praticados pela Arg. e não a sua justificação.
Por isso, seria inútil a alteração da matéria de facto e a prática de actos inúteis é proibida por lei(art.º 130º do CPC[22], aplicável ex vi art.º 4º do CPP).
Acresce que a conduta desta Arg. não é só integrada por estas situações, havendo que lembrar o facto provado 23, como ilustrativo da sua conduta.
Já a Arg. DD …, por um lado, baseia a sua impugnação na discussão da credibilidade conferida pelo tribunal recorrido  às testemunhas que identifica, o que não é um modo processualmente válido de impugnar a matéria de facto, porque assim procura “... abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência. …[23], [24].
Por outro, tendo em conta a forma como se encontra estruturada a motivação (veja-se o número de testemunhas cujos depoimentos parcialmente transcreve), há que concluir que esta Recorrente faz uma interpretação alternativa da prova produzida em audiência, o que sendo compreensível e legítimo, não é relevante como impugnação da matéria de facto, …
Sempre diremos, no entanto, que nada impede que se deem como provados factos com base, unicamente, nas declarações ou depoimentos de uma vítima ou testemunha, sobretudo nos casos de crimes sexuais, de maus-tratos e de violência doméstica[25].
Para além disso, o tribunal, na fundamentação da matéria de facto explicou, com clareza e detalhadamente, o caminho lógico que percorreu para dar como provada aquela matéria e esse caminho foi razoável e corresponde a uma das soluções plausíveis (diremos mesmo, a mais plausível), segundo as regras da experiência, pelo que é inatacável[26].
São, pois, improcedentes, também nesta parte, os recursos.
*
III – Entende a Arg. DD … que a decisão recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova, porque “... Não existem provas sólidas e inabaláveis para fundamentar a condenação da arguida na prática de todos, ou pelo menos, parte dos crimes que foi condenada na pessoa das crianças acima identificadas, …
Destas conclusões decorre que esta Arg. imputa este erro à decisão recorrida, com os mesmos fundamentos com que fez a impugnação ampla da matéria de facto.
Ora, a matéria de facto pode ser posta em causa por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art.º 410.º/2, do CPP; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o art.º 412.º3/4/6 do CPP[27].
Mas, analisando as conclusões deste recurso, logo se percebe que a sua intenção foi a de impugnar a matéria de facto nos termos do disposto no art.º 412º/3/4/6 do CPP e não a de invocar o referido vício.

[28].
[29], …[30].
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Não vislumbramos na decisão recorrida qualquer outro dos vícios previstos no art.º 410º/2 do CPP.
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IV – Entende a Arg. II … que a sua conduta não pode ser tipificada como um crime p. e p. pelo art.º 152º-A do CP …

Os maus-tratos previstos neste tipo[31] são os actos que, pelo seu carácter violento sejam, por si só, ou conjugados com outros, idóneos a reflectir-se negativamente sobre a saúde física e psíquica da vítima[32], ou, noutra formulação, são os actos que provocam “… lesões graves, pesadas da incolumidade corporal e psíquica do ofendido, diríamos que no campo da tensão entre os tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e a tutela da integridade física e moral…”[33].
Os bens jurídicos protegidos por esta incriminação, que prevê vários tipos de crimes de naturezas diferentes, são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra[34].
Assim, o bem jurídico que este tipo é, assim, também a saúde[35], enquanto integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, sendo um crime de perigo, porque não pressupõe a verificação da lesão, valendo aqui as considerações normalmente feitas a propósito da violência doméstica[36],[37], [38].
Integram, pois, este conceito de maus-tratos as agressões; o tratamento fisicamente brusco, como pegar num criança de tenra idade por um braço, elevá-la no ar e deixá-la cair, como se fosse um saco de batatas, ou atirá-la para cima do catre; o puxar pelos cabelos, para que a criança permaneça deitada; o retirar, à força, o biberão da boca de uma criança que se encontrava a beber leite; o bater com força, com uma colher ou um prato de metal, com força numa mesa em que se encontram crianças a comer, causando-lhes medo; o impedir outras funcionarias de acalmarem e confortarem uma criança que se encontrava a chorar; o não dar de comer a uma criança que se encontrava a chorar com fome; o alimentar uma criança, inserindo-lhe na boca, com força, de forma repetida e sucessivamente, sem o deixar respirar nem engolir, colheres com sopa; o colocar, à força, a caneca na boca de uma criança, com uma das mãos e, com a outra mão, segurar a criança pelo queixo, obrigando-a a beber o leite; o agarrar uma criança por ambos os braços, junto às omoplatas e, por duas vezes, com força, abaná-la ao mesmo tempo que, com a mesma intensidade, ora a sentava e a abanava pelos braços, ora a levantava e a abanava do mesmo modo; o manter imobilizada uma criança, com um dos braços, mantendo-se debruçada sobre o mesmo, e inserir com a outra mão, repetidamente e à força, no ânus da mesma uma embalagem de bebegel (medicamento indicado no tratamento da obstipação); e a exposição ao frio (sentados nus nos bacios).
Posto que as Arg. tinham à sua guarda profissional crianças de tenra idade, e até uma autista, e as trataram das formas descritas, não oferece dúvidas que as suas condutas preenchem os elementos deste tipo.
Improcedentes, pois, também nestas partes, os recursos.
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V – Entende a Arg. DD … que, em qualquer dos casos as penas parciais e a pena única que lhe foram aplicadas são excessivas e devem ser reduzidas.
O tribunal recorrido, fundamentou a determinação que fez das medidas das penas, nos seguintes termos:
*
[39], …[40].
Por sua vez, na determinação da medida da pena do cúmulo devem ser considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (art.º 77º/1 do CP)[41],[42].
A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada[43],[44], ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares[45].
Verificamos que o tribunal recorrido, tendo sido rigoroso, fixou as penas parcelares entre ¼ e pouco mais de 1/3 entre os limites mínimos e máximos respectivos.
Por outro lado, fixou a pena única em medida ligeiramente superior a 2/8 do intervalo entre os limites mínimo e máximo respectivos, mas, aplicou correctamente os princípios gerais de determinação das penas, não ultrapassou os limites da moldura da culpa, e teve em conta os fins das penas no quadro da prevenção.
O Exm.º Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, defende a redução das penas, parcelares e única, aplicadas à Arg. DD … e a suspensão da sua execução.
Esta Arg. é primária, mas só admitiu os factos que praticou numa das situações e não mostrou qualquer arrependimento.
Neste tipo de casos, as razões de prevenção geral são elevadíssimas, porque se vão repetindo; porque, dadas as dificuldades de prova, muitos crimes ficam impunes; e porque as vítimas são especialmente vulneráveis. As instituições que acolhem as crianças não as podem tratar desta forma.
O período de tempo porque se estendeu a prática dos crimes e o número de condutas que os integram, para além das consequências, tornam muito elevada a gravidade dos mesmos.
No entanto, verificamos que o tribunal recorrido se afastou substancialmente das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais para casos similares[46].
Justifica-se, por isso, nos termos supra referidos, a intervenção correctiva deste tribunal, pelo que, tendo em conta estas circunstâncias e as restantes referidas na decisão recorrida, fixaremos as penas em que vai condenada a Arg. DD … da seguinte forma:

Fixar a pena única do cúmulo jurídico das penas que antecedem em 4 anos e 6 meses de prisão.
Fixada a pena única de prisão em medida inferior a 5 anos, importa ponderar a suspensão da respectiva execução (art.º 50º do CP).
Tendo em conta a lição de Jorge de Figueiredo Dias[47], para além dos elementos já referidos, importa realçar que esta Arg. é primária, o que é relevante atenta a sua idade (59 anos), e está familiar e socialmente inserida.
Estes elementos ainda tornam ainda possível a formulação de um juízo de prognose positivo[48] quanto à sua reinserção social e ao perigo de reincidência, pelo que é de concluir que a simples censura dos factos e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição, sobretudo se acompanhado da fixação de deveres.
Atentas as necessidades de prevenção, a suspensão será pelo período de 5 anos.
Como reforço preventivo da reincidência, nos termos do art.º 52º/2 do CP, a suspensão será condicionada à proibição, durante o respectivo prazo, de exercer qualquer actividade que implique ter menores à sua guarda e responsabilidade.
Não há qualquer impedimento legal ou constitucional em fixar, como dever condicionante da suspensão da execução de uma pena de prisão, o pagamento de uma quantia à vítima, mesmo que esta não tenha feito pedido cível, sendo também um reforço do conteúdo educativo e pedagógico da pena[49].
Por isso, como reforço do conteúdo educativo e pedagógico da pena, nos termos do art.º 51º/1 do CP, a suspensão ficará ainda sujeita à obrigação de esta Arg., no prazo de 2 anos, depositar nos autos a quantia de €1.500,00 a favor de cada uma das cinco vítimas identificadas, encarregando-se, depois o tribunal de as fazer chegar a estas.
Assim, é parcialmente procedente este recurso.
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Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, decidimos:
a) Julgar não provido o recurso da Arg. II …;
b) Julgar parcialmente procedente o recurso da Arg. DD … e, consequentemente, pela prática de 6 (seis) crimes de maus tratos, previstos e punidos pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a) do Código Penal, condená-la, respectivamente,

c) Fazendo o cúmulo jurídico das penas parcelares especificadas em b), condenar a Arguido… na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;
d) Suspender a execução da pena única referida em c), pelo período de 5 (cinco) anos, sob a condição de no prazo de 2 (dois) anos, depositar nos autos a quantia de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) a favor de cada uma das cinco vítimas identificadas, e a proibição de, durante o respectivo prazo, exercer qualquer actividade que implique ter menores à sua guarda e responsabilidade;
e) No mais, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pela Recorrente II …, com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC.
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Notifique.
D.N..
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(Elaborado em computador e integralmente revisto pelo subscritor (art.º 94º/2 do CPP).
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[1] Arguido/a/s.
[2] Novas conclusões, juntas em resposta ao despacho de 10-09-2024.
[3] Ministério Público.
[4] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 09-01-2018, disponível em www.dgsi.pt.
[5] É a afirmação do que deveria ser óbvio, porém a necessidade da sua afirmação é constante… Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16 de Dezembro de 2020, proferido no Processo 3204/15.8T9MAI.P1 e disponível em www.dgsi.pt.
[6] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13-12-2017, proferido no Processo 269/16.9OCCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-06-2007, disponível em www.pdglisboa.pt.
[8] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Outubro de 2023, proferido no Processo 820/21.9T9AVR.P1 e disponível em www.dgsi.pt.
[9] Código de Processo Penal.
[10] Supremo Tribunal de Justiça.
[11]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
[12] Neste sentido cf. Ac. RP de 23/02/1993, in BMJ 324/620: “Dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência.”.
Ainda no mesmo sentido decidiu o Ac. do STJ de 11/12/1996, relatado por Joaquim Dias, in BMJ 462/207, de cujo sumário citamos: “Sendo o dolo um acto psíquico, porque ocorre no interior do sujeito, só é revelado indirectamente através de actos exteriores. Se a natureza do instrumento utilizado, a zona atingida e as características da lesão consentirem a ilação de que o arguido, agredindo a vítima, representou a morte desta como consequência possível da sua acção e agiu conformando-se com tal evento, estará fundamentada a existência de dolo eventual.”.
Ver também o acórdão da RC de 27/10/2010, relatado por Alice Santos, in www.gde.mj.pt, processo 132/08.7TASRE.C1, de cujo sumário citamos: “…2.Os factos integradores do tipo subjectivo de ilícito, v.g. relativos à intenção criminosa, normalmente não resultam provados através de prova directa, mas de prova indiciária. Na normalidade das situações, é da prova de factos materiais e objectivos, que não fazendo parte dos concretos factos integradores do tipo de ilícito que o tribunal, por inferência, no respeito das regras da lógica e da experiência comum, dará ou não como provados factos integradores do tipo subjectivo de ilícito.”.
Ver ainda, no mesmo sentido, Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1984, a págs. 393.
[13] Mas, é necessário ter em conta que  “I - “As regras da experiência são argumentos que ajudam a explicar o caso particular como instância daquilo que é normal acontecer”, mas “o caso particular pode ficar fora do caso típico” e “o juiz não pode confiar nas regras da experiência mais do que na própria averiguação do real concreto”, pois “a prova é particularística, sempre”. II - Embora o dolo se retire frequentemente dos factos externos e a prova dos atos interiores decorra da demonstração da conduta exterior do agente, tal não significa que assim seja necessariamente e o juiz não está dispensado de justificar, na sentença, autonomamente, a demonstração dos factos do dolo. III - Se o arguido nega o “saber” e “querer” de factos objetivos que praticou e apresenta explicação em concreto verosímil no contexto geral dos factos e das provas, é de reconhecer um peso contra-indiciante relevante a essas declarações, pelo que a ausência de “dúvida razoável” quanto aos factos do dolo do tipo fica por explicar na sentença e ocorre o erro de julgamento.” (Acórdão da RC de 23/02/2016, relatado por Ana Brito, no proc. 879/11.0PALGS.E1, in www.dgsi.pt)
[14] Relativamente à fundamentação de facto, cf. a jurisprudência plasmada no Ac. STJ de 17/11/1999, relatado por Martins Ramires, in CJSTJ, III, p. 200 e ss., do qual citamos: “O entendimento do STJ sobre o cumprimento deste preceito encontra-se sedimentado: trata-se de exposição tanto quanto possível completa, mas concisa, dos motivos de facto e indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, sem necessidade de esgotar todas as induções ou critérios de valoração das provas e contraprovas, mas permitindo verificar que a decisão seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo ilógica, arbitrária contraditória ou violadora das regras da experiência comum ... .”.
Também neste sentido, ver Maria do Carmo Silva Dias, in “Particularidades da Prova em Processo Penal. Algumas Questões Ligadas à Prova Pericial”, Revista do CEJ, 2º Semestre de 2005, pp. 178 e ss., bem como a doutrina e a jurisprudência constitucional citadas. No mesmo sentido, cf. Sérgio Gonçalves Poças, in “Da sentença penal – Fundamentação de facto”, revista “Julgar”, n.º 3, Coimbra Editora, p. 21 e ss..
Ver ainda José I. M. Rainho, in “Decisão da matéria de facto – exame crítico das provas”, Revista do CEJ, 1º Semestre de 2006, pp. 145 e ss. donde citamos: “Em que consiste portanto a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção? Consiste simplesmente na indicação das razões fundamentais, retiradas a partir das provas segundo a análise que delas fez o julgador, que levaram o tribunal a assumir como real certo facto. Ou, se se quiser, consiste em dizer por que motivo ou razão as provas produzidas se revelam credíveis e decisivas ou não credíveis ou não decisivas. No primeiro caso o tribunal explica por que julgou provado o facto; no segundo explica por que não julgou provado o facto. … a motivação não tem porque ser extensa, de modo a significar tudo o que foi probatoriamente percepcionado pelo julgador. Pelo contrário, deve ser concisa, como é próprio do que é instrumental, conquanto não possa deixar de ser completa.”.
Ver, também, o acórdão do Tribunal Constitucional de 17/01/2007, in DR, 2ª Série, n.º 39, de 23/02/2007, que decidiu, além do mais, “Não julgar inconstitucional a norma dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que não é sempre necessária menção específica na sentença do conteúdo dos depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa.”.
Cf. o acórdão da RE de 13/05/2014, relatado por Clemente Lima, no proc. 368/12.6GBLLE.E1, in www.dgsi.pt, que sintetiza os fins da fundamentação nos seguintes termos: “… Importa que a fundamentação da sentença (i) contribua para a sua eficácia, pela via da persuasão dos respectivos destinatários e da comunidade jurídica em geral, (ii) consinta às partes e aos tribunais de recurso, fazer reexame do processo lógico ou racional subjacente à decisão, e (iii) constitua um verdadeiro factor de legitimação do poder jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre a qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto (iuris dicere), nessa medida se configurando como garantia do respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões. …”.
Sobre o tema é indispensável a consulta da obra “A fundamentação da sentença no sistema penal português …”, de José António Mouraz Lopes, Ed. Almedina, 2011.
[15] Importa considerar que, como se afirma no Ac. do STJ de 17/02/2005, relatado por Simas Santos, in www.dgsi.pt, processo 04P4324, “1 - O recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente, mas é antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. 2 - Se o recorrente aceita que o teor expresso dos depoimentos prestados permite que a 1.ª Instância tenha estabelecido a factualidade apurada da forma como o fez e questiona tão só a credibilidade que, no seu entender, (não) deveria ter-lhes sido concedida, sem indicar elementos objectivos que imponham a sua posição, a sua pretensão fracassa pois a credibilidade dos depoimentos, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzidas na documentação da prova e logo reexaminada em recurso. 3 - Se apesar de se esforçar, a 1.ª Instância não consegue estabelecer o motivo que levou o arguido a agir, mas estão presentes todos os elementos do respectivo tipo legal de crime, nenhuma dúvida se pode levantar sobre a culpabilidade do agente. …”.
E no Ac. do STJ de 12/06/2008, relatado por Raul Borges, in www.dgsi.pt, processo 07P4375, de cujo sumário citamos: “I - A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades. II - No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma. III - No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.º, al. b), do mesmo diploma. IV - A alteração do art. 412.º do CPP operada em 1998 visou tornar admissível o recurso para a Relação da matéria de facto fixada pelo colectivo, dando seguimento à consagração do direito ao recurso resultante do aditamento da parte final do art. 32.º, n.º 1, da CRP na revisão da Lei Constitucional n.º 1/97, vindo a ser “confirmada” pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005 (in DR, I Série-A, de 07-12-2005), que estabeleceu: «Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo». V - Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios – que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação –, por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos de limitações: - desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso; - já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições; - por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação; - a jusante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. …”.
[16] Neste sentido, cf. ainda o Ac. do STJ de 25/03/1998, in BMJ 475/502, com anotação de que neste sentido se vinham orientando a doutrina e a jurisprudência.
[17] Neste sentido, ver também o Ac. RL, de 10/10/2007, relatado por Carlos Almeida, in www.dgsi.pt, processo 8428/2007-3, de cujo sumário citamos: “…XVII – No caso, embora a prova produzida e examinada na audiência permitisse, eventualmente, uma decisão em sentido diferente, ela não impunha decisão diversa da proferida, razão pela qual o recurso não pode ter provimento.”.
[18] No mesmo sentido, cf. o Ac. do STJ de 20/11/2008, relatado por Santos Carvalho, in www.dgsi.pt, processo 08P3269, de cujo sumário citamos: “I - O STJ tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros. II - Conhecendo-se pela fundamentação da sentença o caminho lógico que, segundo a 1ª instância, levou à condenação do recorrente, deveria este ter-se limitado a sindicar os pontos de facto que nesse percurso foram erradamente avaliados, com a indicação das provas que impunham uma decisão diversa e com referência aos respectivos suportes técnicos. …”.
[19] Neste sentido, veja-se o acórdão da RG de 16/05/2016, relatado por João Lee Ferreira, no proc. 732/11.8JABRG.G1, com o seguinte sumário: “I) Na apreciação do depoimento das testemunhas e das declarações dos arguidos atribui-se relevância aos aspectos verbais, mas também se pode considerar a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação. II) A função do julgador consiste em determinar como os factos se passaram, raciocinando sempre entre os limites de racionalidade e da experiência comum. III) Exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento da entidade imparcial a quem compete julgar depende, assim, de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.”.
[20] Neste sentido, ver o acórdão da RP de 04/02/2016, relatado por Antero Luís, no proc. 23/14.2PCOER.L1-9, in www.dgsi.pt.
[21] Veja-se, a este propósito, o acórdão da RC de 25/10/2017, relatado por Inácio Monteiro, no proc. 444/14.0JACBR.C1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “I - A reapreciação da prova, por erro de julgamento, é ouvir as pessoas nas passagens concretas do seu depoimento, em que no entender do recorrente está inquinado, para saber se disseram ou não o que se mostra vertido na decisão da matéria de facto e não se destina a apurar uma interpretação diferente do tribunal a quo....”.
[22] Código de Processo Civil.
[23] Acórdão da RP de 06/10/2010, relatado por Eduarda Lobo, in www.gde.mj.pt, processo 463/09.9JELSB.P1.
[24] No mesmo sentido, cf. o acórdão da RG de 28/06/2004, relatado por Heitor Gonçalves, in www.gde.mj.pt, processo 575/04-1, do qual citamos: “… Cremos que o recorrente pretende substituir essa convicção do julgador pela sua própria convicção, “escolhendo” os depoimentos que vão de encontro aos seus interesses processuais, quando é sabido que são os julgadores em primeira instância que detêm o poder/dever de apreciar livremente a prova, apreciação que, de todo o modo, no dizer do Prof. Figueiredo Dias, há-de ser, como foi no caso concreto, “recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo”. Uma decisão errada, ilegal ou arbitrária não pode ser sustentada numa simples alegação da discordância entre a convicção do recorrente e a convicção que o julgador livremente formou com base na prova produzida em audiência de julgamento, antes passa necessariamente pela demonstração inequívoca de que o tribunal que a proferiu contrariou as regras da experiência e desrespeitou princípios basilares do direito probatório (v.g. prova legalmente vinculada, provas proibidas etc.). Quando o recorrente pretende apenas pôr em causa a livre apreciação da prova, o recurso estará irremediavelmente destinado à improcedência. É que, como se referiu, o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente, como é o caso. Cumprida essa exigência, a livre convicção do juiz torna-se insindicável, até porque a documentação dos actos da audiência não se destina a substituir, nem substitui, a oralidade e a imediação da prova. Defender-se uma outra solução, o tribunal de recurso acabaria “por proceder a um juízo, mas com inversão das regras da audiência de julgamento ou então, numa espécie de juízos por parâmetros” (Damião da Cunha, O caso julgado Parcial, 2002, pág. 37). …”.
[25] Nesse sentido, vejam-se os seguintes acórdãos:
- da RE de 07/04/2015, relatado por João Gomes de Sousa, no proc. 1.406/10.2PBFAR.E1, in www.dgsi.pt, donde citamos: “… nenhuma regra proíbe que se dê credibilidade determinante a uma só testemunha.
A regra da apreciação tabelada de prova expressa no brocardo latino “unius testimonium non est credendum” (ou “unus testis, nullus testis”, ambas significando que o testemunho de um só não tem força probatória) foi abrogada pelo princípio de livre apreciação da prova pelo tribunal, desde que – em termos de convencimento – se justifique a atribuição de credibilidade a essa testemunha.
Daí que aqueles brocardos tenham sido substituídos pelo mais actual “testimonia ponderanda sunt, non numeranda” (As testemunhas são avaliadas, não contadas). …”.
- da RG de 25/09/2017, relatado por Fátima Furtado, no proc. 70/16.0GBBCL.G1, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: “Num sistema processual penal em que vigora o princípio da livre apreciação da prova, nada impede o Tribunal de fundamentar a decisão sobre a matéria de facto exclusivamente nas declarações da assistente, opostas às do arguido, desde que tal se encontre clara e devidamente justificado na motivação, com a exteriorização das razões pelas quais aquelas lhe mereceram maior credibilidade.”.
[26] Neste sentido, cf. o acórdão da RP de 10/05/2006, relatado por Paulo Valério, in www.gde.mj.pt, processo 0315948, do qual citamos: “… Como se diz no Ac. Rel. Coimbra de 6/12/2000 (www.dgsi.pt - Acórdãos da Relação de Coimbra) «o tribunal superior só em casos de excepção poderá afastar o juízo valorativo das provas feito pelo tribunal a quo, pois a análise do valor daquelas depende de atributos (carácter; probidade moral) que só são verdadeiramente apreensíveis pelo julgador de 1.ªinstância». Ou, consoante se escreveu no igualmente douto Ac. Rel Coimbra de 3-11-2004 (recurso penal n.º 1417/04) «... é evidente que a valoração da prova por declarações e testemunhal depende, para além do conteúdo das declarações e dos depoimentos prestados, do modo como os mesmos são assumidos pelo declarante e pela testemunha e da forma como são transmitidos ao tribunal, circunstâncias que relevam, a par da postura e do comportamento geral do declarante e da testemunha, para efeitos de determinação da credibilidade deste meio de prova, por via da amostragem ou indiciação da personalidade, do carácter, da probidade moral e da isenção de quem declara ou testemunha » (Cfr. no mesmo sentido, entre outros: Ac de 02.06.19 e de 04.02.04, recursos n°s 1770/02 e 3960/03; Ac de. 02.06.19 e de 04.02.04, recursos n°s 1770/02 e 3960/03, todos da Relação de Coimbra).
É que o juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação, e aqui intervêm elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível, inerente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência. …”.
Ora, sendo os factos dados como provados na sentença conclusões lógicas da prova produzida produzidas em audiência e plausíveis face a essas provas, a convicção assim formada pelo julgador não pode ser censurada, sob pena de se aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade, como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/09/2005 (em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ com o nº 05A2007). Na verdade, refere o mesmo acórdão, «a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos ». Elementos que a transcrição não fornece e de que a reapreciação em sede de recurso não dispõe. “…”.
[27] Nesse sentido, cf. acórdão da RC de 26/10/2011, relatado por Heitor Gonçalves, in www.gde.mj.pt, processo 575/04-1: “… A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no citado art.º 410.º, n.º 2, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou, através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o subsequente artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos aludidos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º:
«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do Código de Processo Penal).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.ºs 4 e 6 do mencionado art.º 412.º).
Aliás, é nesta exigência que se justifica, materialmente, o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias, nos termos do artigo 411.º, n.º 4.
Como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008, a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- A que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- A que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- A que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- A que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º 3 do citado artigo 412.º]. …”.
A este propósito, ver também o acórdão da RL de 17/12/2014, relatado por Rui Gonçalves no proc. 432/08.6TASCR.L1-3, do qual citamos: “… É consabido que a chamada revista alargada configura uma impugnação restrita da matéria de facto, mas não é a verdadeira impugnação da matéria de facto conforme o disposto no art. 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
As recorrentes não podem confundir a invocação dos vícios previstos nas alíneas do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal com os requisitos da impugnação da matéria de facto a que se reporta o n.º 3 e respetivas alíneas e o n.º 4 do art. 412.º do referido Corpo de Leis: trata-se de institutos distintos com natureza e consequências distintas.
Na verdade, os vícios previstos no referido art. 410.º devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência e aí se ficam; a impugnação ampla da decisão da matéria de facto lavra fundo na apreciação da prova.
Ora, se é verdade que a existência de um dos vícios do referido art. 410.º nos espelha algo de errado da decisão da matéria de facto, o facto de se não verificar nenhum daqueles vícios, não garante que a matéria de facto haja sido bem julgada.
Com efeito, pode não existir nenhum dos vícios previstos no n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal e no entanto a prova ter sido mal apreciada, ocorrer um verdadeiro erro de julgamento. Daí que na motivação recursória não possa existir confusão nem amálgama entre invocação dos referidos vícios e a impugnação da decisão da matéria de facto, nos termos do art. 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal.
Podem coexistir a invocação dos vícios do n.º 2 do art. 410.º e a impugnação de acordo com o referido 412.º, n.º 3, e pode existir uma sem a outra. …”.
[28] De novo Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 7ª edição, 2008, p. 77.
[29] Cf. Ac. 7/95 do STJ, de 19/10/1995, relatado por Sá Nogueira, in DR 1ª Série A, de 28/12/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no art.º 410.º/2 CPP, nos seguintes termos: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.”.
[30] Assim, o acórdão do STJ de 19/12/1990, proc. 413271/3.ª Secção, in BMJ 402, pág. 232, do qual citamos: " I - Como resulta expressis verbis do art. 410.° do C.P.Penal, os vícios nele referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução ou até mesmo no julgamento (...). IV É portanto inoperante alegar o que os declarantes afirmaram no inquérito, na instrução ou no julgamento em motivação de recursos interpostos".
No sentido da constitucionalidade deste entendimento, cf. o acórdão do TC n.º 573/98, relatado por Messias Bento, que decidiu, para além do mais, nos seguintes termos: “... (a). não julgar inconstitucionais as normas resultantes da conjugação do artigo 433º do Código de Processo Penal com o corpo do n.º 2 do artigo 410º do mesmo Código, na medida em que limitam os fundamentos do recurso a que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum ...”.
[31] Este conceito de maus-tratos, quanto aos castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, tem o mesmo teor do previsto para o crime de violência doméstica. Neste sentido, ver Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, 6ª ed. actualizada, 2024, UCP Editora, pág. 696, anotação 6.
[32] Neste sentido, ver Nuno Brandão, in “A tutela penal reforçada da violência doméstica”, na Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 19.
[33] André Lamas Leite, in “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia”, na Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 45.
[34] Neste sentido, ver Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, 6ª ed. actualizada, 2024, UCP Editora, pág. 696, anotação 2.
[35] Também neste sentido, mas conferindo a ratio do tipo na protecção da dignidade humana, cf. Taipa de Carvalho, in “comentário Conimbricense do CP”, tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 332.
[36] Veja-se, por isso, a seguinte doutrina:
- Nuno Brandão, in “A tutela penal reforçada da violência doméstica”, na Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 14.
- Plácido Conde Fernandes, in “Violência doméstica – Novo quadro penal e processual penal, na Revista do CEJ, n.º 8 (Especial), 2008,p. 305,  que defende que o bem jurídico aqui em causa é “… a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, um bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. …”.
[37] Sobre o bem jurídico protegido por este tipo e o preenchimento dos elementos do tipo, cf. os seguintes acórdãos:
- da RC de 28-01-2009, relatado por Jorge Raposo, no proc. 1501/04.7TACBR.C1, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:
I. – Se é certo que a finalidade educativa abrange o poder de correcção, que se revela (deve revelar) essencialmente no exemplo e na palavra já é claramente discutível se esse poder de correcção pode abranger castigos corporais.
II. – Não pode ter-se como propósito educativo, o comportamento de uma auxiliar de educação que, em relação a menores de cerca de um/dois anos de idade: a) – os obriga a engolir a comida à força, batendo ou dando palmadas na boca, mantendo a boca aberta e metendo uma colher com comida; b) - os obriga a comer o que sai fora da boca, mesmo que caia no chão, mesmo que a criança tenha vómitos ou chore convulsivamente e expulse comida pelo nariz; c) – os agride com estalos por deitar a comida para o chão; d) - o chama "porco" e "badalhoco" a criança que vai ao quarto de banho e se descuida.
III. - Sabendo a arguida que estava a lidar com crianças de um/dois anos de idade, completamente indefesas e incapazes de se defender e queixarem, e que a sua actuação lhes causaria, necessariamente, perturbações que se traduziriam em alterações comportamentais graves, capazes de pôr em causa o seu desenvolvimento físico e psíquico harmonioso e efectivamente provocando sofrimentos que se traduziram em alterações comportamentais graves, susceptíveis de condicionarem o seu desenvolvimento não pode deixar de se considerar como maus tratos para efeitos da materialidade descrita no artigo 152.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.”;
- da RL de 23-04-2019, relatado por Cid Geraldo, no proc. 1533/2017, in Datajuris 364483 (403297), com o seguinte sumário:
I. O crime de maus tratos visa prevenir formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho, pelo que abrange no seu âmbito, para além dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos, humilhações, provocações, ameaças, curtas privações da liberdade de movimentos, sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou saúde física, psíquica ou mental do subordinado, bem como a sujeição a actividades perigosas, desumanas ou proibidas sendo o bem protegido por este tipo de crime a saúde - física, psíquica e mental, que pode ser afectada por vários comportamentos e que pressupõe que o agente se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo daqueles comportamentos.
II. O "poder de corrigir moderadamente o filho nas suas faltas", antes previsto no art. 1884º nº 1 do Código Civil, na sua versão original, deixou de ter consagração legal autónoma em Portugal.
III. A lei aponta um caminho de ampliação das condutas que podem configurar o crime de maus-tratos e  actualmente urge pôr o acento tónico no poder correctivo da persuasão, do exemplo e da palavra e na desnecessidade de causar dor física para corrigir, de forma a poder dar uma resposta satisfatória a este problema social tão disseminado [(essa disseminação resulta da transmissão geracional desses comportamentos - criança maltratada tende a, como adulto, infligir maus-tratos - e da facilidade com que se vulgariza - a palmada que pontua um comportamento desadequado até como forma de o parar passa a ser a forma mais habitual de relacionamento com a criança.”;
- da RE de 08-09-2019, relatado por João Amaro, no proc. , in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:
A inexistência de coabitação entre o arguido e o seu filho menor não obsta a que se integrem no crime de maus tratos dois episódios de violência contra o menor, que se revestiram de gravidade bastante para revelar crueldade, insensibilidade e vingança, traduzindo um claro desrespeito pela dignidade e pela condição humanas da vítima.”;
- da RC de 12-02-2020, relatado por Helena Bolieiro, no proc. 61/17.3JAGRD.C1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos:
“... V – No tipo do artigo 152.º-A do Código Penal, tutela-se um bem jurídico complexo que radica na dignidade da pessoa humana, pelo que, para constituir maus tratos, a conduta do agente deve consubstanciar uma ofensa que, pelas suas características (a analisar no caso concreto, à luz do específico contexto relacional existente entre o agente e a vítima, correspondente a um dos descritos no corpo do n.º 1 da norma incriminadora), se reflecte negativamente na saúde física, psíquica ou mental da vítima e conduz à degradação da sua dignidade pessoal.
VI – Os actos praticados pelo agressor, que podem ser de várias espécies, são considerados na sua integração num comportamento global dotado de uma unidade de sentido de ilicitude, cujo elemento característico corresponde, precisamente, ao tipo dos maus tratos, previsto no artigo 152.º-A do Código Penal.
VII – Devido ao estado de agitação do ofendido DM, então com cinco anos de idade, apresentando-se muito choroso e irrequieto, em virtude de, no dia seguinte, ter de ser submetido a intervenção cirúrgica, recusando-se a dormir, a arguida TM, por volta das 21h00m, em Março, pegou no ofendido DM, que vestia apenas pijama e calçava meias, abriu uma das portas da instituição, sentou-o nas escadas que dão acesso à rua principal e regressou ao interior da instituição, deixando-o naquele local sozinho e ao frio, durante um período não concretizado, mas que não excedeu dez minutos, em que a criança ficou a chorar e teve medo do que lhe pudesse acontecer.
VIII – Pese embora se tenha traduzido num único comportamento, a apurada conduta da arguida TM exprime uma actuação lesiva da dignidade pessoal e da saúde física, psíquica e mental do ofendido DM e, nessa medida, encerra em si a unidade de sentido de ilicitude que caracteriza o tipo dos maus tratos, previsto no artigo 152.º-A do Código Penal.
IX – Não há intenção educativa que possa legitimamente justificar ou sequer explicar a actuação da arguida TM, a quem, pela função que desempenha na instituição que acolhe o ofendido, era exigível e expectável que adoptasse uma conduta pedagogicamente adequada, dando uma resposta consentânea com as necessidades afectivas, psicológicas e educacionais que o ofendido DM revelava na ocasião dos factos, sem pôr em causa a sua dignidade pessoal e saúde física, psíquica e mental.
X – A situação da ofendida AF, portadora de transtorno do espectro autista, revelando-se, por isso, uma pessoa com comportamentos disfuncionais, por vezes agressiva, que descompensa com facilidade, residente na instituição Casa do MJ, mesmo após a maioridade, por ser uma jovem em perigo, com processo de promoção e protecção pendente, deve ser considerada, para efeitos do tipo incriminador do artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal, pessoa particularmente indefesa, em razão de deficiência.
XI – Devido aos comportamentos a que se alude em X, e a mando da arguida RM, a ofendida AF foi muitas vezes sujeita a castigo alimentar, ingerindo apenas a sopa ou sopa e fruta, ao almoço ou ao jantar, sabendo aquela arguida que, como consequência necessária da sua conduta, humilhava a ofendida AF, de forma reiterada, à frente das restantes crianças e jovens da instituição.
XII – Como refere o tribunal a quo, o castigo aplicado à ofendida AF, não só não se mostra adequado para promover o fim educativo que terá sido visado, como, em face da respectiva natureza (privação de uma parte substancial de uma refeição), sempre consubstanciaria, em qualquer circunstância, um “castigo rigorosamente proibido”. Está em causa a satisfação de uma necessidade básica do ser humano, que não deve ser objecto de qualquer limitação com fundamento nas necessidades educativas que possam ser detectadas.
XIII – Não há intenção educativa que possa legitimamente justificar ou sequer explicar a actuação da arguida RM, a quem, pela função que desempenha na instituição que acolhe a ofendida, sendo profissional da área da psicologia, era exigível e expectável que adoptasse uma conduta ajustada aos cuidados de saúde mental de que a ofendida AF necessitava, bem como pedagogicamente adequada, dando uma resposta consentânea com as especificidades de desenvolvimento neurológico e de ordem psíquica, psicológica e educacional que aquela ofendida revelava à data dos factos, sem pôr em causa a sua dignidade pessoal e a saúde física, psíquica e mental.
XIV – A gravidade do apurado comportamento da arguida RM, que se desdobrou em múltiplas actuações, ainda que em número não concretamente determinado, exprime claramente uma actuação lesiva da dignidade pessoal e da saúde psíquica e mental da ofendida AF, senão mesmo também da própria saúde física, e, nessa medida, contém em si a unidade de sentido de ilicitude que caracteriza o tipo de crime de maus tratos, previsto no artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
XV – Atendendo ao significado que objetivamente encerra (pessoa que está privada de um braço ou de uma das mãos), provoca elevada perturbação psíquica e humilhação, como efetivamente aconteceu, com relevância típica para o crime de maus tratos, porque atentatória do bens jurídicos dignidade pessoal e saúde psíquica e mental, a utilização, pela arguida RM, em diversas ocasiões, a sós e também na presença de outros utentes e funcionárias, da expressão “maneta”, para apelidar alguém que padece de limitações físicas que lhe afectam o membro superior de um dos lados do corpo, como sucede com a ofendida DF, que sofre de hemiparesia (perda parcial das funções motoras de uma das metades do corpo), isto tanto mais que a mesma estava em plena adolescência e se encontrava acolhida em meio institucional, em resultado de uma medida de promoção e protecção, espaço que congrega diversas pessoas – adultos, crianças e jovens – e em que, por natureza, facilmente se propaga a utilização de “alcunhas”, mais ou menos depreciativas, nomeadamente pelos pares ali residentes. .”;
- da RP de 16-12-2020, relatado por Dolores Silva e Sousa, no proc. 3024/15.8T9MAI.P1, in JusNet 8859/2020, com o seguinte sumário:
Comete o crime de maus tratos de menor a educadora que agride física e verbalmente a crianças a seu cargo, desferindo-lhes pancadas, apertando-lhes o nariz e introduzindo-lhes comida na boca, e os força, ainda, a comer o que vomitavam”;
- da RE de 13-09-2022, relatado por João Amaro, no Proc. 40/19.6GAPSR.E1, in JusNet 6546/2022, com o seguinte sumário:
“O facto de o avô e avó-madrasta agarrarem o menor por debaixo dos braços, puxando-o para cima com violência, manietando-o e forçando a sua entrada na residência daqueles para aí jantar, consubstancia a prática de um crime de maus-tratos”.
[38] No sentido de que é um crime de resultado, cf. André Lamas Leite, in “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia”, na Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 42/3.
No sentido de que tanto pode ser um crime de resultado, ou um crime de mera conduta, ou um crime de dano, ou de perigo, cf. Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do CP”, tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 334.
[39] Código Penal.
[40] A este respeito, porque sintetiza e expõe de forma exemplar a doutrina e a jurisprudência dominantes quanto à determinação das medidas das penas, citamos o Ac. do STJ de 09/12/1998, relatado por Leonardo Dias, in BMJ 482/77: “Do nosso ponto de vista deve entender-se que, sempre e tanto quanto for possível, sem prejuízo da prevenção especial positiva e, sempre, com o limite imposto pelo princípio da culpa – nulla poena sine culpa – a função primordial da pena consiste na protecção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos.
A culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define, em concreto, o seu limite máximo, absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. A prevenção especial positiva, porém subordinada que está à finalidade principal de protecção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo; este, logicamente, não pode ser outro que não o mínimo de pena que, em concreto, ainda, realiza, eficazmente, aquela protecção.
Enfim, devendo proporcionar ao condenado a possibilidade de optar por comportamentos alternativos ao criminal (sem, todavia, sob pena de violação intolerável da sua dignidade, lhe impor a interiorização de um determinado sistema de valores), a pena tem de responder, sempre, positivamente, às exigências de prevenção geral de integração.
[Poderia objectar-se que esta concepção abre, perigosamente, caminho ao terror penal. Uma tal objecção, porém, ignoraria, para além do papel decisivo reservado à culpa, que, do que se trata, é do direito penal de um estado de direito social e democrático, onde quer a limitação do jus puniendi estatal, por efeito da missão de exclusiva protecção de bens jurídicos, àquele atribuída (a determinação do conceito material de bem jurídico capaz de se opor à vocação totalitária do Estado continua sendo uma das preocupações prioritárias da doutrina; entre nós Figueiredo Dias – que, como outros prestigiados autores, entende que na delimitação dos bens jurídicos carecidos de tutela penal haverá que tomar-se, como referência, a própria Lei Fundamental – propõe a seguinte definição: «unidade de aspectos ônticos e axiológicos, através da qual se exprime o interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso valioso», cfr. «Os novos rumos da política criminal», Revista da Ordem dos Advogados, ano 43º, 1983, pág.. 15) e os princípios jurídico-penais da lesividade ou ofensividade, da indispensabilidade da tutela penal, da fragmentaridade, subsidiariedade e da proporcionalidade, quer os próprios mecanismos da democracia e os princípios essenciais do Estado de direito são garantias de que, enquanto de direito, social e democrático, o Estado não poderá chegar ao ponto de fazer, da pena, uma arma que, colocada ao serviço exclusivo da eficácia, pela eficácia, do sistema penal, acabe dirigida contra a sociedade. Depois, prevenção geral, no Estado de que falamos, não é a prevenção estritamente negativa ou de pura intimidação. Um direito penal democrático que, por se apoiar no consenso dos cidadãos, traduz as convicções jurídicas fundamentais da colectividade, tem de, pela mesma razão, colocar a pena ao serviço desse sentimento jurídico comum; isto significa que ela não pode ser aplicada apenas para intimidar os potenciais delinquentes mas que, acima de tudo, deve dar satisfação às exigências da consciência jurídica geral, estabilizando as suas expectativas na validade da norma violada. Assim, subordinada a função intimidatória da pena a esta sua outra função socialmente integradora, já se vê que a pena preventiva (geral) nunca poderá ser pura intimidação mas, sim, intimidação limitada ao necessário para restabelecer a confiança geral na ordem jurídica ou, por outras palavras, intimidação conforme ao sentimento jurídico comum.]
Ora, se por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, nunca esta pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que – dentro, claro está, da moldura geral – a moldura penal aplicável ao caso concreto («moldura de prevenção») há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social.”.
Quanto à determinação da medida da pena, cf. também o Ac. do STJ de 09/03/2006, relatado por Arménio Sottomayor, in CJSTJ, tomo I, pp. 212 e ss..
Ver ainda o Ac. do STJ de 29/05/2008, processo 08P1145, in www.dgsi.pt, relatado por Souto de Moura, do qual citamos: “ … É hoje entendimento uniforme deste S.T.J., bem como da doutrina, que a escolha e medida da pena constituem tarefas cuja sindicabilidade se tem que assegurar, o que reclama que o julgador tenha em conta nessas tarefas a natureza, a gravidade e a forma de execução do crime, optando por uma das reacções penais legalmente previstas, numa aplicação do direito autêntica, e não num exercício do que possa ser apelidado, simplesmente, de “arte de julgar”. Tal não impede que, em sede de recurso de revista para este S.T.J., a controlabilidade da determinação da pena deva sofrer limites. Assim, podem ser apreciadas “a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais” (…) “E o mesmo entendimento deve ser estendido à valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade, bem como a questão do limite ou da moldura da culpa, que estaria plenamente sujeita a revista, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção. Já tem considerado, por outro lado, este Supremo Tribunal de Justiça e a Doutrina que a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, não caberia no controlo proporcionado pelo recurso de revista, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada” (do Ac. deste S.T.J. e 5ª Secção, de 13/12/07, Pº 3292/07, relatado pelo Cons. Simas Santos. Cfr. também Figueiredo Dias in “Direito penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 197). Importa então recordar os critérios a que deve obedecer a determinação da pena concreta. Assinale-se que o ponto de partida e enquadramento geral da tarefa a realizar, na sindicância das penas aplicadas, não pode deixar de se prender com o disposto no art.º 40º do C. P., nos termos do qual toda a pena tem como finalidade “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Em matéria de culpabilidade, diz-nos o nº 2 do preceito que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” Com este preceito, fica-nos a indicação de que a pena assume agora, e entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição “qua tale” da culpa. Do mesmo modo, a chamada expiação da culpa ficará remetida para a condição de consequência positiva, quando tiver lugar, mas não de finalidade primária da pena. No pressuposto de que por expiação se entende a compreensão da ilicitude, e aceitação da pena que cumpre, pelo arguido, com a consequente reconciliação voluntária com a sociedade. Assim, a avaliação da culpa do agente fica ao serviço, fundamentalmente, de propósitos garantísticos e no interesse do arguido. Quando pois o art.º 71º do C. P. nos vem dizer, no seu nº 1, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não o podemos dissociar daquele art.º 40º. Daí que a doutrina venha a defender, sobretudo pela mão de Figueiredo Dias, (Cfr. “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, págs.. 227 e segs.) que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica: A partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma “sub-moldura” para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o “quantum” abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.” (Cfr. Idem pág. 229). Ora, será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão actuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico- normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar. A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem-se orientado quase unanimemente num sentido igual ao que acaba de se referir. O nº 2 do art.º 71º do C. P. manda atender, na determinação concreta da pena, “ a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”. Enumera a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime. …”.
[41] A este propósito escreve Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, págs. 290 a 292: “…§ 420 Estabelecida a moldura penal do concurso o tribunal ocupar-se-á finalmente da determinação, dentro dos limites daquela, da medida da pena conjunta do concurso, que encontrará em função das exigências gerais de culpa e de prevenção. Nem por isso se dirá com razão, no entanto, que estamos aqui perante uma hipótese normal de determinação da medida da pena. Com efeito, a lei fornece ao tribunal, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 72.°-1, um critério especial: «na determinação concreta da pena [do concurso] serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente» (art. 78.°-1, 2.a parte).
A existência deste critério especial obriga logo (circunstância de que a nossa jurisprudência não parece dar-se conta) a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação, em função de um tal critério, da medida da pena do concurso: a tanto vincula a indispensável conexão entre o disposto nos arts. 78.°-1 e 72.°-3, só assim se evitando que a medida da pena do concurso surja como fruto de um acto intuitivo — da «arte» do juiz uma vez mais — ou puramente mecânico e portanto arbitrário. Sem prejuízo de poder conceder-se que o dever de fundamentação não assume aqui nem o rigor, nem a extensão pressupostos pelo art. 72.° (tanto mais quanto os factores por este enumerados podem servir de «guia» para a medida da pena do concurso, sem violação da proibição de dupla valoração: cf. infra § 422), nem por isso um tal dever deixa de surgir como legal e materialmente indeclinável.
§ 421 Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade unitária — do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização) (…).

§ 422 A doutrina alemã discute muito a questão de saber se factores de medida das penas parcelares podem ou não, perante o princípio da proibição de dupla valoração, ser de novo considerados na medida da pena conjunta (…).Em princípio impõe-se uma resposta negativa; mas deve notar-se que aquilo que à primeira vista poderá parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá razão para invocar a proibição de dupla valoração (…). …”.
[42] E, como se disse no sumário do acórdão do STJ de 27/02/2013, relatado por Henriques Gaspar, no proc. 455/08.5GDPTM, in www.gde.mj.pt,: “…I - Nos termos do art. 77.º, n.º 1, do CP, o agente do concurso de crimes («quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles») é condenado numa única pena, em cuja medida «são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».
II - Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está, pois, ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso. Na consideração da personalidade deve ser ponderado o modo como a personalidade se projecta nos factos ou é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente.
III -A aplicação e a interacção das regras do art. 77.º, n.º 1, do CP (avaliação em conjunto dos factos e da personalidade), convocam critérios de proporcionalidade material na fixação da pena única dentro da moldura do cúmulo, por vezes de grande amplitude; proporcionalidade e proibição de excesso em relação aos fins na equação entre a gravidade do ilícito global e a amplitude dos limites da moldura da pena conjunta.
IV -Concretizando estes critérios, a homogeneidade e a (relativa) proximidade temporal dos crimes contra o património praticados pelo arguido, e a menor ressonância externa e comunitária da prevenção geral no que respeita à indocumentação na condução automóvel, a importância do conjunto dos factos, designadamente pela reiteração, aconselharia na perspectiva das exigências de prevenção geral a fixação de uma pena no limite próximo da metade inferior da escala da moldura da pena do cúmulo.
V - Porém, o percurso de vida do recorrente e a personalidade que por aí também vem revelada, com contacto frequente com o sistema penal e sem aproveitamento do juízo de prognose favorável de que beneficiou, aconselham – e impõem – a intervenção exigente das finalidades de prevenção especial; como revelam os factos provados, as sanções penais de natureza e medida que então foram consideradas adequadas em função de juízos favoráveis sobre o comportamento futuro do recorrente, não constituíram meio idóneo de ressocialização e de reencaminhamento para os valores. As finalidades de prevenção especial são, assim, muito acentuadas, condicionando a justa medida da pena única: a sanção indispensável, tanto na natureza como na medida.
VI - Há, pois, que fixar a pena respeitando a proporcionalidade entre os crimes e a reacção penal. Nestes termos, dentro da moldura do cúmulo, que vai de 4 anos e 8 meses de prisão até 20 anos e 4 meses de prisão, mostra-se adequada a pena única de 12 anos de prisão [em substituição da pena única de 18 anos de prisão fixada pelo tribunal recorrido]. …”.
[43] Entendemos que, nesta matéria, tem plena aplicação aos tribunais de 2ª instância a jurisprudência exposta, relativa à intervenção do STJ na determinação concreta das penas, no Ac. do mesmo Tribunal de 27/05/2009, relatado por Raul Borges, in www.gde.mj.pt, Proc. 09P0484, que passamos a citar: “… A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cfr. acórdãos de 09-11-2000, processo nº 2693/00-5ª; de 23-11-2000, processo nº 2766/00 - 5ª; de 30-11-2000, processo nº 2808/00 - 5ª; de 28-06-2001, processos nºs 1674/01-5ª, 1169/01-5ª e 1552/01-5ª; de 30-08-2001, processo nº 2806/01 - 5ª; de 15-11-2001, processo nº 2622/01 - 5ª; de 06-12-2001, processo nº 3340/01 - 5ª; de 17-01-2002, processo 2132/01-5ª; de 09-05-2002, processo nº 628/02-5ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, processo nº 585/02 - 5ª; de 23-05-2002, processo nº 1205/02 - 5ª; de 26-09-2002, processo nº 2360/02 - 5ª; de 14-11-2002, processo nº 3316/02 - 5ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, processo nº 3399/03 - 5ª; de 04-03-2004, processo nº 456/04 - 5ª, in CJSTJ 2004, tomo1, pág. 220; de 11-11-2004, processo nº 3182/04 - 5ª; de 23-06-2005, processo nº 2047/05 -5ª; de 12-07-2005, processo nº 2521/05 - 5ª; de 03-11-2005, processo nº 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, processo n.º 2555/06 - 3ª; de 14-02-2007, processo n.º 249/07 - 3ª; de 08-03-2007, processo n.º 4590/06 - 5ª; de 12-04-2007, processo n.º 1228/07 - 5ª; de 19-04-2007, processo n.º 445/07 - 5ª; de 10-05-2007, processo n.º 1500/07 - 5ª; de 04-07-2007, processo n.º 1775/07 - 3ª; de 17-10-2007, processo n.º 3321/07 - 3ª; de 10-01-2008, processo n.º 907/07 - 5ª; de 16-01-2008, processo n.º 4571/07 - 3ª; de 20-02-2008, processos n.ºs 4639/07 - 3ª e 4832/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 437/08 - 3ª; de 02-04-2008, processo n.º 4730/07 - 3ª; de 03-04-2008, processo n.º 3228/07 - 5ª; de 09-04-2008, processo n.º 1491/07 - 5ª e processo n.º 999/08-3ª; de 17-04-2008, processos n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, processo n.º 4723/07 - 3ª; de 21-05-2008, processos n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5ª secção; de 29-05-2008, processo n.º 1001/08 - 5ª; de 15-07-2008, processo n.º 818/08 - 5.ª; de 03-09-2008 no processo n.º 3982/07-3ª; de 10-09-2008, processo n.º 2506/08 - 3ª; de 08-10-2008, nos processos n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3ª secção; de 15-10-2008, processo n.º 1964/08 - 3ª; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª … .”.
No mesmo sentido se pronunciou, antes, o acórdão do STJ de 29/01/2004, relatado por Pereira Madeira, no processo 03P1874, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “…Estas considerações levam a que o Supremo Tribunal entenda não interferir na medida concreta encontrada, justamente porque não encontra qualquer assomo de ilegalidade no procedimento seguido para apuramento das penas concretas aplicadas - parcelares e única - sendo certo que, como se sabe, os recursos são meio de corrigir ilegalidades mas não de refinar decisões judiciais.
Neste sentido se vem aqui reiteradamente entendendo (Cfr. por todos, Ac. STJ de 9/11/2000, in Sumários STJ disponível em http://www.cidadevirtual.pt/stj/jurisp/bo14crime.html, e muitos outros que se lhe seguiram) que "no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a sua desproporção da quantificação efectuada" (Cfr. a solução que, para o mesmo problema, aponta Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 197, § 255).
Ou, dizendo por outras palavras, "como remédios jurídicos, os recursos (salvo o caso do recurso de revisão que tem autonomia própria) não podem ser utilizados com o único objectivo de uma "melhor justiça". (...) A pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulta de violação do direito material". (Cfr. Cunha Rodrigues, Recursos, in Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 387.) …”.
No mesmo sentido, cf. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2ª Reimpressão, 2009, pág. 197, e Simas Santos e Marcelo Ribeiro, in “Medida Concreta da Pena”, Vislis: “A doutrina (cfr. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 255) mostra-se de acordo com a ideia de que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, e a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. A questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.”.
[44] Neste sentido, ver ainda o acórdão de RP de 02/10/2013, relatado por Joaquim Gomes, no proc. 180/11.0GAVLP.P1, in www.dgsi.pt, cujo sumário citamos: “O recurso dirigido à medida da pena visa o controlo da (des)proporcionalidade da sua fixação ou a correção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, e não a concretização do quantum exato da pena aplicada.”.
[45] Relevantes nos termos do disposto no art.º 8º/3 do Código Civil, com o seguinte teor: “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”.
[46] Sobre as medidas das penas aplicadas a casos similares, veja-se a seguinte jurisprudência, toda disponível em www.dgsi.pt:

AcórdãoProcessoRelator/aCrime/sAntecedentesAtitude1ª instância2ª instância
RL de 23-04-20191533/17.5T9SNT.L1Cid Geraldo1 crime de maus tratosPrimárioConfessou1 ano de prisão suspensaManteve
RL de 05-06-2019600/18.2T9VFX.L1Maria Perquilhas1 crime de maus tratosNão primárioConfessou1 ano e 2 meses de prisão suspensaManteve
RC de 12-02-202061/17.3PEFIG.C1Helena Bolieiro2 crimes de maus tratos. 2 anos e 6 meses de prisão x 2
Cúmulo: 3 anos e 6 meses
Suspensa
Reduziu para 2 anos de prisão x 2
Cúmulo 2 anos e 8 meses
Suspensa
RP de 16-12-20203204/15.8T9MAI.P1Dolores Silva a Sousa7 crimes de maus tratosPrimária 1 ano e 2 meses de prisão x 7
Cúmulo 3 anos e 6 meses
Manteve
RE de 13-09-202240/19.6GAPSR.E1João Amaro1 crime de maus tratosPrimáriosNão confessaram1 ano e 8 meses de prisão/1 ano e 15 dias de prisão
Suspensas
Manteve


[47] Quando à suspensão da execução da pena de prisão, seguimos a lição de Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, pp. 342 e ss.: “… Pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena - acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta (art.º 49.º-1) - «bastarão para afastar o delinquente da criminalidade» (art.º 48.º-1). Para a formulação de um tal juízo - ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto -, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.
A lei torna deste modo claro que, na formulação do aludido prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto. Por isso, crimes posteriores àquele que constitui objecto do processo, eventualmente cometidos pelo agente, podem e devem ser tomados em consideração e influenciar negativamente a prognose. Como positivamente a podem influenciar circunstâncias posteriores ao facto, ainda mesmo quando elas tenham sido já tomadas em consideração - na medida possível: supra § 355 ss. - em sede de medida da pena: com isto não deve dizer-se violada a proibição de dupla valoração. Não pode deixar de ser valorada para este efeito, v. g., a circunstância de o condenado por um crime relacionado com o consumo de álcool ou de estupefacientes se ter submetido com êxito posteriormente ao crime, mas anteriormente à condenação, a uma cura de desintoxicação (cf. de resto os arts. 41.º e ss. do DL n.º 15/9.1. de JAN22).
§ 519 A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou - ainda menos - «metanoia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É em suma, como se exprime Zipf, uma questão de «legalidade» e não de «moralidade» que aqui está em causa. Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».
Por isso, um prognóstico favorável fundante da suspensão não está excluído - embora se devam colocar-lhe exigências acrescidas - mesmo relativamente a agentes por convicção ou por decisão de consciência (nos casos, naturalmente. em que também estes últimos sejam puníveis). Mas já o está decerto naqueles outros casos em que o comportamento posterior ao crime, mas anterior à condenação, conduziria obrigatoriamente, se ocorresse durante o período de suspensão, à revogação desta (art. 51.º-1 e infra § 546). Por outro lado, a existência de condenação ou condenações anteriores não é impeditiva a priori da concessão da suspensão: mas compreende-se que o prognóstico favorável se torne, nestes casos, bem mais difícil e questionável - mesmo que os crimes em causa sejam de diferente natureza - e se exija para a concessão uma particular fundamentação (fundamentação, aliás, sempre necessária: infra § 523).
§ 520 Apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime» (art. 48.º-2 in fine). Já determinámos (supra § 502) que estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise. …”.
[48] Para se formular um juízo de prognose positivo “... Não é necessário, alcançar uma certeza isenta de dúvidas ou mesmo exigir um alto grau de probabilidade de que a socialização em liberdade pode ser  alcançada; há que aceitar um certo risco ...” (M. Miguez Garcia/J.M. Castela Rio, in “CP - Parte Geral e Especial – Com notas e comentários”, Almedina, 2ª Ed., 2015, pág. 334), “... Pois que o que aqui está em causa não é qualquer «certeza», mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda, o tribunal deve encontrar-se disposto a correr um certo risco - digamos: fundado e calculado sobre a manutenção do agente em liberdade. Havendo, porém, razões sérias para duvidar da capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada. Como muito exactamente nota Jescheck, «o princípio in dubio pro reo vale só para os factos que estão na base do juízo de probabilidade, mas desta deve o tribunal estar convencido. ...” (Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, Coimbra Editora, 2ª Reimpressão, 2009, págs. 344/345).
[49] Neste sentido, vejam-se, por todos, os seguintes acórdãos:
- da RE de 20/09/2011, relatado por Alberto João Borges, no proc. 2992/07.0TAPTM.E1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “... II - A reparação imposta na sentença recorrida como condição da suspensão da execução da pena, não se destina a indemnizar a lesada, mas antes ao reforço do conteúdo educativo e pedagógico que se pretende com a suspensão da execução da pena de prisão, levando a arguida a interiorizar, por um lado, que a pena de prisão cuja execução é suspensa é, de facto, uma pena, que não pode deixar de lhe fazer sentir a necessidade de conformar o seu modo de vida com as normas vigentes, por outro, que a confiança que o tribunal nela deposita, suspendendo-lhe a execução da pena – quanto ao seu comportamento futuro – envolvendo algum risco, não pode deixar de ser um risco calculado e, por isso, ter em conta que tal pena não pode deixar de representar um verdadeiro sacrifício, sob pena de ficarem frustrados os fins da punição e criar na comunidade um sentimento de impunidade e desconfiança, ou seja, a ideia de que o crime compensa. ...”;
- da RC de 02/10/2013, relatado por Fernando Chaves, no proc. 1054/10.7TALRA.C1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “.... Acerca da caracterização da indemnização atribuída ao lesado, focando as dúvidas que se podem colocar no que toca à correlacionação entre este dever e o pedido de indemnização civil, refere o Prof. Figueiredo Dias: “[d]o que se trata em suma, neste dever de indemnizar, é da sua função adjuvante da realização da finalidade de punição, não de reeditar a tese do carácter penal da indemnização civil proveniente de um crime que o artigo 128.º  (hoje 129.º) quis postergar”([Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, pág. 352, § 538.]).
Sobre a natureza jurídica da indemnização já se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça ao referir que «a quantia cujo pagamento pelo arguido ao lesado é condição da suspensão da pena não constitui aqui uma verdadeira indemnização, mas uma compensação destinada principalmente ao reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da pena de substituição e a dar satisfação suficiente às finalidades da punição, respondendo nomeadamente à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.
Por isso a modificabilidade do quantum arbitrado se tal vier a justificar-se - cfr. artigo 49º, 3, do CP de 1982 (artigo 51.º, 3 do CP de 1995).
E por isso também que o montante assim arbitrado não tenha de corresponder ao que resultaria da fixação de indemnização segundo os critérios estabelecidos na lei para a responsabilidade civil e para a obrigação de indemnizar (artigos 483º e segs. e 562º e segs. do Código Civil), ou seja, a determinação do montante do quantum compensatório não está sujeito aos estritos critérios da lei civil e processual civil para a fixação da indemnização»([Acórdão do STJ de 11/6/1997, Colectânea de Jurisprudência, ACSTJ, Ano V, Tomo II, página 226.]).
Daí que não seja requisito da imposição deste dever que tenha sido deduzido pedido de indemnização civil pelo lesado, assim como também não é requisito a prévia procedência do pedido de indemnização civil, pois o tribunal pode determinar a suspensão da execução da pena de prisão apesar do trânsito de decisão que julgou improcedente o pedido de indemnização ao lesado([Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2ª edição actualizada, pág. 229; Acórdão do STJ de 31/5/2000, Colectânea de Jurisprudência, ACSTJ, Ano VIII, Tomo II, pág. 208.]). ...”;
- 305/01 do Tribunal Constitucional, de 27/06/2001, relatado por Artur Maurício, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “... E a este propósito convém recordar o acórdão nº. 596/99, in Diário da República, II Série, de 22 de Fevereiro que apreciou a constitucionalidade da norma constante do artigo 51º, nº. 1, alínea a) do Código Penal, ora em apreço, no sentido de que do que se trata é da "(...) consideração de que, em certos casos, a suspensão da execução da pena de prisão só permite realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição se ela – suspensão da execução – se associar a reparação dos danos provocados ao lesado, traduzida no pagamento (ou prestação de garantia de pagamento) da indemnização devida.
Não é, por isso, inconstitucional, designadamente por violação do artigo 27º, nº. 1, da Constituição, a norma constante do artigo 51º, nº. 1, alínea a), do Código Penal, na parte em que permite ao juiz condicionar a suspensão da execução da pena de prisão à efectiva reparação dos danos causados ao ofendido."
...
Este Tribunal teve já ocasião para abordar a questão que vimos analisando – ainda que a propósito da norma constante do artigo 12º do Decreto-Lei nº. 605/75, de 3 de Novembro – pronunciando-se no sentido de que "(...) a indemnização civil por perdas e danos pode ser arbitrada oficiosamente, isto é, independentemente de requerimento do lesado, não viola o princípio constitucional da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa" (cfr. acórdão nº. 187/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 16º, 1990, págs. 395 a 410; acórdão nº. 413/93, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 25º, 1993, págs. 623 a 629 e acórdão nº. 452/2000, in Diário da República , II Série, de 29 de Novembro).
Não obstante o que se deixa dito e independentemente do que se possa ter como a interpretação correcta da norma do artigo 51º nº 1 alínea a) do Código Penal, decisivo é averiguar o que o tribunal recorrido entendeu sobre a caracterização da indemnização atribuída ao "lesado" e cujo pagamento impôs à recorrente como condição de suspensão da pena de prisão.
A verdade é que, neste aspecto, se deve reconhecer alguma parcimónia no acórdão recorrido. É, porém, de admitir que ele tenha seguido a orientação que vem sendo adoptada pelo STJ sobre a matéria.
Tomem-se como exemplos os Acórdãos de 29/1/97, 11/6/97, 29/10/97 e 2/6/99.
Escreve-se no sumário do primeiro:
"I - A suspensão da pena pode ser condicionada ao dever de pagar em certo período uma indemnização ao ofendido:
II – Porém, não se trata de obrigação de pagamento, de realização de uma prestação, ou de efeito civil da condenação, mas apenas da própria pena de suspensão da execução.
III - .......................................................................................................................
Diz-se no segundo (in CJ – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano V. tomo II – 1997, pp. 226 e segs.):
"(...) a quantia cujo pagamento pelo arguido ao lesado é condição da suspensão da pena não constitui aqui uma verdadeira indemnização, mas uma compensação destinada principalmente ao reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da pena de substituição e a dar satisfação suficiente às finalidades da punição, respondendo nomeadamente à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.
Por isso a modificabilidade do quantum arbitrado se tal vier a justificar-se – conf. Art. 49º - 3 do CP82 (art. 510º-3 do CP95.
E por isso também que o montante assim arbitrado não tenha de corresponder ao que resultaria da fixação de indemnização segundo os critérios estabelecidos na lei para a responsabilidade civil e para a obrigação de indemnizar (arts. 483º e segs. e 562º e segs. do Cód. Civil).
E este entendimento de ser possível condicionar a suspensão de pena ao pagamento de quantia compensatória ao ofendido, ainda que não haja sido pedida, é jurisprudência que o acórdão deste Supremo Tribunal de 92.11.11 (in CJ, ano XVII, tomo V, pág. 10) já então considerava firme e plenamente justificada, com fundamento em que a fixação de uma compensação pecuniária pelo julgador a favor do ofendido, como condicionante de uma suspensão da execução da pena aparece (...) ao arguido como uma contrapartida económica da manutenção da sua liberdade ameaçada por ter cometido um acto ilícito e tem, nessa medida, um efeito dissuasor muito significativo, numa sociedade que defende, na medida do possível, a primazia das sanções não detentivas (ib.) e que muito recentemente veio a ser reafirmada no acórdão deste Supremo Tribunal de 96.12.10 (proc. nº 48364 – 3ª Secção).
 (...) o quantum compensatório cujo pagamento seja imposto ao arguido como condicionante da suspensão da execução da pena não está sujeito na determinação do seu montante aos estritos critérios da lei civil e processual civil para a fixação da indemnização(...)".
O sumário do Acórdão de 29/10/97 é particularmente esclarecedor desta tese. Aí se diz:
"I – A suspensão da execução da pena com o dever económico de reparar o mal do crime não importa uma obrigação de indemnização em sentido estrito. Esse dever (ou obrigação em sentido lato) vale apenas no seio do instituto da suspensão da execução da pena, sendo o sancionamento pelo não cumprimento apenas o que deriva das regras da própria suspensão da execução.
II – Quando se suspende uma pena sob condição do pagamento de uma indemnização por perdas e danos ao ofendido, nem o Estado nem o beneficiário da reparação ou indemnização ficam, por virtude da imposição do dever, na situação de credores e, por consequência também o arguido não fica adstricto ao cumprimento de uma prestação, com todas as consequências jurídicas civis derivadas do incumprimento pontual."
Finalmente no sumário do último aresto citado escreve-se:
"...........................................................................................................................
Não se trata, porém, de uma condenação em indemnização mas, unicamente, da imposição de um dever que, reforçando o sancionamento penal, visa levar o arguido a tomar a iniciativa de reparar o dano, não conferindo ao lesado qualquer direito a exigir o seu cumprimento."
 (Todos os sumários constam da Base de dados dos acórdãos do STJ, www.dgsi)
Ora, desta jurisprudência retira-se, sem margem para quaisquer dúvidas, que a "indemnização" ou "compensação" é tida – bem ou mal – como que um "tertium genus", com uma natureza jurídica própria (cumprindo a "função adjuvante da realização da finalidade da punição") , onde, desde logo avulta como traço diferenciador o facto de ela não ser exigível pelo lesado.
Mas sendo assim, cai pela base a argumentação da recorrente, assente, como se disse, na violação de caso julgado absolutório (para daqui extrair a arguição de inconstitucionalidade) uma vez que à indemnização civil pedida (e recusada) no processo penal é alheia a que foi arbitrada na condenação penal e a cujo pagamento se subordinou a suspensão da execução da pena.
Não pode assim julgar-se procedente a alegação de qualquer das violações constitucionais feita pela recorrente. ...”.