Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CATARINA GONÇALVES | ||
Descritores: | AÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM APENSO À INSOLVÊNCIA COMPETÊNCIA JUÍZOS DE COMÉRCIO | ||
Data do Acordão: | 05/10/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMÉRCIO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | SIM | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 128.º, N.ºS 1, AL. A), E 3, DA LOSJ (LEI N.º 62/2013, DE 26-08) E 85.º, N.º 1, DO CIRE | ||
Sumário: | O Juízo de Comércio – onde corre o processo de insolvência – é o competente para preparar e julgar uma ação de divisão de coisa comum, instaurada pela massa insolvente, por apenso à insolvência, com referência a um imóvel de que os insolventes são comproprietários. | ||
Decisão Texto Integral: | Apelação nº 2227/16.4T8VIS-D.C1 Tribunal recorrido: Comarca de Viseu - Viseu - Juízo Comércio - Juiz 2 Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves Des. Adjuntos: Maria João Areias Helena Melo
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Massa Insolvente de AA e BB veio instaurar, por apenso aos respectivos autos de insolvência a correr termos no Juízo de Comércio ... – Juiz ..., a presente ação especial de divisão de coisa comum contra a Herança aberta por óbito de CC, representada por DD, pedindo que, pelo facto de o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...40, freguesia ... ser indivisível, seja vendido em ordem a proceder-se à repartição do produto da venda nos termos dos respetivos quinhões. Alega, em síntese: que aquele prédio era detido pelos insolventes na proporção de 2/3, sendo a parte restante detida por CC e esposa EE; que CC faleceu em .../.../2017, tendo sido lavrado o competente procedimento simplificado de herdeiros, tendo sido habilitadas a cônjuge sobreviva e a filha do dissolvido casal; que, tendo de liquidar os bens dos Insolventes, não lhe interessa permanecer na situação de indivisão do imóvel e que o imóvel não é divisível, por ter área inferior à unidade mínima de cultura. Mais alega que o bem em questão – ou o produto da sua venda – integra a massa insolvente e, como tal, a presente acção deverá correr por apenso aos autos de insolvência.
Tendo sido notificada, em obediência ao princípio do contraditório, para se pronunciar sobre a eventual incompetência do tribunal em razão da matéria, veio a Autora sustentar que o Tribunal detém competência, invocando, para tanto, o disposto no art.º 85.º, n.º 1, do CIRE e o facto de o resultado da acção influenciar, directa e necessariamente, o resultado da liquidação.
Na sequência, foi proferida decisão que, julgando o Juízo de Comércio incompetente em razão da matéria para preparar e julgar a presente acção, indeferiu liminarmente a petição inicial.
Inconformada com essa decisão, a Autora veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões: 1. O resultado desta ação de divisão de coisa comum influencia diretamente o valor da massa, pelo que também está verificado este requisito cumulativo exigido pelo artigo 85.º, n.º 1, do CIRE. 2. Se a recorrente tiver de adquirir a parte do comproprietário ou se vender o quinhão por si apreendido, qualquer uma destas operações tem uma influência direta no valor líquido da massa, independentemente da variação ser positiva (alienação) ou negativa (aquisição): o saldo da liquidação será necessariamente afetado por qualquer uma das soluções agora descritas, isto porque em caso de alienação o produto da venda integrará o resultado da liquidação ou em caso de aquisição, também se irá diminuir ao valor da massa numa primeira fase, para depois se acrescer em caso de uma subsequente alienação a um terceiro. 3. A influência sobre o valor da massa é expressamente reconhecida pelo CIRE no caso concreto ao estatuir-se que o AI até poderá carecer do consentimento da comissão de credores, ou da assembleia de credores, para a prática de qualquer um destes atos, atento o disposto no artigo 161.º, n.º 3, al. g), ou n.º 4, do CIRE. 4. o Tribunal do Comércio ... é competente para tramitar a presente ação. 5. Sob pena de violação dos artigos 85.º, n.º 1, do CIRE e 128.º, n.º 1, a) e n.º 3, da LOSJ, deve a douta sentença em crise ser revogada e ordenar-se o recebimento da petição inicial e a prática dos ulteriores atos processuais, por ser de JUSTIÇA!
Não foram apresentadas contra-alegações. ///// II. Questão a apreciar: Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se o Juízo de Comércio – onde corre o processo de insolvência – detém (ou não) competência para preparar e julgar a presente acção de divisão de coisa comum instaurada pela Massa Insolvente e com referência a um imóvel do qual os Insolventes são comproprietários. ///// III. Analisemos, então, a questão suscitada.
O artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário – Lei nº 62/2013, de 26/08 – delimita o âmbito da competência dos juízos de comércio, dispondo nos seguintes termos: “1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização; b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade; c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais; d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e) As ações de liquidação judicial de sociedades; f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia; g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais; h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial; i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras. 2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais. 3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões”. Porque o caso dos autos não corresponde a nenhuma outra das situações previstas na norma citada, o que importa saber é se a presente acção deve correr por apenso ao processo de insolvência, já que, se assim for, o juízo de comércio – competente para o processo de insolvência por força da alínea a) do nº 1 – será igualmente competente (por conexão) para preparar e julgar a presente acção por força do disposto no nº 3 da norma citada. A decisão recorrida entendeu que não ocorre nenhuma das situações de apensação que estão legalmente tipificadas e que também não se verificam os pressupostos que são exigidos pelo art.º 85.º do CIRE, uma vez que: a divisão de coisa comum constitui apenas uma causa de dissolução da relação de compropriedade anteriormente constituída que não afecta nem influencia o direito ou o valor da massa insolvente; não está em causa uma ação de natureza exclusivamente patrimonial, sendo certo que resulta com clareza da segunda parte do n.º 1, do artigo 85.º que a apensação só faz sentido quanto a ações de carácter patrimonial; de qualquer modo também não resulta evidenciado qualquer facto que permita considerar a existência de conveniência para os fins do processo e também não tem aplicação ao caso dos autos o n.º 2, do artigo 85.º por não estar em causa a apreensão ou detenção de bens compreendidos na massa insolvente. A Apelante, por seu turno, argumenta: que o resultado desta acção influencia directamente o valor da massa; que, se a recorrente tiver de adquirir a parte do comproprietário ou se vender o quinhão por si apreendido, qualquer uma destas operações tem uma influência direta no valor líquido da massa, independentemente da variação ser positiva (alienação) ou negativa (aquisição); que a influência sobre o valor da massa é expressamente reconhecida pelo CIRE no caso concreto ao estatuir-se que o AI até poderá carecer do consentimento da comissão de credores, ou da assembleia de credores, para a prática de qualquer um destes atos, atento o disposto no artigo 161.º, n.º 3, al. g), ou n.º 4, do CIRE e que, nessas circunstâncias, o Tribunal do Comércio ... é competente para tramitar a presente ação, nos termos dos artigos 85.º, n.º 1, do CIRE e 128.º, n.º 1, a) e n.º 3, da LOSJ. Sendo indiscutível que não se verifica nenhuma das situações de apensação automática que estão legalmente tipificadas, a questão resume-se a saber se, no caso dos autos, a apensação encontra (ou não) apoio no disposto no art.º 85.º, n.º 1, do CIRE (é essa, aliás, a norma citada pela Autora/Apelante para justificar a apensação e, consequentemente, a competência do tribunal recorrido). A norma citada (o artigo 85.º, nº 1, do CIRE) dispõe que “Declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo”. Embora tal questão não seja directamente abordada pela decisão recorrida e pela Recorrente, colocar-se-á, em primeiro lugar, a questão de saber se o citado art.º 85.º inclui (ou não) as acções instauradas após a declaração de insolvência, sendo certo que a epígrafe do referido artigo se reporta às “acções pendentes” (ou seja, as acções que se encontrem pendentes à data da declaração de insolvência). E – adiantando a resposta – pensamos que sim. Refira-se, em primeiro lugar, que, não obstante a referida epígrafe, o texto da norma abrange, sem grande esforço interpretativo, quer as acções que se encontrem pendentes à data da declaração de insolvência, quer as que venham a ser instauradas posteriormente. Refira-se, em segundo lugar, que a norma citada – tal como outras onde expressamente se determina que determinadas acções correm por apenso ao processo de insolvência (artigos 82.º, 89.º, 125º, 141.º e segs. e 148.º do CIRE) – não deixa de evidenciar o propósito do legislador de, em função da natureza universal do processo de insolvência (cfr. art.º 1.º do CIRE), concentrar aí (pelo menos quando isso seja conveniente para os fins do processo, como se diz no citado art.º 85.º) a resolução de todas as questões – e acções a elas atinentes – que interferem com os bens compreendidos na massa insolvente e com o respectivo valor e que, influenciando o valor da massa insolvente, também condicionam, naturalmente, os actos a praticar no processo de insolvência, seja ao nível da liquidação do activo, seja ao nível do pagamento aos credores. Ora, tendo presente esse propósito do legislador, não se compreenderia que ele tivesse determinado a apensação das acções previstas no citado art.º 85.º que se encontrassem pendentes – ainda que a requerimento do administrador de insolvência e desde que haja conveniência para os fins do processo – e que, ao mesmo tempo, tivesse inviabilizado/impedido a apensação dessas mesmas acções se elas viessem a ser instauradas após a declaração de insolvência. Na verdade, nenhuma justificação encontramos para o tratamento diferenciado dessas situações, sendo certo que – como se refere no Acórdão do STJ de 09/12/2021 (processo n.º 1380/21.0T8VCT.G1.S1)[1] – “…os fundamentos que justificam a apensação (…) existem quer a acção seja instaurada antes ou depois da declaração de insolvência”. Concluimos, portanto, em face do exposto, que o citado art.º 85.º abrange, não só as acções que se encontrem pendentes à data da declaração de insolvência, mas também as que venham a ser instauradas após essa data. Resta saber se a presente acção é (ou não) uma das acções que ali se encontram previstas e se estão (ou não) verificados os demais pressupostos que ali são exigidos para a apensação. Conforme referimos, a decisão recorrida entendeu que não estavam verificados os pressupostos exigidos pela norma citada, uma vez que a presente acção não tinha natureza exclusivamente patrimonial e não afectava nem influenciava o direito ou o valor da massa insolvente, constituindo apenas uma causa de dissolução da relação de compropriedade anteriormente constituída. Considerou ainda que não resulta evidenciado qualquer facto que permita considerar a existência de conveniência para os fins do processo. Salvo o devido respeito, não concordamos. Está em causa uma acção de divisão de coisa comum referente a imóvel que pertencia em compropriedade aos devedores e, portanto, pensamos ser claro que não estamos perante uma acção que respeite a questões de natureza pessoal, mas sim perante uma acção de natureza exclusivamente patrimonial e que se reporta a questão relativa a um bem compreendido na massa insolvente: o direito ou quota dos devedores sobre o referido imóvel (direito que está apreendido nos presentes autos). Pensamos ser certo, por outro lado, que o resultado da acção afectará o conteúdo da massa insolvente e, consequentemente, poderá influenciar o respectivo valor. Com efeito, ainda que – como se diz na decisão recorrida – a divisão de coisa comum seja uma causa de dissolução da relação de compropriedade anteriormente constituída, a verdade é que ela implicará necessariamente uma alteração do bem/direito que está apreendido e integrado na massa. O direito a 2/3 do imóvel que está apreendido deixará de existir com a divisão da coisa e será necessariamente substituído por bem ou direito diferente: uma parte especificada do imóvel (caso se venha a considerar que o mesmo é divisível), a totalidade do imóvel (caso este venha a ser adjudicado à massa insolvente, mediante pagamento do valor da quota dos demais comproprietários) ou o valor monetário correspondente ao quinhão dos devedores (seja ele obtido por acordo com os demais interessados, seja por referência ao preço pelo qual o bem venha a ser vendido, caso não exista acordo na adjudicação) – cfr. artigos 925.º a 929.º do CPC. E tais operações poderão influenciar o valor da massa. Pensamos, portanto, que a presente acção se enquadra nas situações previstas no citado art.º 85.º. É certo, no entanto, que isso, só por si, não basta para concluir pela apensação da acção ao processo de insolvência, já que, conforme resulta do citado art.º 85.º, o que aí se prevê não é uma apensação obrigatória e automática das acções que aí se encontram previstas ao processo de insolvência; tal apensação apenas tem lugar se ela for requerida pelo administrador da insolvência com fundamento na conveniência para os fins do processo. No caso em análise, o Sr. Administrador instaurou a acção por apenso ao processo de insolvência, dizendo que “… a presente ação deverá correr por apenso aos autos de insolvência – o que desde já se requer – dado que permitirá aos credores pronunciarem-se mais celeremente sobre o destino a dar em concreto ao bem: aquisição e respetiva modalidade de alienação, venda ao comproprietário ou a terceiro, bem como acompanharem uma eventual negociação”. É certo, portanto, que, para os efeitos previstos no citado art.º 85.º, o Sr. Administrador requereu a apensação ao processo de insolvência. Não podemos negar, por outro lado, que tal apensação seja, de facto, conveniente para os fins do processo. Importa notar que o Sr. Administrador vem tentando – desde 2017 – proceder à venda do direito ou quota dos devedores no citado imóvel sem que o tivesse conseguido e aquilo que pretende, por via da divisão da coisa comum, é conseguir obter o valor em dinheiro correspondente ao direito dos devedores, seja por força da adjudicação aos demais consortes, seja por via da venda do imóvel na sua totalidade (que será previsivelmente mais fácil do que a venda da quota dos devedores que, até ao momento, não foi possível concretizar). Sendo certo que o resultado desta acção irá alterar o conteúdo de um dos bens integrados na massa insolvente, também é certo que ela condiciona o prosseguimento da respectiva liquidação no que toca ao bem em questão, de tal modo que a liquidação não será ultimada e não irá prosseguir sem que a presente acção esteja decidida. Nessas circunstâncias, estando em causa – como se referiu – a alteração do conteúdo de um bem/direito integrado na massa insolvente; estando em causa uma acção cujos trâmites poderão envolver a alienação do direito apreendido para a massa (seja pela adjudicação aos demais comproprietários, seja pela venda a terceiros da totalidade do imóvel) na tentativa de ultrapassar as dificuldades de concretizar a venda que deveria ser efectuada no processo de insolvência e estando em causa uma acção que, conforme se referiu, condiciona os actos a praticar no processo de insolvência, seja ao nível da liquidação do activo, seja ao nível do pagamento aos credores, pensamos ser inegável o interesse e a conveniência da apensação desta acção ao processo de insolvência, tanto mais que tal apensação irá garantir que a tramitação e decisão da acção terá o carácter de celeridade e urgência que lhe é imposto pelo art.º 9.º do CIRE (o que não aconteceria se a acção seguisse autonomamente), no sentido de permitir a rápida conclusão da liquidação e o subsequente pagamento aos credores que, necessariamente, ficarão suspensos a aguardar o desfecho daquela acção.
Entendemos, portanto, em face do exposto, que, estando verificados os pressupostos referidos pelo citado art.º 85.º, a presente acção corre por apenso ao processo de insolvência, cabendo, por isso, no âmbito de competência dos juízos de comércio por força do disposto no artigo 128º, nº 1, a) e nº 3, da Lei da Organização do Sistema Judiciário. Procede, portanto, o recurso, revogando-se a decisão recorrida. ///// IV.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves) (Maria João Areias) (Helena Melo) [1] Disponível em http://www.dgsi.pt. |