Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PAULO GUERRA | ||
Descritores: | CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA AGRAVADO VIOLÊNCIA DE PAIS PARA FILHOS NULIDADES E IRREGULARIDADES PROCESSUAIS NULIDADE DE SENTENÇA – ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS VÍCIOS DO ARTIGO 410º Nº 2 DO CPP ERRO DE JULGAMENTO VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO VALOR DA PROVA PERICIAL | ||
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Data do Acordão: | 04/30/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA – JUIZ 1 | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 131º, Nº 2, 151º, 163º, 410º E 412º, TODOS DO CPP; ARTS 143º, 145º, 152º DO CP. | ||
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Sumário: | 1. Importa distinguir, em função dos casos concretos, aquelas situações em que a omissão da comunicação a que alude o artigo 358º do CPP impede a possibilidade de defesa eficaz do arguido, daquelas outras em que tal omissão não tem qualquer impacto negativo na estratégia de defesa do arguido.
2. Conjugando o disposto no artigo 358º do CPP, a alteração só se verifica quando tenha relevo para a decisão, só tendo lugar a comunicação quando se mostre que o arguido tem necessidade de alegar algo que antes não tenha previsto alegar, isto é, de preparar nova defesa. 3. A reforma de 1977 do Código Civil eliminou o “poder de corrigir moderadamente o filho nas suas faltas” e desde 2017 o castigo físico das crianças também é punido pelo Código Penal, seja pelo crime de violência doméstica ou de maus tratos (artigo 152º), seja pelo de ofensa à integridade física (artigos 143º e 145º). 4. O poder de correcção dos pais e educadores não abrange a aplicação de castigos corporais, inexistindo qualquer disposição legal em Portugal de onde se possa retirar tal conclusão (Portugal aparece como um dos países que alterou a sua legislação, tendo em vista o respeito pelos direitos da criança e a abolição dos castigos corporais). 5. Os castigos corporais não são permitidos em caso algum e, partindo do princípio de que toda a violência é uma forma de indignidade, constituem uma forma de maltrato e configuram situações de perigo que legitimam a intervenção do sistema de protecção previsto na Lei de Promoção de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra: I - RELATÓRIO 1. A CONDENAÇÃO RECORRIDA No processo comum singular nº 2828/23.4T9LRS do Juízo Local Criminal das Caldas da Rainha (Juiz 1) – comarca de Leiria -, por sentença datada de 11 de Dezembro de 2024, foi decidido: «- Condenar a Arguida AA pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo disposto no artigo 152.º, n.º 1, alínea e), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses, acompanhada de regime de prova, assente num plano individual de readaptação social, executado com vigilância e apoio durante o tempo de duração da suspensão da execução, dos serviços de reinserção social e que contemple a frequência do programa para agressores em contexto de violência doméstica; - Condenar a Arguida AA a pagar a quantia de 2.000,00€ (dois mil euros) a BB». 2. O RECURSO Inconformada, a arguida AA recorreu da sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição): 1. «O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito, com reapreciação da prova gravada, da sentença proferida nos presentes autos que condenou a recorrente pela prática de um crime de violência domésica agravada previsto e punido pelo artigo 152, n.º 1, alínea e), e n.º 2, alínea a), do Código Penal; 2. Conforme consta da douta sentença, a convicção do douto tribunal quanto à matéria de facto fundou-se “…na análise crítica e conjugada da globalidade da prova, quer a que resulta dos autos, como a produzida em sede de audiência de julgamento, devidamente confrontada com as regras da experiência comum e com a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal…” considerando, nomeadamente: Comunicação da CPCJ, de fls. 2 e 3; (…) · Declarações da Arguida prestadas em sede de audiência de julgamento; · Depoimento das testemunhas prestado em sede de audiência de julgamento. 3. Em 7 de janeiro de 2025, a Arguida requereu a disponibilização das gravações das sessões de i) declarações para memória futura do ofendido BB, realizada em 15 de dezembro de 2023 e ii) as gravações da audiência de discussão e julgamento de 26 de novembro de 2024, nos termos da qual, foi produzida prova, nomeadamente, prestação de declarações pela Arguida e inquirição da testemunha CC, (conforme doc. 1 que ora se junta). 4. As gravações foram disponibilizadas pela secretaria, via CITIUS, no sítio “sessões gravadas” nessa mesma data (cf. doc. 2 que se junta). 5. As gravações referentes às declarações da Arguida (na sua totalidade) e quanto ao depoimento da testemunha CC (parcialmente) constatou-se que as mesmas não se conseguem ouvir, de forma clara e inequívoca. 6. Tal inaudibilidade incide sobre pontos cruciais relativamente à matéria de facto que a Arguida pretende impugnar, atento o direito que lhe acresce de reagir contra a decisão da matéria de facto. 7. fica a Arguida impossibilitada de cumprir o ónus da especificação que lhe acresce, previsto no artigo 412.º, n.º 3, do Código do Processo Penal e, consequentemente, 8. Não permite à Arguida, sindicar a apreciação e a valoração que o Tribunal de primeirainstância fezda provaproduzidabem como, aconformidadedo Direito aplicado in casu, em sede de recurso que ora interpõe. 9. E ainda, veda totalmente, à Arguida, o exercício do seu direito de defesa, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que lhe nega o direito ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto. 10. Estes dois segmentos de prova foram determinantes para a convicção do Tribunal e para o apuramento da verdade material, determinando o sentido da sentença proferida. 11. A Arguida pretende a reapreciação da prova gravada, em ordem a impugnar a decisão judicial proferida sobre a matéria de facto. 12. Para tanto, a audição das declarações da Arguida e do depoimento da testemunha CC, são absolutamente cruciais. 13. Conforme é consabido, a Lei impõe, sempre e sem exceção, a documentação das declarações prestadas oralmente, em sede de audiência de julgamento, sob pena de nulidade, conforme disposto no artigo 363.º, e 364.º, do Código do Processo Penal. 14. A gravação é, atualmente, sempre obrigatória, nos termos do disposto no artigo 363.º, e 364.º, do Código do Processo Penal, sob pena de nulidade. 15. A impercetibilidade/inaudibilidade total ou parcial das gravações ora colocadas em crise é equiparável à omissão das mesmas, consubstanciando assim uma nulidade. 16. Nulidade esta que ora expressamente de argui e deduz. 17. O Tribunal a quo considerou provado que: “3. durante o periodo da Páscoa de 2023, o ofendido BB veio passar uns dias com a mãe, na residência desta sita nas .... 4. No dia 09-04-2023, durante o periodo de Páscoa, a Arguida mostrou-se desagradada com a resposta do filho numa conversa que os dois estavam a ter acerca da mãe da irmã deste ultimo. 5. Ato continuo abeirou-se do ofendido e desferiu-lhe cinco bofetadas na face, que lhe causaram dor e maus estar nas zonas atingidas. 6. “ Tendo ainda se dirigido ao ofendido nos seguintes termos “burro” e inútil”. 18. A convicção do Tribunal a quo assentou nas i) declarações para memória futura do Ofendido BB, cuja credibilidade reforça com o relatório pericial realizado ao ofendido, nas declarações da Arguida, no depoimento da testemunha CC e as nas mensagens trocadas entre este e o Ofendido, cujos prints foram juntos aos autos. 19. Atenta a nulidade supra descrita, e efetivamente arguida em §7.º a §22.º do presente recurso, a imperceptibilidade e inaudibilidade praticamente total das gravações das declarações da Arguida e, parcialmente, do depoimento da testemunha CC, determina a impossibilidade de a Arguida proceder à apreciação critica de tais elementos de prova e consequentemente, impossibilita a impugnação da matéria de facto constante da decisão judicial em função de tal apreciação, coartando assim o exercício do seu direito de defesa. 20. A Arguida impugna a matéria de facto dada como assente, recorrendo da douta sentença proferida, apreciando criticamente os demais elementos de prova produzidos que se revelam perceptiveis, nomeadamente, as declarações para memória futura do ofendido BB, e o relatório pericial realizado ao ofendido BB e, tanto quanto possível, o depoimento da testemunha CC, nas partes em que tal apreciação se revele possível. 21. O Tribunal a quo sou considerou com provado que, nas férias da Páscoa, mais concretamente, que a Arguida desferiu 5 chapadas no ofendido, 22. Tribunal a quo considerou como provado que tais factos ocorreram em 9 de abril de 2023. 23. Tal convicção decorrem das declarações do ofendido BB, as quais se apresentaram sob a forma de um relato muito escorreito, natural e até espontâneo, tendo descrito com detalhe (quanto as circunstancialismo espácio-temporal e o desenvolvimento da factualidade) tudo o ocorrido entre si e a sua mãe. 24. O que está verdadeiramente é se, das declarações do ofendido não resulta qualquer evidência de que possam existir elementos que façam ruir a coerência e fidedignidade das mesmas e que, consequentemente, inviabilize a sua suficiência ou valor probatório. 25. O Tribunal a quo formou a sua convicção na globalidade da prova produzida em sede de audiência e julgamento e na demais junta aos autos. 26. Quanto as factos ora descritos, a convicção do Tribunal assenta maioritariamente, maioritariamente, nas declarações para memória futura do ofendido e, cuja credibilidade, aponta o Tribunal a quo, resulta reforçada pelo relatório pericial realizado ao menor. 27. Toda a restante prova, nomeadamente, as declarações da Arguida (as quais, como já se disse, não são percetíveis), as declarações das testemunhas contribuem para essa convicção negativamente, ou seja, segundo o tribunal, reforçam a credibilidade das declarações do ofendido. 28. Ora, sendo apenas e somente, as declarações do ofendido o único, ou quase único, elemento de prova que o Tribunal a quo considera de suma importância, e no qual assenta a sua convicção que conduziu àquela decisão sobre a matéria de facto, 29. Tal preponderância atribuída a este elemento de prova, em detrimento de praticamente toda a restante prova, não sendo, é certo, suprimido à livre apreciação do julgador, nos termos do artigo 127.º, do CPP, faz acrescer, contudo, ao julgador, o dever redobrado de desmontração da total e absoluta fidedignidade de tal prova e, consequentemente, acresce, quanto a este ponto, um dever acrescido de fundamentação na decisão que vier a proferir. 30. Sustentando o Tribunal a quo, a sua decisão parcamente noutros elementos de prova, e maioritariamente, nas declarações para memória futura do ofendido, 31. Bem se compreende que, tal prova deve, necessariamente, apresentar-se dotada de total infalibilidade e absoluta veracidade quanto aos factos que pretende provar, sem que da mesma haja a mínima hipótese de extrair, os fazer emergir, a mais pequena dúvida. 32. É com base em tal elemento de prova que se coarta e restringe e priva um individuo da sua liberdade, sendo esta um direito fundamental constitucionalmente assente. 33. Andou mal o Tribunal a quo ao considerar as declarações para memória futura totalmente credíveis e isentas de quaisquer duvidas que pudessem vir a abalar a convicção do mesmo, e consequentemente, a decisão condenatória proferida. 34. Não resulta evidente, nem comprovado, que o ofendido tenha descrito com detalhe, quanto ao circunstancialismo espácio-temporal e o desenvolvimento da factualidade, conforme afirma o Tribunal a quo. 35. Quanto aos factos supra identificados, considerados provados, o ofendido demonstra não saber ao certo, em circunstâncias de tempo, quando ocorreram os alegados 5 estalos. 36. Nas declarações para memória futura registadas digitalmentente na sessão de 15/12/2023, com inicio às 12h24 e termo às 12h43m, com duração de 19m50s, quando questionado pela Meretissima Juiza, se se recorda do dia em que tais factos ocorreram, o ofendido BB responde: “O dia não, não sei dizer”, conformepassagem areferidagravação dos 05m13s aos 05m17s. 37. O Tribunal a quo convenceu-se de que os factos ocorreram em 9 de abril de 2023, porquanto, encontram-se juntos aos autos prints de mensagens de texto trocadas entre o ofendido e o seu pai, precisamente no dia 9 de abril sendo que, nessas mesmas mensagens, o ofendido refere o seguinte: “ela vem a correr até mim a dizer estás a duvidar de mim repetidamente e disse levas um chapadão e deu-me 5 chapadas com força” 38. O Tribunal, precipita-se, indo além do que lhe é permitido, porquanto, com base na referida mensagem do ofendido, considerou como provados o ponto 4 e 5. dos factos provados na douta sentença: “4. No dia 09-04-2023, durante o referido periodo de páscoa, a Arguida mostrou-se desagradada com a resposta do filho numa conversa que os dois estavam a ter acerca da mãe da irmã deste ultimo. 5. Ato continuo, abeirou-se do ofendido e desferiu-lhe cinco bofetadas na face, que lhe causaram dor e mau-estar nas zonas atingidas. 39. Tal conclusão é alcançada pelo Tribunal a quo, com base no print de mensagens junto ao autos, nas quais o ofendido afirma “ela vem a correr até mim a dizer estás a duvidar de mim repetidamente e disse levas um chapadão e deu-me 5 chapadas com força”. 40. A única conclusão válida que se pode retirar de tal prova é que a mensagem com tal conteúdo supra aludido, foi efetivamente escrita e enviada em 9 de abril de 2023, pelo ofendido mas nunca que as alegadas 5 bofetadas, a terem existido, ocorreram no dia 9 de abril de 2023 só porque existe uma mensagem escrita nessa data relatando tais factos. 41. É patente a inexistência, pelo menos, da prova que nos é possível apreciar, de qualquer elemento de prova que indicie sequer que os alegados factos ocorreram nessa data. 42. Ademais, considerando que a Arguida vem acusada de: “6 - Em data não concretamente apurada, mas durante o perido de férias escolares da Páscoa de 2023, o ofendido BB veio passara uns dias com a mãe, na residência desta sita nas ...; 7 – Nesse dia a arguida mostrou-se desagradada com a resposta do filho numa conversa que os dois estavam a ter acerca da mãe da irmã deste ultimo; 8 – Ato continuo abeirou-se do ofendido e deferiu-lhe cinco bofetadas na face, que lhe causaram dor e mau estar na zonas atingidas.”. 43. E o Tribunal a quo, veio considerar como provado que: “3. Durante o periodo das férias escolares da Páscoa de 2023, o ofendido BB veio passar uns dias com a mãe, na residência desta sita nas .... “4. No dia 09-04-2023, durante o referido período da Páscoa de 2023, a Arguida mostrou-se desagradada com a resposta do filho numa conversa que os dois estavam a ter acerca da mãe da irmã deste ultimo….” “5. Ato continuo, abeirou-se do ofendido e desferiu-lhe cinco bofetadas na face…” 44. Tal alteração quanto à circunstancia de tempo consubstancia uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, prevista e regulada no artigo 358.º, do Código do Processo Penal. 45. Não se trata de uma alteração não substancial dos factos irrelevante para a decisão da causa, sem influir nas garantias de defesa da Arguida. 46. Tendo sido considerado provado um dia especifico e não um periodo, surge um nível bem mais elevado de concretização da factologia constante da acusação. 47. Do maior nível de concretização quanto aos factos, emergem desde logo, de forma evidente, novas possibilidades e garantias quanto ao exercício do direito de defesa da Arguida, 48. Nomeadamente, a possibilidade concreta que a mesma passa a ter de, agora focada num dia especifico, melhor identificar o objeto da acusação, e, para tanto, apresentar elementos, quiçá até, documentais, que possam demosntrar a sua inocência quanto à partica de tais factos. 49. Possibilidade esta, que lhe foi negada, sem qualquer fundamento para tal. 50. Nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 358.º, do CPP, perante uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, deve o o preseidente comunicar tal alteração ao arguido, concedendo-lhe, se ele o requerer, o tmepo estritamente necessário para a preparação da sua defesa. 51. Tendo ocorrido aalteração não substancial dos factos descritos naacusação, não foi concedido à Arguida a possibilidade de requerer prazo para preparação da sua defesa, conforme é de Lei. 52. Tal omissão consubstancia a nulidade da sentença proferida, o que desde já se argui com todas as consequências legais. 53. Quanto ao ponto 6, dos factos considerados provados na douta sentença em que, alegadamente, a Arguida terá, em 9 de abril de 2023, apelidado o ofendido de “burro” e inútil”. 54. Não existe um único elemento de prova produzida em que sejam corroborados tais factos nas circunstâncias de tempo e lugar apresentadas, ou sequer que comprovem que o ofendido tenha dado conhecimento a quem quer que fosse sobre tais factos, nos termos em que o mesmo afirma terem ocorrido. 55. Quanto aos alegados insultos supra descritos, depreende-se pois que, o Tribunal a quo assentou a sua convicção, maioritariamente, senão exclusivamente, nas declarações para memória futura do ofendido, 56. Voltando a insistir na total honestidade e credibilidade das mesmas, considerando o perfil, igualmente credível que o menor apresenta, corroborado pelo relatório pericial que atesta a não tendência do ofendido para a efabulação. 57. Consideramos, ao contrário do concluído pelo Tribunal a quo, não ser de concluir pela invicta escorreição e veracidade do discurso do ofendido. 58. E cremos que, à luz do que deixámos exposto quanto ao dever redobrado de demonstração da total e absoluta veracidade das declarações do ofendido, porquanto vem a ser esta a quase única prova que determinou a decisão preferida, 59. Existem elementos de prova constantes nos autos que permitem duvidar e pôr em causa a credibilidade das declarações do ofendido e, consequentemente, a validade e suficiência da prova que as mesams devriam constitiuir para a condenação da recorrente. 60. Nas declarações para memória futura do ofendido, a instâncias da Meretissima Juiza de Instrução Criminal, em sessão de 15/12/2023, com inicio às 12h24m e termo às 12h43m, teve lugar o seguinte diálogo, do qual, se transcreve o seguinte trecho: 10m49s – 11m40s BB: Ela ficou essas duas semanas sempre com o telemóvel no seu quarto. Mma, Juiz: Então durante esse tempo tu não falaste com o pai? BB: Falei… falei… tinha o direito de falar no… acho que sim, sim 9 e meia; Mma. Juiz: Então mas falaste sozinho ou ela dava-te o telefone para tu falares e depois? BB: Ela dava-me o telefone. Nós tínhamos feito, antes do meu pai me entregar, porque ela já me agrediu várias vezes. Então antesw que… antes de o meu pai me entregar nós fizemos um, digamos um código que era, esteve muito vento, significava que ela me agrediu muito. Mma. Juiz: Se tu dissesses que esteve muito vento ao pai, ele ficava a saber. DD: Ele ficava a saber, sim. Mma. Juiz: Que a mãe tinha batido? BB: Sim, para o caso ela me estivesse a ouvir, não sabia o que é que eu tinha dito. 61. Em sede de audiência e julgamento, a testemunha CC, pai do ofendido, aquando do seu depoimento realizado em sede de audiência de julgamento de 26/11/2024, com inicio às 14h42s e termo às 15h55m, com a duração de 1h12m54s, confrontado com a pergunta se ele teria algum código com o ofendido, ou alguma linguagem encriptada que utilizasse com este, a testemunha negou peremtoriamente a existência de tal procedimento entre os dois: 49m37s – 50m14s. Mandatário da Arguida:Olhe, deixe-mefazer-lhe outra pergunta, o senhor por acaso e desculpe-me a pergunta (…) o senhor alguma vez criou ou tem algum código ou alguma linguagem encriptada que usa com o seu filho? CC: Não Mandatário da Arguida: Não tem… aaaa… nenm nunca teve? Nem o BB tentou usar qualquer tipo de linguagem encriptada consigo. CC: (imperceptivel). 62. Por outro lado, dos prints das mensagens juntas ao autos, não consta qualquer evidência da existência de qualquer código que o ofendido utilizasse ou tivesse utilizado com o seu pai, em ordem a qualificar e quantificar as agressões perpetradas pela Arguida. 63. Resulta evidente que existe dificuldade de comunicação entre os dois, patente nas mensagens, revelando um modus operandi contraditório com a alegada existência de um código “secreto” ou codificado de comunicação, devida e previamente criado e planeado, em função de eventuais agressões, utilizado entre pai e filho. 64. Assim, é por demais evidente que existem, e subsistem, no mínimo, serias dúvidas quanto à escorreição, veracidade e espontaneidade das declarações do ofendido. 65. . 66. . 74.º 67. O ofendido mentiu nas declarações para memória futura. 68. De acordo com o que vem sendo exposto, evidenciada e comprovada a falta de verdade por parte do ofendido, o elemento de prova em que o Tribunal assenta e forma a sua convicção é manifestamente insuficiente. 69. A convicção do Tribunal a quo, assenta maioritariamente, no principio da infalibilidade e total veracidade do discurso do ofendido como um todo, adiatando, quase exclusivamente, as declarações para memória futura do ofendido como o elemento de prova determinante para a formação da sua convicção e, consequentemente, para a motivação da matéria de facto considerada provada. 70. E não em algummomento especifico dodiscursodo menorem que, coadjuvado, necessariamente, por outros elementos de prova, permitam afirmar e solidificar essa mesma tese. 71. A credibilidade e a veracidade do discurso do ofendido, sendo o elemento de prova adoptado, quase em exclusivo pelo Tribunal a quo, ao ponto de, em função do mesmo, vir a considerar os factos provados, deve assumir um estado permanente de coerência tal que, bastará uma única evidência apta a colocar tal discurso em questão, para contagiar todo o discurso, ou seja: 72. Se o ofendido mentiu quanto a determinada factologia, a duvida instala-se inevitavelmente, no sentido de dever admitir-se que o ofendido poderá, de igual modo, ter faltado à verdade em mais momentos das suas declarações, ou em todos eles. 73. Ora, ao identificar tal evidência de que o ofendido mentiu quanto à existência de um código que utilizava com o seu pai para “avaliar” as agressões de que era vitima por parte da sua mãe, 74. O Tribunal não poderiaignorar estar perante prova insuficiente e não apta aque,só por si, conduzisse à condenação da Arguida, ora recorrente. 75. Duvida esta que, objetivamente, seria inultrapassável pelo Tribunal a quo, ainda que, ao abrigo da livre apreciação da prova. 76. Fica assim demosntrada a inaptidão de tal prova para suportar a matéria de facto dada como provada, não reforçada por outros elementos de prova, subsistindo a dúvida ora apresentada, verifica-se uma total ausência de prova para a condenação da Arguida. 77. Mais de diga que, na presença de duvida insanável que o Tribunal não pode ignorar, deveria ter decidido em beneficio da Arguida, observando o principio in dúbio pro reo, em vez de condenar a mesma, como fez. 78. Assim sendo, deveria o Tirbunal a quo ter considerado como não provado que, no dia 9 de abril de 2023, a Arguida chamou o ofendido de “burro” e inútil” 79. E bem assim, deveria também o Tirbunal a quo ter considerado como não provado que em 9 de abril de 2023, a Arguida abeirou-se do ofendido e, ato continuo, desferiu-lhe 5 chapadas com força. 80. O Tribunal a quo considerou provado que: 81. A impugnação da decisão judicial da matéria de facto, também quanto a estes factos, depende, quiçá maioritariamente, das declarações da Arguida, 82. Trattando-se de factos alegadamente ocorridos apenas na presença do ofendido e da Arguida, as declarações desta, representam o único elemento de prova que pode refutar/contrariar as declarações do ofendido e servir à impugnação da matéria de facto considerada provada. 83. Resulta assim prejudicada a defesa da Arguida porquanto, as gravações de tais declarações estão totalmente impercetíveis, e cuja nulidade se arguiu oportunamente. 84. Atenta a alegada gravidade da agressão perpetrada pela Arguida ao ofendido, consubstanciada numa bofetada com as costas da mão, atingindo o mesmo na cana do nariz, tendo este sofrido dor e mau estar durante 3 dias, 85. O ofendido deveria apresentar, no mínimo, hematoma, lesão ou alguma evidência do impacto, tal foi a gravidade da agressão, ao ponto de vir a mesma a ser qualificada como crime. 86. O pai do ofendido, a testemunha CC garantiu que esteve presencialmente com o ofendido, a almoçar, no dia 20 de julho de 2023, conforme decorre do seu depoimento, do qual se transcreve o seguinte segmento: 50m04s – 52m00s; Mandatário da Arguida; (MA): Relativamente aqui a esta, a estas agressões ou estas alegadas agressões de julho, que já contou e que já disse que a mãe o ameaçou e que isto e que aquilo, foi transmitido pelo BB?; Testemunha CC (CC): (imperceptivel); MA: Foi transmitido pelo BB? Tmabém não presenciou rigorosamente nada nesse sentido?; CC: (imperceptivel); MA: E não obstante não tendo presenciado isso leva-me aoutra questão que é o BB portanto encontrava-se, como já disse aqui, de férias com a mãe? Isto foi-lhe transmitido ou esta situação ocorreu quando? Ou seja, quando é que, a…, estas agressões lhe foram comunicadas?; CC: Estas agressões foram-me comunicadas na segunda-feira.; MA: Eu talvez o tneh induzido em erro, aquilo que eu queria perguntar é quando é que o BB lhe enviou amensagem adizer “bateu”?; CC:O fixeparabaixo?; MA: Exatamente.; CC: No dia 17; MA: No dia 17, e o senhor a…; CC: Estive com ele no dia 20.; MA: Esteve com ele no dia 20?; CC: (imperceptivel) 87. A testemunha esteve com o ofendido três dias e meio depois da agressão de dia 16 de julho de 2023. 88. A testemunha CC, não identificou qualquer hematoma ou lesão no nariz do ofendido, ou em qualquer outra parte do corpo.Inexiste também qualquer relatório médico ou registo de entrada em qualquer serviço de urgências que atestem tais lesões e a alegada gravidade que as mesmas representaram. 89. Não consta qualquer prova nos autos que indicie a ocorrência da referida agressão, para além das declaraçãoes do menor que, como já vimos, vêm colocadas em questão. 90. Conclui-se que: i) A agressão de que vem a Arguida acusada nunca aconteceu ou ii) se alguma bofetada teve lugar, ocorreu a mesma no âmbito do dever de correção que acresce aos progenitores (independentemente da mais ou menor censura que os métodos utilizados possam, e devem, merecer), não assumindo gravidade passível de gerar responsabilidade penal, enquanto conduta passível de consubstanciar um crime de violência doméstica. 91. Perante prova insuficiente que comprove tais factos, com exceção das declarações para memória futura do ofendido que, como já demonstrámos, suscitam duvidas quanto à sua veracidade, 92. Mais uma vez, também quanto a estes factos, duvida insanável se ergue, a qual, o Tribunal não deveria ignorar. 93. Perante tal insuficiência de prova, no âmbito da livre apreciação da prova, com os limites que legalmente lhe são impostos, deveria o Tribunal a quo, ter formado a sua convicção no sentido de considerar como não provada a agressão alegadamente ocorrida no dia 17 de julho de 2023. 94. O Tribunal a quo considerou como provado que: 11. Nesse dia a Arguida conduziu o seu veiculo até um pinhal e ali chegada ameaçou o ofendido que lhe batia à paulada ao mesmo tempo que o voltava a questionar sobre o que tinha feito naquele dia, tendo o ofendido acabado por ceder, dizendo onde tinha estado. 95. O Tribunal a quo, assenta a sua convicção em relação à prática destes factos quase em exclusivo, nas declarações para memória futura do ofendido, as quais considera absoluta e totalmente credíveis; 96. Mais avançando que, tal credibilidaderesultacomprovadapelo relatório pericial realizado ao ofendido. 97. Já tivemos a oportunidade de demonstrar e indicar elementos de prova que refutam a credibilidade das declarações do ofendido, o que equivale a dizer que tal prova é insuficiente para a condenação da Arguida, 98. Uma breve e superficial análise do discurso do ofendido, evidencia perplexidades que colocarão tais declarações num plano de duvida,. 99. Sublinhe-se, trata de menor de 12 anos que, tal como atestado no relatório pericial, dotado decapacidade cognitiva para distinguir o bem eo mal, averdade e a mentira, sem que tal evidência o iniba, contudo, de adentrar, consciente e capazmente, por qualquer umas dessas realidades (sendo certo que tal possibilidadenão foi refutadano relatório pericial, como, aliás, nãopoderiaser). 100. O Tribunal a quo não alcançou, ou quiçá, sequer se preocupou em aprofundar a coerência do discurso do ofendido para, quiçá, sem grande esforço, vislumbrar as subtis incoerências que o mesmo apresenta. 101. Nas declarações para memória futura, o ofendido refere o seguinte, que passamos a transcrever: 09m07s – 10m30s; Meretissima Juiza (MJ): E isso, tu contaste ao pai?; BB (BB): Contei. Depois nós saímos da garagem, de carro, e ela estava tão stressada em querer saber que começou a gritar a dizer que ia-me matar, depois levou-me a um… tipo… já foi a ...? Era uma rotunda que depois levava a um pinhal, e ela começou-me a ameaçar que ia me bater à paulada.; MJ: Ma ameaçou o quê, que te levava para esse pinhal era?; BB: Não, levou-me mesmo para o pinhal.; MJ: Levou-te para o pinhal.; MJ: Então e depois o que é que tu fizeste?; BB: Eu disse o que fiz, estava com medo.; MJ: Então respondeste àquilo que ela queria saber?; BB: Sim.; MJ: E era o quê?; BB: Tinha ido ao baptizado da namorada do meu pai, não quis dizer de quem, para não ter que saber muito mais.; MJ: e então disseste só que tinhas ido a um baptizado?; BB: Eu acho que sim, não me lembro muito bem o quê.; MJ:Mas elafez-teperguntas sobreanamoradado teu pai?; BB: Sim, perguntou aonde é que trabalhava, aonde é que ela vivia. Só que eu não quis dizer.; MJ: Então só disseste que tinha ido ao baptizado?E ela deposi o que é que fez?; BB: Depois voltámos para casa.; MJ: Voltaram para casa?...” 102. O ofendido, questionado sobre o que fez, quando conduzido ao pinhal, ameaçado de morte e interpelado pela sua mãe, responde: “Eu disse o que fiz, estava com medo” 103. No entanto, ainda nas mesmas circunstancias demodo lugaretempo, o ofendido afirma que enfrenta a sua mãe, recusando-se a responder a determinadas questões, respondendo: BB: “Tinha ido ao baptizado da namorada do meu pai, não quis dizer de quem, para não ter que saber muito mais…”; BB: Sim. Perguntou aonde é que trabalhava, aonde é que ela vivia. Só que eu não quis dizer. 104. É perfeitamente plausível que, perante tais factos (ameaça de morte, ameaçado de agressões e num pinhal) sinta um medo tal, a ponto de sentir-se, como alega, a dizer o que não queria. 105. O que não não parece tão plausível é que, sujeito a tal pressão e ameaças, tenha a capacidade para se impor, nomeadamente, recusando expressamente responder a certas questões, selecionando as que deve e as que não deve responder. 106. Se o ofendido foi compelido a responder a certas questões por manifesto medo perante as circunstâncias em que alegadamente se encontrava, como explicar que, exatamente nas mesmas circunstâncias, ato continuo, toldado pelo mesmo temor, resolva manifestar a sua recusa em responder a outras questões?? 107. Então o ofendido ora tinha medo capaz de o fazer falar, ora imediatamente a seguir, todo o medo se dissipava? 108. Estamos perante mais uma incoerência apercebida no discurso do ofendido, que faz erigir duvida insanável quanto à ocorrência dos factos, ou, pelo menos, quanto à ocorrência dos factos de que a Arguida foi acusada. 109. O Tribunal a quo, ignorou tal evidência, atestando a completa veracidade e coerência das declarações para memória futura e nas mesmas, e unicamente com base nesta prova, formou a sua convicção e a motivação da sua decisão sobre a matéria de facto. 110. Sendo que, perante as duvidas que ora se evdenciam, capazes de colocar em questão o elemento de prova que enformou a decisão do Tribunal a quo, devia este ter concluído, também quanto a estes factos, pela total ausência de prova suficiente para a condenação da Arguida, 111. Devendo pois, à luz do que vem sendo exposto, considerar como não provado que: 112. “ A Arguida conduziu o seu veículo até um pinhal e ali chegada ameaçou o ofendido que lhe batia à paulada, ao mesmo tempo que o voltava a questionar sobre o que tinha feito naquele dia, tendo o ofendido acabado por ceder, dizendo onde tinha estado”. 113. E ainda, subsistindo duvida insanável quanto à credibilidade das declarações do ofendido, observando o principio do in dúbio pro reo, deveria o Tribunal a quo ter absolvido a Arguida de tais factos. 114. Temos em que, em face do supra exposto, incorreu assim o douto Tribunal em erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), o que não se pode admitir. 115. OTribunal a quo declara queformou asua convicção quanto à matériade facto, entre outros, no relatório da perícia de psicologia forense realizado ao ofendido da qual resulta que o ofendido, e passamos a citar: “… tem a capacidade para descrever os acontecimentos de vida, de forma sequencial e constextualizados no espaço e no tempo, etando presente a definição clara dos conceitos básicos, com capacidade em distinguir a realidade da fantasia, a verdade da mentira, questionando o adulto e sendo resistente à sugstionabilidade, quando tentada. Do exame decorre ainda que o ofendido BB não denota limitações de natureza congnitivo-intelectual, psicoafectiva, que condicionem de alguma forma a compreensão da natureza do processo judicia, a sua capacidade de testemunhar, ou de apresentar um comportamento adequado em tribunal.” 116. Mais declarando que: “Ora, além da credibilidade que o depoimento do ofendido por si só é merecedor, atentas as dúvidas levantadas pela Arguida quanto ao surgimento da queixa, importa ter em consideração que do relatório pericial de psicologia forense realizado ao ofendido, resulta que este não apresenta tendência para efabular e que é resistente à sugestionabilidade por parte de adultos, afastando, assim, a argumentação ou suspeita que se pudesse levantar quanto à invenção dos facots por influência de terceiros. 117. Face à motivação ora transcrita, avançada pelo douto Tibrunal, cumpre dizer o seguinte: 118. O relatório pericial de psicologia forense vem responder a quesitos que em nada influem, ou devem influir, na formação da convicção do julgador quanto aos factos propriamente ditos, mas sim quanto às características psicológicas do ofendido. 119. Na verdade, o relatório pericial de psicologia forense foi requerido tendo em conta os seguintes quesitos: 1. Qual a aptidão e capacidade física e mental do mesmo para depôr sobre os factos neste processo;2. Quais as características psíquicas o menor em questão, definidoras da sua personalidade, bem como o seu grau de desenvolvimento psíquico, emocional e de socialização; 3. A sua capacidade narrativa e mnésica e a sua suscpetibilidade face a uma eventual instrumentalização por parte de terceiros, no sentido de condicionarem e determinarem i seu depoimento?; 4. Tendo em conta os aspectos vindos de referir, qual a possibilidade de o seu depoimento de desprender da realidade e corresponder a algum tipo de efabulação ou fantasia; 5. Se o seu comportamento é revelador de já ter sofrido violência física e psíquica? Em caso afirmativo quasi as consequências na saúde mental do menor, com avaliação e quantificação dos concretos danos na sua saúde mental, e eventuais sequelas? 120. Com base nos quesitos colocados pelo douto Tribunal a quo, o Tribunal tem legitimidade para ficar convencido que, o ofendido apresenta uma personalidade organizada, bem integrado socialmente, valoriza os seu pares, possui capacidade para distinguir a fantasia da realidade, é resistente à .sugestionabilidade, a capacidade de assumir que “não sabe ou não se recorda” quando questionado, que não tem tendência para a efabulação, 121. Na apreciação da prova que enformará a sua convicção quanto à matéria de facto, o Tribunal deve considerar as características evidenciadas pelo relatório pericial e psicologia forense. 122. Ou seja, ao apreciar as declarações para memória futura do ofendido, o Tribunal deveterem mentequeestáperante um elemento de provaproduzido por alguém com tais características. 123. Tais informações apenas são aptas a justificar, tendencialmente, algumas características do examinado, afirmando a propensão para certos traços da sua personalidade. 124. Porém, pese embora, tal perícia evidencie a tendência para a verificação de certos tipos de comportamento, jamias poderá ser instrumento que ateste a impossibilidade da ocorrência de desvio a tal “mapa” psicológico 125. Por isso mesmo, é o perito cauteloso exonerando-se da assunção da total certeza quanto ao referido mapa de personilidade traçado afirmando, a titulo de exemplo: 7.9) A ponderação quanto aos indicadores de credibilidade não poderá por si só, incluir ou excluir a possibilidade de alegada violência doméstica, conforme referido na literatura, são fatores, que indiciam maior ou menor robustez no enquadramento das narrativas recolhidas, a que temos acesso, em contexto pericial. Sendo estes, muitas vezes condicionados, pela existência, de inúmeros relatos prévios, e pelo tempo decorrido, o que retira a tonalidade emocional e a espontaneidade, diminuindo os detalhes e tornando-os mais superficiais. 126. Ou mesmo: 7.9) A ponderação quanto aos indicadores de credibilidade não poderá por si só, incluir ou excluir a possibilidade de alegada violência doméstica, conforme referido na literatura, são fatores, que indiciam maior ou menor robustez no enquadramento das narrativas recolhidas, a que temos acesso, em contexto pericial. Sendo estes, muitas vezes condicionados, pela existência, de inúmeros relatos prévios, e pelo tempo decorrido, o que retira a tonalidade emocional e a espontaneidade, diminuindo os detalhes e tornando-os mais superficiais. 127. Orelatório pericial evidencia padrão psicológico tendencial do ofendido, o qual, indica certas características de personalidade, as quais o Tribunal deve ter em conta aquando da apreciação da prova. 128. Deve ainda o Tribunal a quo, ter em consideração que o ofendido poderá apresentar desvios ao quadro pesicológico proposto pela relatório pericial. 129. Não pode o Tribunal fazer o que fez, ou seja, indicar o relatório pericial de psicologia forense respeitante ao arguido, como elemento de prova enformador da sua convicção quanto à matéria de facto ou, pelo menos, assumindo como verdade absoluta o vertido no referido relatório pericial e, 130. Mais grave ainda, atribuindo ao mesmo valor probatório inquestionável e para além de qualquer possibilidade de impugnação quanto aos factos propriamente ditos. 131. Na verdade, o relatório pericial não se encontra subtraído à levre apreciação do julgador. 132. Bastando para tanto, se a sua convicção for divergente do juízo contido no referido relatório. Que o julgador fundamente tal divergência. 133. Atento o teor do relatório pericial in casu, que não se apresenta peremtório mas tão só, tendencial, definindo um padrão psicológico não isento da possibilidade de desvios por parte do examinado, a duvida quanto à credibilidade das declarações do ofendido nem sequer assumiria anecessidadedefundamentação, para efeitos do disposto no n.º 2, do artigo 163.º, do CPP. 134. Certo é que, sendo ou não sendo passível de fundamentação, a verdade é que, conforme se evidenciou, razões haveriaparaque acredibilidadedas declarações do ofendido fosse colocada em questão. 135. Assim, também quanto ao relatório pericial, faleceafundamentação do Tribunal a quo quanto à motivação da matéria de facto que veio a condenar a Arguida. 136. Quando, atento as evidentes duvidas insanáveis com que o Tribunal a quo deveria ter identificado, através de apreciação minuciosam que, aparentemente, não fez, às declarações do ofendido, deveriater absolvido aArguida, cumprindo o principio do in dúbio pro reo, já que, a sua convicção foi formada, em exclusivo com base nas declarações para memória futura do ofendido, cuja credibilidade deu como totalmente assente, por via do perfil pesicológiso do mesmo, tendo em conta o relatório pericial supra referido. TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA E, EM CONSEQUÊNCIA SER A RECORRENTE ABSOLVIDA DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA AGRAVADA EM QUE FOI CONDENADA». 3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que o recurso NÃO merece provimento. 4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador Geral Adjunto pronunciou-se, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido da negação de provimento ao recurso. 5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma. II – FUNDAMENTAÇÃO 1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113]. Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso. Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões. Mas também é grave quando o recorrente apresenta fundamentação nas conclusões que não tratou de modo nenhum na motivação. Estas conclusões (deduzidas por artigos, nas palavras da lei) não devem trazer nada de novo; os fundamentos têm de estar no corpo motivador e são aqueles e só aqueles que são resumidos nas conclusões. Assim sendo, são estas as questões a decidir por este Tribunal: 1. Existe nulidade da gravação da audiência de discussão e julgamento de 26.11.2024, ao abrigo do disposto nos artigos 363.º e 364.º do CPP? 2. Existe nulidade de sentença por ter havido uma alteração não substancial de factos sem cumprimento do artigo 358º do CPP (data aposta no facto nº 4)? 3. Há algum vício do artigo 410º, nº 2, do CPP, nomeadamente o da alínea c), expressamente invocado pela defesa? 4. Há erro de julgamento quanto aos factos 3 a 6 e 7 a 11? 5. Foi violado o princípio in dubio pro reo? 6. No que tange ao relatório pericial de psicologia forense feito ao jovem BB, não deveria o tribunal ter-lhe atribuído valor probatório inquestionável? 7. Perfectibiliza-se o crime de violência doméstica? 2. DA SENTENÇA RECORRIDA 2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição): 1. «BB, nasceu no dia ../../2011, e é filho da Arguida e de CC. 2. Em junho de 2022, a Arguida e CC divorciaram-se, tendo acordado quanto ao ofendido BB que este ficava a residir com o pai e passava os fins de semana de 15 em 15 dias com a mãe na cidade das .... 3. Durante o período das férias escolares da Páscoa de 2023, o ofendido BB veio passar uns dias com a mãe, na residência desta sita nas .... 4. No dia 09-04-2023, durante o referido período de Páscoa, a Arguida mostrou-se desagradada com a resposta do filho numa conversa que os dois estavam a ter acerca da mãe da irmã deste último. 5. Ato contínuo, abeirou-se do ofendido e desferiu-lhe cinco bofetadas na face, que lhe causaram dor e mau estar nas zonas atingidas. 6. Tendo ainda se dirigido ao ofendido nos seguintes termos «burro» e «inútil». 7. No dia 16-07-2023 a Arguida e o ofendido foram à praia da .... 8. No regresso a casa cruzaram-se na estrada com o pai do ofendido, que circulava no sentido oposto ao da Arguida, tendo esta questionado o ofendido sobre o que ele tinha feito naquele dia. 9. Quando chegaram a casa, na garagem, a Arguida interpelou novamente o ofendido para saber o que ele tinha feito naquele dia, mostrando-se desagradada com a resposta do ofendido, a Arguida desferiu-lhe uma bofetada com as costas da sua mão, que o atingiu na cana do nariz, ao mesmo tempo que gritava que o queria matar. 10. Em consequência desta conduta o ofendido sofreu dor e mau estar na zona atingida, durante pelo menos 3 dias. 11. Nesse dia, a Arguida conduziu o seu veículo até um pinhal e ali chegada ameaçou o ofendido que lhe batia à paulada, ao mesmo tempo que o voltava a questionar sobre o que tinha feito naquele dia, tendo o ofendido acabado por ceder, dizendo onde tinha estado. 12. Em datas não concretamente apuradas, mas sempre que o ofendido tirava más notas, a Arguida dirigia-se a este nos seguintes termos: «és um burro», «não vales nada». 13. A Arguida sabia que o ofendido é seu filho e sempre que adotou os comportamentos supra descritos, atuou com o propósito, concretizado e reiterado, de o ofender e maltratar física e psiquicamente de modo a atingir o seu bem-estar físico e psíquico, a sua tranquilidade, honra e dignidades pessoais. 14. Com tal conduta sucessiva e reiterada agiu a Arguida, com o intuito, concretizado, de maltratar o seu filho, atingindo-o na sua integridade física com as agressões infligidas, na sua integridade psicológica, dirigindo-lhe insultos e ameaças com o propósito de o intimidar e condicionar a sua liberdade de ação e de vontade, assim como de o humilhar, pese embora não ignorasse que devia este por ser seu filho, especial respeito e consideração. 15. Mais sabia que, ao atuar dentro da residência, ampliava o sentimento de receio do ofendido, visto que violava o espaço reservado da vida privada de ambos e o seu carácter securitário. 16. A Arguida quis e conseguiu molestar fisicamente o ofendido. 17. A Arguida agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal. Mais se provou: 18. Do Certificado do Registo Criminal da Arguida constam as seguintes condenações: a. Por decisão transitada em julgado a 06-02-2020, nos autos que correram termos sob o n.º 760/15...., no Juízo Local Criminal das Caldas da Rainha – Juiz 2, por factos praticados a 06-11-2015, que consubstanciam a prática de um crime de ofensa à integridade física, foi a Arguida condenada numa pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 8,00 €, num total de 560,00 €, extinta pelo cumprimento a 04-09-2020. 19. A Arguida exerce funções como diretora dos Serviços de Apoio à Investigação e Desenvolvimento do Instituto Politécnico de ..., auferindo cerca de 3.200,00 € mensais brutos, a que acrescem ajudas de custo no valor de 300,00 € mensais. 20. (…) reside sozinha em casa própria, suportando cerca de 300,00 € mensais para pagamento da prestação de crédito à habitação. 21. (…) tem um filho de 13 anos de idade, aqui ofendido, dispensando cerca de 100,00 € mensais a título de pensão de alimentos. 22. (…) é licenciada em Ciências Sociais, tendo realizado diversas pós-graduações. 23. O percurso laboral da Arguida tem decorrido no sector da administração pública como técnica superior desde 2017, com passagem pelo Núcleo de Programação Financeira da Agência para o Desenvolvimento e Coesão, pela AMA – Equipa de Políticas e Governo Digital e pelo Tribunal de Contas, Departamento de Auditoria VIII-Área dos Fundos Europeus. 24. Na sequência da denúncia dos factos em causa nos presentes autos, BB passou a ser acompanhado pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de ..., no âmbito de uma medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais aplicada em 27-12- 2023, tendo, entretanto, sido interrompidos os contactos presencias entre o menor e a Arguida. 25. No âmbito do acompanhamento destes serviços, AA e o filho passaram a frequentar sessões de terapia familiar, com subsequente retoma dos contactos presenciais e visitas do menor à arguida a partir de junho de 2024. 26. A atual situação do menor é avaliada positivamente pela CPCJ ..., sendo referida inexistência de fatores de perigo, assim como o cumprimento, pela Arguida, das indicações que lhe têm sido transmitidas por esses serviços». 2.2. Foram estes os FACTOS NÃO PROVADOS (transcrição): a. «Em data não concretamente apurada, mas situada entre o ano de 2018 e o ano 2019, a Arguida iniciou uma discussão com o ofendido por este não ter tomado banho. b. Nessa ocasião, agarrou o ofendido que se encontrava deitado na cama, colocou-o de pé e desferiu-lhe vários pontapés nas suas pernas, na zona da coxa. c. Em consequência desta conduta, o ofendido BB sofreu dor e mau estar nas zonas atingidas». 2.3. Motivou-se a matéria dada como provada da seguinte forma (transcrição): «A convicção deste Tribunal quanto à matéria de facto provada fundou-se na análise crítica e conjugada da globalidade da prova, quer a que resulta dos autos, como a produzida em sede de audiência de julgamento, devidamente confrontada com as regras da experiência comum e com a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, com destaque para: - Comunicação da CPCJ, de fls. 2 e 3; - Assento de nascimento do ofendido BB, de fls. 50 e 51; - Prints das mensagens de texto trocadas entre o ofendido e o seu pai, nos dias 09 de abril e 17 de julho, de fls. 156 a 171; - Relatório da perícia de psicologia forense realizado ao ofendido, de fls. 201 a 218, de onde resulta que o mesmo tem capacidade para descrever os acontecimentos de vida, de forma sequencial e contextualizados no espaço e no tempo, estando presente a definição clara de conceitos básicos, com capacidade em distinguir a realidade da fantasia, a verdade da mentira, questionando o adulto e sendo resistente à sugestionabilidade, quando tentada. Do exame decorre ainda que o ofendido BB não denota limitações de natureza cognitivo-intelectual, ou psicoafectiva, que condicionem de alguma forma a compreensão da natureza do processo judicial, a sua capacidade de testemunhar, ou de apresentar um comportamento adequado em tribunal. - Declarações para memória futura prestadas pelo ofendido a 15-12-2023 (cf. fls. 133 e 134), cuja transcrição se encontra junta a fls. 295 a 307; - Declarações da Arguida prestadas em sede de audiência de julgamento; - Depoimento das testemunhas prestado em sede de audiência de julgamento. No que se refere à relação de parentesco existente entre o ofendido e a Arguida, bem como o facto de esta e o pai daquele se terem divorciado e o menor ter fixado a residência com o seu pai, factualidade que se deu como provado em 1 e 2, tal resulta claro da cópia do assento de nascimento do ofendido BB, junto a fls. 50 e 51, tendo inclusive a Arguida confirmado tal factualidade. No mais, a Arguida optou por prestar declarações no início da audiência de julgamento, negando a factualidade que lhe vinha imputada, asseverando que sempre tiveram (e têm) uma ótima relação de mãe-filho e recusando veemente a ocorrência das agressões e dos insultos que constavam da acusação. Na verdade, a Arguida insinuou que o presente processo teve como móbil a apresentação, por si, no início do ano de 2023, de um pedido de alteração das responsabilidades parentais, referente ao seu filho, onde peticionava a fixação da residência deste consigo, tendo sido a partir dessa data que surgiram estas imputações, dizendo que as mesmas terminaram após esta ter desistido de tal pedido no início do ano subsequente. Já BB prestou declarações para memória futura, no dia 15-12-2023 (transcritas a fls. 295 a 307), sendo que as mesma representam um relato muito escorreito, natural e até espontâneo (sem prejuízo das naturais vicissitudes de um depoimento de um jovem de 12 anos de idade, nomeadamente relacionadas com a linguagem), tendo descrito com detalhe (quanto ao circunstancialismo espácio-temporal e o desenvolvimento da factualidade) tudo o ocorrido entre si e a sua mãe (com exceção dos acontecimentos descritos na acusação situados em 2018/2019, como se explicará infra), merecendo a credibilidade deste Tribunal. Ora, além da credibilidade que o depoimento do ofendido por si só é merecedor, atentas as dúvidas levantadas pela Arguida quanto ao surgimento da queixa, importa ter em consideração que do relatório pericial de psicologia forense realizado ao ofendido, resulta que este não apresenta tendência para efabular e que é resistente à sugestionabilidade por parte de adultos, afastando, assim, a argumentação ou suspeita que se pudesse levantar quanto à invenção dos factos por influência de terceiros. Note-se que o teor desta prova pericial não foi impugnado ou colocado em causa por qualquer outro meio de prova, assumindo, assim, força plena na demonstração da factualidade dali resultante. Ademais, encontram-se juntas aos autos prints das mensagens de texto trocadas entre o ofendido e o seu pai – juntos a fls. 156 a 171 e cujo teor se dá aqui por reproduzido –, precisamente nos dias 09 de abril e 17 de julho, sendo que nessas mensagens o jovem refere expressamente ter sido agredido pela sua mãe, a Arguida (nomeadamente a fls. 164 refere «(…) ela vem a correr até mim a dizer estás a duvidar de mim repetidamente e disse levas chapadão e deu-me 5 chapadas com força» e a fls. 171 «Bateu» que no contexto já referido é concludente). Resulta, pois, pouco credível que o ofendido, em dias aparentemente aleatórios em que se encontrava aos cuidados da sua mãe resolvesse comunicar ao pai que foi alvo de agressões por parte da mãe e, ainda menos, que tal ocorresse por influência do progenitor ou outro terceiro (porquanto não se tratou de algo que lhe contou após regressar do período com a mãe, mas durante o mesmo, isto é, enquanto ainda está aos cuidados da sua mãe). Assim, estas mesmas mensagens, permitiram consolidar a convicção da credibilidade das declarações prestadas pelo ofendido para memória futura, permitindo ainda ao Tribunal concluir que a situação ocorrida nas férias da Páscoa de 2023, foi-o concretamente no dia 09-04-2023, uma vez que as mensagens se encontram datadas dessa mesma data - o que se levou ao elenco dos factos provados. Seria de uma coincidência tal (ou de um plano quase maquiavélico), um jovem de 12 anos, por si ou a mando de um adulto, ter enviado as mensagens nos dias em questão, com o teor mencionado, já com a intenção de mais tarde vir a usar as mesmas contra a sua mãe, no âmbito da ação de alteração das responsabilidades parentais - surgindo como uma hipótese de tal forma inverosímil ou mesmo descabida que não foi, portanto, capaz de abalar a confiança do Tribunal na credibilidade do jovem ofendido. É certo que a testemunha CC, pai do ofendido, arrolada pelo Ministério Público, não assistiu a nenhum dos factos que vêm imputados à Arguida. Quanto à primeira agressão que surgia na acusação, a mesma teria ocorrido em data em que ainda estaria numa relação com a Arguida, mas não se encontrava na divisão onde terão ocorrido as agressões. As demais ocorreram no período em que o jovem estava aos cuidados da mãe, pelo que o pai naturalmente não estaria presente. No entanto, o seu depoimento foi ainda relevante, uma vez que a testemunha atestou Ademais, esta testemunha acrescentou que quando o seu filho foi para a mãe após o ocorrido nas férias da Páscoa de 2023, se demonstrou muito ansioso e nervoso, o que se afigura absolutamente compatível com o sucedido no anterior período de convívios, de acordo com as regras da experiência comum, atribuindo ainda mais credibilidade às declarações para memória futura do jovem. Na verdade, note-se, que ao contrário do que a defesa alegou, não se verificou nenhuma contradição no depoimento desta testemunha, no que se refere à forma como reagiu no momento ao que lhe foi dito pelo filho (espelhado na cópia das mensagens juntas aos autos) por comparação à preocupação que, em julgamento, alegou nutrir pelo ocorrido ao seu filho. Este explicou que não contactou a Arguida após o seu filho lhe ter informado das agressões porque não queria piorar a situação para este. Ora, quer se possa defender que o pai poderia ter reagido de imediato ou quer se possa aceitar a justificação por este apresentada (por exemplo por ter percebido que a sua integridade física não continuava em risco, por acreditar que naquele momento a arguida não mais atentasse contra a mesma, etc.), certo é que o concreto comportamento adotado por este após ter recebido as mensagens do filho não invalida ou coloca em causa a credibilidade concedida ao ofendido, tanto mais que se denota que o progenitor também acreditou no imediato no que lhe era dito pelo filho, e não que a sua falta de atuação se devesse a qualquer convicção de que tais agressões não tinham sucedido. Não se pode olvidar isto mesmo: a vítima dos factos em causa não é o pai de BB, é este último. Este é que vivenciou os factos, não foi o seu pai. Ainda que o depoimento do seu pai fosse algo contraditório ou contrário ao afirmado pelo ofendido (o que, para este Tribunal, não se verifica), a verdade é que a testemunha não assistiu a nada diretamente, pelo que se contradições houvesse, tal não afetaria a credibilidade do seu filho, mas somente a sua. Assim, o depoimento desta testemunha, conjugado com a demais prova produzida e junta aos autos, nomeadamente o relatório pericial já referido, serviu para fortalecer a credibilidade que o Tribunal já atribuía às declarações do ofendido. De outra senda, as testemunhas, arroladas pela defesa, EE (ex-namorado da sobrinha da Arguida), FF (ex-namorado da Arguida), GG (amigo da Arguida) e HH (sobrinha da Arguida), vieram, todas de uma forma geral, referir que a Arguida e o ofendido possuem (e possuíam) uma relação muito boa, que sempre se deram muito bem, mostrando uma grande relação afetiva, dando vários exemplos que assistiram a confirmar isso mesmo (de brincarem e rirem juntos, um com o outro, gestos de afeto entre eles, etc.). Ora, nos presentes autos não é alegado, nem é isso que está em apreciação, que a Arguida e o ofendido possuem uma má relação - tanto mais que não está em causa a prática de comportamentos agressivos diários da Arguida para com o seu filho que pudessem pôr em causa toda a convivência destes, nomeadamente perante familiares ou terceiros. O que está em causa é se a Arguida agrediu e insultou o seu filho nos termos e pelas razões expostas na acusação (e relatadas pelo ofendido), sendo certo que as mesmas, de acordo com o relatado pelo ofendido, foram efetivadas ou no domicílio da Arguida, em momentos em que apenas se encontravam os dois, ou dentro do veículo automóvel da ofendida, onde também apenas os dois se encontravam, ou seja, em momentos mais privados, em que mais ninguém participou ou assistiu. Não é, pois, de todo descabido que, em público, ou em locais privados, mas na presença de outras pessoas, a Arguida e o ofendido se relacionassem de forma diferente, frisando-se, uma vez mais, que não vem alegado que a Arguida maltratasse o seu filho sistemática e constantemente. Aliás, os factos reportam-se a momentos específicos, espaçados no tempo, sendo que o próprio ofendido refere estes momentos como pontos fulcrais e marcantes, asseverando que não se recorda de outras situações. Tem-se de ter em conta que o ofendido, à data da prática dos factos, em 2023 pelo menos, era um jovem de 11/12 anos, o que naturalmente leva a uma atuação diferente no que concerne à própria forma de percecionar as agressões por parte dos pais. Na verdade, o processo educativo envolve muitas das vezes a repreensão/punição (menos ou mais severa, menos ou mais reprovável), que não é (necessariamente) o mesmo que agressão, e as crianças e jovens observam, muitas vezes, a punição física, como algo que acontece naturalmente, não tendo a capacidade, muitas das vezes, para discernir se o que aconteceu é algo reprovável ou, se por outro lado, é a realidade daquele tipo de relação, podendo ficar magoados com os pais no momento da agressão, e poucos momentos depois estar a brincar com os mesmos. Não são raras as vezes, nem de todo desconhecidas, as situações em que uma criança ou jovem que é agredida pelos pais como forma do processo educativo e só mais tarde, quando se autonomiza destes e ganha experiência de vida, analisa a infância e se distancia dos pais ou se revolta contra estes. Evidentemente, não se pode exigir às crianças o mesmo nível de maturidade emocional que se exige a um adulto. Sem prejuízo do exposto, a verdade é que a testemunha FF referiu, espontaneamente, que no dia 10-04-2023 (dia de aniversário da Arguida e o dia seguinte ao que esta agrediu o filho com cinco chapadas), asseverou que o ofendido se encontrava muito cabisbaixo, muito triste e pouco comunicativo. Embora esta testemunha tenha insinuado que tal estado de espírito do jovem estaria relacionado com algo que teria acontecido com o pai deste, a verdade é que não soube concretizar qual o motivo ou a razão porque atribui tal comportamento/estado de espírito a isso. Pelo contrário, cremos que esse estado de espírito é compatível e poderá corresponder a uma consequência normal dos factos em causa, o que permitiu atribuir ainda mais credibilidade ao relato do jovem. Diga-se, ainda, que a estratégia da defesa ao alegar que as crianças mentem, não merece qualquer ponderação do Tribunal face ao que vimos explicando quanto aos motivos porque atribuímos credibilidade às declarações do ofendido e às conclusões do relatório pericial. Não se olvida que certas características dos depoentes podem ser tidas em conta para atribuir menor ou maior credibilidade no seu depoimento, podendo a imaturidade ser uma delas. Mas a defesa deliberadamente olvida toda a restante prova, já exposta supra, que atribui credibilidade ao relato do jovem, como seja a naturalidade e clareza do seu discurso (aquando das declarações para memória futura), as mensagens enviadas por este ao seu pai, bem como o seu enquadramento, e o relatório pericial referido (cujo teor, reitere-se, a defesa não impugnou nem tentou sequer colocar em causa, para além de dizer que as crianças mentem). Por tudo isto, o Tribunal não ficou com dúvidas nenhumas que os factos ocorreram como expostos na factualidade demonstrada. Ainda assim, não se pode deixar de salientar que a prova produzida quanto à primeira agressão descrita na acusação não foi tão clara. Na verdade, quanto a esta factualidade (alegada agressão ocorrida ainda durante a coabitação da Arguida e do pai do ofendido em 2018/2019), o Tribunal ficou com dúvidas sobre a forma ou circunstancialismo em que ocorreu. Com efeito, o ofendido refere que a mãe o arrancou da cama porque este não queria tomar banho e o levou para a cozinha, tendo fechado a porta e lhe desferido vários pontapés. Por outro lado, o seu pai (que há data dos factos ainda vivia com a Arguida e o filho de ambos) refere ter ouvido uma chapada vinda da cozinha e que se dirigiu a esta divisão tendo-se interposto entre a Arguida e o ofendido. Ambos depuseram, quanto a estes factos de forma espontânea. Contudo, ficaram dúvidas se se estavam a referir ao mesmo episódio ou a episódios diferentes, e sobretudo dúvidas sobre o desenrolar da ação, ou seja, como é que a Arguida terá agredido o seu filho. Entende-se que, se fossem pontapés, e o pai estivesse no local no dia, teria tido conhecimento de tal facto (ainda que em diferido), ou algo na postura dos intervenientes revelaria isso, e seria um facto marcante. Por outro lado, se fosse uma chapada, entende-se que o ofendido faria menção a isso também, o que não se verificou. Também não se percebe a razão porque teria a Arguida conduzido o filho à cozinha e não à casa de banho, se a origem da agressão se devia ao facto deste se recusar a tomar banho. Relembre-se que, à data de tais factos, de acordo com o alegado na acusação, o ofendido teria entre 7 e 8 anos, o que, face à passagem de tempo, poderá determinar, naturalmente, uma menor precisão do ocorrido. Ainda assim, importa salientar que as dúvidas que se expuseram não ferem a credibilidade concedida ao ofendido quanto às suas declarações no que se refere à factualidade mais recente (que, aliás, se encontra traduzida nas mensagens enviadas ao seu progenitor no próprio dia dos acontecimentos), sobretudo pelo facto de, repita-se, tratarem-se de episódios mais recentes, em que o ofendido já era mais crescido, existindo ainda a demais prova já referida ad nauseam, que também não fica minimamente beliscada por este facto. Em consequência, no que se refere à factualidade descrita em a) a c), conforme referido, levantam-se dúvidas sobre a sua verificação, determinando, naturalmente, a aplicação do princípio do in dubio pro reo, corolário da presunção de inocência, e que determina que em caso de dúvida sobre a verificação de determinada factualidade, deve a dúvida ser decidida a favor do arguido, o que, neste caso, resulta na não demonstração dos referidos factos. Quanto ao elemento subjetivo, embora estes factos estejam relacionados com o íntimo do agente, a sua prova decorre da conjugação da restante factualidade com as regras da experiência comum e da normalidade. Desta forma, a consciência da ilicitude e a vontade de atuar extraíram-se dos eventos descritos, sendo certo que ao atuar da forma dada como provada, não pode a Arguida tê-lo feito de forma que não fosse deliberada, ou seja, livre, consciente e voluntária, querendo, com a sua atuação agredir e insultar o ofendido, seu filho, menor de idade, a quem devia um dever especial de respeito e proteção. A isto acresce que a Arguida sabia, como sabe a generalidade dos cidadãos, que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. Por tudo o exposto, resultaram como demonstrados os factos descritos em 1 a 17, e como não demonstrados os descritos em a) a c). Quanto à existência de antecedentes criminais da Arguida, teve-se em conta o disposto no Certificado de Registo Criminal junto aos autos. Em relação às condições socioeconómicas da Arguida, o Tribunal valorou as declarações prestadas por esta em sede de audiência de julgamento, que, pela sua espontaneidade, mereceram credibilidade, bem como ao teor do relatório social elaborado pela DGRSP». 3. APRECIAÇÃO DO RECURSO 3.1. QUESTÃO PRÉVIA Indague-se se existe nulidade da gravação da audiência de discussão e julgamento de 26.11.2024, ao abrigo do disposto nos artigos 363.º e 364.º do CPP. Alega a defesa que a gravação dos depoimentos da arguida e da testemunha CC são, em parte, imperceptíveis. Vejamos. O tribunal de 1ª instância, perante essa mesma nulidade alegada pela defesa por requerimento de 13.1.2025, anterior à instauração do presente recurso, decidiu assim em despacho datado de 21.1.2025: «Veio a Arguida invocar a nulidade da gravação da audiência de discussão e julgamento de 26-11-2024, ao abrigo do disposto nos artigos 363.º e 364.º do Código de Processo Penal. O Ministério Público pronunciou-se, pugnando pela improcedência da nulidade invocada, por extemporaneidade. Cumpre decidir. O artigo 363.º do Código de Processo Penal prevê a obrigação de as declarações prestadas oralmente na audiência serem sempre documentadas em ata, sob pena de nulidade, dispondo o artigo seguinte (364.º) que «1 - A audiência de julgamento é sempre gravada através de registo áudio ou audiovisual, sob pena de nulidade, devendo ser consignados na ata o início e o termo de cada um dos atos enunciados no número seguinte. 2 - Além das declarações prestadas oralmente em audiência, são objeto do registo áudio ou audiovisual as informações, os esclarecimentos, os requerimentos e as promoções, bem como as respetivas respostas, os despachos e as alegações orais.». A nulidade referida no artigo 363.º, uma vez que não encontra previsão legal no artigo 119.º, referente às nulidades insanáveis, nem nenhuma outra norma a configure como tal, trata-se de uma nulidade dependente de arguição, nos termos do artigo 120.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e, logo, sanável. Ora, as nulidades dependentes de arguição devem ser arguidas, nos termos plasmados no n.º 3, do referido artigo 120.º, do Código de Processo Penal, ou, na falta de norma especial, no prazo geral de 10 dias indicado no artigo 105.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Pois bem, sobre a questão do prazo para invocação da nulidade em questão, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, noseu Acórdãode Fixaçãode Jurisprudência n.º 13/2014, disponível emwww.dgsi.pt, onde sepode ler que «A nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada.» Neste sentido, prevê o artigo 101.º, n.ºs 1 e 4, do Código de Processo Penal que «1 - O funcionário referido no n.º 1 do artigo anterior pode redigir o auto utilizando os meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, bem como, nos casos legalmente previstos, proceder à gravação áudio ou audiovisual da tomada de declarações e decisões verbalmente proferidas. (…) 4 - Sempre que for utilizado registo áudio ou audiovisual não há lugar a transcrição e o funcionário, sem prejuízo do disposto relativamente ao segredo de justiça, entrega, no prazo máximo de 48 horas, uma cópia a qualquer sujeito processual que a requeira, bem como, em caso de recurso, procede ao envio de cópia ao tribunal superior. (…)» Da análise conjuntadetudoo exposto, conclui-se, então, que anulidade agora invocadapela Arguida,é uma nulidade sanável, dependente de arguição, no prazo geral de 10 dias, contados da sessão em que se concretizou a gravação. Como já referido, a sessão da audiência de julgamento cuja nulidade da gravação a Arguida invoca, realizou-se a 26-11-2024. Destarte, a Arguida tinha até dia 06-12-2024 (sem prejuízo da possibilidade concedida pelo artigo 107.º-A do Código de Processo Penal, que sempre determinaria que o último dia do prazo seria 11-12-2024) para arguir a nulidade em referência. Compulsados os autos, constata-se que a mesma veio arguir tal nulidade no dia 14-01-2025, muito para lá do prazo concedido para o efeito. Pelo exposto, julga-se a arguição da nulidade invocada pela Arguida extemporânea. Notifique.” Note-se que tal despacho não foi impugnado directamente pela defesa, limitando-se ela a arguir tal nulidade, de novo, em sede recursiva. Ora, neste ponto, tem toda a razão o tribunal. Limitamo-nos a concordar com o doutamente explanado no aresto do Tribunal da Relação o porto, com data de 9.12.2020 (Pº8 1/20.0GBAGD.P1), quando escreve: «(…) qualquer dúvida que a questão da inaudibilidade das gravações da prova pudesse suscitar foi resolvida através do acórdão n.º 13/2014 do Supremo Tribunal de Justiça para fixação de jurisprudência, de 03-07-2014 (DR n.º 183/2014, Série I de 23-09-2014), e que fixou jurisprudência nos seguintes termos: «A nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada». Conforme se verifica da acta de julgamento, a produção de prova realizada nestes autos ocorreu no dia 15-07-2020 (sessão única) e a questão da inaudibilidade parcial da gravação da prova apenas foi suscitada pelo recorrente no requerimento para interposição de recurso da decisão final, peça que entrou em juízo no dia 28-08-2020, muito depois do decurso do prazo de 10 (dez) dias de que dispunha para arguir a nulidade a que alude o art. 363.º do CPPenal perante o Tribunal de julgamento, tendo em atenção a apontada jurisprudência fixada. Esta questão já havia sido anteriormente abordada pelo Supremo Tribunal de Justiça, que foi igualmente chamado a fixar jurisprudência (à luz da redacção do Código de Processo Penal então vigente), vindo a ser prolatado o acórdão para uniformização de jurisprudência n.º 5/2002, de 27-06-2002, que decidiu que: «A não documentação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, contra o disposto no artigo 363.º do Código de Processo Penal, constitui irregularidade, sujeita ao regime estabelecido no artigo 123.º, do mesmo diploma, pelo que uma vez sanada, o tribunal já dela não pode conhecer.» Esta posição passou pelo crivo do Tribunal Constitucional, que no seu acórdão n.º 208/2003, de 28-04-2003, procedeu à apreciação da inconstitucionalidade das normas dos arts. 363.º e 123.º do CPPenal “com a interpretação de que embora reconhecendo que a documentação da prova é obrigatória (artigo 363.º), a sua não observância constitui mera irregularidade, sanável nos termos do artigo 123.º, pois não foi suscitada em audiência”, por alegada violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, aí se entendendo que a obrigação que impende sobre o sujeito processual de suscitar durante a audiência de julgamento a questão da omissão de documentação das declarações orais nela prestadas não constitui uma “diminuição inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável” das suas garantias de defesa. Com a redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, ao art. 363.º do CPPenal passou a ser obrigatória a documentação na acta de todas as declarações prestadas oralmente na audiência, sob pena de nulidade. Deixou, assim, de haver a distinção até aí existente entre julgamento perante tribunal singular, colectivo ou de júri, na presença ou ausência dos arguidos e com ou sem concordância dos sujeitos processuais. É neste contexto legislativo que surge o acórdão n.º 13/2014 supramencionado, onde a dado passo se afirma: «Haverá, assim, que distinguir os casos da falta ou ausência de documentação e os casos em que se verifica a deficiência da documentação, ora por ser incompleta ora por ser inaudível. A significar que a nulidade pode ser total ou parcial. Será de verificação rara a situação de falta ou deficiência de toda a documentação. As mais das vezes, poderão ocorrer casos de nulidade parcial, estes sim relativamente frequentes. A nulidade é parcial se for omitida a documentação de parte da prova produzida na audiência ou se a documentação deficiente disser respeito a parte da prova produzida na audiência. 6.4. Não se tratando de nulidade elencada no artigo 119.º nem sendo expressamente classificada como insanável, pela própria norma, a nulidade prevista no artigo 363.º é, pois, uma nulidade sanável que deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina dos artigos 120.º e 121.º. Por outro lado, é consubstanciada por um vício procedimental cometido durante a audiência. Com efeito, a omissão da gravação ou a deficiência equiparável a falta de gravação ocorrem na audiência. Não se trata, por conseguinte, de uma nulidade da sentença. Nulidades da sentença são só as previstas no n.º 1 do artigo 379.º e só para estas, compreensivelmente, está previsto um regime especial de arguição em recurso (artigo 379.º, n.º 2). As demais nulidades devem ser arguidas, em requerimento autónomo, perante o tribunal onde foram cometidas, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 120.º, ou, na falta de norma especial, no prazo geral de 10 dias indicado no artigo 105.º, n.º 1. (…) 6.7. Da conjugação das normas dos artigos 101.º, n.º 3, e 364.º, n.º 1, resulta que, sempre que for realizada gravação, o sujeito processual interessado pode requerer a entrega de uma cópia facultando ao tribunal o suporte técnico necessário, devendo o funcionário entregar uma cópia, no prazo de quarenta e oito horas. Nessa altura, o sujeito processual fica em posição de poder verificar a regularidade da gravação e invocar qualquer deficiência. Por isso, o referido prazo de 10 dias para arguir a nulidade da falta de documentação das declarações prestadas oralmente na audiência deve contar-se a partir da data da sessão da audiência em que tiver sido efectuada a gravação deficiente, sendo nele descontado o período de tempo que decorrer entre o pedido da cópia, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário (por lei, quarenta e oito horas).» Em face do exposto, e porque se trata de nulidade sanável, conforme enunciado no aresto citado, tinha o recorrente que suscitar a questão da nulidade prevista no art. 363.º do CPPenal no prazo de 10 (dez) dias após a sessão de julgamento em que foi produzida a prova cuja gravação foi indicada como deficiente, acrescido do período temporal que os serviços demoraram a fazer a entrega do suporte com a gravação da prova, tendo em consideração o disposto no art. 101.º do CPPenal, prazo que não se mostra cumprido nos presentes autos. Esta interpretação já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional que fez recair sobre a mesma juízo de não inconstitucionalidade. Assim, no acórdão n.º 118/2017, de 15-03, o Tribunal Constitucional decidiu «não julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação dos artigos 363.º, 364.º, n.º 1, e 105.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal de 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, sob pena de dever considerar-se sanada.» E no acórdão n.º 291/2017, de 08-07, o Tribunal Constitucional decidiu «[n]ão julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 363.º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a falta ou deficiência da gravação dos depoimentos prestados oralmente em audiência de julgamento deve ser arguida perante o tribunal de 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de dez dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efetiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada.» Como se argumenta neste último aresto, «a exigência constitucional de que o processo criminal assegure todas as garantias de defesa, nos termos do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, não é incompatível com um regime de preclusão associado ao estabelecimento de ónus de arguição temporalmente delimitada de determinados vícios in procedendo, ainda que inimputáveis aos sujeitos processuais que pelos mesmos podem vir a ser negativamente afetados (v. o Acórdão n.º 46/2005). O que a ordem constitucional impõe é que se alcance um equilíbrio entre os interesses individuais dos sujeitos processuais, designadamente os direitos de defesa do arguido, e o interesse geral numa justiça penal eficaz e célere. Em suma, o que se exige é proporcionalidade entre o ónus imposto ao arguido e a finalidade de interesse geral prosseguida através dessa imposição. Em face do exposto, impõe-se concluir que, a ter-se por verificada qualquer nulidade (neste caso, parcial), a mesma já se mostra sanada, nenhum juízo de inconstitucionalidade devendo recair sobre tal solução. Cremos, contudo, que no caso concreto nem estaremos perante uma nulidade mas sim uma mera irregularidade, a arguir no prazo previsto no art. 123.º do CPPenal (três dias), sem prejuízo, também aqui, do prazo a que alude o art. 101.º do CPPenal e do tempo que os serviços demoraram a fazer a entrega dos suportes com a gravação, conforme resulta da tramitação do art. 101.º do CPPenal e se consignou no acórdão n.º 13/2014, prazo que, por ser mais curto do que aquele que vigora para as situações de nulidade, também já decorreu. Como se realça neste mesmo aresto do Supremo Tribunal de Justiça, «Tem-se entendido que à omissão da documentação em acta das declarações oralmente prestadas em audiência deve ser equiparada a documentação de tal forma deficiente que impeça a captação do sentido das declarações gravadas, pois, em tal caso, é como se não tivesse havido registo do depoimento. É deficiente a documentação que não permita ou impossibilite a captação do sentido das palavras dos declarantes. Deve, pois, considerar-se que também constitui a nulidade prevista no artigo 363.º uma documentação que não satisfaça a finalidade visada pela norma que é, justamente, a de permitir impugnar perante um tribunal superior a decisão proferida sobre matéria de facto.» Porém, o mesmo acórdão clarifica a questão, apesar de o fazer em nota-de-rodapé (nota 12), admitindo que nem todas os problemas relativos à deficiente gravação da prova geram a nulidade indicada, esclarecendo que «Diferente será a situação em que se verificam deficiências menores, que não inviabilizam a percepção do significado das declarações contidas no depoimento gravado, caso em que não há verdadeiramente omissão de documentação mas apenas uma documentação deficiente que, por não comprometer a captação do sentido essencial desse depoimento, constitui uma mera irregularidade, como se sustentou no acórdão deste Tribunal, de 23/11/2011 (processo n.º 161/09.3GCALQ.L1.S1)». Ora, no caso dos autos, apesar de o recorrente alegar, para o efeito da arguição da nulidade que agora de analisa, que «grande parte da prova produzida é imperceptível» e que «a parte das declarações que se encontram imperceptíveis são cruciais para o recurso que o Arguido/recorrente pretende levar a efeito», a verdade é que, de seguida, apresentou uma impugnação da matéria de facto onde faz extensa exposições de declarações prestadas oralmente em julgamento, apresentando as respectivas transcrições, pontuadas com indicações de «imperceptível», é certo, mas não deixou de, aparentemente, conseguir extrair do conjunto dessa prova algum sentido útil à pretensão que apresentou, não podendo, nesta perspectiva, serem tais deficiências qualificadas como nulidade, sob pena de ficar inutilizado o recurso amplo em matéria de facto, o que manifestamente não foi o pretendido pelo recorrente». No nosso caso, a audiência mal gravada terá decorrido em 26.11.2024, e mesmo descontando o tempo que mediou entre o requerimento datado de 7.1.2025 e a imediata entrega da documentação pela Secretaria (cfr. artigo 9º da motivação de recurso), aplicando a doutrina do AUJ nº 13/2014, tal prazo de 10 dias extinguiu-se como é bem de ver pois apenas se arguiu a «nulidade» em 13.1.2025. E diremos que também aqui estaremos mais perante uma mera irregularidade pois a gravação não estará assim tão imperceptível já que a defesa usa alguns trechos do depoimento do CC na sua motivação de recurso, querendo assim impugnar a matéria de facto, ao abrigo do artigo 412º, nº 3 e 4 do CPP. A ser irregularidade, ela deveria ter sido arguida no prazo previsto no art. 123º do CPP (três dias), sem prejuízo, também aqui, do prazo a que alude o art. 101º do CPP e do tempo que os serviços demoraram a fazer a entrega dos suportes com a gravação (um dia), prazo esse que, a 13.1.2025, também há muito já tinha decorrido. Seja, como for, improcede a invocada nulidade por deficiente gravação das provas. 3.2. NULIDADES DE SENTENÇA Invoca a defesa que existe aqui uma nulidade de sentença pelo facto de se ter dado como provada uma data no facto provado nº 4, inexistente na acusação, configurando isto uma alteração não substancial de factos, não comunicada à arguida, nos termos do artigo 358º, nº 1 do CPP [nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, alínea b) do mesmo diploma]. Foi de facto aposta a data de 9.4.2023 no facto nº 4. Na acusação constava apenas: «em data não concretamente apurada mas durante o período de férias escolares da Páscoa de 2023». Quando os factos novos não tenham como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, mas sejam relevantes para a decisão, a alteração deverá ser considerada não substancial e o seu conhecimento pressupõe, por isso, o recurso ao mecanismo previsto no artigo 358º, nº 1, do CPP. Diga-se ainda que a lei fulmina com nulidade a sentença que condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e condições previstos nos arts. 358º e 359º do CPP [art. 379º, nº 1, b), do mesmo código]. Ora, no nosso caso, não há qualquer alteração substancial de factos pois o crime não é diverso e a moldura penal abstracta permanece a mesma. E opinamos que nem sequer será uma alteração não substancial pois aqui apenas se faz a precisão rigorosa de um acontecimento situado no tempo (e o tribunal entre todos os dias que existiram no período de férias escolares da Páscoa de 2023 provou que o evento se passou a 9.4.2023), não contendendo tal com o direito de defesa da arguida (note-se que não estamos perante um caso em que existe um alibi num qualquer dia dessas férias, por parte da arguida, a justificar a necessidade inelutável de provar se o evento decorreu no dia x ou no dia y). De facto, importa distinguir, em função dos casos concretos, aquelas situações em que a omissão da comunicação impede a possibilidade de defesa eficaz do arguido, daquelas outras em que tal omissão não tem qualquer impacto negativo na estratégia de defesa do arguido. Como se afere no Acórdão da Relação do Porto de 12/1/2011, «há uma razão lógica e substantiva para o legislador impor a comunicação da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia e a alteração da qualificação jurídica dos mesmos: está em causa, fundamentalmente, assegurar elementares direitos de defesa do arguido, evitando que ele seja surpreendido com uma condenação por factos que não constavam da acusação (ou pronúncia) ou suportada por uma qualificação jurídica distinta da que nela constava. A própria Lei ressalva que a comunicação só tem lugar se a alteração tiver “relevo para a decisão da causa” e se não tiver “derivado de factos alegados pela defesa” [nº 1 e 2 do citado art.]. Compreende-se: tanto num caso como no outro, a alteração (dos factos ou da sua qualificação jurídica) não tem uma repercussão negativa na estratégia de defesa do arguido». É esse interesse de salvaguarda dos direitos de defesa do arguido que justifica a imposição da comunicação, não sendo algo de formal ou automático. Conjugando o disposto no artigo 358º do CPP, a alteração só se verifica quando tenha relevo para a decisão, só tenho lugar quando se mostre que o arguido tem necessidade de alegar algo que antes não tenha previsto alegado, isto é, de preparar nova defesa. No nosso caso, o Tribunal limitou-se a concretizar e a esclarecer factos que constam da acusação, mantendo-se a data em si dentro do intervalo de tempo mencionado na acusação pública. Portanto, não ocorre aqui qualquer diferença essencial ou estrutural entre o manancial fáctico constante da acusação e o que foi considerado provado na sentença recorrida, e assim não se exige a comunicação prevista no artigo 358º do CPP, tal a irrelevância do facto em si. Inexiste, pois, a nulidade arguida. 3.3. DA IMPUGNAÇÃO DE FACTO 3.3.1. Alega a recorrente que quer impugnar a matéria de facto. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto por duas vias: - a via da impugnação ampla (com apelo à prova gravada), se tiver sido suscitada – cfr. artigo 431º do CPP; - e a via dos vícios do nº 2 do art. 410º do CPP. Na 1ª situação estamos perante um típico erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 – que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Como bem acentua o Juiz Desembargador Jorge Gonçalves nos seus acórdãos desta Relação e da Relação de Lisboa, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do STJ, de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www.dgsi.pt)». E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, já aqui aludida, prevista no artigo 412º, nº 3, do CPP. A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto. Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação. Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova. E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo. Já na 2ª situação, apela-se ao normatizado no artigo 410º, nº 2 do CPP que estipula que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: 1. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; 2. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; 3. Erro notório na apreciação da prova. Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426º do CPP. Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente. De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – nº 2 do artigo 410º do CPP. Ao determinar-se que tais vícios sejam cognoscíveis com base no texto da decisão, adoptou-se uma solução de recurso-remédio e não de reexame da causa. A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito[1]. A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão[2]. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes). Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício. Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum. Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cfr. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo nº 1509/97). O vício de erro notório ocorre, não só quando um erro é evidente, crasso, escancarado à luz dos olhos do cidadão comum, mas também à luz da análise feita por um tribunal de recurso ou de um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada. Segundo os Juízes Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, tal erro ocorrerá "quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. Consideram os mesmos autores que “existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro"[3]. 3.3.2. Os conceitos podem confundir-se à primeira vista mas têm palco próprio e distinto entre si. O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova ocorrem respectivamente quando: a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado; b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º nº 2 a) CPP; c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida (cfr. Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740) ou quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. 3.3.3. A recorrente invoca expressamente o vício do artigo 410º, nº 2, alínea c) do CPP. E fá-lo baseado no facto de o tribunal não ter tido, como devia, uma dúvida insanável quanto à credibilidade do jovem BB, a principal figura acusadora da mãe. Ora, tal configura erro de julgamento e não um vício formal e interno do sentenciado. Analisando o texto literal da sentença, descortinamos algum erro notório na apreciação da prova? Ou seja: § Perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, o tribunal recorrido violou as regras da experiência? § Efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios? § Violaram-se as regras sobre prova vinculada ou das legis artis? § O tribunal valorizou a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados? § Estamos perante um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido? § Extraiu-se de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum? § Deu-se como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo? § O tribunal afastou-se infundadamente do juízo dos peritos? § Deu-se como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica? § Na motivação da decisão de facto invoca-se facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso? § Declara-se ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido? § No âmbito da apreciação da prova indirecta, o tribunal infere de um facto um outro facto, sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão? § Houve uma má aplicação do princípio in dubio pro reo? A todas as perguntas, respondemos NÃO. Lendo a motivação do tribunal, entendemos que a mesma é suficientemente elucidativa e clara sobre a tomada de posição e a convicção criada sobre a causa. Este Tribunal singular explicou-se e disse de sua justiça. Repete-se: não se verifica tal erro notório se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício. O tribunal, na sua motivação, dissertou sobre as razões pelas quais acreditou no depoimento desta criança, em detrimento do depoimento da arguida, por si considerado pouco credível na negação que faz os factos. Assim olhando para a estrutura da sentença, não vislumbramos qualquer vício do artigo 410º, nº 2, sendo a mesma coerente e lógica, sem erros «à primeira vista» e «à vista desarmada». Por isso, analisaremos a alegação da defesa em sede de erro de julgamento. 3.3.4. Que dizer, então, do pretenso erro de julgamento? Aqui chegados, uma palavra sobre PROVA e CONVICÇÃO. O artigo 127º do CPP consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais. Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional. Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios: – os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas); – A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável; – Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais; – A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso; – Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto; – De acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova e não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária[4] ou indirecta; – Como é evidente, e socorrendo-me das palavras sábias do STJ – [cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ(S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção], «tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos». A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência e, sobretudo, pela dimensão ética do acto de julgar. Convém nesse jaez lembrar o que exemplarmente escreve Hermengarda do Valle-Frias, no artigo «A motivação ética da decisão judiciária - o (re)encontro entre o direito e a justiça», publicado na Revista do CEJ nº 2016-II: «A motivação da decisão judicial, sobretudo fundamental no processo penal, firmada sobre os princípios da independência do juiz e livre convicção, constitui a legitimação do judiciário em sentido próprio – o juiz recebe os factos, analisa-os, valora-os de acordo com cada um dos instrumentos de que dispôs (meios de prova) e subsume-os ao direito. Apreciação da prova e a valoração da prova, no entanto, não se equivalem. A primeira, implica a actividade intelectual de escrutínio e validação dos pressupostos, conteúdos e resultado combinado dos meios de obtenção de prova; a segunda, implica a actividade intelectual de determinar o valor concreto de cada meio de prova, do conjunto da prova e das suas consequências em termos de convencerem, ou não, sobre a culpabilidade do arguido. Num sistema de prova assente na livre convicção, a motivação constitui a persuasão racional do julgador no convencimento da culpabilidade, ou não, do arguido ou, quando da prova se extraia a necessidade de aplicar o princípio da presunção de inocência, a argumentação essencial à justificação dessa aplicação. Para conseguir persuadir os destinatários da justeza da sua decisão, o juiz envolve-se num processo técnico de aplicação de conhecimentos jurídicos, não podendo descartar-se dos sentidos humano e social que resultam da sua própria formação pessoal, da forma como aceita os comportamentos humanos no contexto social em que se integra e na forma como se auto-impõe os limites decorrentes da sua própria condição profissional. Querendo com isto dizer-se que, em última instância, deve procurar superar-se a si mesmo para atingir a máxima perfeição de que é capaz enquanto decide, aí sim, não em seu nome, mas em nome da Sociedade e do bem social que constitui, em última instância, o limite dos seus próprios poderes decisórios. Este, que não é um circuito fechado em rotação constante sobre si mesmo, tem de ser um percurso com uma dinâmica evolutiva. O juiz é e deve ser um homem do seu tempo, atento aos humores sociais, culturais, políticos e económicos, porque é neste conjunto que se justifica o fundamento do acto decisório. Aplicando a lei ou criando a norma (com a devida ressalva do direito penal substantivo), o decisor está sempre vinculado ao compromisso ético inerente à sua função. Decidir, nesta perspectiva, é determinar a forma de resolução de um litígio com vista a atingir a pacificação social, a reposição do tempo do homem no tempo social de que se destacou. Ao condenar no processo penal, a decisão restaura tendencialmente a ordem comportamental que é assegurada pela Lei em cada momento histórico, implicando isto entender a sanção como censura social, mas também como investimento no Futuro. Por isso, a pena tem também um fundamento ético importante – vincular o infractor às responsabilidades inerentes à quebra dos laços afectivos com o todo social e, ao mesmo tempo, vincular a sociedade à responsabilidade de recuperação do infractor para que volte a integrar-se nela. Ou, melhor, para que não chegue a desintegrar-se dela. Cabe ao juiz, pois, garantir o equilíbrio entre estes dois interesses. E esse desiderato, consegue-o através de uma motivação tecnicamente adequada, humanamente ponderada e culturalmente aceitável». 3.3.5. Ora, a lógica da defesa é esta: · foi dada demasiada preponderância às palavras do BB, ouvido em declarações para memória futura, não sendo tais declarações totalmente credíveis; · não deveria o tribunal ter-se bastado com o depoimento do BB; · há contradições entre o testemunho do BB e do seu pai CC. Mesmo com deficiente cumprimento do artigo 412º, nº 3 e 4 do CPP, fomos ouvir a prova alegada (as declarações do BB a 15.12.2023 e de seu pai, este ouvido em 26.11.2024). 3.3.5.1. Quanto ao jovem: Tinha ele 12 anos quando foi ouvido em tribunal em declarações para memória futura. Já neste foro assim decidimos sobre abusos sexuais de crianças: «Como é que se expressa uma criança quando é tocada ou violentada em termos sexuais? Nestas situações de abuso sexual de crianças, a prova é difícil. Por sistema, quer-se sempre atacar o depoimento da própria vítima. E, por isso, anda-se em busca de incongruências, de pouco rigor, de inverdades… Sabemos que quanto mais vezes uma testemunha fala sobre o mesmo facto, mais dele se afasta (na sua realidade objectiva), pela reelaboração mental do mesmo que, consciente ou inconscientemente, vai fazendo. É normal que uma criança que fala em tribunal quando tem 14 anos pode deixar de ser exacta quando recorda factos passados quando tinha 9, 10 ou 11 anos de idade. Os estudos científicos lançam luz sobre este assunto. · É normal a vítima revelar grandes inibições e dificuldades em relatar os factos, quer pelo esforço que, certamente, fez ao longo do tempo para arredar da memória os abusos de que foi vítima, quer pelas reacções emocionais que sua memória lhe provocava, quer pelo prejuízo que dos mesmos resulta para a sua auto-imagem. · Todas estas condicionantes contribuem de forma decisiva para que as referidas declarações contenham as imprecisões, contradições, omissões e inconsistências apontadas pelo arguido, de tal forma que estranho seria que não padecessem dessas características. · Como tal, concluímos que de tais imprecisões, contradições, omissões e inconsistências não resulta, por si só, que a criança mentiu. · É certo que essas imprecisões, contradições, omissões e inconsistências fragilizam o valor indiciário de tais depoimentos, mas não mais do que isso, tanto mais que podem existir outros indícios que corroborem a essencialidade do depoimento e o núcleo central». Podemos facilmente estender esta linha de pensamento às agressões físicas perpetradas a crianças pelos seus próprios progenitores, o nosso caso. Aqui o constrangimento da denúncia por parte de uma criança é inegável - está a acusar uma Mãe, não um vizinho ou um mero conhecido. E também pode revelar as mesmas imprecisões, sem que tenhamos de concluir que está a mentir. Sobre as declarações para memória futura já decidimos assim nesta Relação (acórdão de 6.11.2024 – Pº 157/23.2PCLRA.C1): «A previsão legal geral destas declarações encontra assento do artigo 271º do CPP mas tem concretização singularizada no artigo 33º do Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e à assistência das suas vítimas, e no artigo 24º, do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro. O n.º 2 do artigo 271º, sempre que haja vítimas menores de idade, obriga mesmo que haja sempre esta diligência de prova antecipada. Desejável seria que a vítima, depois de ser ouvida nesta sede, não tivesse de ser de novo «incomodada» com uma nova inquirição mais tarde, em inquérito, instrução ou julgamento, sob pena de ser o sistema judiciário a provocar-lhe dano acrescido pois todos sabemos como cruel é obrigar uma criança a repetir, vezes sem conta, o que de mal lhe aconteceu no corpo e na alma. Contudo, a realidade desmente esse desejo. Como bem escreveu Ana Teresa Leal, no Manual de Violência Doméstica CEJ/CIG, 2020: “No particular aspeto da repetição da audição da vítima em julgamento, depois de a mesma ter prestado declarações para memória futura, por norma deve ser evitada, já que esta é a melhor forma de a proteger de um sofrimento desnecessário, resultante de um novo relato que implica o reviver situações traumáticas. De notar que, segundo o art.º 24º, nº 6, do EV, prestadas que tenham sido declarações para memória futura, tão só nas situações em que tal seja indispensável à descoberta da verdade, deve ser repetido o depoimento em audiência de julgamento. Esta norma apresenta-se muito mais restritiva no leque de possibilidades de tal acontecer, por comparação com o que dispõem os arts. 271º, nº 8, do CPP e 33º, nº 7, do RJPVVD, onde a possibilidade de repetição da audição na audiência de julgamento acontece sempre que tal seja possível e desde que não coloque em causa a saúde física ou psíquica de que deva prestar o depoimento. Esta diferença de terminologia parece não ter sido completamente assimilada pelos magistrados, demostrando a prática judiciária que, as mais das vezes, as vítimas são chamadas a prestar depoimento na fase de julgamento, depois da prestação de declarações para memória futura, sem que se mostre verificada a atual exigência legal da sua indispensabilidade para a descoberta da verdade. O termo “possibilidade” importa uma latitude de aplicação completamente diversa e muitíssimo mais lata da que decorre do termo “indispensabilidade”, pelo que não podem os tribunais continuar a atuar neste campo como se nada tivesse mudado”. Mas a verdade é que continuam muitas vezes a assim agir. A II, mesmo com 16 anos, em Fevereiro de 2024, já com 17 anos, não deixa de ser CRIANÇA para este efeito. A repetição das declarações prestadas no contexto de julgamento apenas deve ser efectivada, caso se mostre absolutamente essencial ao apuramento da verdade. Está em causa, de facto, o interesse da protecção de uma criança (e é-se criança, ao abrigo da Convenção sobre os Direitos da Criança, até aos 18 anos de idade) que, no caso em concreto, prevalece, sobre qualquer outro interesse. O artigo 28.º, n.º 2, da Lei de Protecção das Testemunhas em Processo Penal, estabelece também que, “sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal”. Dispõe o artigo 271º, n.º 8 do CPP que: “A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar”. Diremos nós, sempre que ela for possível e absolutamente necessária. Tem sido seguida esta orientação por parte do Ministério Público: Nos casos de crimes nos quais seja ofendido menor de idade, tendo presente a especial vulnerabilidade da vítima, em razão da sua idade e da natureza dos actos de que foi alvo, deverá o Ministério Público, sempre que possível e salvo a existência de especiais e ponderosas razões que o desaconselhem, providenciar pela tomada de declarações para memória futura ao ofendido, nos termos prevenidos no artigo 271º do CPP, assegurando também que, tendo presente o estatuído na parte final do seu nº 3, no decurso dessa diligência, esteja obrigatoriamente presente defensor do arguido constituído ou a constituir, assim se assegurando o princípio do contraditório que vigora em processo penal. Também se sabe que, por exigência do princípio do contraditório, as provas devem, em princípio, ser produzidas perante o arguido, em audiência pública. Este princípio, porém, comporta excepções, pois verificada a impossibilidade de reiterar as declarações prestadas no inquérito ou na instrução, seja por ausência ou morte do declarante, seja por circunstâncias específicas de vulnerabilidade da pessoa, podem essas declarações ser valoradas na audiência de julgamento. É que o princípio do contraditório não exige, em termos absolutos, o interrogatório directo ou em cross-examination. Por isso, se tem decidido que o modo de prestar declarações por memória futura respeita no essencial o princípio do contraditório. Veja-se até que, de acordo com o artº 271º do CPP, na redacção conferida pela Lei nº 48/2007, de 29/8, as declarações para memória futura de menor vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual em inquérito constituem acto obrigatório e a documentar através de registo áudio ou audiovisual, valendo como prova de julgamento independentemente da criança vir a ser novamente ouvida durante a audiência. E note-se até que, segundo jurisprudência superiormente firmada, com força obrigatória (cfr. Ac. STJ n.º 8/2017, de 21/11): «As declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 356.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código». O que se diz sobre os crimes sexuais, deve reiterar-se quanto a vítimas de violência doméstica. No nosso caso, o Colectivo não viu necessidade de repetir a audição da jovem e decidiu na sua motivação de facto em sede sentencial o valor probatório que atribuiu àquele depoimento. Na nossa situação, nas declarações da II para memória futura, foram proporcionadas ao arguido todas as garantias de defesa (foi representado por defensora, tal como o seria em audiência de julgamento realizada na sua ausência, com os direitos estabelecidos no artigo 271º, nºs 3 e 5, do CPP, equivalentes àqueles previstos no artigo 349º do mesmo diploma). Diremos ainda que os circunstancialimos fácticos que a defesa pretendia ver confirmadas pela requerida reinquirição – cfr. artigo 25º da sua motivação de recurso - poderiam e deveriam ter sido resolvidas na diligência de prestação de declarações para memória futura (onde são asseguradas as garantias de defesa, na interpretação adequada do artigo 32º, nº 2, da CRP), sendo nessa fase que poderia e deveria o arguido, com a amplitude legal conferida, formular as questões que apenas neste recurso acaba por colocar. Temos como certo que a prestação de eventuais novas declarações pela alegada vítima, em julgamento, apenas deve ter lugar quando se mostrarem absolutamente necessárias para o apuramento de circunstâncias ou factos novos ou para a obtenção de esclarecimentos essenciais». Aplicaremos estas considerações neste processo em que existe uma acusação a uma mãe por prática de crime de violência domestica sobre o filho menor de idade. As declarações para memória futura não são um «ovo de colombo» mas podem contribuir, em largo espectro, para que o depoimento das crianças seja mais digno de crédito nos nossos tribunais, defendendo a vítima da sua própria história, não o levando a repetir vezes em conta o que de mal lhe aconteceu no corpo e na alma. Como salienta Rui do Carmo, in «A Justiça e o abuso de crianças e jovens – um caminho em constante construção», inserido na obra coordenada por Teresa Magalhães sobre «Abuso de Crianças e Jovens», Lidel: «As alterações introduzidas no regime das declarações para memória futura procuram dar um novo contributo para a recolha do depoimento da criança vítima em data mais próxima da ocorrência dos factos, em melhores condições e num ambiente mais amigável, assim como para a prevenção dos possíveis efeitos de vitimação secundária provocados pelo decurso do processo». Ouvimos, então, o depoimento do BB. Ao contrário do que aduz o recurso do arguido, existe prova directa destes maus tratos de mãe para filho – para isso, basta-nos o depoimento insuspeito e credível desta criança, sem quase necessitar de qualquer outra prova indirecta[5]). Acreditando nós no seu depoimento, independentemente de algumas inconsistências temporais e espaciais, próprias de quem se tenta recordar do que já se passou há algum tempo na sua vida (foi ouvido em 2023 por factos também de 2018 e 2019), só podemos, como o fez o tribunal recorrido, não acreditar na versão da arguida. Um flanco anula o outro. Por isso, o seu depoimento é-nos indiferente pois também não acreditámos nesta negação. O tribunal explica a sua motivação de forma exemplar: · Já BB prestou declarações para memória futura, no dia 15-12-2023 (transcritas a fls. 295 a 307), sendo que as mesma representam um relato muito escorreito, natural e até espontâneo (sem prejuízo das naturais vicissitudes de um depoimento de um jovem de 12 anos de idade, nomeadamente relacionadas com a linguagem), tendo descrito com detalhe (quanto ao circunstancialismo espácio-temporal e o desenvolvimento da factualidade) tudo o ocorrido entre si e a sua mãe (com exceção dos acontecimentos descritos na acusação situados em 2018/2019, como se explicará infra), merecendo a credibilidade deste Tribunal. · Ademais, encontram-se juntas aos autos prints das mensagens de texto trocadas entre o ofendido e o seu pai – juntos a fls. 156 a 171 e cujo teor se dá aqui por reproduzido –, precisamente nos dias 09 de abril e 17 de julho, sendo que nessas mensagens o jovem refere expressamente ter sido agredido pela sua mãe, a Arguida (nomeadamente a fls. 164 refere «(…) ela vem a correr até mim a dizer estás a duvidar de mim repetidamente e disse levas chapadão e deu-me 5 chapadas com força» e a fls. 171 «Bateu» que no contexto já referido é concludente). · Resulta, pois, pouco credível que o ofendido, em dias aparentemente aleatórios em que se encontrava aos cuidados da sua mãe resolvesse comunicar ao pai que foi alvo de agressões por parte da mãe e, ainda menos, que tal ocorresse por influência do progenitor ou outro terceiro (porquanto não se tratou de algo que lhe contou após regressar do período com a mãe, mas durante o mesmo, isto é, enquanto ainda está aos cuidados da sua mãe). · Assim, estas mesmas mensagens, permitiram consolidar a convicção da credibilidade das declarações prestadas pelo ofendido para memória futura, permitindo ainda ao Tribunal concluir que a situação ocorrida nas férias da Páscoa de 2023, foi-o concretamente no dia 09-04-2023, uma vez que as mensagens se encontram datadas dessa mesma data - o que se levou ao elenco dos factos provados. · Seria de uma coincidência tal (ou de um plano quase maquiavélico), um jovem de 12 anos, por si ou a mando de um adulto, ter enviado as mensagens nos dias em questão, com o teor mencionado, já com a intenção de mais tarde vir a usar as mesmas contra a sua mãe, no âmbito da ação de alteração das responsabilidades parentais - surgindo como uma hipótese de tal forma inverosímil ou mesmo descabida que não foi, portanto, capaz de abalar a confiança do Tribunal na credibilidade do jovem ofendido. · Não se olvida que certas características dos depoentes podem ser tidas em conta para atribuir menor ou maior credibilidade no seu depoimento, podendo a imaturidade ser uma delas. Mas a defesa deliberadamente olvida toda a restante prova, já exposta supra, que atribui credibilidade ao relato do jovem, como seja a naturalidade e clareza do seu discurso (aquando das declarações para memória futura), as mensagens enviadas por este ao seu pai, bem como o seu enquadramento, e o relatório pericial referido (cujo teor, reitere-se, a defesa não impugnou nem tentou sequer colocar em causa, para além de dizer que as crianças mentem). · Por tudo isto, o Tribunal não ficou com dúvidas nenhumas que os factos ocorreram como expostos na factualidade demonstrada[6]». 3.3.5.2. Quanto ao testemunho do pai CC: O tribunal dissertou assim: · «É certo que a testemunha CC, pai do ofendido, arrolada pelo Ministério Público, não assistiu a nenhum dos factos que vêm imputados à Arguida. · Quanto à primeira agressão que surgia na acusação, a mesma teria ocorrido em data em que ainda estaria numa relação com a Arguida, mas não se encontrava na divisão onde terão ocorrido as agressões. As demais ocorreram no período em que o jovem estava aos cuidados da mãe, pelo que o pai naturalmente não estaria presente. · No entanto, o seu depoimento foi ainda relevante, uma vez que a testemunha atestou que efetivamente recebeu as mensagens do seu filho, nos dias em questão (confirmou ter sido a 09-04-2023 e a 17-07-2023), tendo ainda relatado aquilo que o seu filho lhe transmitiu, coincidente com o relatado por este em sede de declarações para memória futura. · Ademais, esta testemunha acrescentou que quando o seu filho foi para a mãe após o ocorrido nas férias da Páscoa de 2023, se demonstrou muito ansioso e nervoso, o que se afigura absolutamente compatível com o sucedido no anterior período de convívios, de acordo com as regras da experiência comum, atribuindo ainda mais credibilidade às declarações para memória futura do jovem. · Na verdade, note-se, que ao contrário do que a defesa alegou, não se verificou nenhuma contradição no depoimento desta testemunha, no que se refere à forma como reagiu no momento ao que lhe foi dito pelo filho (espelhado na cópia das mensagens juntas aos autos) por comparação à preocupação que, em julgamento, alegou nutrir pelo ocorrido ao seu filho. · Este explicou que não contactou a Arguida após o seu filho lhe ter informado das agressões porque não queria piorar a situação para este. Ora, quer se possa defender que o pai poderia ter reagido de imediato ou quer se possa aceitar a justificação por este apresentada (por exemplo por ter percebido que a sua integridade física não continuava em risco, por acreditar que naquele momento a arguida não mais atentasse contra a mesma, etc.), certo é que o concreto comportamento adotado por este após ter recebido as mensagens do filho não invalida ou coloca em causa a credibilidade concedida ao ofendido, tanto mais que se denota que o progenitor também acreditou no imediato no que lhe era dito pelo filho, e não que a sua falta de atuação se devesse a qualquer convicção de que tais agressões não tinham sucedido. · Não se pode olvidar isto mesmo: a vítima dos factos em causa não é o pai de BB, é este último. Este é que vivenciou os factos, não foi o seu pai. Ainda que o depoimento do seu pai fosse algo contraditório ou contrário ao afirmado pelo ofendido (o que, para este Tribunal, não se verifica), a verdade é que a testemunha não assistiu a nada diretamente, pelo que se contradições houvesse, tal não afetaria a credibilidade do seu filho, mas somente a sua. · Assim, o depoimento desta testemunha, conjugado com a demais prova produzida e junta aos autos, nomeadamente o relatório pericial já referido, serviu para fortalecer a credibilidade que o Tribunal já atribuía às declarações do ofendido». Ouvido o depoimento do pai CC, na perspectiva do alegado pela defesa no recurso, só detectámos uma relevante discrepância entre os dois depoimentos – a questão do “código secreto” nas conversas telefónicas entre filho e pai que indicaria que tinham ocorrido agressões. A defesa conclui que o BB mentiu (diz que há código, o pai diz que não), daqui retirando que todas as declarações prestadas pelo ofendido são frágeis e incapazes de alicerçar uma sentença condenatória. Só podemos discordar. Mesmo só olhando para esta contradição, pergunta-se: não poderá ter sido o pai a omitir a existência de tal código[7]? Porque é que se há-de concluir que é a criança que está a mentir? E mesmo se, neste ponto ele não foi totalmente verdadeiro, é temerária a conclusão de que, por isso, o BB mentiu sobre tudo. Contesta-se assim veementemente a afirmação aposta no artigo 79º e o artigo 80º da motivação de recurso: «A credibilidade e a veracidade do discurso do ofendido, sendo o elemento de prova adoptado, quase em exclusivo pelo Tribunal a quo, ao ponto de, em função do mesmo, vir a considerar os factos provados, deve assumir um estado permanentedecoerência tal que, bastaráuma única evidência apta acolocar tal discurso em questão, para contagiar todo o discurso, ou seja: Se o ofendido mentiu quanto a determinada factologia, a dúvida surge inevitavelmente, no sentido de dever admitir que o ofendido poderá, de igual modo, ter faltado à verdade em mais momentos das suas declarações». 3.3.5.3. No nosso caso, o BB foi coerente no seu discurso, situou os factos na medida da sua pueril memória e, no essencial, tudo bate certo com o depoimento do pai que, apesar de a nada ter assistido, é conhecedor de factos instrumentais que corroboram a versão do filho (as mensagens escritas em causa, trocadas entre pai e filho, também por nós lidas – cfr. fls 156-171). Quanto aos factos 4 a 6 (1º momento), basta-nos a palavra do BB, não posta em causa de forma eficaz neste recurso de sua Mãe, corroborada pelo teor do depoimento do pai e do print das mensagens. Nem sequer alguma hesitação do jovem quanto a datas exactas nos incomoda – ninguém esperaria que o BB escrevesse num diário as datas rigorosas para depois as reproduzir fielmente em tribunal… Quanto aos factos 7 a 11 (2º momento), entende a defesa que não existe evidência física da agressão em causa. Diz a defesa que o pai não referiu em julgamento ter visto marcas no rosto do filho. E será que a agressão deixou marca? Nada nos é dito que sim. O BB que ficou «só dorido aqui» e «não sangrei». Os factos provados falam apenas em dor e mau estar durante 3 dias. Mesmo que o pai tenha falado com o filho nesse período de tempo – note-se que entre o dia 16.7 e o dia 20.7 distam mais do que 3 dias apostos no facto nº 10 - poderia nada ser perceptível a olho nu… E diga-se ainda que não vislumbramos, no recurso, que tenha sido feita essa pergunta directa ao pai – «viu marcas no rosto do filho?» A defesa, no cumprimento do ónus de impugnação especificada exigido pelo artigo 412º, nºs 3 e 4 do CPP, não invoca qualquer trecho de depoimento que nos leve a concluir que o pai disse, preto no branco, que nada viu no rosto do filho. Finalmente, não vislumbramos a incoerência plasmada nos artigos 108º a 119º que mexe com o facto nº 11 directamente). De facto, é perfeitamente natural que uma criança, atemorizada com a fúria de uma mãe, seja selectiva naquilo que opta por responder, a fim de não atiçar mais a sua ira (nada disse sobre a namorada do pai pois percebeu que esse seria um assunto incómodo para ela). No fundo, uma questão de «sobrevivência emocional», evitando ser mais batido[8]. Em nada isto enfraquece a credibilidade do seu corajoso testemunho. Quanto ao facto 12 (3º momento), a defesa não se pronuncia sobre ele. Como tal, só há que considerar que a defesa não conseguiu convencer este tribunal sobre a existência de um qualquer erro de julgamento. Corroboramos em absoluto a leitura da prova feita pelo tribunal, ouvidos os depoimentos em causa. O tribunal explicou-se de forma fundamentada, descredibilizando esta versão NEGATÓRIA da arguida. Ouvidos os depoimentos em audiência, não vislumbramos qualquer dado contrário a esta leitura da prova feita pelo tribunal, tendo o tribunal decidido não acreditar na versão desta mãe. Convenhamos que o tribunal está no seu direito de não acreditar na versão de um arguido, como o sabemos. Aqui não se acreditou na versão da arguida, e explicou-se porquê. Como já aqui se disse, ouvimos[9] a gravação dos depoimentos do filho e do pai – e as provas indicadas no recurso não impõem decisão diversa ou a formação de convicção contrária à que foi criado pelo tribunal recorrido. 3.3.6. E nem foi violado qualquer princípio constitucional de presunção da inocência da arguida na medida em que o tribunal não acreditou na sua versão, no legítimo exercício da sua livre apreciação do seu depoimento e dos demais meios de prova. No fundo, o que a recorrente pretende, nos termos em que formula a sua impugnação, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ela própria entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida. A recorrente limita-se a divulgar a sua interpretação e valoração pessoal das declarações por si prestadas e da credibilidade que deveria ter merecido, exercício que, no entanto, é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova. Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso -, o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir, eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância, não se procurando encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso. Decidiu-se, no douto Acórdão da Relação de Coimbra de 9/9/2009 (Pº 564/07.8PAVCD.P1) o seguinte: «Acresce que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum». Na realidade, ao tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. «Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253). Portanto, a prova produzida foi coerentemente valorada. Se há duas versões dos factos (mesmo que uma delas tenha dois veículos), não é uma maioria matemática que faz escolher a versão verdadeira. O facto de haver duas afirmações opostas, não conduz necessariamente a uma “dúvida inequívoca”, por força do princípio in dubio pro reo. Não está em causa a igual valoração de declarações ou depoimentos, mas a valoração de cada um dos meios de prova em função da especial credibilidade que mereçam. As declarações e depoimentos produzidos em audiência são livremente valoráveis pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereçam. Voltamos ao Acórdão de 9/9/2009: «Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal». Sabemos que o julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal. Se a primeira ainda é susceptível de ser escrutinada pelo tribunal de recurso mediante a audição do gravado (e foi o que se fez nesta sede de recurso), fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar aquela. Deste modo, quando a opção do julgador se centra em prova oral, o tribunal de recurso só estará em condições de a sindicar se esta for contrária às regras da experiência, da lógica, dos conhecimentos científicos, ou não tiver qualquer suporte directo ou indirecto nas declarações ou depoimentos prestados. E repetimos: o juiz pode formar a sua convicção com base em apenas um testemunho (ou numa só declaração), desde que se convença que nele reside a verdade do ocorrido. Não basta que o recorrente diga que determinados factos estão mal julgados. É necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador injustificadamente retirou credibilidade. Atente-se que o art.º 412º/3 alínea b) do CPP fala em provas que imponham decisão diversa. Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente. Ao reapreciar-se a prova por declarações, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido desde que o seu juízo seja compatível com os critérios de apreciação devidos. Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados. Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa». O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido. Não ficou o Tribunal das Caldas da Rainha em estado de dúvida. E este tribunal de recurso também não, assente que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133). Ou seja: Assim, podemos dizer que a argumentação expendida pela recorrente esbarra naquilo que foi o conjunto da prova (directa) produzida, e com eco na decisão proferida. Decorre, pois, de todo o exposto, que não demonstra a recorrente que a decisão recorrida tenha incorrido em ilógico ou arbitrário juízo na valoração da prova, ou se tenha afastado das regras da normalidade do acontecer, ou da experiência comum, não existindo razões para afastar o raciocínio lógico do tribunal a quo, tampouco a recorrente indicou prova que imponha decisão diversa da tomada na decisão em crise, não podendo senão concluir-se que a argumentação e prova por ela indicadas não impõem decisão diversa, nos termos da al. b) do nº 3 do artigo 412º do CPP, apenas sendo exemplificativas de outra interpretação da prova, não havendo, pois, qualquer razão para alterar a matéria de facto provada decidida pelo Tribunal a quo. Aqui chegados e, face a todo o exposto, parece-nos evidente a falta de razão da recorrente, no que se refere à invocada violação princípio do in dubio pro reo, ínsito no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa. Finalizando e em súmula diremos ainda que os poderes do tribunal na procura da verdade material encontram-se limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, temperado pelo princípio das garantias da defesa, consignado no art.º 32, da CRP. Assim, sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento, em benefício do arguido. Em processo penal não existe um verdadeiro ónus probatório em sentido formal, vigorando o princípio da aquisição da prova articulado com o princípio da investigação: são boas as provas validamente trazidas ao processo, sem interessar a sua origem, recaindo sobre o juiz, em última hipótese, o encargo de investigar e esclarecer oficiosamente os factos em busca da verdade material. Quanto ao ónus da prova em sentido material, o princípio de presunção da inocência do arguido impõe que, em caso de dúvida irremovível, a questão seja sempre decidida a favor do arguido. Da falta de prova não podem resultar consequências desfavoráveis para ele, qualquer que seja o thema probandum. O tribunal decidiu acreditar na versão desta criança e explicou porquê. E este tribunal valida em absoluto esta leitura da prova. De facto: Não basta à procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal. Este decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção, não sendo suficiente, por isso, para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida. O que a defesa traz à ribalta do recurso não tem qualquer força para infirmar a opção do tribunal «a quo», pois então. Por essa razão, validaremos a tese acusatória. 3.3.7. Uma palavra final sobre a questão do relatório pericial feito ao jovem BB e constante de fls 210 a 218, elaborado pelo INMLCF (Delegação Sul). A defesa tem o seguinte raciocínio: · «O relatório pericial de psicologia forense vem responder a quesitos que em nada influem, ou devem influir, na formação da convicção do julgador quanto aos factos propriamente ditos, mas sim quanto às características psicológicas, tanto quanto se podem discernir, do ofendido. · Na apreciação da prova que enformará a sua convicção quanto à matéria de facto, o Tribunal deve considerar as características evidenciadas pelo relatório pericial e psicologia forense. · Ou seja, ao apreciar as declarações para memória futura do ofendido, o Tribunal deveterem mentequeestáperante um elemento de provaproduzido por alguém com tais características. · Tais informações apenas são aptas a justificar, tendencialmente, algumas características do examinado, afirmando a propensão para certos traços da sua personalidade. · Porém, pese embora, tal perícia evidencie a tendência para a verificação de certos tipos de comportamento, jamias poderá ser instrumento que ateste a impossibilidade da ocorrência de desvio a tal “mapa” psicológico · Orelatório pericial evidencia padrão psicológico tendencial do ofendido, o qual, indica certas características de personalidade, as quais o Tribunal deve ter em conta aquando da apreciação da prova. · Não pode o Tribunal fazer o que fez, ou seja, indicar o relatório pericial de psicologia forense respeitante ao arguido, como elemento de prova enformador da sua convicção quanto à matéria de facto ou, pelo menos, assumindo como verdade absoluta o vertido no referido relatório pericial e, · Mais grave ainda, atribuindo ao mesmo valor probatório inquestionável e para além de qualquer possibilidade de impugnação quanto aos factos propriamente ditos. · Na verdade, o relatório pericial não se encontra subtraído à livre apreciação do julgador. · Atento o teor do relatório pericial in casu, que não se apresenta peremtório mas tão só, tendencial, definindo um padrão psicológico não isento da possibilidade de desvios por parte do examinado, a duvida quanto à credibilidade das declarações do ofendido nem sequer assumiria anecessidadedefundamentação, para efeitos do disposto no n.º 2, do artigo 163.º, do CPP. · Certo é que, sendo ou não sendo passível de fundamentação, a verdade é que, conforme se evidenciou, razões haveriaparaque acredibilidadedas declarações do ofendido fosse colocada em questão». Mais uma vez a defesa pretende pôr em causa a credibilidade do depoimento do BB. No fundo, com o relatório o que se pretendia era aferir da credibilidade deste jovem, avaliando a sua capacidade para testemunhar[10]. Isto, note-se, tendo sempre presente que o juízo de credibilidade das declarações prestadas pelo BB é, a final, tarefa própria e indeclinável do tribunal, assumido o referido juízo pericial um subsídio da maior importância, no caso até imprescindível, que não pode, porém, substituir ou suplantar o juízo próprio e característico da função judicial[11]. Com esta avaliação pericial – cfr. artigo 131º, nº 2 do CPP - visa-se averiguar a matéria relativa ao desenvolvimento cognitivo, mnésico e emocional, características psíquicas e psicológicas da vítima (no caso, menor de idade), em ordem a avaliar a sua capacidade cognitiva e mnésica (a capacidade para conservar em memória e reproduzir os acontecimentos que presenciou e viveu na pele), e o eventual comprometimento dessa capacidade, por motivos de fragilidade, vulnerabilidade ou até de perturbação que a condicione. Decidiu em 21.1.2025 a Relação de Lisboa (Pº 105/23.0JDLSB.L1-5) que: «I. A perícia psicológica, feita neste processo referente a um crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, realizada à vítima, visou o conhecimento das características psicológicas e da personalidade desta, sendo um indispensável contributo para uma melhor apreciação do testemunho e avaliação sobre a sua credibilidade, por parte do tribunal. II. O juízo técnico, científico e artístico referido no artigo 163º do Código de Processo Penal é o exigido pelo art.º 151º para a prova pericial em sentido próprio ou estrito, não abrangendo, desde logo, a perícia sobre a personalidade. III. O relatório da perícia feita à personalidade da menor está sujeito à livre apreciação do Tribunal. IV. A não se entender assim, o julgamento, com as declarações do arguido e os interrogatórios das testemunhas, seria uma mera formalidade, com pouca ou nenhuma utilidade prática, uma vez que seria o Perito a decidir que o conteúdo das declarações da menor deveria prevalecer sobre os demais meios de prova, sem possibilidade de o Juiz questionar essa apreciação. O relatório da perícia sobre a personalidade é apenas um elemento que permite auxiliar a decisão do Juiz, devendo ser conjugado com os restantes elementos probatórios». No caso desse processo do Porto, o tribunal leu o relatório pericial em causa e, apesar de nele se ter atestado a coerência, credibilidade e veracidade do depoimento da ofendida, a sentença não se convenceu da sua idoneidade - tendo permanecido na dúvida, decidiu em favor do arguido, que negou os factos criminosos imputados, invocando o princípio in dubio pro reo. No caso do BB, foi feita uma perícia de psicologia forense para avaliar a sua capacidade e dever de testemunhar. O relatório dessa perícia dá-nos conta que «a Ciência Psicológica evidencia, aquando da exposição a contextos de violência perpetrada por figuras de referência, um aumento do risco de desajustamento psico-afetivo, comportamental, e relacional, atual e futuro, não podendo a existência, ou não, destes indicadores de impacto, determinar por si, a vivência das factualidades descritas». Com este pressuposto, aí se deixou escrito que: · «Verifica-se capacidade para descrever os acontecimentos de vida, de forma sequencial e contextualizados no espaço e no tempo, estando presente a definição clara dos conceitos básicos (O quê, Onde, Quando, Quem e Como), com capacidade em distinguir a realidade da fantasia, a verdade da mentira, questionando o adulto, e sendo resistente à sugestionabilidade, quando tentada; · (…) algumas capacidades, ao nível do pensamento lógico-abstrato, organização visuo-percetiva e mobilização e manutenção dos mecanismos atencionais, que possibilitam a persistência na tarefa, e o recurso ao raciocino dedutivo e indutivo; · (…) evidenciando um grau moderado de fidelidade mnésica; · (…) não se verificando, na atualidade, indicadores de desajustamento Psicoafetivo, emergindo a sintomatologia característica de depressão (20 pontos) e ansiedade manifesta (T=45), , situada em valores moderados; · (…) Quanto à escala de desejabilidade social (RCMAS), obtém-se um valor enquadrado na média (T=50), atribuindo alguma robustez as respostas assinaladas pelo menor, evidenciando uma atitude de resposta honesta; · A narrativa do menor apresenta-se compatível com as suas características desenvolvimentais, quando considerados, os indicadores de credibilidade, presentes na literatura da especialidade, verifica-se a presença de alguns dos indicadores nomeadamente, a existência de sequência lógica, com descrição de interações dos diversos elementos envolvidos, conseguindo sequenciar os acontecimentos, que surgem enquadrados na sua vivencia do quando e onde; · (…) Considerando-se, as narrativas, com alguma consistência interrelato, quanto à descrição qualitativa dos factos, surgindo estas com alguma espontaneidade, e em várias perspetivas, não surgindo como um script (relatadas da mesma forma); · (…) face ao exposto, tendo por base toda a informação recolhida, não se considera existir quanto a BB, limitações de natureza cognitivo-intelectual, ou psicoafectiva, que condicionem de alguma forma a compreensão da natureza do processo judicial, a sua capacidade de testemunhar, ou de apresentar um comportamento adequado em tribunal. · Os dados recolhidos em entrevista clínico-forense, nomeadamente quanto, à capacidade de distinguir a fantasia da realidade, a resistência à sugestionabilidade, a moderada desejabilidade social, bem como o assumir do menor quando questionado “que não sabe, ou não se recorda” (sic.), não apontam, para que sejam os factos melhor explicados por fenómenos de confabulação ou fantasia». Ou seja, estamos de acordo com a defesa – este relatório apenas aferiu se a criança é capaz de testemunhar, não mexendo com a questão de saber se, neste caso, mentiu ou disse a verdade. O tribunal não se baseou só nesse relatório – apenas este relatório alicerçou a convicção que teve depois de ouvir o BB: ele, aqui, não faltou à verdade! Não invalida que, numa livre apreciação do relatório, o tribunal não decida de forma diversa. Podia raciocinar assim: «Ou seja, a sua tendência não é mentir. Mas aqui neste caso mentiu» (pode o tribunal assim concluir). Esse não é o nosso caso. Pode o tribunal indicar o relatório pericial de psicologia forense como elemento enformador lateral – e nada mais do que isso[12] - da sua convicção sobre o depoimento do BB e sobre a credibilidade concreta dada às suas acusações contra a Mãe. E se o fez, não errou, não tendo o tribunal ficado em estado de dúvida inabalável sobre a credibilidade do depoimento concreto deste jovem (e podia bastar-se com o seu depoimento, pois então). 3.3.8. Face ao exposto, inexistem razões para alterar a matéria de facto quanto aos pontos sindicados no recurso, não se vislumbrado qualquer erro de julgamento. Se assim é, então considera-se definitivamente fixada a matéria de facto provada e não provada constante da sentença recorrida, só havendo que averiguar agora se foi feita uma adequada subsunção dos factos ao Direito tido por aplicável (diga-se, contudo, que o recurso é completamente omisso relativamente às questões da dogmática jurídico-penal amplamente discutidos na sentença recorrida). 3.4. DO DIREITO Damos o nosso pleno assentimento às lucubrações jurídicas feitas pelo tribunal recorrido, no que tange à subsunção jurídico-penal dos factos ao ilícito do artigo 152º, nº 1, alínea e) e nº 2, alínea a) do CP. Quanto ao crime de VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, diremos: — O crime de violência doméstica é um crime específico impróprio (cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima); — No seu tipo objectivo, incluímos as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra norma - o actual crime de violência doméstica afigura-se complexo, abarcando uma multiplicidade de situações de facto, quer no que toca ao tipo de comportamento (maus tratos físicos e/ou psíquicos), quer no que toca aos específicos agentes que o podem cometer (agente ou sujeito activo), quer quanto aos específicos sujeitos que podem dele padecer (vítima ou sujeito passivo), quer, por último, no que concerne às consequências jurídico-penais (penas principais e penas acessórias); — Este elenco de Maus-tratos – previsto no artigo 152º do CP - é exemplificativo (crime de execução não vinculada); — Tendo em conta a diversidade de condutas que estão previstas no típico crime de violência doméstica, tendemos aqui a concordar com Catarina Fernandes[13], quando afirma que a violência doméstica pode consubstanciar, tanto um crime de resultado (estando em causa, v.g., maus tratos físicos); como um crime de mera actividade (estando em causa, v.g., provocações e ameaças); como um crime de dano (estando em causa, v.g., privações de liberdade) ou como um crime de perigo (estando em causa, v.g., ameaças e humilhações); — Os maus-tratos não têm de ser reiterados, podendo tratar-se de um acto isolado («por regra não basta uma acção isolada do agente, sem se exigir uma situação de habitualidade, mas em casos de especial violência uma única agressão bastará para integrar o crime»); — Pese embora a supressão da distinção entre maus tratos reiterados e intensos, entende-se que um único acto ofensivo, sem reiteração, para poder ser considerado «Maus Tratos» e assim preencher o tipo do 152º, continua, hoje, a reclamar uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante para molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana (TUDO DEPENDENDO DO CASO CONCRETO)[14]; — Exige o tipo um estado de agressão tendencialmente permanente (exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante); — Bastará então a fixação de balizas temporais que permitem assegurar ao agente o seu direito ao contraditório e ao processo equitativo (daí não se exigir a especificação das datas exactas de todas as agressões). Também tem sido entendido, sendo muito elucidativo o Manual de Violência Doméstica CEJ/CIG, que o relator deste aresto coordenou enquanto Director-Adjunto do CEJ, que «as situações de VD envolvem, geralmente, mais do que uma forma de violência: ü Violência emocional e psicológica: consiste em desprezar, menosprezar, criticar, insultar ou humilhar a vítima, em privado ou em público, por palavras e/ou comportamentos; criticar negativamente todas as suas ações, caraterísticas de personalidade ou atributos físicos; gritar para atemorizar a vítima; destruir objetos com valor afetivo para ela, rasgar fotografias, cartas e outros documentos pessoais importantes; persegui-la no trabalho, na rua, nos seus espaços de lazer; acusá-la de ter amantes, de ser infiel; ameaçar que vai maltratar ou maltratar efetivamente os filhos, outros familiares ou amigos da vítima; não a deixar descansar/dormir (e.g., despejando-lhe água gelada ou a ferver, passando um isqueiro aceso frente às pálpebras quando ela adormece, etc.), entre muitas outras estratégias e comportamentos. As últimas estratégias referidas enquadram-se já nos domínios da ameaça e da intimidação, duas outras formas de violência frequentes que visam impedir a vítima de reagir aos abusos perpetrados pelo companheiro. ü Intimidação: intrinsecamente associada à violência emocional-psicológica, consiste em manter a mulher vítima sempre com medo daquilo que o agressor possa fazer contra si e/ou contra os seus familiares e amigos (sobretudo filhos), a animais de estimação ou bens. O ofensor pode recorrer a palavras, olhares e expressões faciais, agitação motora, mostrar ou mexer em objetos intimidatórios (e.g., limpar a espingarda, carregar o revólver, afiar uma faca, exibir um bastão, dormir com armas à cabeceira da cama, ter armas na mão quando aborda sexualmente a sua companheira). Inclui-se também aqui a utilização dos filhos para a imposição de poder sobre a vítima (e.g., levar os filhos a humilhar a vítima; ameaçar que, em caso de separação, conseguirá afastar as crianças da vítima, ameaçar que se suicida caso a vítima o abandone). Através destas estratégias, o agressor consegue manter a vítima sob domínio, na medida em que, num contexto de tensão e violência iminente, esta acaba por viver submergida pela ansiedade e pelo medo. ü Violência física: consiste no uso da força física com o objetivo de ferir/causar dano físico ou orgânico, deixando ou não marcas evidentes - engloba atos como empurrar, puxar o cabelo, dar estaladas, murros, pontapés, apertar os braços com força, apertar o pescoço, bater com a cabeça da vítima na parede, armários ou outras superfícies, dar-lhe cabeçadas, dar murros ou pontapés na barriga, nas zonas genitais, empurrar pelas escadas abaixo, queimar, atropelar ou tentar atropelar, entre outros comportamentos que podem ir desde formas menos severas de violência física até formas extremamente severas, das quais resultam lesões graves, incapacidade permanente ou mesmo a morte da vítima. ü Isolamento social: resulta das estratégias implementadas pelo agressor para afastar a vítima da sua rede social e familiar, dado que uma vítima isolada é mais facilmente manipulável e controlável do que uma vítima com uma boa rede de apoio familiar e social. Estas estratégias consistem basicamente em proibir que a mulher se ausente de casa sozinha ou sem o consentimento do agressor, proibi-la, quando tal é economicamente viável, de trabalhar fora de casa, afastá-la do convívio com a família ou amigos - seja por via da manipulação (“estamos tão bem os dois, para que precisas de mais alguém...”., “o teus pais não gostam de mim”...), seja por via da ameaça à própria ou a terceiros significativos, caso a vítima mantenha contactos sem a sua autorização. Por sua vez, a própria vítima acaba por se afastar dos outros, quer por vergonha da situação de violência que experiencia ou de eventuais marcas físicas visíveis resultantes dos maus tratos sofridos, quer por efeito das perturbações emocionais e psicossociais produzidas por situações de VD/VC continuada, como mais à frente será referido. ü Abuso económico: associado frequentemente ao isolamento social, é uma forma de controlo através do qual o agressor nega à vítima o acesso a dinheiro ou, mesmo, a bens de necessidade básica (como alimentos, aquecimento, uso dos eletrodomésticos para cozinhar, etc.). Mesmo que a vítima tenha um emprego, a tendência é para não lhe permitir a gestão autónoma do vencimento, que é cativado e usado pelo agressor. Passa também por estratégias de controlo da alimentação e da higiene pessoal (da vítima e, por vezes, também dos filhos), como manter o frigorífico, armários ou dispensas fechados com cadeados, esconder as chaves de diversos compartimentos da casa, controlar as horas a que o aquecimento geral/local ou um esquentador ou cilindro pode ser ligado, manter aquecida apenas uma divisória da casa, na qual apenas o agressor pode entrar/permanecer, bloquear telefones, impedir a ida sozinha a supermercados ou cafés. ü Violência sexual: toda a forma de imposição de práticas de cariz sexual contra a vontade da vítima (e.g., violação, exposição a práticas sexuais com terceiros, forçar a vítima a manter contactos sexuais com terceiros, exposição forçada a pornografia), recorrendo a ameaças e coação ou, muitas vezes, à força física para a obrigar. Outros comportamentos, como amordaçar, atar contra a vontade, queimar os órgãos sexuais da vítima são também formas de violência sexual. A violação e a coação sexual são alguns dos crimes sexuais mais frequentemente praticados no âmbito da VD mas que muitas das vítimas, por força de crenças erróneas, valores e mitos interiorizados, acabam por não reconhecer como tal, achando, incorretamente, que “dentro do casal não existe violação”, que são “deveres conjugais” ou “exigências naturais” do homem. A violência sexual engloba também a prostituição forçada pelo companheiro». No nosso caso, o tribunal entendeu que a factualidade apurada consumava o crime de violência doméstica. E NÓS COM ELE. Com base nos factos provados nºs 3 a 17, o tribunal condenou a arguida pela prática de um crime de violência doméstica[15], na pessoa do filho. E aqui defendemos veementemente a tese segundo a qual a educação de uma criança não pode nunca passar pelo recurso ao castigo físico. Disserta assim o acórdão da Relação do Porto de 16/12/2020 (Pº 3204/15.8T9MAI.P1): «Atualmente, o Código Civil (redação do DL 496/77, de 25/09) designa a relação entre pais e filhos por responsabilidades parentais (art.º 1877.º e ss.) cujo conteúdo é definido, essencialmente nos art.ºs 1878.º e 1885.º, como assistencial e educacional e não corretivo. Maria Clara Sottomayor, pronunciando-se pela substituição do poder de correção pela educação, refere que “a educação substitui a correção, tendendo a diluir-se a tradicional distinção entre o adulto e a criança, que inferiorizava a criança em relação aos adultos” (…) “O direito dos pais educarem os filhos não abrange o direito de os agredir, de ofender a sua dignidade, integridade física e psíquica ou liberdade”. Por outro lado, existe inequivocamente uma diferença de grau elevado entre uma relação como a da arguida com as crianças identificados nos autos, e a relação educativa entre os pais e as crianças seus filhos, quer essa diferença advenha da responsabilidade dos pais, pela grande proximidade existencial com os seus filhos; quer do afecto que une [ou é suposto que una] uns aos outros; quer mesmo do reconhecimento que decorre do artigo 29º da Convenção dos Direitos da Criança onde se despõe expressamente que “a educação deve inculcar [entre outros] o respeito pelos pais.”; quer mesmo pelo facto de a família ser reconhecidamente o primeiro pilar da educação das crianças. Diferença que não pode deixar de estar patente nas diferenças entre os tipos de ilícito previstos no artigo 152º e 152º A. do CP. A posição da recorrente não leva em conta a Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, em cujo preâmbulo se reafirma “o facto de as crianças, devido à sua vulnerabilidade, necessitarem de uma protecção e de uma atenção especiais, e sublinha de forma particular a responsabilidade fundamental da família no que diz respeito aos cuidados e protecção. Reafirma, ainda, a necessidade de protecção jurídica e não jurídica da criança antes e após o nascimento, a importância do respeito pelos valores culturais da comunidade da criança, e o papel vital da cooperação internacional para que os direitos da criança sejam uma realidade”. Sendo que nos termos do artigo 29 da Convenção, já acima mencionado, “A educação deve destinar-se a promover o desenvolvimento da personalidade da criança, dos seus dons e aptidões mentais e físicas, na medida das suas potencialidades. E deve preparar a criança para uma vida adulta activa numa sociedade livre e inculcar o respeito pelos pais, pela sua identidade, pela sua língua e valores culturais, bem como pelas culturas e valores diferentes dos seus». Também o aresto da Relação de Lisboa, citado na decisão recorrida (Pº 413/15.3PFAMD.L1-3) é claro: «Entendemos igualmente, conforme plasmado em muitos documentos produzido no âmbito da Unicef, que, ante as práticas ainda massivas de castigos corporais no âmbito dos deveres de educação, e para mudar este estado de coisas, urge criar uma cultura de não violência para com as crianças, e de construção de uma barreira de consciencialização social e individual que afirme ser totalmente inaceitável em qualquer circunstância os adultos expressarem a sua vontade ou as suas frustrações na linguagem da violência. Alguns Estados têm, aliás, leis que proíbem expressamente a agressão a crianças. O que se nos afigura, de iure constituendo, uma solução sensata já que o peso dessas palavras, i. e, dessa autonomização típica, por sugerir uma específica representação, transmitiria, de modo mais claro e assertivo, a mensagem de que castigos corporais não são aceitáveis, e, simultaneamente, seria mais eficaz em criar no imaginário colectivo, a ideia de que existem outras formas alternativas de educar. Este seria, pois, o primeiro passo para criar na consciência jurídica colectiva, incluindo em franjas pautadas pela iliteracia em geral, uma nova necessidade, qual seja, a de procurar informação acerca dessas “outras” formas alternativas. Em segundo lugar, e não obstante o que vimos defendendo “de iure constituendo”, entendemos que, estando em causa uma reflexão no domínio da culpa, a ponderação a fazer deve cingir-se ao contexto psicológico do arguido e à exigibilidade de o mesmo ter actuado de outra forma. Ora, tais práticas ainda massivas e que, como vimos, não são rejeitadas unanimemente pela jurisprudência nem por toda a doutrina, jurídica ou da lavra de outras ciências sociais, sendo que resultam da transmissão geracional desses comportamentos. Até porque, criança maltratada tende a, como adulto, infligir maus-tratos (v. com interesse, nesta matéria, “Direitos das Crianças e Jovens – Actas do Colóquio”, ISPA/CEJ, pags. 228 a 233, e Durkheim, Sociologia, Educação e Moral, Porto, Rés Editora, 1984, pg. 303)». Apesar de múltiplos acórdãos referirem o poder-dever de correcção como parte das responsabilidades parentais, a reforma de 1977 do Código Civil eliminou o “poder de corrigir moderadamente o filho nas suas faltas”. Ou seja, desde 2017, o castigo físico das crianças também é punido pelo Código Penal, seja pelo crime de violência doméstica ou de maus tratos (artigo 152º) ou de ofensa à integridade física (artigos 143º e 145º). A nível europeu, a pressão para a abolição dos castigos corporais já vem sendo feita há décadas e a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, o principal instrumento jurídico desta temática, proíbe todas as formas destas punições nos artigos 19º e 37º. Em todo o mundo, 63 Estados já proibiram estes castigos — em 2021, juntaram-se à lista a Coreia do Sul e a Colômbia. Lado a lado com Portugal, também Espanha, Nova Zelândia, Países Baixos, Togo, Uruguai e Venezuela proibiram esta forma de violência em 2007. Já nos Estados Unidos, por exemplo, ainda é permitido este tipo de castigos em casa e, em 19 estados, não foram banidos nas escolas. O direito de os pais infligirem punições nos filhos não se enquadra legalmente em violência e maus tratos neste país, segundo a plataforma internacional dedicada ao tema End Corporal Punishment. Numa palavra: A partir do momento em que reconhecemos a criança como um sujeito de direitos, o sujeito de direitos não deve ser educado dessa forma violenta, devendo a violência ser eliminada das relações entre as crianças e os adultos. Logo, o poder de correcção dos pais e educadores não abrange a aplicação de castigos corporais, inexistindo qualquer disposição legal em Portugal de onde se possa retirar tal conclusão (Portugal aparece como um dos países[16] que alterou a sua legislação tendo em vista o respeito pelos direitos da criança e a abolição dos castigos corporais). Os castigos corporais não são permitidos em caso algum e podem constituir uma forma de maltrato e configurar situações de perigo que legitimem a intervenção do sistema de protecção de crianças previsto na Lei de Promoção de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo. No fundo, bater numa criança não passa de “um acto de humilhação” e de uma enorme “falha do adulto”, na douta palavra de Catarina Ribeiro, psicóloga forense. Apela-se, pois, a que não se use causas de exclusão de ilicitude pois toda a violência contra os filhos é intolerável e nunca justificável e justificada (toda a violência contra um ser humano é indigna). Portanto, estas agressões dos nossos autos são ilegítimas e criminosas. E mesmo para a tese daqueles – cfr. artigo 100º da motivação de recuso - que defendem a possibilidade de algum castigo físico por força de um dever de correcção parental [a justificar, para essa tese, o uso do artigo 31º, nº 2, alínea b) do CP], nem sequer existiu aqui qualquer intenção de corrigir uma atitude que não se tem por desrespeitosa por parte de um filho. Só pode ser, assim, condenada esta Mãe pelo delito em causa. A defesa não se pronuncia, mesmo que subsidiariamente, sobre tal medida de pena. Assim sendo, não teremos de directamente abordar a questão, não deixando de se anotar que se valida tal pena, tida por justa e adequada. 3.5. Se assim é, naufraga em absoluto este recurso, só havendo que confirmar a sentença recorrida, assente que não temos por violadas as normas mencionadas no recurso. III – DISPOSITIVO Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida. Custas pela arguida recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa]. Coimbra, 30 de Abril de 2025 (Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09) Relator: Paulo Guerra Adjunto: Alcina da Costa Ribeiro Adjunto: Sandra Ferreira [1] «Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exata do que seja o objeto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa. Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objeto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339º, nº 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz. Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objeto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa. Em suma, existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340º do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição» (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019). [2] «Teremos uma contradição da fundamentação, impeditiva da função que a esta cabe, se no respetivo texto verificarmos existir uma incompatibilidade entre duas ou mais proposições, cuja conjugação não permita chegar uma conclusão logicamente coerente. Será o caso, por exemplo, de se afirmar que, “nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, “A é B” e que “A não é B”, pois as duas afirmações não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Ou dar-se como provado que, nas mesmas circunstâncias descritas na acusação, e na sequência de uma discussão entre Alberto, Bernardo e Daniel, Alberto desferiu uma bofetada no rosto de Bernardo, e de seguida, na mesma decisão, dar-se como não provado que Alberto tivesse dado uma bofetada no rosto de Bernardo. Ou que, para motivar a primeira proposição, o Tribunal considerasse unicamente o depoimento da testemunha Carlos, referindo quanto à razão de ciência desta testemunha que ela se encontrava junto a Alberto e Bernardo, mas na mesma motivação da decisão de facto, de seguida, se acrescentasse que, precisamente, por se encontrar junto de Alberto e Carlos, viu presencialmente Daniel a desferir a bofetada no rosto de Bernardo. Sendo a estrutura interna da própria lógica que aqui é posta em causa, na medida em que esta exige como uma das suas regras fundamentais a inexistência de contradição entre enunciados, assim como exige que a sequência desses mesmos enunciados, no raciocínio lógico, obedeça a “uma ordem do fundamento e da consequência”, com o sentido de que o raciocínio, através do qual se obtém a ilação ou inferência, por via indutiva ou dedutiva, não utiliza os enunciados ou proposições de forma arbitrária ou casual. Podendo dizer-se que as possibilidades de vir a ser posta em causa a fundamentação e a relação entre esta e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410º, nº 2, al. b), do CPP, são essencialmente reconduzíveis à violação da relação lógica que deve existir entre enunciados ou proposições, por violação do princípio da não contradição (contradição da fundamentação) e à violação do princípio do fundamento ou da ordem do fundamento e da consequência (contradição entre a fundamentação e a decisão). Nesta última hipótese caberá o seguinte exemplo: o tribunal dá como provados factos constitutivos do crime de furto, crime pelo qual vinha o arguido acusado, mas na fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica entende que, dado o arguido não ter restituído a coisa furtada, os factos integram também o crime de abuso de confiança, mas na decisão final, julgando procedente a acusação do Ministério Público, acaba por condenar o arguido apenas pelo crime de furto». (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019). [3] Francisco Mota Ribeiro é suficientemente eloquente e exemplificativo ao escrever no e-book já aqui assinalado: «Existirá um erro de tal magnitude quando, por exemplo, se se dá como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica. Tal vício é oficiosamente cognoscível e tem de resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Poderá suceder um tal erro, como vimos supra, quando na motivação da decisão de facto se invoca facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso. Também haverá erro notório na apreciação da prova quando se declare ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido. Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá como provado que o arguido apenas havia bebido um ou dois copos de vinho, quando resulta provado que a esse mesmo arguido lhe havia sido detetada uma TAS de 2,05g/l. Presumindo-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial (nº 1 do artigo 163º do CPP), constitui erro notório na apreciação da prova [alínea c) do nº 2 do artigo 410º] divergir-se dele sem fundamentação – Ac. do STJ, de 15/10/97, Pº 97P1494. No âmbito da apreciação da prova indireta, quando o tribunal infere de um facto (a entrada frequente de indivíduos numa casa com volumes) aquele outro facto (de, dentro da casa, uns indivíduos irem adquirir estupefacientes), sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão, está a cometer um erro notório na apreciação da prova, que vicia o acórdão e não permite ao STJ conhecer de fundo – Ac. do STJ, de 04/01/1996, Pº 048666. Na aplicação do princípio in dubio pro reo, quando da decisão recorrida resultar que, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, o tribunal a quo decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar, no entanto, evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo assim de concluir que a dúvida só não foi reconhecida, no sentido de fazer operar aquele princípio, em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 410º do CPP – Ac. do STJ, de 22/05/98, Pº 98P930». [4] Conforme refere Germano Marques da Silva, «é clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto a prova indirecta ou indiciária se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova. O indício não tem uma relação necessária com o facto probando, pois pode ter várias causas ou efeitos, e, por isso, o seu valor probatório é extremamente variável. Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervém a inteligência e a lógica da entidade que a afere. Porém, qualquer um daqueles elementos intervém em momentos distintos. Em primeiro lugar é a inteligência que associa o facto indício a uma máxima da experiência ou uma regra da ciência; em segundo lugar intervém a lógica através da qual, na valoração do facto, outorgaremos a inferência feita maior ou menor eficácia probatória». [5] Sabiamente, o Exmº PGA, em parecer no Pº 1451/18.0T9CLD.C1, assim dissertou: «Como já se escreveu, ‘Nada impede que as declarações da vítima sejam suficientes para sustentar uma condenação, até mesmo quando existam hesitações ou pequenas discrepâncias’ (José Mouraz Lopes/Tiago Caiado Milheiro, Crimes Sexuais – Análise substantiva e processual, 352). Acrescentam os mesmos AA. que o desfecho depende do circunstancialismo concreto e da avaliação da prova. Nos casos em que apenas as declarações das vítimas estão a ser apreciadas na descrição dos factos, deverá ter-se presente a forma como as mesmas são prestadas, além da forma com é realizada a inquirição, a distância temporal sobre os factos (sem que tenha existido qualquer condicionamento das declarações) – Guilines Para O Questionamento (citado na obra supra, pág. 355). A forma como os depoimentos são prestados (quer pelos menores, quer pelos demais intervenientes, designadamente as testemunhas), a forma como o relato é feito e da razão de ciência sobre os factos em questão, desde que não se verifique qualquer deturpação da verdade, tais depoimentos têm de ser valorados. Não pode deixar de se valorar um depoimento por não reproduzir relatos anteriores de forma taxativa, pois a tal se verificar é que é motivo para se questionar o mesmo, quando se equipara a uma mera reprodução mecânica. Também não pode deixar de se ter presente que, em caso de dúvida vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio in dubio pro reo. Enrico Altavilla enumera na sua obra Psicologia Judiciária inúmeras circunstâncias que influenciam o testemunho prestado, como a passagem do tempo, os depoimentos sucessivos, referindo igualmente a possibilidade de manifestação de sentimentos como o medo, a vingança ou o interesse (Enrico Altavilla, Psicologia Judiciária, Volume II, Personagens do Processo Penal, tradução da 4º edição italiana de Fernando de Miranda, 2003, pp. 236-253). Esclarece que “cada indivíduo, por serem diferentes os seus aparelhos sensoriais, percepciona de maneira diferente. (...) cada um, conforme a sua personalidade psico-ética, fixa, mais ou menos intensamente, a sua atenção sobre este ou aquele pormenor, completando, com dados imaginados, na evocação, aqueles que não foram percepcionados, ou o foram defeituosamente”. ‘Em 1998, a terceira conferência anual da Associação Internacional de Procuradores (IAP) teve lugar em Dublin e encontrava-se subordinada ao tema “Crimes Secretos: Crimes contra Crianças”. Com o objectivo de levar mais além o trabalho iniciado na conferência, foram constituídos diversos grupos, entre os quais um presidido por Daniel Prefontaine que se dedicou à criação de linhas orientadoras para assistirem os procuradores nos casos que envolvessem crianças como vítimas ou testemunhas. Foi no ano seguinte que o grupo de trabalho se reuniu em Vancouver e surgiu o Model Guidelines for the Effective Prosecution of Crimes Against Children. No documento elaborado estabeleceram-se alguns princípios gerais relacionados com as diversas fases de investigação, entre os quais, podemos destacar: a necessidade de formação especializada dos procuradores que têm contacto com casos que envolvam crianças como vítimas ou testemunhas; a necessidade de olhar seriamente os crimes praticados contra crianças, considerando-as como testemunhas credíveis e protegendo-as de traumas posteriores; a necessidade de dar prioridade a tais casos evitando-se atrasos desnecessários no agendamento. Já na fase de julgamento, o documento elaborado alertava para a necessidade de desenvolvimento, disponibilização e uso de procedimentos que ajudem o testemunho da criança, dando como exemplo o recurso a circuitos fechados de televisão, o acompanhamento da criança enquanto depõe, entre outros.” (A OBTENÇÃO DO TESTEMUNHO DO MENOR: O DESAFIO DA CREDIBILIDADE E A QUESTÃO DA PROTECÇÃO, 52, de Rita Estrela Lemos Carneiro)». Assinamos por baixo. [6] Mesmo tendo ficado com dúvidas relativamente à factualidade de 2018-2019 – «Ainda assim, importa salientar que as dúvidas que se expuseram não ferem a credibilidade concedida ao ofendido quanto às suas declarações no que se refere à factualidade mais recente (que, aliás, se encontra traduzida nas mensagens enviadas ao seu progenitor no próprio dia dos acontecimentos), sobretudo pelo facto de, repita-se, tratarem-se de episódios mais recentes, em que o ofendido já era mais crescido, existindo ainda a demais prova já referida ad nauseam, que também não fica minimamente beliscada por este facto». [7] Note-se até que as respostas do pai, aqui e ali, são de facto algo imperceptíveis – cfr. artigo 70º da motivação -, podendo ter afinal dito mais do que se consegue ouvir na gravação. [8] A mesma criança, tão madura no seu discurso oral, que terá dito à perita do INMLCF – cfr. fls 214-v – que «antes desta situação eu não ficava nervoso, sempre tive medo que ela me batesse a qualquer momento, tinha receio mas não tinha medo dela», sendo muito rica esta gradação de sentimentos que viveu com esta mãe. Sem nunca esquecer o que Françoise Dolto nos ensina: «Se uma criança não é tratada no amor, mas sim no medo, ela não aprende a se amar, apenas apendendo a defender-se». Aqui se lembra que Dolto é uma renomada pediatra e psicanalista francesa que deixou um legado significativo na área da educação infantil - nascida em 1908, a sua carreira foi marcada por um profundo interesse no desenvolvimento infantil e na importância de compreender as necessidades emocionais das crianças, tendo, ao longo de sua vida, desenvolvido abordagens pedagógicas inovadoras que influenciaram positivamente a forma como as crianças são educadas. [9] E a voz ouvida tem uma importância capital. Mas não é tudo, como é bem de ver... Como opina o Acórdão da Relação de Évora, datado de 18/3/2010 (Pº 22/07.0GACUB.E1): «1. Na tarefa da valoração da prova exige-se ao julgador uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, nas da lógica e da ciência, sem descurar a percepção – que a imediação potencia – da personalidade do depoente. 2. A voz não é o único canal comunicativo, sendo normalmente apreciado, pelo destinatário de qualquer mensagem, como um dos elementos da mesma, mas considerado numa avaliação global de toda a comunicação estabelecida. A voz é o canal mais informativo em qualquer comunicação, mas há que coaduná-la com elementos como expressões faciais, gestuais e corporais. 3. Em primeira instância, na apreciação do depoimento dá-se relevância aos aspectos verbais, mas também se considera a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, o tom de voz, as alterações na frequência vocal, as hesitações, o período de silêncio entre a pergunta e a resposta, os silêncios, a frequência dos períodos de silêncio no decurso do discurso, durante o discurso, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos corporais etc. Releva-se, ainda, a preocupação que a testemunha revela com o efeito do deu depoimento, em cada uma das partes, nos advogados, no Tribunal, a feitura ou não de alterações no tipo de discurso, e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo de áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores até da mentira. 4. Consequentemente, a prática de registo da voz das testemunhas, em sistema áudio, e a sua reapreciação pelo Tribunal de 2.ª instância, é insatisfatória e está longe de conduzir aos melhores resultados. Por isso, quando o julgador da primeira instância atribui, ou não, credibilidade a uma fonte de prova - testemunhal ou por declarações - porque a opção tomada se funda na oralidade e na imediação, o Tribunal de recurso, em princípio, só a deverá censurar quando for feita a demonstração de que a opção tomada carece de razoabilidade, violando as regras da experiência comum». [10] Também designada competência para testemunhar, diz respeito à capacidade do sujeito para compreender a natureza do processo judicial e as consequências imediatas e futuras, para testemunhar de forma relevante, para saber relatar factos pertinentes sobre o caso, para manifestar um comportamento apropriado em tribunal, para distinguir a realidade da fantasia e a verdade da mentira (cfr. artigo 131º, nº 2 do CPP). Aqui se anota que o perito “apenas pode e deve pronunciar-se sobre a capacidade da pessoa em causa conservar em memória e reproduzir os acontecimentos que presenciou, ou seja, sobre os aspectos perceptivos e cognitivos do depoimento, e não sobre a sua credibilidade. Este juízo pertence, inexoravelmente ao tribunal” (cfr. Nota 19 do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo nº 7071/2005-3 de 18/01/2006). A perícia pode fornecer ao tribunal elementos que contribuam, numa base cientifica, para a valoração da credibilidade do depoimento da testemunha/assistente. Não se desconhece que não existem técnicas seguras, ou suficientemente seguras, que permitam distinguir uma declaração verdadeira de uma declaração não verdadeira, mas existem certamente indicadores ou comportamentos, para além daqueles que podem ser observados num depoimento prestado em tribunal e directamente percepcionados pela autoridade judiciária, que estarão ao alcance do perito e que podem e devem contribuir para o julgador fundamentar a sua convicção quanto à credibilidade de determinado depoimento. Na avaliação da credibilidade não se avalia o sujeito (é a testemunha uma pessoa credível ou não), mas o seu comportamento/relato numa situação concreta (é credível o que a testemunha refere?). Não se pode falar na credibilidade da pessoa, mas sim da sua declaração, ainda que as características de personalidade devem ser analisadas. O juízo de credibilidade deve centrar-se: ü Sobre a capacidade de um sujeito prestar testemunho (capacidade); ü Sobre a ausência de contradições e inconsistências relevantes nos relatos realizados, coerência geral e exclusão de hipóteses; Como decidiu o Acórdão do STJ, Processo 08P2869, de 23/10/2008: «“(…) embora o juiz, pela formação que possui, tenha capacidade para avaliar da credibilidade das testemunhas em geral, tratando-se de menores, porque a percepção da sua aptidão física e mental para prestar testemunho se torna mais difícil, permite e até aconselha a lei que se solicite a técnicos avalizados, com conhecimentos técnicos específicos, a realização de perícias destinadas a avaliar da sua credibilidade. “(…) O perito (…) está melhor preparado para percepcionar ou apreciar da credibilidade do depoimento, funcionando, assim, como auxiliar do juiz (…)”. Quem fala de crianças menores de idade, também fala de outras vítimas maiores de idade, sobretudo num caso como o nosso em que uma testemunha (assistente) maior de idade se recorda e conta em juízo factos relativos também à sua própria menoridade. [11] Cf. Acórdão da Relação do Porto de 29-04-2015, proferido no processo nº 285/14.5TAMTS.P1 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt> [12] Apenas se escreveu na motivação de facto que: «- Relatório da perícia de psicologia forense realizado ao ofendido, de fls. 201 a 218, de onde resulta que o mesmo tem capacidade para descrever os acontecimentos de vida, de forma sequencial e contextualizados no espaço e no tempo, estando presente a definição clara de conceitos básicos, com capacidade em distinguir a realidade da fantasia, a verdade da mentira, questionando o adulto e sendo resistente à sugestionabilidade, quando tentada. Do exame decorre ainda que o ofendido BB não denota limitações de natureza cognitivo-intelectual, ou psicoafectiva, que condicionem de alguma forma a compreensão da natureza do processo judicial, a sua capacidade de testemunhar, ou de apresentar um comportamento adequado em tribunal». E mais à frente: «Ora, além da credibilidade que o depoimento do ofendido por si só é merecedor, atentas as dúvidas levantadas pela Arguida quanto ao surgimento da queixa, importa ter em consideração que do relatório pericial de psicologia forense realizado ao ofendido, resulta que este não apresenta tendência para efabular e que é resistente à sugestionabilidade por parte de adultos, afastando, assim, a argumentação ou suspeita que se pudesse levantar quanto à invenção dos factos por influência de terceiros. Note-se que o teor desta prova pericial não foi impugnado ou colocado em causa por qualquer outro meio de prova, assumindo, assim, força plena na demonstração da factualidade dali resultante». Pode discordar-se da frase final – este relatório apenas atesta que, em regra e por tendência, esta criança não efabula. Ou seja, não se pode dizer que por ele se dá força plena à demonstração da factualidade em causa. Note-se que, apesar de ter isto escrito, o tribunal baseou-se em muito mais do que este relatório (bastaria a convicção fundamentada nas palavras do BB, argumentando as razões para tal assim concluir, tendo-o feito suficientemente na sua motivação). E, por isso, não se pode concordar com a defesa quando conclui que o relatório foi decisivo para a demonstração da verdade dos autos. Foi apenas um factor lateral que auxiliou o julgador. E isso pode ele fazer. [13] Cfr. E-book CEJ/CIG «Violência Doméstica - implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno – Manual pluridisciplinar (2.ª edição)», coordenado pelo relator deste acórdão, enquanto Director-Adjunto do CEJ (2020). [14] Seguimos de muito perto a tese que conclui pela inexistência de uma diferença de natureza substancial entre a violência pressuposta pelo tipo do artigo 152º e a pressuposta pelos tipos base que não se paute pela adição do elemento relacional típico (posição de Maria Elisabete Ferreira – “O Crime de Violência Doméstica Na Jurisprudência Portuguesa”, Estudos em Homenagem ao Professor Costa Andrade, Vol. I, Direito Penal (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) e que constitui a interpretação tipicamente mais adequada, face aos elementos interpretativos do artigo 9º do CC, do tipo de crime previsto no artigo 152º do CP e aos princípios da legalidade, tipicidade e máxima determinação do tipo vigentes em Direito Penal. Defende a autora que o legislador quis tutelar mais do que a saúde da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa, decidindo punir as condutas violentas que ocorram no âmbito familiar ou similar, concluindo que o bem jurídico protegido se relaciona com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar ou doméstico: a pacífica convivência familiar, parafamiliar ou doméstica. Da tutela reflexa de tal bem jurídico resultaria, como consequência, que a mera ofensa simples poderá pôr em causa essa pacífica convivência, sem qualquer aferição da intensidade da mesma. A solução punitiva diferenciada do crime base e do crime de Violência Doméstica resultaria do diferente juízo de danosidade social de uma ofensa à integridade física praticada entre dois estranhos (violência interpessoal entre dois estranhos) e a praticada no seio de relações familiares, parafamiliares, emocionais ou de coabitação. Arredando, desde modo, o apelo a quaisquer critérios extra-típicos de destrinça entre a violência interpessoal e a intrafamiliar, como o das relações de imparidade (Inês Ferreira Leite), a aferição casuística de uma quebra de relação de confiança (Teresa Morais), a susceptibilidade de a acção colocar em causa a dignidade humana ou o livre desenvolvimento da personalidade no contexto relacional pressuposto (Taipa de Carvalho, Nuno Brandão, André Lamas Leite), admitindo que uma ofensa simples praticada em tal contexto relacional, ainda que isolada, integre sem mais indagações, o crime de Violência Doméstica. Entendemos que, ao nível da carga ofensiva pressuposta e da natureza do bem jurídico tutelado, inexiste qualquer destrinça substancial entre o tipo de violência doméstica e aqueloutros bens tutelados por tipos adjacentes que protejam bens jurídicos pessoais cuja lesão seja instrumentalmente susceptível de fazer perigar a saúde psicofísica da vítima, entendendo que a maior carga de ilicitude material subjacente ao programa legal de combate ao fenómeno da Violência Doméstica se alicerça, exclusivamente, no tipo de relação que intercede entre agente e vítima, não havendo, ao nível interpretativo, de lançar mão, pois, de quaisquer critérios extra-típicos para aferir da subsunção de uma dada conduta violenta ao tipo do artigo 152º, nº 1. Tal posição, em nosso entendimento, e na linha do opinado no referido Manual CEJ-CIG, «terá a virtude de conferir maior segurança e homogeneidade na aplicação do direito, afastando a margem de incerteza e insegurança que hoje abunda e traduzida na prática generalizada de desqualificação inopinada de atos de violência doméstica em crimes de natureza diversa, muitas vezes de natureza semipública». [15] A vítima directa é aquela que, em primeira linha, sofre as consequências da actuação criminosa, com impacto na integridade do seu corpo ou mente, enquanto a vítima indirecta experiencia estas actuações e é também afectada por elas, mas de modo diferente, porque é atingida de modo enviesado e, por isso, sem a mesma intensidade ou gravidade. A criança que presencia, ouve ou percepciona a violência exercida por um dos progenitores contra o outro, com muito mais acuidade quando esses actos de violência são sistemáticos e se prolongam ao longo de meses e até anos, encontra-se numa situação de vitimização tão ou mais grave do que aquela que é vivenciada pelo próprio progenitor a quem são, em primeira linha, direccionados os atos violentos. Vem sendo notado que entre testemunhar a violência no seio familiar ou para-familiar e ser vítima de outro tipo de maus-tratos, que lhe sejam directamente dirigidos, existe uma confluência dos efeitos nefastos para a saúde mental da criança. È, pois, para nós muito claro que, ainda que a criança não seja destinatária imediata do ímpeto do agressor, poderá também ser ela vítima de violência doméstica, quando os actos violentos foram por si presenciados ou percepcionados, reclamando a sua situação uma análise e um tratamento adequados. [16] Recentemente, o Parlamento russo, a Duma, aprovou a descriminalização da violência doméstica com 380 votos contra três. A nova moldura legal não prevê penalizações nos casos em que “não existam lesões corporais graves” e quando não ocorram mais do que uma vez por ano e a violência doméstica passa de uma ofensa criminal a uma ofensa administrativa. Retrocessos civilizacionais estes! |