Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
168/07.5GBAGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE SIMÕES RAPOSO
Descritores: MEDIDA CONCRETA DA PENA
PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE.
Data do Acordão: 12/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ARGANIL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 40.º, 71.º E 58.º DO C.P..
DECISÃO: UNANIMIDADE.
Sumário: I. – A aplicação pelo tribunal de uma pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade ou qualquer outra, não constitui uma faculdade discricionária, antes se prefigura como um poder/dever ou um poder vinculado, tal como sucede com a suspensão da execução da pena, pelo que, uma vez verificados os respectivos pressupostos, o tribunal não pode deixar de aplicar a pena de substituição.
II. - A prestação de trabalho a favor da comunidade é “a criação mais relevante até hoje verificada do arsenal punitivo de substituição da pena de prisão”constituindo o seu marco distintivo essencial a imposição de um dever de “facere” prolongada no tempo, de efectuar uma prestação de facto continuada, de trabalhar, sem, contudo, limitar o direito à liberdade.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
O arguido …, solteiro, pedreiro, nascido a 24/02/1973, em Sé Nova, Coimbra, filho de … e de …, titular do B.I. n.º …, emitido a 21/06/2006,em Coimbra e residente no Bairro do Prazo, Arganil foi condenado como autor material de um crime de resistência e coacção a funcionário, p. e p. pelo art. 347º do C.Penal, na pena de 2 (dois) e 6 (seis) meses de prisão.
Foi ainda julgado parcialmente provado e procedente o pedido de indemnização civil deduzido por … e, em consequência, condenado o arguido a pagar àquele a quantia de € 277,00.
Inconformado com a pena aplicada, o arguido interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
1.ª O Recorrente praticou o crime de que vinha acusado;
2.ª O Recorrente confessou os factos, embora esta confissão não tenha abrangido em concreto a medida da força e da dificuldade dos agentes da G.N.R. em o dominarem;
3.ª A pena aplicável de 2 anos e seis meses de prisão efectiva é excessiva perante as circunstâncias do crime relatada;
4.ª A pena a aplicar ao Arguido pela prática do crime de resistência e coação sobre funcionário não deverá ser superior a um ano de prisão;
5.ª A execução desta pena de um ano deverá ser feita em regime de permanência na habitação, nos termos do artigo 44.º do Código Penal
6.ª Em alternativa, a execução daquela pena de prisão de um não deverá ser substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, ao abrigo do artigo 58.º do Código Penal;
7.ª A pena de prisão de um ano, executada em regime de permanência na habitação ou substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade realiza, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, quer de prevenção geral como especial;
8.ª O Arguido estando adstrito ao exercício de uma destas formas de execução da pena de prisão, sentirá o efeito dissuasor, da lei, reabilitando-se na sociedade.
9.ª Face ao exposto, deve o douto acórdão recorrido ser substituído por outro que reduza a pena aplicável ao Arguido ….
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Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público, pugnando pela improcedência do recurso, sintetizando a sua posição com as seguintes conclusões:
1. O arguido foi condenado em pena de prisão efectiva, pela autoria de um crime tipificado no artigo 347° nº 1, do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão.
2. Tal pena encontra-se ajustada e mostra-se adequada aos factos apurados em julgamento.
3. Além disso, o arguido tem sido insensível a penas não detentivas, como resulta das sucessivas condenações anteriores, sem qualquer resultado no seu comportamento.
4. A medida da pena e a escolha da mesma encontra-se de acordo com os parâmetros definidos pelos artigos 7° e 71°, do Código Penal.
Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, louvando-se da argumentação expressa na resposta à motivação e pronunciando-se no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso.
Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (artigos 419.º, n.º4 al. c), “a contrario”, e 421.º, n.º1, do mesmo diploma legal).
II – FUNDAMENTAÇÃO
É jurisprudência constante e pacífica (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).
Questões a decidir.
A questão a decidir limita-se à escolha e medida da pena do recorrente.
Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada (inexistindo factos não provados):
I – Na noite de 19 de Maio de 2007, cerca das 22h 45m, uma patrulha da G.N.R. do Posto de Arganil, composta pelos agentes, devidamente uniformizados, … e …, circulavam num jipe da Corporação pelas vias da Vila de Arganil, em missão de patrulha. Ao chegarem à rotunda dos Combatentes da Grande Guerra, em Gândara, Arganil, viram o arguido a discutir com ….
II – O agente … procurou acalmar o arguido exortando-o a pôr termo àquele comportamento. O arguido ignorou o que lhe foi dito e continuou a importunar e intimidar a dita …, e a dada altura avançou em direcção à … com o intuito de a atingir corporalmente, no que foi impedido pelo Agente ….
III – Nessa ocasião o agente … solicitou ao arguido os documentos de identificação, tendo este dito não os ter consigo.
IV – Foi-lhe, então, comunicado, por esse agente de autoridade, que estava detido e iria ser levado ao posto para ser identificado e lavrado o correspondente expediente. Nessa altura o arguido agarrou e puxou com violência a gravata e camisa do agente …, rasgando tais peças de vestuário, movimentando-se, esbracejando, dando pontapés, agarrando e desenvolvendo esforço físico para contrariar este militar da G.N.R. na sua acção.
V – Esta resistência do arguido à sua detenção e entrada no jipe que o levaria ao Posto da G.N.R., apenas foi vencida pelo emprego de força física, conjunta e concertada do agente … e do seu colega …, que o conseguiram algemar.
VI – Da conduta do arguido resultaram ferimentos no soldado da G.N.R. …, designadamente, no pulso esquerdo e dores nas costas.
VII – O soldado da G.N.R. … havia despendido cerca de € 25,00 na aquisição da camisa em causa, e cerca de € 2,00 na aquisição da gravata que trazia;
VIII – O arguido agiu sempre de livre, consciente e deliberada vontade, quis e conseguiu, atingir a integridade física do soldado … para obstar a que este e o seu colega observassem os procedimentos subsequentes àquela detenção e a que estavam legal e funcionalmente vinculados.
IX – O arguido sabia que o seu comportamento era contrário ao direito e que, assumindo-o, como o fez, incorria em sanções criminais.
X – O arguido já respondeu anteriormente e foi condenado pela prática dos crimes de furto qualificado, burla, introdução em lugar vedado ao público, falsificação de documento, detenção de material proibido, injúria agravada, desobediência e ofensa à integridade física simples, sendo certo que a condenação pelo último dos ilícitos em referência teve lugar por acórdão de 26.09.2006, transitado em julgado, e foi numa pena de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 anos.
XI – O arguido invocou ter feito uma cura de desintoxicação alcoólica há 2 meses atrás.
XII – O arguido vive com a sua companheira e mãe dos seus dois filhos menores, de 2 e 7 anos de idade, auferindo aquela quantia mensal de cerca de € 365,00, quantia que é neste momento o suporte económico principal deste agregado familiar, dado o arguido se encontrar desempregado há cerca de 4 meses a esta parte.
XIII – Em audiência de julgamento o arguido confessou quase integralmente os factos e ilícito de que vinha causado e que subsistiu por apreciar após a desistência de queixa no demais. 
Foi a seguinte a fundamentação expendida na sentença recorrida a propósito da escolha e determinação das medidas concretas da pena:
Importa para este efeito referir que a prática do ilícito em referência (resistência e coacção) é punível, em abstracto, com pena de prisão até 5 anos.
 Passando, agora, à determinação da medida concreta das penas, diremos o seguinte:
De acordo com o art.º 40º do Código Penal, as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e na reintegração do agente na comunidade. De qualquer forma, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Concretizando este princípio orientador, estabelece o art.º 71º do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor do agente ou contra ele.
Assim, no caso:
- a culpa assume a forma de dolo directo e intenso;
- as fortes necessidades de prevenção especial, atenta a personalidade do arguido designadamente a perigosidade inerente à mesma, que na circunstância se traduziu numa grande resistência e confronto físico com a entidade policial, inclusive com sequelas relevantes para um dos elementos desta;
- as necessidades de prevenção geral: medianas;
- a falta de arrependimento (como agravante);
- a sua situação pessoal de degradação da personalidade por factores exógenos, como sejam o consumo de bebidas alcoólicas e a actuação nesse quadro potenciador, acrescendo o passado criminal do arguido já com relevo assinalável, grande parte dele certamente recondutível à mesma causa, sendo certo que quanto aos factos ajuizados foi afirmado não ser visível o arguido encontrar-se alcoolizado;
- como atenuantes, a confissão (ainda que sem grande mérito para a descoberta da verdade material) que teve lugar e a sua condição económico social de grau médio/baixo 
Considerado este conjunto de circunstâncias, tendo em conta a moldura abstracta supra referida, afigura-se ajustada a imposição de uma pena de 2 anos e 6 meses de prisão, isto é, numa pena concreta que se situa no meio da moldura abstracta prevista, pois que o arguido apesar das sucessivas advertências e oportunidades que lhe têm sido concedidas nas e pelas anteriores condenações, parece continuar a não sentir o efeito punitivo pretendido, persistindo com a sua actuação desviante e desafiante ao sistema de justiça, em concreto traduzida numa reacção perante as forças da autoridade policial, plenamente injustificada e desproporcionada, e no período temporal em que se encontrava com uma anterior condenação em pena de prisão suspensa na sua execução.
Em sede de execução desta pena, por não se nos afigurar como possível um juízo de prognose favorável ao arguido no presente momento, o regime do cumprimento dessa pena de prisão será efectivo, mesmo a optar-se pelo regime incriminador e punitivo globalmente mais favorável que resulta da Revisão do Código Penal operada pela Lei nº 59/2007 de 4 de Setembro (cf. art. 2º, nº 4 do C.Penal).                                    
Devidamente compulsado o teor do acórdão recorrido constata-se não existir nenhum dos vícios de conhecimento oficioso[1] do art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal que estipula que “o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova”.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento[2].
Analisado o acórdão recorrido verifica-se que a factualidade dada como provada serve de suporte a uma decisão de direito conscienciosa e não se observa a necessidade ou pertinência de investigar qualquer outro facto ou circunstância com relevo para a decisão;
Também não existe contradição entre os factos provados, nem entre estes e os não provados; bem assim, a fundamentação não é contraditória, tal como existe concordância entre a fundamentação e a decisão;
Por fim, a convicção do tribunal a quo mostra-se consentânea com as regras da experiência comum e não viola qualquer critério legalmente fixado: não se decidiu contra o que se provou ou não provou, nem se deu como provado o que não podia ter acontecido.
Bem assim, não se verifica qualquer dos vícios da sentença (ou de acórdão), que determinam a nulidade da sentença, previstos no art. 379º do Código de Processo Penal, também de conhecimento oficioso[3], entendidos como deficiências da própria sentença enquanto acto processual autonomamente considerado, que se traduzem em desconformidade do acto decisório com os pressupostos, exigências, conteúdo necessário, ou modo de construção que a lei determina[4].
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Preceitua o art. 40º do Código Penal, que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (nº 2).
Abstractamente a pena é definida em função da culpa e da prevenção, intervindo, ainda, circunstâncias que não fazendo parte do tipo, atenuam ou agravam a responsabilidade do agente – art. 71º nºs 1 e 2 do Código Penal.
A função essencial da pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.
O seu limite máximo fixar-se-á, com respeito da salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.
O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.
Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.
Como refere Claus Roxin, em consonância com os princípios basilares no nosso direito penal, “a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação revelem como desenlace uma detenção mais prolongada.
A sensação de justiça, à qual corresponde um grande significado para a estabilização da consciência jurídico-penal, exige que ninguém possa ser castigado mais duramente do que aquilo que merece; e “merecida” é só uma pena de acordo com a culpabilidade.
Certamente a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, que também limita a pena pela medida da culpabilidade, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva.
A pena serve os fins de prevenção especial e geral. Limita-se na sua magnitude pela medida da culpabilidade, mas pode fixar-se abaixo deste limite em tanto quanto o achem necessário as exigências preventivas especiais e a ele não se oponham as exigências mínimas preventivas gerais[5].
De outra forma, pode dizer-se[6], que a culpa estabelece o máximo inultrapassável de pena concreta que é possível aplicar e a moldura de prevenção é definida entre o limiar mínimo abaixo do qual não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr em causa a sua função tutelar de bens jurídicos e de estabilização das expectativas comunitárias, e a medida máxima e óptima de tutela dos bens jurídicos e das mencionadas expectativas e que dentro desses limites, relevam as exigências de prevenção especial de socialização, procurando atingir contra-motivação suficiente para evitar a recidiva por parte do agente e a sua ressocialização.
Ao definir a pena o julgador não pode deixar de procurar entender a personalidade do arguido, para melhor determinar o seu desvalor ético-jurídico e a desconformidade com a personalidade suposta pela ordem jurídico-penal, exprimindo a medida dessa desconformidade a medida da censura pessoal do agente, e, assim, o critério essencial da medida da pena.
A submoldura da prevenção geral é fortemente influenciada pela importância dos bens jurídicos a proteger, desempenhando uma função pedagógica através da qual se procura dissuadir as consequências nocivas da prática de futuros crimes e conseguir o reforço da crença colectiva na validade e eficácia das normas, em ordem à defesa da ordem jurídica penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva.
Por sua vez, a prevenção especial positiva ou de socialização responde à necessidade de readaptação social do arguido.
Sustenta o Recorrentes que pela pratica do crime de resistência e coação sobre funcionário devia ter sido condenado em pena de um ano de prisão e que essa pena deveria ser executada em regime de permanência na habitação ou ser substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, assim reagindo contra o quantum da pena e contra a sua forma de execução.
Vejamos.
Da análise da sentença resulta que no tribunal a quo se seguiu um procedimento formal adequado de determinação das penas.
Definiu a moldura penal do crime – prisão até cinco anos – e ponderou o dolo directo e intenso, as necessidades de prevenção especial que qualificou como fortes, “atenta a personalidade do arguido designadamente a perigosidade inerente à mesma, que na circunstância se traduziu numa grande resistência e confronto físico com a entidade policial, inclusive com sequelas relevantes para um dos elementos desta”, as necessidades de prevenção geral medianas, a falta de arrependimento, “a situação pessoal de degradação da personalidade por factores exógenos, como sejam o consumo de bebidas alcoólicas e a actuação nesse quadro potenciador, acrescendo o passado criminal do arguido já com relevo assinalável, grande parte dele certamente recondutível à mesma causa, sendo certo que quanto aos factos ajuizados foi afirmado não ser visível o arguido encontrar-se alcoolizado” e como atenuantes, a confissão (ainda que sem grande mérito para a descoberta da verdade material) que teve lugar e a sua condição económico social de grau médio/baixo.
O tribunal fixou em dois anos e seis meses de prisão a pena pela prática do aludido crime de resistência e coacção sobre funcionário.
Colocámos a itálico os fundamentos da pena concreta constantes da sentença recorrida que se mostram indevidamente fundamentados.
Em primeiro lugar importa salientar a relativa pequena gravidade dos factos: afinal o arguido limitou-se a agarrar e puxar com violência a gravata e camisa do agente …, rasgando tais peças de vestuário, movimentando-se, esbracejando, dando pontapés, agarrando e desenvolvendo esforço físico para contrariar este militar da G.N.R. na sua acção (resistência que foi rápida e eficazmente vencida pelo emprego de força física, conjunta e concertada do agente … do seu colega …, que o conseguiram algemar).
Também a gravidade das consequências é francamente reduzida: apenas resultaram ferimentos no pulso esquerdo sem doença nem incapacidade para o trabalho, dores nas costas e estragos na camisa e na gravata do soldado da G.N.R. Alberto Amaral.
Trata-se, afinal, da situação de um indivíduo que encontrado à noite a discutir com uma senhora na via pública é abordado por dois militares da GNR e que perante a intervenção destes tem um pequeno confronto com pequenas consequências com um deles, prontamente terminada. É um incidente com indubitável relevância criminal, no entanto a não exigir uma reacção penal desproporcionada. Não se pode concluir por um grau elevado da ilicitude dos factos. É, pois, francamente descabida a qualificação da resistência e confronto físico como grandes e, bem assim, considerar como relevantes as sequelas que não se demonstrou que tenham originado dias de doença ou de incapacidade para o trabalho. Também a alusão infundamentada à personalidade perigosa do arguido (nem os seus antecedentes criminais permitem tal conclusão como adiante se verá) se mostra descabida.
Como circunstâncias agravantes pessoais refere o acórdão recorrido, por um lado a actuação num quadro potenciado pelo alcoolismo, por outro lado que não era visível que no momento dos factos estivesse alcoolizado e o assinalável passado criminal do arguido (grande parte certamente recondutível à mesma causa).
O Tribunal a quo faz afirmações que não são suportadas pela factualidade provada e não provada.
Os antecedentes criminais provados situam-se na área da pequena criminalidade, especialmente os mais recentes, sem notícia do cumprimento de nenhuma pena de prisão efectiva[7] sendo insuficientes para que se possa concluir pela perigosidade social do arguido, nem por tendências criminógenas.
Também o alcoolismo do arguido não resultou demonstrado com o sentido apenas negativo que consta da fundamentação da pena concreta. Apenas ficou assente (facto XI) que “o arguido invocou ter feito uma cura de desintoxicação alcoólica há 2 meses atrás”. Considerando que o Tribunal não deu como não provado que o arguido não tenha feito essa cura e que na fixação dos factos provados relativos às “circunstâncias vivenciais” do arguido se valorizou muito directamente …as “declarações do próprio”, o único sentido útil de considerar tal facto como assente é o de considerar que o arguido efectivamente fez uma cura de desintoxicação como invocou[8]. Subjacente à afirmação da cura, está a preexistência do alcoolismo[9], porém não pode o Tribunal deixar de assumir a relevância positiva em termos de ressocialização (prevenção especial positiva) da realização da desintoxicação para cura.  
O facto do arguido poder estar ou não estar influenciado pelo álcool no momento da prática dos factos não foi objecto de prova (não resulta dos factos provados ou não provados) pelo que não pode ser valorada nem positiva nem negativamente essa factualidade hipotética[10].     
Assim, reduzida a gravidade e o grau de ilicitude do facto, atenuadas as exigências de prevenção especial negativa por uma menor valoração da relevância do passado de pequena criminalidade ocasional do arguido e acentuando as possibilidades de ressocialização que uma desintoxicação potencia, mostra-se justa, adequada e necessária a imposição de uma pena de um ano de prisão pelo crime de resistência e coacção sobre funcionário, tal como peticionado.
O Recorrente pretende que a pena aplicada seja executada em regime de permanência na habitação ou substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade.
Arreda (não invoca sequer) a possibilidade da pena poder ser suspensa na sua execução (com ou sem regime de prova ou sujeição a condições).
A sentença recorrida entendeu que não era de suspender a execução da pena aplicada, nos termos do art. 50º do Código Penal, face ao passado criminal do arguido – solução que, está devidamente fundamentada e se mostra inteiramente razoável, tendo em vista as condenações já impostas e a prática deste crime no decurso do período de suspensão de outra pena.
E, perante a pena concreta aplicada pelo tribunal a quo mostrava-se suficiente e sumariamente justificada a razão da não suspensão da execução da pena de prisão aplicada, não se justificando nesse circunstancialismo, a alusão a qualquer outra pena de substituição.
Porém, perante a pena concreta encontrada por esta instância de recurso, importa não esquecer que existem outras penas de substituição da prisão, que não são de aplicação discricionária, mas antes obrigatória, desde que verificados os respectivos pressupostos.
Desde logo, no regime vigente à data da prática dos autos, nos termos do nº 1 do artigo 58º do Código Penal, “se ao agente dever ser aplicada pena de prisão em medida não superior a 1 ano, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade, sempre que concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
O tribunal não é livre de aplicar ou deixar de aplicar tal pena de substituição ou qualquer outra, pois não detém uma faculdade discricionária; antes, o que está consagrado na lei é um poder/dever ou um poder vinculado, tal como sucede com a suspensão da execução da pena, pelo que, uma vez verificados os respectivos pressupostos, o tribunal não pode deixar de aplicar a pena de substituição.
Impõe-se, por isso, a ponderação sobre se, em concreto é de substituir a pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade[11].
A prestação de trabalho a favor da comunidade é “a criação mais relevante até hoje verificada do arsenal punitivo de substituição da pena de prisão”[12]. O seu marco distintivo essencial é a imposição de um dever de “facere” prolongada no tempo, de efectuar uma prestação de facto continuada, de trabalhar[13], sem, contudo, limitar o direito à liberdade[14].
Adequa-se na perfeição às circunstâncias concretas do caso, ponderando que o arguido está actualmente desempregado e efectuou uma desintoxicação que é (pode ser) o primeiro de muitos passos no sentido da sua reinserção. Assim, o arguido poderá continuar o seu caminho de reabilitação, tornando-se novamente um cidadão socialmente útil.
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Para que o tribunal possa aplicar a prestação de trabalho a favor da comunidade é necessária a “aceitação do condenado”. Porém, tal requisito de natureza formal mostra-se satisfeito face à pretensão expressamente formulada nas conclusões de recurso: a iniciativa de requerer a aplicação dessa pena de substituição é do próprio arguido, nas alegações de recurso[15].
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No regime vigente na data da prática dos factos, antes das alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei 59/2007 de 4 de Setembro, a lei não estipulava a correspondência directa ou uma “pré-determinação” entre o número de dias de prisão e de horas de trabalho[16].
Todavia, a necessidade de objectivação e os critérios de equilíbrio e bom senso que devem presidir à escolha das penas justificam a existência prática de correspondência entre um dia de prisão e uma hora de trabalho. Tal regra admite, como é óbvio, a existência de desvios que se justifiquem perante as circunstâncias do caso.
In casu, não se vislumbram circunstâncias que justifiquem a adopção de critérios diferentes dos normais. Assim, a um ano de prisão hão-de corresponder 365 horas de trabalho a favor da comunidade.
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Também após as alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei 59/2007 de 4 de Setembro a pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade se mostra admissível, face à actual redacção do seu art. 58º, pelo que importa determinar o regime concretamente mais favorável, nos termos do art. 2º nº 4 do Código Penal.
Agora, a lei optou por uma solução intermédia quanto à fixação das horas de trabalho: cada dia de prisão equivale a uma hora de trabalho, com o máximo de 480 horas (a partir de 1 ano e 4 meses os condenados ficam todos igualados). Por outro lado, o tribunal pode cumular com a prestação de trabalho a favor da comunidade a aplicação de regras de conduta (as previstas para a suspensão da execução da pena)[17].
Constata-se assim que o número de horas de trabalho a fixar neste regime seria igual, por força da correspondência directa consagrada, embora agora se pudesse ponderar a aplicação de regras de conduta.
Consequentemente, não advém qualquer benefício para o Recorrente da aplicação do Código Penal na versão resultante das alterações introduzidas pela Lei 59/2007 de 4 de Setembro, aplicando-se, por isso, “a lei vigente no momento da prática do facto” (art. 2º nº 1 do Código Penal).
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência os Juízes da Secção Criminal desta Relação em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, em alterar a pena em que … é condenado para um ano de prisão, substituída por trezentos e sessenta e cinco horas de trabalho a favor da comunidade, mantendo-se, no mais, o acórdão recorrido.
O Tribunal a quo diligenciará pelo cumprimento do art. 496º do Código de Processo Penal.


[1] Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, no DR Iª série de 28.12.95. 
[2] Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., pg. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pg. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., pg. 77 e ss.
[3] Neste sentido a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça, conforme demonstra Vínicio Ribeiro, Código de Processo Penal – Notas e Comentários, pg. 802, 
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.9.05, no proc. 2634/05, da 3ª secção, sumariado em Sumários dos Acórdãos, ano 2005
[5] Derecho Penal - Parte General, Tomo I, Tradução da 2ª edição Alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Penã, Miguel Díaz Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas), pgs. 99/101 e 103
[6] Como Figueiredo Dias, “As consequências jurídicas do crime”, 1993, p. 238 e segs; e, entre muitos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-07-07, recurso 1610/07.
[7] O que resulta da ordem de colocação dos crimes e da ausência de referências a cumprimento de penas efectivas no facto provado X e foi confirmado pela consulta do CRC de fls. 54 a 64, embora a formulação genérica escolhida seja claramente deficiente e não permita perceber a verdadeira pequena dimensão do passado criminal do arguido (factos espaçados no tempo que não indiciam qualquer tendência).
[8] O que o arguido invoca é apenas o conteúdo de um meio de prova e este só se converte em facto provado se, analisado pelo Tribunal, for considerado credível e relevante para a decisão de mérito.
[9] Obviamente que o tribunal poderia concluir sobre a preexistência da doença (alcoolismo) com base na invocação de cura e, fundamentadamente, se fosse o caso, não dar por provada a desintoxicação. Contudo, não foi essa a decisão do tribunal a quo.
[10] Poderá ter sido referida por testemunhas, mas o Tribunal não se pronunciou sobre tal facto; não o tendo considerado relevante para definir o facto concreto em julgamento, não pode agora referir-se a esse aspecto como relevante para a determinação da medida da pena.
[11] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Junho de 2007, no proc. 07P2059, em www. dgsi.pt: “não se pode dizer que, se não estavam reunidos os pressupostos para a suspensão da execução da pena, também não estavam reunidos os pressupostos para a sua substituição nos termos do art. 58º do CP. O trabalho a favor da comunidade não tem a mesma natureza (salvo a de ser também uma pena de substituição), nem as mesmas exigências, nem obedece às mesmas práticas de reinserção social, que a suspensão da execução da pena. Por isso, nada garante que, não podendo as exigências de punição ser satisfeitas com a suspensão da execução da pena, não o possam ser com a prestação de trabalho a favor da comunidade”.
[12] Figueiredo Dias.
[13] “Um meio de redenção pela positiva”, como se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.11.05, no proc. 2203/05, em www.dgsi.pt traduzido no seu “conteúdo positivo de uma prestação à comunidade” como diz Jorge Gonçalves, “A Revisão do Código Penal: Alterações ao Sistema Sancionatório Relativo às Pessoas Singulares”, texto correspondente aos tópicos da intervenção nas Jornadas organizadas pelo CEJ sobre a revisão do Código Penal.
[14] Assim se distinguindo claramente da multa (que impõe uma obrigação pecuniária), da pena suspensa (que estabelece essencialmente uma obrigação de non facere, de não praticar crimes, subordinada ou não a condições e regras de conduta) e da prisão, prisão por dias livres, regime de permanência na habitação, regime de semidetenção (que sancionam, essencialmente, pela imposição de restrições à liberdade). 
[15] Neste sentido o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.11.05, no proc. 2203/05 e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.3.07, no proc. 0616227, ambos em www.dgsi.pt: a lei não exige o consentimento pessoal e presencial do condenado, bastando a formulação dessa pretensão em alegações de recurso.
[16] Foi esse o propósito expresso do legislador, como decorre das “Actas e Projecto da Comissão de Revisão do Código Penal”, MJ, 1993, pg. 57: “Frisou ainda o Senhor Professor Figueiredo Dias que não ocorre aqui uma perfeita equivalência entre o tempo de prisão e de prestação de trabalho. O juiz é reenviado para esta moldura penal (…) sem um juízo pré-determinado”.
[17] Como afirma Jorge Gonçalves, “A Revisão do Código Penal: Alterações ao Sistema Sancionatório Relativo Às Pessoas Singulares”, tópicos da intervenção nas Jornadas sobre a Revisão do Código Penal organizadas pelo CEJ