Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
890/22.6PBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
NULIDADE INSANÁVEL
Data do Acordão: 05/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO – J1)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: DECLARADO NULO O PROCESSO
Legislação Nacional: ARTS. 281º, 282, N.º 4, 495º, N.º 2, 119º, AL. C), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I. A revogação da suspensão provisória do processo não é automática, antes pressupõe uma culpa grosseira ou reiterada no não cumprimento das obrigações impostas ao arguido, dependendo, assim, de uma valoração da culpa do arguido no incumprimento verificado
II. Por se tratar de uma decisão que afeta pessoalmente o arguido, a revogação deve ser precedida da sua audição, em termos idênticos ao previsto para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, no art. 495º, n.º 2, do C.P.P., sob pena de nulidade, nos termos do art. 119º, al. c), do C.P.P.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: *


           Acórdão, deliberado em conferência, da 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I.

RELATÓRIO


  

            I. AA veio  interpor recurso da sentença proferida no processo abreviado nº 890/22.6PBCTB.C1, do Juízo Local Criminal de Castelo Branco – J..., Tribunal da Comarca de Castelo Branco, que o condenou pela prática de um crime de injúria agravado, p. p. pelos arts. 181.º, n.º 1 e 184.º, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal (na pessoa de BB), na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), num total de 500,00€ (quinhentos euros).


*


     I.1. Decisão recorrida (que se transcreve na parte com relevo).

“(…)O Tribunal, com relevo para a boa decisão da causa, julga provados os seguintes factos:

1) No dia 03.12.2022, pelas 4h45, os agentes da Polícia de Segurança Pública CC, com a matrícula n.º ...68, e BB, com a matrícula n.º ...38, encontravam-se no exercício das suas funções policiais, devidamente uniformizados e identificados, quando foram chamados ao uma ocorrência na Urbanização ....ºC, ... ....

2) Aí chegados, os agentes da Polícia de Segurança Pública CC e BB interpelaram o arguido AA para que esse se identificasse, ao que o mesmo respondeu dizendo que não sabia onde o tinha e, ato contínuo, disse aos referidos agentes: “Oh meus filhos da puta ide-vos embora que isto não é nada convosco!”, “Vão mas é para o caralho e para a puta da vossa mãe!”

3) De imediato os agentes da Polícia de Segurança Pública instaram o arguido AA a cessar aquele comportamento, sob pena de não o fazendo ser detido, pois aqueles factos constituíam a prática de um crime.

4) O arguido AA retorquiu dizendo ao agente da Polícia de Segurança Pública CC: “O que queres filho da puta?” e “A mim ninguém me identifica filho da puta”.

5) Ato contínuo, os agentes da Polícia de Segurança Pública deram voz de detenção ao arguido AA, quando este estava a ser manietado e algemado disse, mais uma vez ao agente CC: “Larga-me filho da puta, seu cabrão de merda, vou foder-vos a todos!”

6) Com a descrita conduta pretendeu o arguido AA o que conseguiu, atingir os agentes da Polícia de Segurança Pública CC e BB na respetiva honorabilidade e consideração, tanto pessoal como, sobretudo, profissional, bem sabendo que visava dois agentes da Polícia de Segurança Pública no exercício das suas funções e por causa destas e que essa circunstância lhe agravava a responsabilidade.

7) Acresce que o arguido AA não ignorava que CC e BB eram agentes da autoridade pública, no exercício das suas funções, assim como não ignorava que a sua conduta era proibida por lei.

8) O arguido AA agiu sempre livre deliberada e conscientemente, sabendo que tal conduta lhe estava vedada por lei e tendo capacidade de determinação segundo as legais prescrições, ainda assim não se inibiu de as realizar.

Mais se provou que:

9) O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos que lhe são imputados.

10) O arguido vive com a mãe, em casa arrendada, pela qual esta paga, mensalmente, 300,00€; encontra-se desempregado, desde setembro de 2023; não tem filhos; quando está a trabalhar, contribui para as despesas domésticas com metade do respetivo valor; paga, mensalmente, 275,00€, a título de empréstimo.

11) Por decisão proferida pelo Juízo Local Criminal de Castelo Branco – J..., em 04.07.2022, transitada em julgado em 19.09.2022, no âmbito do proc. n.º 41/22...., foi o arguido condenado pela prática, em 02.07.2022, de factos consubstanciadores de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 5,50€, num total de 385,00€, já extinta em 26.12.2022, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículo a motor, pelo período de 4 meses, já extinta em 19.01.2023. (…)


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    I.2. Recurso do arguido (conclusões que se transcrevem)

A. O MP deduziu acusação em processo abreviado e com intervenção de tribunal singular contra o arguido, ora recorrente.

B. A final, foi o recorrente condenado pela prática de um crime de injúria agravado, na pessoa de BB, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de EUR 5,00, no montante total de EUR 500,00.

C. No início da audiência, a defensora invocou a nulidade prevenida no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal,

D. Com fundamento na circunstância de o arguido, ora recorrente, não ter sido notificado para exercer o contraditório quanto à revogação da suspensão provisória do processo.

E. Com efeito, o Ministério Público, sem que tivesse notificado o recorrente para esclarecer as razões do incumprimento das injunções que lhe foram determinadas, concluiu pela verificação de incumprimento culposo das mesmas e, consequentemente, deduziu acusação para julgamento em processo abreviado.

F.               No entanto, o Tribunal recorrido considerou que “o arguido vem invocar a nulidade após terem decorrido cinco dias da notificação do despacho de encerramento do inquérito, afigurando-se que a invocação é manifestamente extemporânea, motivo pelo qual o tribunal dela não conhece.”

G. Mal andou o Tribunal recorrido.

H. De acordo com o artigo 120.º, n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal, “as nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas: d) Logo no início da audiência nas formas de processo especiais”.

I. O MP deduziu acusação em processo abreviado, nos termos dos artigos 391.º-A e seguintes, do Código de Processo Penal.

J. O processo abreviado é um processo especial, inserido no Livro VIII – Dos processos especiais - Título II.

K. Termos em que a invocação da nulidade não era “manifestamente extemporânea”, motivo pelo qual o Tribunal recorrido da mesma deveria ter conhecido, o que não fez.

L. O Tribunal recorrido violou, pois, o disposto nos artigos 120.º, n.º 2, alínea d), e n.º 3, 122.º, 282.º, n.º 4, alínea a) e 338.º, todos do Código de Processo Penal.

M. Face ao exposto, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que conheça a nulidade invocada, sendo, consequentemente, declarada a invalidade do despacho do MP que determinou o prosseguimento dos autos, deduzindo acusação, e dos atos processuais subsequentes dependentes da acusação deduzida, com exceção da nomeação de defensor.

(…)


*


                 I.3. Resposta do Ministério Público em 1ª instância: pronuncia-se pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.


*

            I.4. Parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação:

          

            Pronuncia-se nos seguintes termos (transcrição parcial):

«4. Ora, e seguindo o entendimento que, em consciência, vimos defendendo, cremos que a SPP, s.m.o., foi revogada na sequência de uma indevida tramitação processual, acima resumida em 2. b) e 2. c).

Na verdade, antes de proceder à revogação da mesma e deduzir acusação deveria o Ministério Público ter tido uma outra atitude, mais proativa, no sentido de averiguar a razão (ou razões) de ser do não cumprimento das injunções/regras de conduta impostas, pois, como se vem firmando na doutrina e na jurisprudência (e embora não haja norma expressa nesse sentido – cfr. artº 282º nº 4 do CPP3), a uma eventual revogação da SPP deverá aplicar-se o regime previsto no CP (cfr., maxime, os artº(s). 55º e 56 nº 1 a)) para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão: isto é, para que haja revogação de uma SPP, o incumprimento das injunções e regras de conduta terá de ser “grosseiro” - “o incumprimento não terá que ser doloso, mas deverá ser imputável pelo menos a título de negligência grosseira ao arguido” – ou então “repetidamente assumido”.

Ou seja, a constatação do incumprimento não pode implicar a revogação automática e

imediata da SPP, sob pena de estarmos perante uma responsabilização objetiva do arguido, tendo o Ministério Público o dever de averiguar as razões desse incumprimento, tendo em vista decidir se mantem a SPP (eventualmente, com outras regras de conduta e/ou injunções, prolongando-a no tempo4) ou se o processo segue para a fase de julgamento, só devendo tal acontecer se o comportamento do arguido for culposo ou repetido ([1]).

Como refere F. Gama Lobo, “há que avaliar o grau de culpa, antes de qualquer decisão

revogatória” (CPP Anotado, 4ª. ed., pág(s). 604), sob pena de violação do princípio da culpa e da própria dignidade da pessoa humana, pedras angulares e transversais a todo o ordenamento jurídico-penal ([2]) por respeito pelos direitos de defesa, designadamente pelo princípio do contraditório, como decorre da Constituição e da Lei, só assim se garantindo um processo penal justo e equitativo.

Ora, tendo em vista tal desiderato, a decisão do Ministério Público – manutenção da SPP ou respetiva revogação com prosseguimento do processo – teria de ser antecedida da audição presencial do arguido, com a assistência de defensor, até por se estar na iminência de ser tomada uma decisão que o poderia afetar pessoalmente (artº(s). 61º nº 1 b), 64º nº 1 b) e 495º nº 2 do CPP), como, efetivamente, veio a acontecer.

Tal não foi feito, estando-se perante a nulidade insanável prevista no artº 119º c) do CPP, a declarar oficiosamente, em qualquer fase do procedimento.

O silêncio do arguido nada nos diz sobre o seu “grau de culpa” no não cumprimento da injunções/regras de conduta impostas. Como refere J. Conde Correia[3], só um incumprimento das injunções e das regras de conduta total ou irremediável (além de culposo no sentido acima referido), um comportamento grosseiro e reiterado, que comprometa irremediavelmente os objetivos inerentes à decisão de SPP, poderá justificar a respetiva revogação ([4]), por se ter gorado, de forma definitiva, o juízo de prognose favorável inicialmente feito. Ora, tal apreciação, em juízo ponderado, só poderia ter sido feito, s.m.o., ouvindo o arguido, na presença do seu defensor, como acima foi defendido, o que não veio a acontecer, inquinando-se todo o processo desde então (artº 122º do CPP)[5]


*


II.

Objeto do recurso


          

O objeto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995) e outras questões de conhecimento oficioso.

São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, pelo que se ficam aquém, a parte da motivação que não consta das conclusões não é considerada, e se forem além também não são consideradas, porque a motivação das mesmas é inexistente ([6]).

Assim, são as seguintes as questões a decidir:

a)       Nulidade do processo por violação do contraditório; e

b)        Excessividade da pena aplicada.


*

III.

Conhecimento do recurso


A) Nulidade do processo:

Invoca o recorrente a nulidade a que se refere o art. 120º, nº 2, al. d), do Código de Processo Penal, por o arguido não ter sido notificado para exercer o contraditório no que respeita à revogação da suspensão provisória do processo.

Recorrendo à síntese processual bem evidenciada no parecer emitido pelo Sr. Procurador-geral Adjunto, importa considerar o seguinte histórico quanto à questão suscitada:

Ø O Ministério Público determinou a suspensão provisória do processo por despacho de 6.12.2022, pelo período de 5 meses, com a imposição das seguintes injunções/condições a cumprir pelo arguido:

- Prestar 85 (oitenta e cinco) horas de serviço de interesse público nos moldes a delinear pela Direção Geral de Reinserção e dos Serviços Prisionais;

- Realizar um pedido de desculpas formal, na presença da Magistrada titular dos presentes autos aos agentes da Polícia de Segurança Pública CC, com a matrícula n.º ...68, e BB, com a matrícula ...38.

Ø Tal despacho mereceu a concordância do juiz de instrução em 9.12.2022;

Ø O arguido requereu a alteração da primeira condição mencionada a 3.1.2023; foram proferidos despachos pela Sra. Procuradora da República de 6.1.2023 e de 23.2.2023, referentes a essa requerida alteração, e “falhada” esta (cfr. despacho de 23.3.2023), não foi feita por parte da Sra. Magistrada qualquer diligência no sentido de apurar as razões do incumprimento por parte do arguido das injunções/regras de conduta da SPP até à revogação da mesma e dedução de acusação, concretizadas em 6.7.2023;

Ø Assim, nesta última data a Sra. Procuradora da República titular do inquérito proferiu o seguinte despacho de revogação da suspensão provisória do processo:

«Nos presentes autos o arguido AA apesar de ter aceite a fls. 22-24 (referência 35280639) a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, não cumpriu todas as injunções de que dependia essa suspensão, designadamente, no período de duração da suspensão provisória do processo – 5 (cinco) meses:

i) prestar 85 (oitenta e cinco) horas de serviços de interesse público, em entidade beneficiária que venha a ser designada pela DGRSP, durante o período em que vigorar a suspensão;

b) Realizar um pedido de desculpas aos agentes da Polícia de Segurança Pública na presença da Magistrada titular dos presentes autos

Assim, nos termos do n.º 4, do artigo 282.º do Código de Processo Penal “O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas: a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; ou

b) Se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado”.

Ora, dos elementos juntos aos autos constata-se que o arguido não prestou as 85 (oitenta e cinco) horas de serviço de interesse público, em entidade designada pela Direção Geral de Reinserção e dos Serviços Prisionais, tendo requerido a substituição dessa injunção pela entrega de uma quantia monetária (fls. 43 – referência 3100695). Porém, o arguido e a sua Ilustre Defensora, quando notificado para esclarecerem o que entendessem por pertinente, designadamente a sua concordância com a injunção substituta nada disseram (fls. 46-47 – referência 35378125, 48 – referência 35389505, 49 – referência 35389514 e 50 – referência 3117275, 51 – referência 35562677, 52 – referência 35589597, 53 – referência 35589660, 54 e 55 – referência 3165151).

Face ao exposto, consideramos que o arguido AA incumpriu a injunção aplicada em sede de suspensão provisoria do processo e com a qual concordou, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 282.º do Código de Processo Penal. Mais se diga que cabia ao arguido vir aos autos comprovar/justificar o seu incumprimento.

Consequentemente determina-se a revogação da suspensão provisória do processo e o prosseguimento dos autos, nos termos do artigo 282.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal»

tendo, de seguida, deduzido acusação, em processo abreviado, por dois crimes de injúria agravada.

Ø A acusação foi recebida a 7.9.2023, tendo-se seguido, em 29.11.2023 a audiência de discussão e julgamento, sendo que nesta data o arguido veio invocar “a nulidade do processo, nos termos do art.º 120.º, n.º2 al d), quanto ao exercício do contraditório, para que o arguido se pronunciasse quanto ao incumprimento da suspensão do processo, antes de seguirem os autos para julgamento”, requerimento este que mereceu o seguinte despacho da Mª. Juíza a quo:

«Veio o arguido, nesta sede, invocar a nulidade prevista no art. 120.º, n.º 2 al. d), do C.P.Penal, por não lhe ter sido dado oportunidade de se pronunciar sobre o alegado incumprimento das injunções que lhe foram impostas no âmbito da suspensão provisória do processo, antes do M.º P.º proceder à revogação da suspensão e deduzir acusação.

O M.º P.º pronunciou-se no sentido de dever ser julgada não verificada a nulidade invocada.

Assim, cumpre apreciar e decidir.

Nos termos do art 120.º, n.º 2 al. d) do C.P.Penal, constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais, a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade. Não obstante, o n.º3 al. c) do mesmo art. estabelece que, tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, deve ser arguida até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito.

Assim sendo, verifica-se que o arguido vem invocar a nulidade após terem decorrido cinco dias da notificação do despacho de encerramento do inquérito, afigurando-se que a invocação é manifestamente extemporânea, motivo pelo qual o tribunal dela não conhece.

Notifique».

Ø O julgamento prosseguiu, tendo o arguido, em 6.12.2023, sido condenado pelo cometimento de um crime de injúria agravado, sendo ofendido o agente da PSP BB, já que, quando ao outro ofendido, o agente CC tinha havido desistência de queixa devidamente homologada (na sessão de 29.11.2023).

Estabelece o art. 282º, n.º 4, do Código de Processo Penal:

O processo prossegue e as prestações não podem ser repetidas:

a) Se o arguido não cumprir as injunções ou regras de conduta; ou

b) Se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado

O Ministério Público revogou a suspensão provisória do processo com fundamento no incumprimento pelo arguido não ter prestado as horas de serviço de interesse público determinadas, cuja substituição requereu, mais se referindo naquele despacho que «cabia ao arguido vir aos autos comprovar/justificar o seu incumprimento».

Vejamos:

A suspensão provisória do  processo, prevista no art. 281º do Código de Processo Penal, aplicável a crimes de reduzida gravidade, visa a obtenção de uma solução de consenso e oportunidade, por via da aceitação pelo arguido do cumprimento de certas injunções e/ou regras de conduta, comprometendo-se o Ministério Público, caso essas sejam cumpridas, a desistir da pretensão punitiva e a arquivar o processo. Para garantir a conformidade constitucional à competência atribuída ao Ministério Público para a imposição das injunções e regras de conduta, exige ainda a lei a intervenção do juiz de instrução ([7]).

Para o seu decretamento, o instituto em causa exige o cumprimento do contraditório, assistindo ao arguido o direito a ser ouvido e a expressar as suas razões antes de tomada a decisão, bem como a concordância ainda do assistente e do próprio juiz de instrução – art. 281º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal.

O mesmo sucede quanto à revogação da suspensão provisória determinada, uma vez que do n.º 4 do art. 282º do Código de Processo Penal, transcrito, se não extrai a automaticidade da revogação uma vez que se verifique um dos fundamentos previstos na lei. É que a revogação pressupõe uma culpa grosseira ou reiterada no não cumprimento das obrigações impostas ao arguido, dependendo, assim, de uma valoração da culpa do arguido no incumprimento verificado ([8]).

Deste modo, verificado o incumprimento impõe-se ao Ministério Público averiguar as razões, de modo a aferir a existência de culpa do arguido e a sua medida e ponderar, seguidamente, se a suspensão provisória do processo deve ser prorrogada, modificada ou revogada, em termos semelhantes ao previsto para a suspensão da execução da pena de prisão (arts. 56º e 57º do Código Penal).

Conforme refere Maia Costa ([9]), “O incumprimento deverá ser culposo, ou repetido, em termos idênticos aos que o Código Penal prevê para a revogação da suspensão da pena, no art. 56º, n.º 1, a). Ou seja, o incumprimento não terá que ser doloso, mas deverá ser imputável pelo menos a título de negligência grosseira ao arguido; ou então repetidamente assumido (…)

Assim, a constatação do incumprimento não pode conduzir automaticamente à “revogação” da suspensão, devendo o Ministério Público (ou o juiz de instrução, se a suspensão tiver sido decretada nessa fase) indagar das razões do incumprimento, em ordem a decidir-se pelo prosseguimento do processo para julgamento ou pelo decurso do prazo da suspensão, consoante apure haver, ou não, comportamento culposo, ou repetido, por parte do arguido”.

E Paulo Pinto de Albuquerque: “O incumprimento das condições da suspensão pode ocorrer infringindo o arguido grosseira ou repetidamente as injunções e regras de conduta (…). Não há revogação automática da suspensão provisória do processo, pois ela depende de uma valoração da culpa do arguido no incumprimento. O critério estabelecido é o do incumprimento das injunções e regras de conduta com culpa grosseira ou reiterada do arguido, tal como prevê o art. 56º do C.P.” ([10]).

Entendemos ainda que o incumprimento poderá determinar, em alternativa à revogação da suspensão provisória do processo, um agravamento das regras de conduta impostas ou a imposição de outros deveres, à semelhança do previsto no art. 55º, al. c), do Código Penal para a suspensão da execução da pena, exigindo-se ali a concordância do Ministério Público, do arguido, do assistente e do juiz de instrução.

Certo é que para aferir os motivos e grau de culpa do arguido no incumprimento das regras de condutas impostas se mostra imprescindível a sua audição, no pleno cumprimento do direito constitucional ao contraditório plasmado no art. 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa: por se tratar de uma decisão que afeta pessoalmente o arguido, a revogação deve ser precedida da sua audição, em termos idênticos ao previsto para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, no art. 495º, n.º 2, do Código de Processo Penal ([11]).

Ou seja, a audição do arguido prévia à revogação tem de ser pessoal, nos exatos termos previstos a norma vinda de citar.

Só deste modo se cumpre plenamente o direito ao contraditório, consagrado ainda no art. 61º, n.º al. b), do Código de Processo Penal, por manifestamente se tratar de uma decisão do tribunal que afeta diretamente o arguido, que verá ser contra si deduzida acusação e, em consequência, ser sujeito a julgamento crime.

No caso, o arguido não foi por qualquer forma ouvido previamente ao despacho que revogou a suspensão provisória do processo. Mais: o arguido requereu a alteração de uma regra de conduta e sobre tal requerimento não houve pronúncia. Mostra-se, pois, violado o princípio do contraditório.

Importa agora extrair as consequências da referida omissão.

Desde logo, recorde-se que o art. 118º, n.º 1, do Código de Processo Penal estabelece o princípio da taxatividade das nulidades.

O recorrente defende que se trata da nulidade secundária prevista no art. 120º, n.º 2, al. d), do Código de Processo Penal.

Dispõe esta norma que “Constituem nulidades dependentes de arguição, além das cominadas noutras disposições legais, d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade”.

Salvo o devido respeito, não se dirige a norma que prevê a nulidade secundária e sanável transcrita a casos de não audição obrigatória do arguido ([12] ).

Na verdade, constitui direito do arguido, entre outros, “Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomas qualquer decisão que pessoalmente o afete”.

Nem se diga que por se tratar de ato de inquérito, da competência do Ministério Público, se não encontra abrangida a audição do arguido previamente à revogação da suspensão provisória do processo: o ato encontra-se, como se viu, sujeito a amplo contraditório, pois pode afetar a posição do arguido, não havendo qualquer razão para limitar aquele direito aos atos praticados exclusivamente pelo juiz, deixando que o Ministério Público decidisse atos de inquérito suscetíveis de afetar o arguido sem o ouvir, em violação direta do princípio do contraditóri0 consagrado na Constituição da República Portuguesa (art. 32º, n.ºs 1 e 5).

Deste modo, entendendo nós que é ao caso aplicável a norma que estabelece o procedimento com vista à revogação da suspensão da execução da pena, mormente a audição presencial do arguido prevista no art. 495º, n.º 2, do Código de Processo Penal, ao ter sido proferido o despacho que revogou a suspensão provisória do processo foi cometida a nulidade insanável prevista no art. 119º, al. c), do Código de Processo Penal ([13]).

A nulidade cometida é de conhecimento oficioso, devendo ser declarada em qualquer fase do processo.

A consequência encontra-se prevista no art. 122º, n.º 1, do Código de Processo Penal: a invalidade do ato praticado bem como dos que se lhe seguiram – o que se determinará.

Pelo exposto, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.


*

III.

DECISÃO


Nos termos expostos, no provimento do recurso, declara-se nula a decisão proferida em inquérito pelo Ministério Público de 6.7.2023 que revogou a suspensão provisória do processo, que deve ser precedida da audição do arguido, bem como todos os atos processuais posteriormente praticados.

     

Sem tributação.


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Coimbra, 8 de maio de 2024

Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora – processei e revi)

Rui Pedro Lima (1º adjunto)

João Novais (2º adjunto)


[1] Cfr. Maia Costa, CPP Comentado, A. Henriques Gaspar e outros, 2022, 4ª. ed. rev., pág(s). 957 e 958, § 6 e 8
[2] Cfr., de forma desenvolvida, João Conde Correia, Comentário Judiciário do CPP, III, 2021, pág(s). 1125 e ss., § 15 e ss.
[3] Ob. e loc. cit
[4] Atentas também as consequências – nos planos substantivo e adjetivo - que a revogação de uma SPP
implica.
[5] Como se decidiu na douta DS de 2.1.2024 deste V. TRC (proferida no NUIPC 174/22.0GCCTB.C1):
“No caso em apreciação, não foi concedido ao arguido o direito básico de exercer o efetivo contraditório relativamente às razões do alegado incumprimento da injunção em causa, o que afeta de forma grave os seus direitos, tendo em conta a consequência daí decorrente, traduzida no prosseguimento dos autos, com a respetiva submissão a julgamento, uma vez que não tendo sido designada data para audição do arguido, nem se tendo procedido à audição presencial da mesma antes de ser proferida a decisão que determinou o prosseguimento dos autos para julgamento.
Tal redunda na violação do art art.61.º, n.º 3 do C.P.P. e ainda do 32º da C.R.P.
Essa omissão implica a verificação da nulidade insanável da ausência do arguido em caso em que a lei exige a respetiva comparência prevista no art.119º, al.c), do C.P.P, pois a sua ausência impossibilitou o exercício do direito de defesa, sendo que as garantias que a lei prevê só se podem tornar efetivas com a sua audição pessoal, tornando nulo, de forma insanável, o ato em que essas garantias não tenham sido respeitadas. O que significa que em casos tais se comete a nulidade prevista no art.119º, al.c), do C.P.P..
A consequência é a prevista no art.122º, nº1, do mesmo diploma, ou seja, a invalidade do ato praticado bem como dos que dele dependerem.
Assim sendo, e face ao disposto no art.122º do C.P.P., impõe-se declarar a nulidade da decisão recorrida e dos atos que a antecederam, como seja a decisão de revogação da SPS”.
[6] v. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, págs. 335-336.
[7] Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/87, publicado no DR, I Série, 1º suplemento, de 9.2.1987.
[8] No mesmo sentido, cf. Acórdão da Relação de Évora de 11.5.2021, rel. Laura Goulart Maurício, proc. 579/19.3T9EVR.E1, em www.dgsi.pt
[9] Em “Código de Processo Penal Comentado”, 2ª ed., pág. 946
[10] Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., pág. 768.
[11] Cf. João Conde Correia, “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, tomo III, págs. 1135-1136; v. ainda o Ac. desta Relação de 12.5.2021, rel. Helena Bolieiro, proc. 48/19.1GBGRD.C1, em www.dgsi.pt e a demais doutrina e jurisprudência aí referidas.
[12] Remetemos aqui para Paulo P. Albuquerque, ob. cit., págs. 320-321.
[13] No mesmo sentido, cf. o Ac. da RE cit; no sentido de se tratar de nulidade secundária, o Ac. da RC, rel. Helena Bolieiro, cit.; no sentido de se tratar de irregularidade, cf. Ac. da Rel. de Lisboa de 7.3.2024, rel. José Castro, em www.dgsi.pt ; no sentido de uma omissão de pronúncia na sentença, o Ac. desta Rel. de Coimbra de 11.10.2023, rel. Jorge Jacob, igualmente em www.dgsi.pt