Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA JOSÉ GUERRA | ||
Descritores: | HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA CONDUÇÃO PERIGOSA PERDÃO CUMPRIMENTO DA PENA RESIDUAL NA HABITAÇÃO | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 06/05/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA – J1) | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | LEI N.º 38-A/2023; ART. 43º DO CÓDIGO PENAL | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | O legislador, ao fixar como pressuposto formal da aplicação das várias penas substitutivas que legislou teve em vista apenas os agentes punidos com penas originárias não superiores às medidas nelas previstas, sendo indiferente, para esse efeito, que a pena a cumprir fique aquém desse limite por força de qualquer perdão concedido por leis de clemência. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | * * Recurso Proc. 13/17.3PTCLD.C2 Juízo Local Criminal das Caldas da Rainha – Juiz 1 Tribunal Judicial da Comarca de Leiria
Acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra
I-Relatório 1. No Processo Singular Nº 13/17...., do Juízo Local Criminal das Caldas da do Rainha – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, foi sujeito a julgamento o arguido AA, vindo a ser condenado nos seguintes termos, que se transcrevem: (…) Julgo a acusação integralmente procedente, por provada e, consequentemente, a) Condeno o arguido AA pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 13.º, 15.º, 30.º, n.º 1, 69.º, n.º 1, al. a), 131.º e 137.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão efetiva. b) Condeno o arguido AA pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos art.ºs 30.º, n.º1, 69.º, n.º 1, al. a) e 291º, n.º 1, al. b), todos do Código Penal, com referência aos artigos 27.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1, al. c), do Código da Estrada, na pena de 5 (cinco) meses de prisão efetiva. c) Em cúmulo jurídico, condeno o arguido AA na pena única de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão efetiva. d) Condeno o arguido na pena acessória de proibição de conduzir, pelo período de 2 (dois) anos, nos termos do disposto no art.º 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal. e) Condeno o arguido na pena de interdição de concessão de novo título de condução pelo período de 3 (três) anos. (…)”
* 2. Inconformado com decidido, veio o arguido AA interpor recurso da sentença para este Tribunal da Relação de Coimbra, o qual, por acórdão datado de 25.10.2023, negou provimento ao mesmo. * 3. Após baixa definitiva do processo ao Tribunal da 1ª instância, veio o arguido, por requerimento apresentado em 2.11.2023 (Refª 1022.0869), requerer que, ao abrigo dos art. 2º, n.º 1, e 3º, n.º 1 e 4, todos da lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, fosse declarado o perdão de 1 (um) ano de prisão relativamente à pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão que lhe foi aplicada no âmbito dos presentes autos, fixando- se a mesma em 1 (ano) e 9 (nove) meses de prisão, e que, quanto a esta, se decidisse a sua substituição pela obrigação de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, nos termos do art. 43º, n.º 1, do Código Penal, e, ainda, que ao abrigo do disposto no art. 43º, n.º 3, do Código Penal, fosse autorizada a ausência todos os dias de segunda-feira a sexta-feira, entre as 8:45 e as 13:15 horas, com exceção dos dias feriados, até 16/01/2024, de modo a que possa continuar a exercer a sua atividade profissional e, assim, auferir o respetivo rendimento, contribuindo deste modo para a manutenção da sua inserção social e profissional. * 4. Sobre tal requerimento incidiu o seguinte despacho, datado de 21.12.2023, que se transcreve: “Nos presentes autos, o Arguido AA foi condenado, por decisão transitada em julgado a 09-11-2023, pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos artigos 13.º, 15.º, 30.º, n.º 1, 69.º, n.º 1, al. a), 131.º e 137.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal, e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelos artigos 30.º, n.º 1, 69.º, n.º 1, al. a) e 291.º, n.º 1, alínea b), todos do Código Penal, por referência aos artigos 27.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1, alínea c), do Código da Estrada, na pena única 2 anos e 9 meses de prisão efetiva. * A Lei n.º 38.º-A/2023, de 02 de agosto, estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude. Neste sentido, para o que aqui releva, prevê o artigo 3.º do referido Diploma que: «Perdão de penas 1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos. 2 - São ainda perdoadas: a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão; b) A prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa; c) A pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição; e d) As demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova. 3 - O perdão previsto no n.º 1 pode ter lugar sendo revogada a suspensão da execução da pena. 4 - Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única. 5 - O disposto no n.º 1 abrange a execução da pena em regime de permanência na habitação. 6 - O perdão previsto no presente artigo é materialmente adicionável a perdões anteriores.». Por outro lado, o artigo 8.º, n.º 1, da Lei citada, dispõe que o referido perdão é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada. Ademais, encontra-se consagrado no artigo 2.º o âmbito temporal e subjetivo de aplicação da Lei, abrangendo os ilícitos praticados até às 00h00m do dia 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos à data da prática do facto. No caso sub judice, os factos foram praticados a 23-12-2017, sendo que o Arguido nasceu a ../../1992, tendo 25 anos de idade à data da prática dos factos. Analisado o artigo 7.º constata-se, contudo, que o crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto no artigo 291.º do Código Penal, se encontra excluído da aplicação da Lei n.º 38.º-A/2023, de 02 de agosto, o que já não sucede, porém, com o crime de homicídio por negligência previsto no artigo 137.º do Código Penal. Assim, é aplicável a da Lei n.º 38.º-A/2023, de 02 de agosto, sendo que, mo que respeita à forma como opera o perdão, atendendo que se está perante uma pena única, deve ser feito o desconto do perdão de um ano, pelo crime não excluída pelo referido diploma, na pena única, sem que seja refeito ou desfeito o cúmulo jurídico (respeitando-se, pois, o trânsito em julgado da sentença). Esta é também a intenção do legislador ao consagrar que «em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única» - cf. artigo 3.º, n.º 4, da Lei n.º 38.º-A/2023, de 02 de agosto. De referir que os argumentos expendidos pelo Ministério Público para não aplicação da Lei não colhem já que se pelo legislador fosse pretendido excluir o homicídio negligente, praticado em determinadas circunstâncias, assim o teria feito, não podendo o julgador ir para além da letra da Lei, nem sendo possível, aqui, qualquer tipo de interpretação extensiva, uma vez que nem sequer existe qualquer cláusula aberta ou conceito indeterminado (quanto ao crime de homicídio negligente ou o crime de condução perigosa de veículo rodoviário) que permita tal conclusão. Diga-se, ademais, que a lista de crimes excluída é exaustiva, sendo possível a conclusão de que o legislador elencou efetivamente todos os crimes que pretendia excluir da aplicação da Lei. Por tudo o exposto, nos termos dos artigos 2.º, 3.º e 7.º, a contrario, decide-se perdoar 1 ano de prisão da pena única em que o Arguido AA foi condenado, determinando-se o cumprimento do remanescente da pena de prisão em que foi condenado, de 1 ano e 9 meses de prisão. Notifique, sendo o Arguido da condição resolutiva constante do artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 38.º-A/2023, de 02 de agosto, para a morada do Termo de Identidade e Residência. Remetam-se os boletins ao Registo Criminal – cf. artigo 6.º, n.º 1, alínea f), da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio. * Quanto ao pedido realizado pelo Arguido, de ponderação do cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação, diga-se que não é possível ao Tribunal avaliar tal pedido, tendo em conta o trânsito em julgado da decisão condenatória que determinou o cumprimento da pena de prisão em estabelecimento prisional, tendo-se esgotado, quanto a este ponto, o poder jurisdicional deste Tribunal para apreciar tal questão. Destarte, nada a determinar quanto a forma de execução da pena de prisão, que se deverá manter tal como já determinado. * Compulsados os autos, constata-se que o Arguido foi devidamente notificado da sentença que o condenou na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, bem como do Acórdão que confirmou tal decisão. Não obstante, o Arguido nada disse, nem se apresentou voluntariamente para cumprimento da pena de prisão, tendo a decisão da execução da pena de prisão transitado em julgado. Destarte, não se vislumbrando que o Arguido se irá dirigir voluntariamente ao estabelecimento prisional, emita mandados de detenção do Arguido AA e mandados de condução ao estabelecimento prisional, nos termos do artigo 478.º do Código de Processo Penal, para cumprimento de 1 ano e 9 meses de prisão. Solicite ao órgão de polícia criminal competente da área do domicílio do Arguido a realização da detenção e respetiva condução. Mais solicite ao órgão de polícia criminal para que notifique o Arguido para que proceda à entrega da sua carta de condução, para cumprimento da pena acessória.” * 5. De novo inconformado com o decidido em tal despacho no tocante ao indeferimento do cumprimento da pena em regime de permanência na habitação, veio o arguido, por requerimento apresentado em 22.02.2024 (Refª 10444051), interpôr recurso para este Tribunal da Relação, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões que que transcrevem: “1) Entendeu o Tribunal recorrido não poder apreciar o requerimento do Arguido em que o mesmo pedia, na sequência da aplicação ao seu caso concreto do perdão de pena de um ano de prisão estipulado na amnistia determinada pela Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, que a parte restante da pena de prisão em que foi condenado seja cumprida em regime de permanência da habitação, por considerar que tal questão estaria abrangida pela decisão condenatória, já transitada em julgado, que determinou o cumprimento da pena em estabelecimento prisional. 2) Não assiste, no entanto, razão ao Tribunal recorrido, pois como o Arguido referiu no seu requerimento, só após a aplicação do perdão de um ano de pena de prisão resultante da amnistia prevista na Lei n.º Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, é que a pena em que o Arguido foi condenado se tornou inferior a 2 anos prisão, e assim eventualmente ilegível para cumprimento em regime de permanência na habitação (Cfr. art. 43º, n.º 1, al. a) do CP), motivo pelo qual a decisão sobre tal questão nunca poderia estar abrangida pelo trânsito em julgado da decisão condenatória, uma vez que sendo a aplicação do art. 43º, n.º 1, al. a) do CP legalmente impossível face à pena de prisão originalmente aplicada ao Arguido, a eventual aplicação desta norma legal ao caso sub judice não era sequer equacionável antes da aplicação do perdão resultante da amnistia; 3) E mesmo que assim não fosse, o requerimento para cumprimento de pena de prisão em regime de permanência na habitação ao abrigo do art. 43º do CP pode ser efectuado a todo o tempo, enquanto a pena de prisão não se encontrar extinta (Cfr. douto acórdão do TRP, proferido no Proc. n.º 559/14.5PBMTS.P1, em 15-02-2019, disponível em www.dgsi.pt); 4) Impõe-se por isso analisar e decidir a possibilidade de deferir o requerimento do Arguido no sentido do cumprimento da pena em que foi condenado em regime de permanência na habitação, sob pena de assim não se entendendo - como fez o Tribunal a quo - se incorrer em incorrecta interpretação do disposto no art. 613º, n.º 1 do CPC (aplicável ex vi art. 4º do CPP), e em consequente violação do disposto no art. 2º, n.º 4, do CP (aqui invocado por analogia) que consagra o princípio da aplicação da lei mais favorável ao Arguido, e do disposto nos arts. 18º e 29º, n.º 4, da CRP, que consagram o princípio da mínima restrição dos direitos, liberdades e garantias, ilegalidade e inconstitucionalidade estas que aqui expressamente se invocam; 5) E, fazendo tal ponderação, impõe-se concluir que o cumprimento da pena em regime de permanência da habitação é legalmente possível (Cfr. art. 43º, n.º 1, al. a) do CP) e será suficiente para impedir o Arguido de reincidir, acautelando assim os receios de possível reincidência expressos na fundamentação da douta sentença condenatória, pelo que o indeferimento desta pretensão do Arguido constituiria uma aplicação de uma pena de prisão efectiva desnecessária, e por isso em violação ao disposto nos arts. 18º, n. 2 e 29º, n.º 4, da CRP, que consagram o princípio da mínima restrição dos direitos, liberdades e garantias, ilegalidade, e que aqui expressamente se invocam; 6) A pena de prisão efectiva é uma sanção a aplicar em última ratio, quando nenhuma outra sanção é suficiente ou adequada, o que como já acima se demonstrou não sucede no caso em apreço, em que o cumprimento de pena em regime de permanência na habitação é suficiente para satisfazer as necessidades de prevenção (Cfr. douto acórdão proferido pelo TRP em 02-11-2011, no processo n.º 150/08.5GACDR.P1, disponível em www.dgsi.pt); 7) Não tendo o Arguido antecedentes criminais, o caso em apreço constitui o primeiro contacto do mesmo com o sistema de justiça penal, pelo que não há motivo para considerar que o efectivo cumprimento de pena privativa da liberdade, ainda que em ambiente não prisional, não seja suficiente para o levar a corrigir o seu comportamento, satisfazendo assim suficientemente as finalidades da pena; 8) Deve por isso ser o recurso julgado procedente, revogando-se o douto despacho recorrido e substituindo-se o mesmo por douto acórdão que defira o requerimento do Arguido, no sentido de lhe ser permitido cumprir a pena de prisão em que foi condenado em regime de permanência na habitação, sujeito às necessárias medidas de vigilância e controlo à distância (Cfr. art. 43º, n.º 2, do CP), e com autorização para exercer a sua actividade profissional (Cfr. 43º, n.º 3, do CP) como fiel de armazém, todos os dias úteis das 09:00h às 13:00h, e períodos de 10-15 minutos para as deslocações de e para o local de trabalho (Cfr. requerimento do Arguido de 06-11- 2023, e contrato de trabalho aí junto como Doc. n.º 1); 9) Em face de tudo o acima exposto, deve igualmente ser revogada a decisão recorrida na parte em que ordena a emissão de mandados para detenção do Arguido e sua condução a estabelecimento prisional, substituindo-se a mesma por douto acórdão que revogue e dê sem efeito os referidos mandados, caso os mesmos já tenham sido emitidos. Nestes termos e nos demais do Direito aplicável, deve o recurso ser julgado procedente, decidindo-se no sentido preconizado nas conclusões que antecedem, com o que se fará a costumada Justiça.” * 6. Admitido o recurso, a ele respondeu a Digna Magistrada Ministério Público, concordando com o entendimento sufragado no despacho recorrido no sentido de que o momento para aferir da aplicação do cumprimento da pena em regime de permanência na habitação é o da aplicação da pena, e, estando esta transitada em julgado, não pode neste momento o tribunal apreciar tal possibilidade, aduzindo, ainda que, mesmo que assim se não entendesse, a gravidade dos factos praticados, as consequências do facto ilícito, bem como a própria conduta do arguido ( que mantêm uma postura de falta de arrependimento e de consciência da ilicitude), impõem que a pena seja cumprida em regime de prisão efetiva, em estabelecimento criminal. Concluindo no sentido de ser negado provimento ao recurso. * 7. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser negado provimento à pretensão formulada no recurso interposto pelo arguido, com base nos seguintes fundamentos, que se transcrevem: “ (…) conforme foi já referido na Resposta apresentada pelo Ministério Público em 1ª instância, não existe qualquer base legal para que tal eventual substituição da modalidade de execução da pena aplicada ao arguido possa ser apreciada na actual fase processual, uma vez proferida (e até transitada) a decisão que condenou o arguido numa pena de prisão a executar em meio prisional – tal como não havia base legal para que essa decisão de eventual substituição da modalidade de execução da pena aplicada ao arguido fosse proferida na sequência da superveniente necessidade de cumprimento duma pena de prisão inferior aos limites previstos na anterior redacção do art. 44º do C. Penal, em caso de revogação da suspensão da respectiva execução, até o legislador introduzir tal possibilidade na alínea c) do nº 1 do actual art. 43º desse mesmo Código, através da Lei 94/2017, de 23-8. Não se justifica, assim, ponderar a eventual aplicabilidade da execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação apenas por uma circunstância superveniente à condenação do arguido ter tornado a duração da pena a cumprir inferior ao limite que possibilitaria a aplicação desse regime, tal como se não justificava ponderá-la, até à referida alteração legislativa, apenas por ser supervenientemente necessário executar uma pena inferior a esse mesmo limite (nem se justificaria sequer fazê-lo, após a prolação da decisão condenatória, nos casos actualmente previstos na alínea b) do nº 1 do art 43º do Código Penal e, antes disso, nas correspondentes disposições da anterior redacção do art. 44º desse mesmo Código, se o legislador não tivesse previsto expressamente essa possibilidade). Está aqui em causa, com efeito, a possibilidade de aplicação duma pena que, pese embora seja de substituição, não deixa de estar sujeita ao regime de estrita legalidade que é imposto pelo nº 3 do art. 1º do C. Penal e reflectido na alínea a) do art. 468º do Código de Processo Penal; regime esse que se deve considerar abranger eventual modificação da pena anteriormente aplicada, inclusive no que se refere ao momento processual no qual será (ou não) possível efectuar tal modificação, sem que seja admissível recorrer à analogia para justificar o recurso a modalidades de execução de penas em moldes que não tenham sido expressamente previstos pelo legislador, ainda que em presumível benefício do arguido, ou a pedido do mesmo.” * 8. Cumprido o Art. 417º, nº2 do CPP, o arguido respondeu ao parecer, reiterando o alegado no recurso. * 9. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência. * II- Fundamentação A) Delimitação do Objeto do Recurso Dispõe o art. 412º, nº1, do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”. Definindo-se o objeto do recurso pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, nas quais deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido, sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (Cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, pág. 340, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição, 2009,pág. 1027 a 1122, Simas Santos, in Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103). Assim, no caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão a decidir reconduz-se à de saber se, em relação a pena residual de prisão resultante da aplicação do perdão, pode ser ponderado o cumprimento em regime de permanência na habitação * * B) Decisão Recorrida Com vista ao conhecimento da questão objeto do presente recurso que vem de enunciar-se, cumpre ter presente o que consta do despacho recorrido, supra transcrito, que, na parte com interesse para o efeito, se prende com o facto de nele ter sido decidido não ser de avaliar o pedido de cumprimento em regime de permanência na habitação em relação à pena residual resultante da aplicação do perdão emergente da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, com fundamento em que ocorreu o trânsito em julgado da decisão condenatória que determinou o cumprimento da pena de prisão em estabelecimento prisional, tendo-se esgotado, quanto a este ponto, o poder jurisdicional do Tribunal para apreciar tal questão, determinado a manutenção, quanto à forma de execução da pena de prisão aplicada ao arguido, do que havia sido determinado. * C) Apreciação do recurso Como se vê do que resulta do relatório supra a questão que se coloca para apreciação deste Tribunal de recurso prende-se com a possibilidade de ponderar em relação à pena residual de prisão resultante da aplicação do perdão o respetivo cumprimento, em regime de permanência na habitação. Retenha-se que, nos presentes autos, o arguido e ora recorrente AA foi condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 13.º, 15.º, 30.º, n.º 1, 69.º, n.º 1, al. a), 131.º e 137.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão efetiva e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos art.ºs 30.º, n.º1, 69.º, n.º 1, al. a) e 291º, n.º 1, al. b), todos do Código Penal, com referência aos artigos 27.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1, al. c), do Código da Estrada, na pena de 5 (cinco) meses de prisão efetiva, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão efetiva. Tal condenação resultou da sentença proferida nos presentes autos que veio a ser confirmada por acórdão deste Tribunal da Relação, prolatado em 25.10.2023. Posteriormente, por despacho prolatado nos autos em 21.12.2023, em resultado da ponderação da aplicação do perdão emergente da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, veio a ser declarado perdoado 1 ano da referida pena única e determinado que o arguido cumprisse a pena residual, de 1 ano e 9 meses de prisão, em estabelecimento prisional, por se entender que nada havia a determinar quanto à forma de execução dessa pena de prisão, em virtude de se ter esgotado, quanto a este ponto, o poder jurisdicional do Tribunal. Dissentindo deste entendimento, pretende o arguido que, estando verificados agora os pressupostos previstos no art. 43º do Código Penal, deve ser decidido o cumprimento da referida pena de 1 ano e 9 meses de prisão em regime de permanência na habitação e não, como decidido, em estabelecimento prisional. Na abordagem da questão assim colocada pelo arguido no âmbito do presente recurso, cumpre ter presente que a verificação dos pressupostos formais previstos no art. 43º do C. Penal para o almejado cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação surge, apenas, na sequência na ponderação do perdão emergente da Lei 38-A/2023, visto que a dosimetria da pena única originariamente aplicada nos autos ao arguido ( 2 anos e 9 meses de prisão ), por ser superior a 2 anos de prisão, não reunia os pressupostos previstos nas alíneas a) a c) do nº1 do citado art. 43º do C.P. Assim sendo, a questão que, desde logo, importa equacionar prende-se com a de saber se, não estando verificado o pressuposto formal de que depende a aplicação das penas de substituição da pena de prisão (multa, trabalho a favor da comunidade, cumprimento em regime de permanência na habitação e suspensão da execução a pena ) no momento em que se decide no processo a pena de prisão a aplicar ao arguido, podem essas penas de substituição vir, posteriormente, a ser ponderadas nas circunstâncias que se desenham nos autos, ou seja, em que, fruto da aplicação do perdão cabível aquela pena de prisão decidida originariamente, tal pressuposto passe a verificar-se. O primeiro óbice que antevemos para a resposta negativa que se impõe a tal questão tem que ver com o facto da decisão quanto à substituição da pena de prisão ser, no processo de determinação da sanção, necessariamente anterior à decisão quanto à aplicação do perdão e de, por isso, ser no momento em que se decide a aplicação da pena de prisão que devem aferir-se, face à concreta medida desta, os pressupostos de que depende a aplicação de qualquer uma das penas de substituição que no caso se possam equacionar. Nesse sentido escreveu-se no ac. do STJ, de 19-04-2006, Processo n.º 06P655, disponível em www.dgsi.pt. em relação à pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão que «a aplicação do perdão só pode ser decidida após escolha e fixação da medida da respectiva pena, pelo que a decisão sobre se deve ou não ser suspensa a execução da pena de prisão tem de ser proferida antes da aplicação do perdão, sendo que a eventual suspensão da execução de uma pena de prisão após aplicação de um perdão implicaria, no caso de condenação definitiva, a violação do caso julgado.» Entendimento este que, a nosso ver, não pode deixar de valer igualmente para os casos em de decisão da pena de substituição de prisão em regime de permanência na habitação. No caso em vertente, como vem de dizer-se, a pena originária - de 2 anos e 9 meses de prisão – não permitia aquando a respetiva ponderação o seu cumprimento em regime de permanência na habitação, por inobservância do pressuposto formal previsto no art. 43º do C. Penal, uma vez que é superior a 2 anos de prisão, pressuposto esse que, só após a declaração do perdão de 1 anos, passou a verificar-se em relação à pena residual que veio a ser decidida– de 1 ano e 9 meses de prisão. Vem sendo entendido, pacífica e uniformemente, na doutrina e da jurisprudência, que o legislador, ao fixar como pressuposto formal da aplicação das várias penas substitutivas que legislou teve em vista apenas os agentes punidos com penas originárias não superiores às medidas nelas previstas, sendo indiferente, para esse efeito, que a pena a cumprir fique aquém desse limite por força de qualquer perdão concedido por leis de clemência. Assim é que, no Ac. do STJ atrás citado, se decidiu que: “I- A suspensão da execução da pena de prisão consubstancia uma pena autónoma cuja aplicação está dependente de um pressuposto de natureza formal traduzido na duração da pena que é objecto da mesma. II. A pena a ter em conta para decidir a suspensão é a pena efectivamente aplicada e não a pena residual resultante da aplicação do perdão. “ E, em igual sentido, se decidiu no Ac. do STJ de 17-05-2000,publicado na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano de 2000, tomo II, página 197. “ (…) III. Não é possível suspender-se a execução de pena de prisão superior a 3 anos, ainda que ela fique reduzida a menos, por virtude do perdão decretado”. Também no Ac. da Relação do Porto, de 07-11-2001, Processo nº 0140715, disponível em www.dgsi.pt., se defendeu a mesma posição: “Condenado o arguido na pena única de quatro anos de prisão, a posterior redução desta pena para três anos de prisão, por efeito do perdão concedido pela Lei n.29/99, de 12 de Maio, que a transformou em pena residual ou remanescente, não pode ser tomada em consideração para efeitos de suspensão de execução da pena, por não se verificarem os pressupostos do artigo 50 n.1 do Código Penal, desde logo o pressuposto formal de pena não superior a três anos, o qual se reporta à pena aplicada e não à pena residual. Por outro lado, a verificação do pressuposto material, ou seja, o prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente, só teria cabimento em sede de julgamento e não na decisão incidental de aplicação do perdão de pena. A suspensão de execução da pena de prisão é uma pena de substituição.” Entendimento este que, continua a vir a ser acolhido, como disso são exemplos os seguintes arestos, disponíveis in www.dgsi.pt: - do TRL, de 07.05.2024, Proc. 863/17.0PBMTA.L2-5, no qual se decidiu que numa pena de 2 anos e 10 meses de prisão efetiva que, à data da condenação não admitia a execução ou a sua substituição por regime de permanência na habitação, nos termos previstos no artigo 43.º do Código Penal, tendo sobre ela incidido o perdão de um ano, não pode haver lugar à aplicação de regime de permanência na habitação, por não se encontrar preenchido um dos seus pressupostos, que é o de a pena de prisão aplicada não ser superior a 2 anos de prisão; - do mesmo TRL, de 9.04.2024, Proc. 206/22.1GASXL-B.L1-5, em cujo sumário se escreve: «(…) II–No art.º 43 do CP, o legislador fixou como pressuposto formal da aplicação desta pena de substituição as situações ali elencadas, não tendo nelas incluído as situações de penas de prisão remanescente inferiores a 2 anos, sendo por conseguinte indiferente, para esse efeito, que a pena a cumprir fique aquém desse limite por força de qualquer perdão concedido por leis de clemência. III–A aplicação do perdão não pode modificar a natureza nem a medida de uma pena.» - do TRP, de 23-01-2024, Proc. 1420/11.0T3AVRBU.G1, no qual se decidiu que está sedimentado na doutrina e na jurisprudência, que a pena a ter em conta para decidir a suspensão é a pena efetivamente aplicada e não a pena residual resultante da aplicação do perdão. - do mesmo TRP, de 04-05-2022, Proc. nº 537/15.7TXPRT-K.P1, no qual se decidiu que “ só no caso de o condenado ter sido objecto de uma condenação em pena de prisão efectiva em medida não superior a dois anos é que se pode determinar logo na decisão condenatória que a mesma poderá ser executada no regime de permanência na habitação. Se a intenção do legislador fosse a de que o regime de permanência na habitação se aplicasse ao caso de cumprimento de penas de prisão remanescente inferiores a 2 anos, seguramente o teria expressamente previsto em alínea a incluir no referido nº 1 do artigo 43º do C. Penal.” - do TRE, ac. de 02.07.2019, no qual se sustenta que o regime de permanência na habitação a que se reportam as alíneas a) e b) do nº1 do art. 43º do C. Penal na versão introduzida pela Lei 94/2017 de 23.08, “ continua a configurar-se como pena de substituição detentiva ou em sentido impróprio, na medida em que, supondo a prévia determinação concreta da pena de prisão e sendo decidida na sentença condenatória, tal como as penas de substituição em sentido próprio, não substitui a pena de prisão por outra pena, antes substitui a forma paradigmática de execução da pena de prisão (em estabelecimento prisional) pelo seu cumprimento em meio não prisional…” No sentido o entendimento que vem sendo expendido, e do qual perfilhamos, igualmente aponta a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 90/XIII que esteve na génese da alteração do Código Penal, introduzida pela Lei n.º 94/2017, de 23 de Agosto, na qual se refere: “ Vinca-se, por um lado, a sua natureza de regime não carcerário de cumprimento da pena curta de prisão e alarga-se, por outro lado, a possibilidade da sua aplicação aos casos em que a prisão é concretamente fixada em medida não superior a dois anos, quer se trate de prisão aplicada na sentença, de prisão resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º do Código Penal, ou de prisão decorrente da revogação de pena não privativa de liberdade ou do não pagamento da multa previsto no n.º 2 do artigo 45.º do mesmo diploma. Fora deste quadro fica a prisão subsidiária prevista no artigo 49.º, atendendo à sua natureza e função peculiares. Não obstante, o procedimento atual em matéria de aplicação de penas à pequena criminalidade não é substancialmente alterado. O juiz continuará a proceder a uma dupla operação. Verificado que tem perante si um crime provado e concretamente punido com pena de prisão até dois anos, começará por determinar se é adequada e suficiente às finalidades da punição alguma pena de substituição (multa, suspensão da execução, trabalho a favor da comunidade) ou se é necessário aplicar a pena de prisão. Nesta última hipótese, ficam à sua disposição duas possibilidades de execução, pela ordem seguinte: ou em regime de permanência na habitação, ou dentro dos muros da prisão, em regime contínuo.” Sentido este que não abarca a situação em vertente nos autos, pois, ao contrário do que pretende o recorrente esta não cabe na previsão legal contida no art. 43º do C. Penal, ao contrário daquela que o mesmo traz à colação, em discussão no ac. do TRP, de 15.01.2019, Proc. 559/14.5PBMTS.P1, disponível in www.dgsi.pt, porquanto nesta a pena de prisão originariamente decidida foi de 6 meses de prisão, pelo que, em relação à mesma, nada obsta a que, como nele se decidiu “ o condenado em pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade, pode enquanto a pena de prisão não estiver extinta, requerer ao abrigo do artº 43º1 c) CP a sua execução em regime de permanência na habitação.” Por tudo quanto se deixa exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando-se a decisão recorrida. * * III- Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em: 1. Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida. 2. Condenar o arguido nas custas do recurso, fixando-se a taxa de justiça em 4UCs (Art. 513º nº1 CPP, 8º nº9 do RCP e Tabela III a este anexa). * * Coimbra, 5 de junho de 2024
( Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP )
(Maria José Guerra – relatora) (Cândida Martinho– 1ª adjunta) (Rosa Pinto – 1ª adjunto)
|