Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | ALCINA DA COSTA RIBEIRO | ||
| Descritores: | PRESSUPOSTOS DA CONCESSÃO DA LIBERDADE CONDICIONAL A MEIO DA PENA PREVENÇÃO GERAL E PREVENÇÃO ESPECIAL DEFESA DA ORDEM JURÍDICA E DA PAZ SOCIAL | ||
| Data do Acordão: | 12/11/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA - JUÍZO DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA - JUIZ 2 | ||
| Texto Integral: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 40.º, N.º 1, E 42.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL ARTIGO 2.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE EXECUÇÃO DAS PENAS E MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE | ||
| Sumário: | I - Os pressupostos da concessão da liberdade condicional a meio do cumprimento da pena devem ser contextualizados à luz das finalidades de reintegração e protecção dos bens jurídicos e das finalidades da execução das penas e medidas de segurança privativas da liberdade.
II - Em sede de prevenção especial há que ponderar se, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, se pode fundadamente formular um juízo de prognose favorável no sentido de que o recluso, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, só podendo a liberdade condicional só pode ser concedida quando se conclua pela positiva. III - Há, também, que considerar as exigências de prevenção geral, traduzidas na compatibilidade entre a libertação do condenado e a defesa da ordem jurídica e da paz social e se a libertação do condenado não assegurar o sentimento geral da vigência da norma penal violada com a prática do crime ela não deve ser concedida. IV - Tais requisitos são de natureza cumulativa, demonstrativos do carácter excepcional da concessão da liberdade condicional nesta fase. V - A consideração das circunstâncias do caso relevam em sede de juízo sobre as repercussões que a libertação do recluso terá na sociedade em geral. VI - Se, apesar dos factos provados revelarem um empenho do recluso no processo de readaptação social e na interiorização do desvalor dos factos praticados, o modo como os crimes cometidos foram praticados e as consequências que deles advieram, pela violência que acarretaram, são causa de indignação social que vai para além da que normalmente é sentida relativamente ao tipo de ilícitos em causa, e a personalidade do arguido, revelada nesses factos, revestir especial gravidade, geradora de insegurança, intranquilidade públicas, medo e repulsa, exigindo do Estado uma resposta adequada que reforce a confiança da sociedade no sistema de justiça, resulta que a libertação do condenado a meio da pena é incompatível com a defesa da ordem da jurídica e da paz social, porque defraudaria a confiança da comunidade no funcionamento do sistema penal. VII - À libertação condicional a meio da pena não basta a formulação de um juízo de prognose favorável no sentido de que em liberdade o recluso não cometerá novos crimes, sendo, também, necessário garantir à comunidade que as penas legalmente aplicadas são para cumprir, em especial quando estão em causa valores tão estruturantes da sociedade, com segurança e a tranquilidade públicas e a vida. | ||
| Decisão Texto Integral: | …
I. RELATÓRIO 1. Em 9 de agosto de 2024, o tribunal a quo denegou a liberdade condicional do recluso, AA …, decisão contra a qual se insurge, através do presente recurso, pelas razões que enuncia nas conclusões que se transcrevem: «I. O condenado ora recorrente cumpre uma pena de 5 anos e 6 meses de prisão à ordem do processo n.º 917/21...., sendo este o seu primeiro confronto com o sistema judicial. II. Encontra-se recluído desde o dia 20/11/2021, sendo que atingiu a metade da pena no dia 20/8/2024 … III. Realizado o Conselho Técnico, (com exclusão do Sr. Diretor do EP), todos emitiram parecer favorável à concessão da liberdade condicional, o mesmo acontecendo com o MP que também emitiu parecer favorável. IV. Destarte, o Tribunal a quo considerou que “no que concerne às exigências de prevenção geral, que aqui não podem ser desconsideradas, há que referir que é nosso entendimento serem as mesmas absolutamente impeditivas da concessão da liberdade condicional neste momento da execução da pena”. V. Não pode, porém, o recorrente concordar com esta visão do Tribunal que coloca um peso acrescido à prevenção geral, descurando a prevenção especial, contrariando as finalidades da liberdade condicional. VI. A liberdade condicional tem como objetivo “criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão”, com imposição de regras de conduta e/ou regime de prova e a implementação de um plano de reinserção social. VII. Destarte, para além disto, a liberdade condicional também tem como finalidade “adaptar a duração do cumprimento da pena à evolução do réu no estabelecimento prisional, estimulando-o, ao mesmo tempo, para que oriente o seu destino, durante o cumprimento, em prol de um comportamento positivo”. VIII. Estas questões visam dar cumprimento às chamadas necessidades de prevenção especial, que se prendem diretamente com o condenado, a sua personalidade, o seu comportamento no estabelecimento prisional, o seu plano de vida futura no exterior, o apoio que o mesmo tem. IX. Vertendo para ao caso em apreço, o …, tal como se refere na decisão ora colocada em crise, “vem mantendo um percurso prisional adequado, assente numa postura normativa e com investimento ao nível formativo; que demonstra evolução ao nível da responsabilização pelos ilícitos praticados e consciência da gravidade dos mesmos; que dispõe de apoio familiar no exterior e de um projeto laboral para abraçar; e que já iniciou o seu processo de aproximação ao exterior sem incidentes conhecidos”. X. Aliadas às necessidades de prevenção especial, temos as necessidades de prevenção geral, tal como as define a alínea b) do n.º 2 artigo 61.º do CP, ou seja, “b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social”. XI. Refere a decisão que as exigências preventivas do tipo de crime, “reclamam, do ponto de vista da reafirmação da validade e da vigência das normas violadas, acrescidas expetativas ao nível do cumprimento efetivo da punição”. XII. O recorrente não coloca em causa a gravidade dos factos que cometeu, deles tendo plena consciência e pelos quais está profundamente arrependido; no entanto e como bem se refere no acórdão já citado “.... Simplesmente, não se vislumbram aqui especiais preocupações nessa matéria, a não ser as normais para casos deste tipo, as quais, porque apenas centradas na gravidade objetiva dos crimes cometidos, tiveram já a sua avaliação em sede própria, isto é, aquando da análise da culpa e das penas inerentemente aplicadas, pelo que, e tal como sustentava o recorrente, trata-se de aspetos que não descura e do que tem plena consciência, mostrando-se arrependido, mas que foram já devidamente refletidas na condenação e nas concretas penas aplicadas, não podendo preconizar-se aqui uma dupla punição da conduta”. XIII. Como é entendimento predominante da jurisprudência, o cumprimento das necessidades de prevenção geral, devem-no ser na perspetiva da personalidade revelada pelo condenado, e não apenas pela gravidade do tipo de crime praticado. XIV. Negar a liberdade condicional ao meio da pena, com base nessa perspetiva das exigências de prevenção geral (que são comuns a qualquer crime de homicídio na forma tentada) significaria, em termos práticos, afirmar que a liberdade condicional está vedada nesses crimes, o que não resulta minimamente da lei. XV. Acresce ainda que, embora o recorrente tenha consciência que hoje é pacifico que a compatibilidade da liberdade condicional com a defesa da ordem e da paz social referida na al. b) do nº2 do art. 61º C. Penal, não deve ser aferida apenas por referência ao meio social onde o crime foi cometido, ou onde vivia o agente, ou onde se prevê que o agente passe a viver, tal tem necessariamente de ser tipo em conta e devidamente valorado, e não foi, pois consta do relatório elaborado pela DGRSP que “no meio social de residência, onde sempre viveu com o agregado de origem, o recluso dispõe de uma imagem positiva, sendo reconhecido como pessoa trabalhadora e dedicada à família, pelo que o seu regresso e reinserção se afiguram facilitados. Nas saídas de que já beneficiou foi bem acolhido”. XVI. A sociedade não se irá sentir defraudada com a concessão da liberdade condicional ao recorrente, por saber que essa concessão de liberdade é, efetivamente condicional, ou seja, passível de controlo e passível de ser revogada; a sociedade começou logo a ver a reparação da danosidade social com a aceitação e confissão dos factos, que equivale ao reconhecimento da validade e vigência da norma pelo recorrente. XVII. E de resto, e embora não seja vinculativo para o tribunal, todos os intervenientes com assento na reunião do Conselho Técnico (menos o Diretor do EP), bem como o MP expressaram o seu voto favorável à concessão da liberdade condicional do ora recorrente, o que não deixa de ser sintomático da sua franca evolução positiva e associada expectativa de que o mesmo terá já condições para não voltar a delinquir. XVIII. Entende o recorrente, assim como entenderam o MP e a maioria do conselho técnico que é possível formular um juízo de prognose favorável no sentido de que o condenado, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes. ….». 2. O Digno Magistrado do Ministério Público, em primeira instância, defendeu o provimento do recurso. 3. Nesta Relação, o Digno Procurador – Geral Adjunto, no parecer que antecede, pronuncia-se no sentido da improcedência do recurso. 4. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre, agora, decidir.
II. A DECISÃO RECORRIDA O despacho sindicado tem o seguinte teor: « I (…) II – Fundamentos … Nos termos do disposto no art. 61.º do C.Penal, são pressupostos formais (adoptamos a terminologia de Sandra Oliveira e Silva, A Liberdade Condicional no Direito Português: Breves Notas, Revista da FDUP - A.1, 2004, pág. 366) de concessão da liberdade: a) Que o recluso tenha cumprido metade da pena e no mínimo seis meses (condiciona-se a libertação condicional ao cumprimento de uma parte substancial da sanção decretada na sentença condenatória de modo a salvaguardar as exigências irrenunciáveis de prevenção geral, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico, a que o tribunal atende na determinação da medida concreta das reacções criminais); b) Que aceite ser libertado condicionalmente. São, por outro lado, pressupostos materiais ou requisitos substanciais indispensáveis: c) Que, fundadamente, seja de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer crimes; d) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social (exceptuado o disposto no nº 3 do preceito em causa). No que respeita aos pressupostos materiais da liberdade condicional, o da al. c) satisfaz razões de prevenção especial, traduzidas numa “prognose favorável quanto à futura condução da sua vida”, enquanto que o da al. d) prossegue um escopo de prevenção geral positiva, traduzida “na compatibilidade da libertação com a defesa da ordem jurídica e da paz social” (António Latas, Intervenção Jurisdicional na Execução das Reacções Criminais Privativas da Liberdade – Aspectos Práticos, Direito e Justiça, vol. especial, 2004, pág. 223). Reunidos os pressupostos formais, a concessão da liberdade condicional está dependente, em primeiro lugar, de um pressuposto subjectivo essencial, caracterizante da fácies político-criminal do instituto: o juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do delinquente no meio social. A expectativa de que o condenado, uma vez em liberdade, “conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes”, configura-se como pressuposto inultrapassável, por expressa previsão legal: se não existir, a liberdade condicional não poderá ser concedida. … O juízo de prognose depende do conhecimento tanto quanto possível perfeito das grandezas que condicionam o comportamento criminoso: a individualidade humana com todas as suas incógnitas e o mundo social com todos os seus imprevistos. A previsão da conduta futura do indivíduo delinquente (prognose criminal individual) deve assentar na análise dos seguintes elementos: a) As concretas circunstâncias do caso; b) vida anterior do agente; c) A sua personalidade; d) A evolução desta durante a execução da pena de prisão. * Verificado um juízo favorável sobre o comportamento futuro do delinquente, a liberdade condicional só não será concedida se tal se revelar incompatível “com a defesa da ordem e da paz social”. Este requisito material reflecte o endurecimento das teses doutrinais quanto à execução das penas e à necessidade de ponderar o alcance social da concessão da liberdade condicional. Embora mantendo, como regra geral, a libertação após o cumprimento da pena, o legislador faz depender o funcionamento do instituto do respeito por exigências de prevenção geral de integração, a que se liga, em decorrência do disposto no art. 40.º n.º 1 do C.Penal, uma ideia de protecção de bens jurídicos. De facto, a sanção criminal mantém e intensifica, através de uma actuação preventiva sobre a generalidade dos seus membros do corpo social, a confiança nas normas do ordenamento jurídico, e por aí, as condições indispensáveis ao livre desenvolvimento da personalidade e os valores ético-culturais impressos na tabela axiológica da Lei Fundamental (Sandra Oliveira e Silva, ob. cit., págs. 380 e 381). * Posto isto, vejamos o caso concreto dos autos:
A) Da verificação dos pressupostos formais O recluso cumpre a pena única de 5 anos e 6 meses de prisão, imposta no proc. 917/21...., pela prática, de um crime de homicídio simples na forma tentada e de um crime de detenção de arma proibida. Considerando a liquidação da pena, são relevantes os seguintes marcos temporais para efeitos de liberdade condicional: - Meio da pena: 20.08.2024; - Dois terços: 20.07.2025; - Termo: 20.05.2027. * Mostram-se verificados os pressupostos formais para a apreciação da liberdade condicional por referência ao meio da pena, uma vez que o recluso declarou aceitar a sua eventual libertação condicional. *** B) Dos pressupostos materiais Considerando os elementos existentes nos autos, em especial, a certidão da decisão condenatória, a ficha biográfica e o certificado de registo criminal do recluso, os relatórios elaborados pela reinserção social e pelos serviços prisionais, os esclarecimentos prestados pelo conselho técnico e as declarações do recluso, podem dar-se como provados os seguintes factos: AA nasceu a ../../1996, em .... 1. … 2. … 3. Em liberdade o recluso pretende vir a retomar esta actividade, sendo que o contrato de trabalho constante dos autos se mantém em vigor. 4. Em termos de enquadramento sociofamiliar e habitacional, o recluso pretende residir com os pais … e com a namorada …, que integra o agregado desde 2019; em habitação própria dos pais – moradia de construção moderna e inserida no espaço rural na aldeia … 5. No meio social de residência, onde sempre viveu com o agregado de origem, o recluso dispõe de uma imagem positiva, sendo reconhecido como pessoa trabalhadora e dedicada à família, pelo que o seu regresso e reinserção se afiguram facilitados. 6. A situação económica do agregado é referenciada como equilibrada; … 7. Não se verificam problemáticas de saúde de relevo; o recluso admite consumos de haxixe até à reclusão, … 8. Em meio prisional encontra-se a frequentar um curso EFA B3, com dupla certificação em operador de informática e uma formação modular certificada em língua espanhola. 9. Não exerce função laboral, porquanto se encontra a privilegiar a frequência escolar. 10. Frequentou a formação em “Educação de Pares”, com investimento e integra as respectivas reuniões. 11. Globalmente manifesta um comportamento adequado, isento de infracções disciplinares. 12. Beneficia de visitas regulares dos familiares e da companheira, … 13. Ascendeu a RAI em 17.04.2024, tendo beneficiado já de duas licenças de saída jurisdicional e uma licença de saída de curta duração, as quais decorreram sem registo de incidentes. 14. Relativamente aos crimes, reconhece a gravidade dos seus actos e das consequências que os mesmos poderiam ter desencadeado; revela evolução ao nível da responsabilização criminal, assumindo já que, quando disparou a arma, tinha noção de que não se encontrava em situação de perigo e que não actuou como forma de defesa própria ou de terceiros; refere ter actuado de forma consciente, mas imponderada; verbaliza arrependimento. 15. Para além da condenação cuja pena se encontra a cumprir, o recluso não tem averbadas quaisquer outras condenações no seu certificado de registo criminal. No que respeita à análise dos pressupostos materiais, e tal como supra expendido, a concessão da liberdade condicional no presente momento (por referência ao meio do cumprimento da pena) depende tanto da satisfação de exigências de prevenção especial (reinserção do condenado e prevenção da reincidência) como de exigências de prevenção geral (no sentido da pena já cumprida ser sentida pela comunidade como suficiente para a protecção dos bens jurídicos e para a reinserção do condenado; reforçando o sentimento prevalecente de que a norma violada mantém a sua validade e vigência), sendo tais requisitos de natureza cumulativa, demonstrativos do carácter excepcional da concessão da liberdade condicional nesta fase. Considerando os factos relevantes supra descritos, bem como, atendendo aos pareceres do Conselho Técnico e do Ministério Público, cumpre apreciar e decidir. Apesar de estarmos diante de um recluso que vem mantendo um percurso prisional adequado, assente numa postura normativa e com investimento ao nível formativo; que demonstra evolução ao nível da responsabilização pelos ilícitos praticados e consciência da gravidade dos mesmos; que dispõe de apoio familiar no exterior e de um projecto laboral para abraçar; e que já iniciou o seu processo de aproximação ao exterior sem incidentes conhecidos – circunstâncias que, conjugadas entre si, são idóneas a mitigar as exigências de prevenção especial; aí radicando o parecer maioritariamente favorável do Conselho Técnico e o parecer favorável do Ministério Público – no que concerne às exigências de prevenção geral, que aqui não podem ser desconsideradas, há que referir que é nosso entendimento serem as mesmas absolutamente impeditivas da concessão da adaptação à liberdade condicional neste momento da execução da pena. Com efeito, os crimes em causa, pela sua natureza e tendo em atenção os bens jurídicos contra os quais atentam – nomeadamente a vida humana – são causadores de forte impacto negativo na sociedade e geradores de intensos sentimentos de repúdio na comunidade. Efectivamente, as exigências preventivas associadas a estes tipos de crimes – em particular o crime de homicídio (ainda que na forma tentada) – reclamam, do ponto de vista da reafirmação da validade e vigência das normas violadas, acrescidas expectativas ao nível do cumprimento efectivo da punição, não sendo de esperar que o sinal transmitido à comunidade com a libertação do condenado nesta fase da execução da pena, cujo cumprimento só agora se aproxima do seu meio, salvaguardasse o sentimento geral de vigência das normas penais violadas com a prática de tais crimes e não defraudasse, de forma muito relevante e significativa, a confiança da comunidade no funcionamento do sistema penal. Pelo que, se considera, assim, que a colocação do condenado em liberdade condicional nesta fase de execução da pena se mostra totalmente incompatível com a defesa da ordem e da paz social. Face ao exposto, atentas as elevadas exigências ao nível da prevenção geral, que se verificam ainda de forma muito expressiva nesta fase de execução da pena, e as exigências de prevenção especial que, embora mitigadas, ainda carecem de consolidação (veja-se que a evolução evidenciada pelo recluso ao nível da reflexão crítica face ao desvalor dos ilícitos e da sua responsabilização criminal, tendo por referência a última apreciação realizada em 16.05.2024, quanto à possibilidade de concessão da adaptação à liberdade condicional, é muito recente – não deixando de se salientar que é reveladora de indícios de uma disponibilidade para a mudança e de adesão às normas violadas, o que se afigura como um ponto de partida), não se mostra possível, por ora, a concessão da liberdade condicional ao recluso. *** …».
III. DO MÉRITO DO RECURSO A questão essencial a decidir consiste em saber se a liberdade condicional deve ser concedida ao arguido que já cumpriu metade da pena. A liberdade condicional assume no direito português uma função ressocializadora da intervenção penal, como expressamente, resulta do Preâmbulo do Código Penal de 1982, onde se lê: «Definitivamente ultrapassada a sua compreensão como medida de clemência ou recompensa por boa conduta, a liberdade condicional, a libertação condicional serve, na política do Código, um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão». A liberdade condicional tem em vista possibilitar ao recluso um período de transição entre a prisão e a liberdade, para que aquele recobre o sentido de orientação social enfraquecido pela reclusão, sendo determinada em função de «pontos de vista exclusivamente preventivos[1]», isto é, em consonância quer com as finalidades das penas previstas no artigo 40.º do Código Penal (reintegração do agente na sociedade e protecção de bens jurídicos), quer com os objectivos do respectivo cumprimento elencados no artigo 42.º, n.º 1, do Código Penal (a execução da pena, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de novos crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo responsável, sem cometer crimes). Sobre pressupostos e duração da liberdade condicional, estatui o artigo 61º, do Código Penal: 1 - A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado. 2 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se: a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social. 3 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior. 4 - … 5 - … Distinguem-se, assim, duas modalidades de liberdade condicional: a facultativa (n.º s 2 e 3 do normativo acabado de citar) e a obrigatória (nº 4 do mesmo preceito), que, para além dos pressupostos formais – o consentimento do condenado (artigo 61º, nº 1,) e o cumprimento de um tempo da pena [metade ou dois terços e, no mínimo seis meses ou cinco sextos (artigo 61º, nº 2, 3 e 4)] – dependem, conforme o caso, da verificação de pressupostos materiais ou substantivos. A alínea a) do nº 2 reporta-se e assegura finalidades de prevenção especial, enquanto a alínea b) visa finalidades de prevenção geral. Os pressupostos da concessão da liberdade condicional devem ser contextualizados à luz das finalidades de reintegração e protecção dos bens jurídicos enunciadas no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal e, ainda, à luz, das finalidades da execução das penas e medidas de segurança privativas da liberdade: a reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, a proteção dos bens jurídicos e a defesa da sociedade» (artigo 42.º, n.º 1, do Código Penal e no artigo 2.º, n.º 1, do CEPMPL). Na prevenção especial, há que ponderar, se atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, se pode viabilizar fundadamente um juízo de prognose favorável em relação ao recluso no sentido de que este, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes. Com vista à aferição do juízo de prognose, prevê o n° 1, do artigo 173º nas alíneas a) e b) do CEPMPL que, na elaboração dos relatórios por parte dos serviços prisionais e reinserção social, se apure da personalidade do condenado e evolução desta durante a execução da pena, das competências adquiridas no período de reclusão, do comportamento prisional e seu relacionamento com o crime cometido, e bem assim das necessidades subsistentes de reinserção social, perspectivas de enquadramento familiar, social e profissional e necessidades de protecção da vítima, se for o caso. A liberdade condicional só será concedida, se, de forma cimentada, seja previsível que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer crimes, considerando os critérios enunciados na referida alínea a) do artigo 61º do Código Penal, que servirão como índices de ressocialização. A prognose constitui sempre uma previsão do progresso futuro de uma situação, fundada no conhecimento da evolução de acontecimentos semelhantes, com base nas regras da experiência comum, não contendo um juízo de certeza em relação ao que advirá. A liberdade condicional, baseado num juízo hipotético e provável não foge a esta regra, pois não se pode assegurar que o condenado, uma vez em liberdade, não voltará a cometer crimes. Desta feita, a liberdade condicional só pode ser concedida quando o decisor conclua que o recluso reúne as condições que, razoavelmente, criam a expectativa de que, uma vez colocado em liberdade, pautará a sua conduta conforme às normas sociais. Quando não seja possível expectar tal comportamento futuro, então a liberdade condicional deve ser negada. Por último, há ainda que considerar, as exigências de prevenção geral traduzidas na compatibilidade entre a libertação do condenado e a defesa da ordem jurídica e da paz social. Se a libertação do condenado não assegurar o sentimento geral da vigência da norma penal violada com a prática do crime, não deve ser concedida. E, isto porque «o reingresso do condenado no seu meio social, apenas cumprida metade da pena a que foi condenado, pode perturbar gravemente a paz social e pôr assim em causa as expectativas comunitárias na validade da norma violada[2].» Vale por dizer que a concessão da liberdade condicional pressupõe estejam asseguradas tanto as exigências de prevenção especial (reinserção do condenado e prevenção da reincidência) como exigências de prevenção geral (com o sentido em que a pena já cumprida é já sentida pela comunidade como já suficiente para a protecção dos bens jurídicos e para a reinserção do condenado, reforçando o sentimento prevalecente de que a norma violada mantém a sua validade e vigência). Tais requisitos são de natureza cumulativa, e por isso, demonstrativos do carácter excepcional da concessão da liberdade condicional nesta fase. Dito isto. Segundo informação do Tribunal da condenação, o recluso foi condenado pelo cometimento de um crime de homicídio na forma tentada e de um crime de detenção de arma proibida, na pena de seis anos e nove meses de prisão. Em 12 de setembro de 2023, foi proferido despacho, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.ºs 1 e 4 e artigo 7.º n.º 1, alínea a) e i), e nº 3 a contrario da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, declarando perdoada ao arguido, 6 (seis) meses de prisão da pena única aplicada nestes autos. Está ininterruptamente detido desde 20 de novembro de 2021, tendo, por isso, cumprido até ao momento três anos de prisão. Defende o recorrente que as necessidades de prevenção geral não se centram apenas na gravidade objectiva do ilícito, como decidiu o Tribunal a quo, mas também na personalidade revelada pelo condenado no percurso realizado, sendo que no caso, mereceu o parecer maioritariamente favorável do Conselho Técnico e favorável do Ministério Público, em primeira instância. Mas com o devido respeito por esta opinião, assim, não o entendemos. Com efeito, ao contrário do que defende o recorrente, não se trata de negar a liberdade condicional apenas e só com fundamento na gravidade objectiva dos crimes cometidos, mas de atender às circunstâncias que, em concreto, rodearam o crime, circunstâncias essas que não poderão deixar de ser consideradas no juízo sobre as repercussões que a libertação do recluso terá na sociedade em geral. E, se é certo que os factos provados revelam um empenho do recluso no processo de readaptação social e na interiorização do desvalor dos crimes cometidos, podendo, não é menos certo, que o modo como os crimes de homicídio (ainda que tentado) e detenção de arma proibida foram praticados e as consequências que deles advieram, pela violência que acarretaram, são causa de indignação social que vai para além da que normalmente é sentida relativamente com este tipo de ilícitos. Os crimes foram cometidos, numa pequena localidade, na esplanada de um café, após a ingestão de bebidas alcoólicas e algumas substâncias estupefacientes, em que o condenado e os companheiros, … e … se levantaram da mesa onde estavam sentados, para agredirem o ofendido, BB … e o amigo CC …, que acabavam de sair do estabelecimento. Enquanto, … ficou na expectativa a escassos metros dos outros dois, … colocou-se pelas costas do BB …, enlaçando-o com um movimento semelhante ao golpe conhecido como “mata-leão”, conseguindo manietar-lhe os braços, enquanto o condenado desferia desferir vários murros na parte lateral esquerda da cabeça do ofendido, deixando-o atordoado, ao mesmo tempo que lhe retirava a arma que trazia consigo, situação que provocou a queda de BB …. Quando este se encontrava já prostrado no solo, depois de atingido com os murros na cabeça, o arguido …, já na posse da aludida arma, encontrando-se então soerguido, apontou-a na direcção da cabeça de BB … e disparou, sem que, contudo, o tenha logrado atingir directamente com o projétil disparado. De seguida, o arguido abandonou o local na companhia dos amigos e atirou a arma para um terreno nas imediações, colocando-se em fuga utilizando uma viatura automóvel … Como consequências das agressões do arguido, o ofendido BB … múltiplas lesões, algumas delas definitivas e outras ainda não estabilizadas. A personalidade do arguido revelada nestes factos reveste especial gravidade, gera insegurança e intranquilidade públicas e provoca na sociedade sentimentos de medo e repulsa, exigindo do Estado uma resposta adequada que reforce a confiança da sociedade no sistema de justiça. Note-se, que já depois de ter agredido o ofendido com murros na cabeça e de lhe ter retirado a arma, o condenado insiste em disparar a arma, quando aquele já se encontra prostrado no solo, indefeso, o que revela uma violência e persistência na intenção de matar acrescida e indiferença pelos valores protegidos pela incriminação do homicídio tentado e detenção de arma proibida. As exigências preventivas associadas a este comportamento aumentam as expectativas da sociedade na punição efectiva dos crimes cometidos, com o cumprimento da pena em reclusão, não sendo expectável que a libertação do arguido após o cumprimento de três anos de prisão da pena única de seis anos e nove de prisão, reduzida de seis meses, por via do perdão, assegure o sentimento geral de vigência da norma penal violada com a prática do crime. A libertação do condenado a meio da pena é incompatível com a defesa da ordem da jurídica e da paz social, porque defraudaria a confiança da comunidade no funcionamento do sistema penal. O cidadão em geral não entenderia nem aceitaria para já a libertação do recluso, face aos danos sociais causados pelo arguido com a prática dos factos que conduziram à sua condenação, sendo, por isso, elevadas as exigências de prevenção geral. Não basta, pois, a formulação de um juízo de prognose favorável ao recorrente no sentido de que em liberdade não cometerá novos crimes, sendo, também, necessário garantir à comunidade o cumprimento efectivo das penas legalmente previstas são para cumprir, em especial, quando estão em causa valores tão estruturantes da sociedade, com segurança e a tranquilidade públicas e a vida. Neste sentido, decidiu o Acórdão deste Tribunal da Relação de 25 de fevereiro de 2015[3]: «I - Para se poder concluir por um juízo de prognose favorável tendente à concessão da liberdade condicional, não basta que o condenado tenha em reclusão bom comportamento, e que aparente uma perspetiva de vida de acordo com as regras sociais vigentes. II - Para além da vontade subjetiva do condenado, o que releva decisivamente é a sua “capacidade objetiva de readaptação”, de modo que as expectativas de reinserção sejam manifestamente superiores aos riscos que a comunidade deverá suportar com a antecipação da sua restituição à liberdade». Do que precede, concluímos, como concluiu a primeira a instância no sentido de que as exigências de prevenção geral são, ainda, muito expressivas nesta fase de execução da pena a obstar à concessão da liberdade condicional. Além de que, se, por um lado, a evolução evidenciada pelo recluso ao nível da reflexão crítica face ao desvalor dos ilícitos e da sua responsabilização criminal, revela indícios de uma disponibilidade para a mudança e de adesão às normas violadas, por outro, ainda necessita de melhor consolidação. Bem andou, o tribunal recorrido, em negar a liberdade condicional ao recorrente.
IV. DECISÃO Nos termos expostos, acordam os Juízes que compõem a 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação em julgar não provido o recurso. … Coimbra, 11 de dezembro de 2024
Alcina da Costa Ribeiro Maria da Conceição Miranda Sandra Ferreira
[3] Proferido no âmbito do proc.108/11.7TXCBR, em www.dgsi.pt
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