Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | JOÃO MOREIRA DO CARMO | ||
| Descritores: | NATUREZA DA SENTENÇA DE DESERÇÃO DA INSTÂNCIA POSSIBILIDADE DE PROMOÇÃO DOS ULTERIORES TERMOS DO PROCESSO | ||
| Data do Acordão: | 10/25/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 130.º, 281.º, 1 E 5; 411.º; 615.º, 1, D) E 620.º, 1, DO CPC | ||
| Sumário: | i) A sentença de deserção da instância tem alcance constitutivo, pelo que enquanto não for proferida, é lícito às partes promover utilmente o seguimento do processo. | ||
| Decisão Texto Integral: |
I – Relatório
1. Por despacho datado de 20.3.2023, em face do óbito do réu AA, declarou-se suspensa a instância. Tal despacho foi notificado às partes. O autor a 16.5.2023 veio solicitar que os réus impulsionassem a instância. Por terem decorrido mais de seis meses sobre a prolação daquele despacho, sem que fosse requerida a habilitação dos herdeiros da parte falecida, o Tribunal julgou deserta a instância por decisão de 10.10.2023. Após recurso, foi proferido Acórdão (em 6.2.2024) que anulou a decisão recorrida, por não ter sido precedida de prévio despacho a facultar o contraditório, tendo-se determinado que nesta instância se procede à notificação das partes para que se pronunciassem sobre os pressupostos da deserção da instância. Os autores BB e CC pronunciaram-se, pugnando pela procedência do incidente deduzido e pela não verificação dos pressupostos da extinção da instância por deserção, referindo que: i) os autores, face ao trânsito em julgado do mencionado Acórdão da Relação de Coimbra, deduziram o incidente de habilitação devido; ii) os autores estavam a preparar o incidente no prazo de 10 dias concedido pelo despacho de 28.9.2023; (iii) os autores, no decurso deste longo processo, sempre mostram interesse no seu prosseguimento, tendo inclusive apresentado vários requerimentos desde a data da suspensão da instância. Os réus DD e outros pugnaram pela verificação da deserção da instância por inexistir qualquer situação de justo impedimento ou outra qualquer alegada e demonstrada nos autos. * Foi depois proferido despacho que julgou deserta a instância, por falta de impulso processual das partes de 4.4.2023 a 9.10.2023. * 2. Os AA recorreram concluindo que: 1. Vem o presente recurso de apelação interposto da sentença proferida pelo Tribunal da Comarca de Castelo Branco – Juízo Central Cível – Juiz 2, a qual julgou extinta a instância, por deserção, e condenou os recorrentes nas custas do processo. 2. A sentença sob recurso merece censura, na medida em que, salvo melhor opinião, foi inoportunamente proferida, apresenta vícios geradores da respetiva nulidade, pelo que deverá ser declarada nula, e, em consequência, os presentes autos prosseguirem os seus termos. 3. Os Recorrentes entendem ainda que a Sentença Recorrida viola os princípios gerais do direito, em particular: o princípio da tutela jurisdicional efetiva, do processo justo e equitativo, da confiança, da gestão processual, da cooperação e do inquisitório. 4. Da não verificação dos pressupostos para a declaração da extinção da instânia por deserção: O Tribunal de 1.ª instância entendeu que estavam verificados os pressupostos para a deserção da instância, por Sentença de 10.10.2023 declarou a extinção da instância. Ora, tal não acontece, senão vejamos: 5. Por decisão transitada em julgado, este Venerando Tribunal da Relação veio anular a Sentença de deserção da instância proferida pelo Tribunal a quo de dia 10.10.2023, julgando procedente a apelação feita pelos Recorrentes. 6. Este Venerando Tribunal da Relação de Coimbra entendeu que o despacho do Juiz a quo de 28.09.2023, que ordenou à secção que se alarme o processo por referência ao prazo previsto no artigo 281.º, n.º 1 do CPC, ainda que quando for proferido se mostrassem já esgotados os seis meses de que depende a extinção da instância por deserção, é apto a inculcar nas partes que no prazo geral de 10 dias subsequentes ao da sua notificação lhes seria ainda possível impulsionarem o processo. 7. Mais, entendeu que o Tribunal a quo, ao impedir às partes o efeito do despacho de 28.09.2023, de nos 10 dias subsequentes ao da sua notificação, poderem vir a impulsionar o processo com a junção do requerimento de habilitação, afigura uma violação dos princípios da tutela jurisdicional efetiva, do processo justo e equitativo, da confiança, da cooperação e da adequada gestão processual. 8. Assim, depois de transitado em julgado este acórdão, os Recorrentes, no dia 28.03.2024 deduziram o incidente de habilitação de herdeiros devido. 9. No entanto, no dia 24.04.2024, o Tribunal a quo proferiu um despacho, no qual pediu às partes que se pronunciassem sobre a negligência para efeitos de deserção da instância. Despacho esse inútil, dado que já havia sido deduzido incidente de habilitação de herdeiros. 10. Nesta sequência, o Tribunal a quo, por Sentença de 19.05.2024 veio de novo decretar a extinção da instância por deserção. 11. A deserção da instância supõe que o processo se encontre sem movimento processual há mais de seis meses e que essa situação se deva a uma falta de impulso processual imputável às partes, a título de negligência. 12. Ademais, a deserção tem alcance constitutivo, pelo que, enquanto não for proferida, é licito às partes promover utilmente o seguimento do processo. Tal significa que as partes podem promover o andamento do processo mesmo depois de transcorrido o prazo estabelecido na lei para a deserção (mais de seis meses), contando que esta não tenha ainda sido declarada. 13. Tal deve-se ao facto de a deserção da instância não ter qualquer caráter sancionatório. Antes, o que se pretende é libertar o tribunal de processos em relação aos quais nada pode fazer ou decidir e em relação a processos inuteis. O que não é o caso dos autos. 14. O Tribunal a quo, na Sentença Recorrida, invoca que o incidente de habilitação de herdeiros foi intentado após o decurso do prazo previsto no artigo 281.º do CPC, significando que existe uma reativação da instância. 15. Porém, os Recorrentes não reativaram a instância com a dedução do incidente de habilitação, ao invés foi a decisão do Tribunal da Relação de 20.02.2024 que teve esse efeito, anulando a deserção da instância. 16. Deste modo, deixando a instância de estar extinta e tendo transitado em julgado o referido Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, os Recorrentes deduziram, em tempo, o incidente de habilitação. 17. Tendo o direito de deduzir o incidente de habilitação de herdeiros sido coartado pela Sentença do Tribunal a quo de 10.10.2023, que foi anulada, os Recorrentes, quando deduziram o incidente – no dia 28.03.2024 – estavam em tempo de impulsionar o processo. 18. Destarte, entendem os Recorrentes que deve ser revogada a sentença recorrida, prosseguindo os autos os seus devidos termos, dado que não estavam verificados os pressupostos para o decretamento da extinção da instância por deserção. 19. Da violação do dever do Tribunal a quo de acatamento das decisões dos tribunais superiores e violação do caso julgado (artigos 152.º do CPC, 216.º da CRP, no artigo 4.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, e do artigo 4.º, n.º 1 dos Estatutos dos Magistrados Judiciais) - violados. O Tribunal a quo tem o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores, ou seja, tinha o dever de acatar o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido a 20.02.24. No entanto, tal não aconteceu e esse dever foi incumprido. 20. Nos termos referidos supra, entendeu o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra que o Despacho do Tribunal a quo de 28.10.2023 é apto a inculcar nas partes que no prazo geral de 10 dias subsequentes ao da sua notificação lhes seria ainda possivel impulsionarem o processo. 21. Esse direito foi coartado às partes, ou seja, num primeiro momento conceder o prazo de 10 dias para as partes deduzirem o competente incidente de habilitação, e num segundo momento, ouvir as partes (caso não tivesse sido deduzido incidente algum). 22. Tendo o incidente já sido deduzido, competia apenas ao Tribunal a quo deferir o prosseguimento dos autos, de modo a alcançar-se a justa composição do litígio, e não findar o processo por razões de natureza processual. 23. No entanto, o Tribunal a quo decide extinguir a instância por falta de impulso processual das partes de 04.04.2023 a 09.10.2023. Este entendimento vai contra o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20.02.2024, que estabelece que a deserção não se produz de direito, devendo ser declarada oficiosamente, e enquanto não for proferida é lícito às partes promover utilmente o seguimento do processo. A deserção não existe enquanto o juiz não a declarar no processo, tendo este um papel ativo para alcançar a justa composição do litígio e decidir decisivamente o mérito da causa, com base, nos princípios da cooperação, inquisitório, da adequação formal e gestão processual. 24. A deserção não existe enquanto o juiz não a declarar no processo, tendo este um papel ativo para alcançar a justa composição do litígio e decidir decisivamente o mérito da causa, com base, nos princípios da cooperação, inquisitório, da adequação formal e gestão processual. 25. Mais, não se percebe os juízos de valor tecidos sobre os Recorrentes, nem as suposições levantadas pelo juiz a quo sobre a convicção dos autores. 26. O Tribunal a quo considera que a deserção da instância é uma medida sancionatória da negligência das partes. No entanto, como já foi sufragado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, a deserção não tem esse caráter. 27. Verificando-se incumprimento, pelo Tribunal a quo, Tribunal de 1ª Instância, do determinado em decisão do Tribunal da Relação de 2ª Instância, deve revogar-se a decisão proferida sem tal cumprimento e ordenar-se que seja cumprido o decidido. 28. No que concerne ao caso julgado, tendo o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20.02.2024, transitado em julgado, nos termos do artigo 628.º do CPC, o caso julgado tem como efeito impor essa decisão ao Tribunal a quo, assim, vincula o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido, pretendendo evitar a repetição e contradições de decisões judiciais sobre a mesma questão. 29. Perante o exposto, o Tribunal a quo na sentença recorrida contradiz o acórdão do Tribunal da Relação transitado em julgado, pelo que viola não só o dever de acatamento das decisões dos tribunais superiores, mas também o caso julgado formal. Violando o artigo 628ºCPC. 30. Da violação dos princípios gerais de processo civil: Relativamente ao direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (artigos 20.º e 268.º da CRP), os Recorrentes confiaram na decisão do Tribunal da Relação de Coimbra que estabeleceu que tendo o seu direito de apresentarem o incidente de habilitação sido violado, uma vez anulada a decisão de extinção da instância, poderiam logo impulsionar o processo. 31. O dito acórdão, prevê que a deserção tem natureza constitutiva e até ser declarada no processo, as partes podem impulsionar o incidente de habilitação devido, pelo que, a anulação da Sentença de 10.10.2023, possibilitou aos Recorrentes, ainda que depois do prazo de seis meses, impulsionar o processo. 32. Assim, na base deste processo, com oito anos e em que os Recorrentes têm uma idade muito avançada (ambos com mais de 80 anos), pugnam por finalmente por ter uma decisão de mérito, e não voltar ao início e recomeçar de novo, e a Sentença Recorrida impossibilitou este objetivo dos Recorrentes e dificultou a resolução material do litígio. 33. Deste modo, considerando que os Recorrentes já deduziram o incidente de habilitação de herdeiros devido, a averiguação da negligência: entre 04.04.2023 a 09.10.2023 tornou-se num ato inútil, e a consequente declaração de extinção da instância por deserção é uma consequência desproporcional face à gravidade e relevância da falta, não se evidenciando com um processo equitativo e justo. 34. O princípio da confiança, foi violado devido à longa história do processo e de estar para breve a justa composição do litígio, a conduta do Tribunal a quo demonstra uma enorme desconsideração por todo o trabalho feito pelas partes para alcançar uma decisão final. O processo, com vários apensos, recursos, perícias, incidentes, prova carreada, a audiência prévia já decorreu, há mais de 2 anos e a instrução encontra-se na fase final, recentemente foram concluídas as perícias requeridas, o que seria uma questão de poucos meses até o Tribunal marcar a data de julgamento, previsivelmente ainda este ano, se o processo corresse os seus trâmites normais. Este princípio proíbe decisões surpresa, dai ser violado. 35. A decisão de extinção da instância é surpreendente, na medida em que os Recorrentes já tinham deduzido, em data muito anterior, o incidente de habilitação de herdeiros devido, não estavam sequer reunidos os pressupostos para a declaração da deserção da instância. Portanto, a decisão recorrida não era expectável, uma vez que o Tribunal a quo não a podia ter praticado e nem as partes estavam a contar com ela. 36. No caso, o juiz a quo violou o dever de gestão processual (artigo 547.º do CPC) ao declarar a deserção da instância, uma vez que, após o trânsito em julgado do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, os Recorrentes deduziram o incidente de habilitação devido, no dia 28.03.2024, sendo que o M. Juiz a quo proferiu despacho para se pronunciarem sobre os pressupostos da deserção da instância em 24.04.24, data muito posterior à dedução do incidente devido. 37. Esse despacho revelou-se num ato manifestamente inútil, dado que os Recorrentes já tinham deduzido o incidente de habilitação de herdeiros. Logo, face aos factos, o Juiz a quo deveria ter aceitado o incidente de habilitação de herdeiros e prosseguido com o andamento do processo, de modo a alcançar-se a justa composição do presente litigio. 38. No que concerne ao princípio da cooperação (consagrado no artigo 7.º do CPC), dados os efeitos da deserção da instância e visando o processo civil dar prevalência, tanto quanto possível, a decisões finais de mérito sobre decisões meramente processuais, o juiz deveria ter atuado em conformidade com o princípio da cooperação entre as partes, evitando decisões contraditórias e incoerentes, que apenas visam prejudicar o processo e impedir a resolução final do litígio. 39. Um processo tão longo, em vias de terminar, e o Tribunal Recorrido decide atuar contra o direito e extinguir a instância. Impunha-se ao Juiz a quo cumprir com o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra e deferir o incidente de habilitação de herdeiros, fazendo com que a ação prosseguisse (processo este que aguarda desfecho deste), impossibilitando a resolução material do litígio e a obstar aos interesses das partes que pretendem ver a sua pretensão resolvida, considerando a idade avançada dos mesmos. 40. Por fim, por decorrência do princípio do inquisitório (consagrado no artigo 411.º do CPC), o juiz tem a iniciativa da prova, podendo realizar e ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias para o apuramento da verdade. A fundamentação adotada na Sentença Recorrida pretende que a deserção seja adotada como uma forma de sancionar os Recorrentes, impedindo-os de ver a sua pretensão resolvida definitivamente e impor-lhes que intentem novo processo para que seja resolvida. 41. Destarte, é convicção dos Recorrentes, salvo de melhor opinião, que deve ser julgado procedente o presente recurso e, em consequência, ser anulada ou revogada a sentença recorrida, prosseguindo os autos os seus devidos termos. Nestes termos, e com o douto suprimento de VOSSA EXCELÊNCIA, em que se requer que seja declarado procedente o presente recurso e que seja declarada nula a Sentença proferida pelo Tribunal Recorrido, por violação do disposto no artigo 281.º, n.º 1, 615.º, n.º 1 do CPC, ou revogada, por violação do dever de acatamento das decisões dos tribunais superiores, do caso julgado, e dos princípios da tutela jurisdicional efetiva, do processo justo e equitativo, da confiança, da adequação formal da cooperação e do inquisitório. Dando-se continuidade ao processo com o incidente de habilitação de herdeiros, já deduzido. Justiça. 3. Inexistem contra-alegações.
II - Factos Provados
1) Por despacho proferido a 20-03-2023, determinou-se a suspensão da instância em face do óbito do óbito do Réu AA, tendo a decisão o seguinte teor: «Em face do óbito do Réu AA (cfr. assento de óbito n.º ...51 do ano de 2022, referência n.º 3175866), ao abrigo do disposto nos artigos 269.º, n.º 1, al. a), 270.º, n.º 1, e 276.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil, declara-se suspensa a instância até que se mostre(m) habilitado(s) o(s) respectivo(s) herdeiro(s), sem prejuízo da deserção da instância (artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Notifique.» 2) O despacho proferido em 1) foi notificado às partes em 21-03-2023. 3) Os Autores apresentaram requerimento nos autos, datado de 16-05-2023, com o seguinte teor: «BB, vem aos presentes autos, na sequência do douto despacho precedente do M. Juiz, solicitar o impulso processual que compete aos réus. Efetivamente, o processo carece de celeridade, urge pôr epílogo ao mesmo em tempo útil, volvido este hiato temporal.» 4) Nessa sequência, foi proferido o seguinte despacho, após abertura de conclusão: «Vi os requerimentos de 16-05-2023 e 23-03-2023. Nada a ordenar nem a notificar às partes face à suspensão determinada. Aguardem os autos nos termos determinados no anterior despacho. Alarme os autos em conformidade e por referência ao prazo previsto no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Após conclua.» 5) Os Autores apresentaram requerimento datado de 28-08-2023 de referência n.º 3330963 com o seguinte teor: «BB, vem aos presentes autos, na sequência dos requerimentos precedentes, solicitar reverencialmente a V. Exa. o respetivo impulso processual, pois o pagamento foi efetuado. O processo carece de ser tramitado. Caso o réu não tenha pago, solicita a respetiva cominação legal». 6) Foi proferido despacho a 25-09-2023, com o seguinte teor: «Nada a ordenar nem a notificar às partes face à suspensão determinada. Aguardem os autos nos termos determinados no anterior despacho. Alarme os autos em conformidade, por referência ao prazo previsto no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Após conclua de imediato.» 7) Foi aberta conclusão ao signatário em 27-09-2023, tendo sido proferido o seguinte despacho a 28-09-2023: «Nada a ordenar nem a notificar às partes face à suspensão determinada. Aguardem os autos nos termos determinados no anterior despacho, tendo sido determinada a suspensão da instância por despacho datado de 20-03-2023. Alarme os autos em conformidade, por referência ao prazo previsto no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (tendo em conta o artigo 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil). Após conclua de imediato. Os autos estão suspensos pelo que não podem ser praticados quaisquer actos (vd. actos de 24-05-2023, referências n.ºs 35916091 e 35916092), em conformidade com o disposto no artigo 275.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).» 8) O despacho proferido a 28-09-2023 foi notificado às partes a 28-09-2023. 9) Foi proferida sentença a 10-10-2023 a qual julgou extinta a instância por deserção, nos termos conjugados dos artigos 277.º, al. c) e 281.º, n.ºs 1 e 4, do Código de Processo Civil. 10) A decisão referida em 9) foi anulada por douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 20-02-2024. 11) Os Autores intentaram incidente de habilitação de herdeiros a 28-03-2024.
III – Do Direito
1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas. Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte. - Deserção da instância.
1. Na decisão apelada escreveu-se que: “O processo civil, processo por natureza de partes, entregue à sua disposição, arreiga-se num conjunto de princípios inquebrantáveis, designadamente o do dispositivo, o da controvérsia, e o da auto-responsabilidade das partes (Dispositionsmaxime, Verhandlungsmaxime e Beibringungsgrundsatz). Isto é, às partes não cabe apenas determinar o início do processo e recolher o material (factos e provas) e apresentá-lo, mas também têm responsabilidades para consigo mesmas, «de produzirem certos resultados e de evitarem determinadas desvantagens, isto é, como autorresponsabilidade» (JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, 2013, p. 181). As partes, que condicionam o jogo do processo, estão sujeitas a um conjunto de ónus, responsabilidades e preclusões, sendo o mais relevante ónus, e com interesse para o presente caso, o de impulsionar o processo. Dispõe o artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que «[s]em prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses». Tal artigo plasma a necessidade de as partes impulsionarem o processo e de não o votarem a uma exânime realidade judiciária (a este propósito, conforme bem refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Setembro de 2016, Processo n.º 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1, e depois de deixar bem destacado que no novo Código de Processo Civil não eliminou o princípio da auto-responsabilização das partes, a «omissão continuada da atividade da parte, quando a esta cabe um ónus especial de impulso processual subsequente, tem efeitos cominatórios, que podem consistir, designadamente, na deserção da instância», cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15 de Janeiro de 2015 (processo n.º 990/14.6T8BRG.G1). Vejamos. Por um lado, o presente processo foi declarado suspenso a 20-03-2023, por falecimento de uma das partes, no caso, o Réu AA, ocorrido a ...-11-2022. A suspensão da instância, na verdade, foi apenas declarada, mas a sua verificação deu-se anteriormente, com a junção ao processo de documento que comprove o falecimento de qualquer das partes (artigo 270.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), no caso a 10-03-2022, havendo inclusivamente retrotracção de determinados efeitos à data em que ocorreu o falecimento (artigo 270.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, consonante, por isso, com a afirmação do artigo 269.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil. «a instância suspende-se quando falecer alguma das partes», e Acórdão do TRG, 28-01-2016, Proc. 2821/03.3TBGMR-C,G1, disponível em www.dgsi.pt). O despacho que veio a declarar a suspensão da instância teve apenas função meramente declaratória da situação que já se verificava, sendo a suspensão uma realidade determinada ope legis (artigo 270.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e declarada ope judicis. Por outro lado, há que considerar que o falecimento da parte, que impõe a imediata suspensão da instância, não obsta ao decurso do prazo de deserção, «pois não se verifica qualquer relação teleológica entre as normas do nº 1 do artigo 281º e o nº 2 do artigo 275º, ambos do CPC de 2013, que imponha uma operatividade articulada entre si», (Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 11-09-2015, Proc. 01312/05.2BEBRG, disponível em www.dgsi.pt). A partir do momento em que a parte toma consciência da suspensão da instância [que será a partir do momento em que toma conhecimento do falecimento da parte], e a mesma decorre da lei como observámos, sobre a mesma começa a incorrer o ónus de remoção da causa da suspensão, que no caso seria a prática do acto processual expectável: «[d]onde, suspensa a instância em consequência de morte ou extinção de um dos litigantes, as partes têm o dever de diligenciar pela remoção das causas da suspensão ou de informar no processo a ocorrência de atinente impedimento» (Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 11-09-2015, Proc. 01312/05.2BEBRG, disponível em www.dgsi.pt), uma vez que a inércia das partes na promoção da habilitação de herdeiros é determinante para a não verificação da cessação da suspensão (Acórdão do TRG, 12-09-2019, Proc. 6748/17.3T8VNF.G1) Para a verificação da figura da deserção, concorrem dois elementos: a falta de impulso processual há mais de 6 (seis) meses, e que a mesma se deva à negligência das partes. Esta [a deserção], ao contrário da suspensão da instância, não se verifica ope legis, «por decurso de prazo, mas através da prolação de despacho constitutivo que aprecie dois pressupostos: o decurso de prazo para impulso e a negligência da parte em promover os termos da acção». E, nesse seguimento, resta verificar se, de facto, existiu o decurso de prazo de 6 meses sem impulso das partes (oneradas com o impulso) e se essa falta de impulso se ficou a dever a negligência da parte onerada. Assim, cumpre marcar o marco inicial de onde se deverá contar o início do encargo do impulso processual. As partes foram notificadas a 21-03-2023 do despacho que declarou a suspensão da instância e da necessidade de impulsionar o processo, sob pena da deserção da instância. Já antes havia sido junta certidão de assento de óbito do Réu a 10-03-2023, pelo que sempre esta data teria importância na aferição do prazo a que se refere o artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Os Ilustres Mandatários das partes presumiram-se notificados do despacho que declarou a suspensão da instância no dia 24-03-2023, atento o disposto no artigo 248.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. E já em momento prévio, os Ilustres Mandatários das partes estariam conscientes de que, por um lado, havia falecido uma das partes, e que, por outro, por determinação legal, tal acontecimento determinava a suspensão da instância. Querer depender a auto-responsabilidade das partes de um despacho judicial que declare a suspensão da instância (e que ainda tenha de notificar as partes de que devem impulsionar o processo sob pena de deserção) seria desvirtuar o, ainda, princípio vector do processo civil (dispositivo em sentido amplo, abrangendo o princípio da auto-responsabilidade das partes), isto é, o princípio pelo qual as partes devem observar um conjunto de encargos, sob pena de se verem confrontadas com situações processuais desfavoráveis: a ideia «de que o juiz ainda antes do decurso do prazo de deserção deve convocar as partes à intervenção processual, quando existe um marco processual notificado à parte e que não deixa a mínima dúvida de que a ela compete o impulso processual relevante para evitar a deserção, seria subversivo do princípio da autorresponsabilização das partes, já aludido, e de um princípio de proactividade e de cooperação que estas devem observar, como vimos». Assim, o primeiro marco temporal com relevância para a deserção é aquele em que a parte toma conhecimento de que deve praticar o acto processual que leva à cessação da suspensão (operada por lei), momento esse que se inicia com a consciência de que no processo ingressou documento comprovativo do falecimento da parte. Como refere PAULO RAMOS DE FARIA («O Julgamento da Deserção da Instância Declarativa», Julgar, 2015, p. 7), «[o] prazo conta-se do dia (dies a quo) em que a parte tomou conhecimento do estado do processo (ou que tenha tido obrigação de dele conhecer) que implica a paragem deste e torna necessário o seu impulso, não sendo exigido pela lei, para que o prazo se inicie, que o juiz o declare expressamente ou que o demandante seja notificado do seu início (com a receção dessa notificação)» Contudo, ainda que assim não se entenda e se atenda ao prazo iniciado a partir da notificação do despacho que declarou a suspensão da instância, a partir do dia 25-03-2023 (artigo 279.º, alínea b), do Código Civil), os Autores deveriam ter impulsionado o processo no sentido de obstar à continuação da suspensão. Por outro lado, importa reter que o prazo de deserção da instância se fixa agora em seis meses e um dia, prazo este que não se suspende durante as férias judiciais (artigo 138.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, tendo as férias judiciais decorrido de 22 de Dezembro a 3 de Janeiro). Assim, desde 25-03-2023 decorreram mais de 6 meses. Durante o arco temporal referido, nenhum dos sujeitos processuais promoveu a competente habilitação da parte falecida, como, outrossim, não requereu qualquer prorrogação de prazo ou diligência a tanto dirigida. Conforme se refere no já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Setembro de 2016, Processo n.º 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1, «a deserção não se verifica automaticamente pelo decurso do prazo. Pelo contrário, demanda também uma decisão judicial e um juízo acerca da existência de negligência da parte. Simplesmente, a negligência de que fala a lei é necessariamente a negligência retratada ou espelhada objetivamente no processo (negligência processual ou aparente). Se a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, e se nada existe no processo que inculque a ideia de que a inação se deve a causas estranhas à vontade da parte, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência», pois que, como mais à frente refere, «(…)à parte onerada com o impulso processual é que incumbe (aliás à semelhança do que sucede no caso paralelo do justo impedimento, art. 140º do CPCivil), e ainda como manifestação do princípio da sua autorresponsabilidade processual, vir atempadamente ao processo (isto é, antes de se esgotar o prazo da deserção) informar e mostrar as razões de facto que justificam a ausência do seu impulso processual, contrariando assim a situação de negligência aparente espelhada no processo. E é em função desta atividade da parte que o tribunal poderá formular um juízo de não negligência», de tal sorte que finaliza nestes termos: «Ao interessado no prosseguimento do processo cabe deduzir o incidente de habilitação (…). E das duas uma: ou deduz esse incidente, porque nele tem interesse, ou não deduz, optando por manter o processo suspenso. A escolha é da parte mas acarta as respectivas consequências. Se a parte não quer impulsionar o processo, se a parte deixa decorrer o prazo da suspensão sem que deduza o incidente obrigatório para o prosseguimento do processo - que se pode chamar a isto senão negligência em impulsionar os autos? (…) Como escrevem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, se «a habilitação não tiver lugar, por não ser requerida ou ser julgada improcedente, observa-se o art.º 281-1 (deserção da instância)» (Cód. Proc. Civil Anotado, vol. 1.º, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 681).». Ora, tecidas estas considerações, a primeira constatação a colocar em destaque é a de que as partes tomaram conhecimento da causa da suspensão da instância, foram posteriormente notificadas da declaração dessa mesma suspensão, sabendo, de antemão, que estavam oneradas com a dedução da competente habilitação da parte falecida, e tudo sem prejuízo do decurso do prazo de deserção da instância. Já, por seu turno, a segunda evidência a realçar é a de que, no referido arco temporal de 06 (seis) meses, nenhum dos sujeitos processuais promoveu a competente habilitação da parte falecida, como, outrossim, não requereu qualquer diligência que instrumentalmente a tanto se destinasse ou prorrogação de prazo. Daí que, não tendo nenhuma das partes, no aludido prazo de seis meses, promovido a habilitação da parte falecida, apresentado qualquer justificação para tal omissão, nem, ademais, solicitado a cooperação do tribunal para a remoção de obstáculos que, razoavelmente, os impedisse de impulsionar a acção, comunicando que necessitaria de prorrogação de algum prazo, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência, tal como exigido pelo o artigo 281.º, do Código de Processo Civil. No mais, como bem refere PAULO RAMOS DE FARIA, «a circunstância de a lei estabelecer que determinado facto deve ser judicialmente declarado, isto é, julgado verificado, não converte este julgamento na causa dos efeitos que, na verdade, são produzidos pelo facto declarado. Ou seja, concretizando na deserção da instância, o julgamento desta, isto é, o seu reconhecimento não é, óbvia e logicamente, um seu pressuposto. Os pressupostos da deserção são a paragem do processo, por inércia das partes, e o decurso do tempo; o seu efeito (não o efeito do seu julgamento) é a extinção da instância (art. 277.º, al. c)). O julgamento da deserção traduz-se no reconhecimento judicial da verificação do seu primeiro requisito – paragem do processo por inércia das partes – por seis meses e um dia. É aqui que ocorre a deserção; é aqui que os seus pressupostos constitutivos se reúnem. O juízo exigido pela norma contida no n.º 4 do art. 281.º é, neste sentido, meramente declarativo. O facto jurídico processual extintivo da instância não é interpretado (praticado) pelo juiz, ao contrário do que ocorre com o julgamento (art. 277.º, al. a)), resultando tal extinção, sim, diretamente da deserção declarada pelo tribunal – isto é, da deserção julgada verificada, por verificados estarem os seus pressupostos de facto. Confrontando os enunciados das als. a) e c) do art. 277.º, nota-se que a lei não estabelece que a instância se extingue por força do julgamento da deserção, embora ele seja necessário para que esta tenha repercussões processuais. Desta asserção, que, em boa verdade, nos parece apodítica, retira-se que, após a ocorrência da deserção e antes de ser ela judicialmente reconhecida, os atos putativamente processuais espontaneamente praticados pelas partes são potencialmente desprovidos do seu efeito jurídico processual típico. Tais atos não são idóneos a impedir o julgamento de deserção da instância. A ideia de que o demandante ainda pode praticar um ato redentor após a deserção, mas antes de ela ser declarada, assim impedindo o seu conhecimento, tem cabimento num sistema que, ao contrário do que ocorre com o nosso, tenha um fundamento subjetivo, apoiando-se na renúncia presumida à lide (vontade de abandono) – presunção esta que é serodiamente ilidida com o referido ato. Dizemos “potencialmente” pois, sendo a lei clara na exigência do reconhecimento judicial da deserção, esta só terá efeitos no processo se o tribunal a declarar. A declaração da ocorrência deste facto jurídico involuntário tem, pois, efeitos constitutivos ex tunc sobre o processo, reportando-se à data da ocorrência do facto jurídico extintivo, isto é, da deserção declarada. O conhecimento oficioso da deserção é coerente com esta conclusão, revelando tal oficiosidade que não está na disponibilidade das partes aceitar a sobrevivência da instância (réu) ou, por paridade, praticar atos após a ocorrência da deserção (autor)» [Revista JULGAR online1, O julgamento da deserção da instância declarativa, págs. 13 a 15]. 1http://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/04/O-JULGAMENTO-DA-DESER%C3%87%C3%83O-DA-INST%C3%82NCIA-DECLARATIVA-JULGAR.pdf A negligência, nesta sede, é necessariamente a negligência retratada ou espelhada objectivamente no processo (negligência processual ou aparente). Se a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, e se nada existe no processo que inculque a ideia de que a inação se deve a causas estranhas à vontade da parte, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse. Ou seja, a situação de desinteresse/negligência nestes autos prende-se com a já referida circunstância de se aguardar desde 25-03-2023 impulso das partes (nos termos do artigo 248.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), e com a cominação do disposto no artigo 281.º do Código de Processo Civil (nos termos do artigo 248.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). À parte onerada com o impulso processual é que incumbe, e ainda como manifestação do princípio da sua autorresponsabilidade processual, vir atempadamente ao processo (isto é, antes de se esgotar o prazo da deserção) informar e mostrar as razões de facto que justificam a ausência do seu impulso processual, contrariando assim a situação de negligência aparente espelhada no processo. E é em função desta atividade da parte que o tribunal poderá formular um juízo de não negligência. O que sucede neste caso. Ademais, sempre se dirá o seguinte. O douto Acórdão que revogou a decisão proferida nestes autos referiu o seguinte: «O despacho em que se ordene à Secção que se alarme o processo por referência ao prazo previsto no art 281º/1 CPC, tendo em conta o art 139º/5 do CPC, ainda que quando foi proferido se mostrassem já esgotados os seis meses de que depende a extinção da instância por deserção, e por isso o possa ter sido por lapso, pode, não obstante, ser apto a inculcar nas partes que no prazo geral de 10 dias subsequente ao da sua notificação lhes seria ainda possível impulsionarem o processo». Salvo o devido respeito por entendimento diverso, não podemos acompanhar tal raciocínio jurídico, o que passaremos a explicitar. É por de mais evidente que desde o despacho em que se ordenou a suspensão da instância que os Autores demonstraram desconhecer que incumbia sobre eles o ónus de impulsionar o processo, e que deveriam desencadear o competente incidente de habilitação de herdeiros – veja-se os factos 3) e 5). Diga-se: os Autores estavam mesmo convictos que o ónus de intentar o incidente de habilitação de herdeiros era dos Réus. O que é um contrassenso jurídico, visto que o ónus de impulso de uma acção cabe ao autor, basta socorrermo-nos das máximas latinas: nemo iudex sine actore. O autor impulsiona a sua acção. No caso em apreço, não há qualquer possibilidade de desculpabilização de uma parte que está representada por Advogado quanto ao desconhecimento de quem deve impulsionar o processo, pelo que não se vislumbra que concorresse no caso um especial dever de esclarecimento do Tribunal (die Aufklärungspflicht). Desde o momento em que teve conhecimento do despacho que determinou a suspensão da instância, os Autores sabiam - e não podiam deixar de saber - que a verificação da sua inércia durante o período de seis meses conduziria à extinção da instância por deserção. Mais. Não acompanhamento o entendimento de que um despacho, por via do qual se ordene à secção para os autos aguardarem um decurso do prazo (que nem sequer deveria ter sido notificado às partes nem o precisa de ser), possa criar a expectativa numa parte de que se possa praticar qualquer acto. Quando muito significa que as partes possam interiorizar que terão a faculdade de praticar um determinado acto até ao fim do prazo que já decorria, prazo esse que no caso concreto havia começado a 04-04-2023 (presumindo-se notificados os Ilustres Advogados a 24-03-2024, iniciando-se o prazo no dia seguinte, e terminando no dia 03-04-2023 o prazo de dez dias). Ou seja, no dia 05-10-2023 havia transcorrido o prazo de 6 meses e um dia, sendo certo que no dia 09-10-2023 era o último dia que poderia ter sido praticado pela parte qualquer acto (nos termos do artigo 139.º, n.º 5, al. c) do Código de Processo Civil). Ainda mais no caso em apreço em que os Autores desconheciam que o ónus de impulsionar o processo era deles – repita-se, veja-se os factos 3) e 4) – pelo que não se pode sequer esperar que nos dez dias posteriores ao despacho referido em 27-09-2023 os Autores deduzissem o que quer que fosse. É, pois, uma conduta abusiva e até, diga-se, um contrassenso processual, virem os Autores afirmar que esperavam que, no prazo geral de 10 dias após um despacho que ordena que os autos aguardem o decurso do prazo de deserção, pudessem intentar o incidente de habilitação de herdeiros: nada menos verdadeiro, pois mostraram ao longo de seis meses que entendiam que incumbia aos Réus deduzir tal incidente. Estranhamente, só após o douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, os Autores desvelaram que o ónus de intentar o incidente de habilitação de herdeiros incumbia aos mesmos. E o que era do conhecimento mais elementar depois, também o era antes. Não se acompanha, pois, o vertido pelos Autores, sendo certo que nada alegaram quanto a algum impedimento para deduzir o incidente de habilitação de herdeiros nos 6 meses entre 04-04-2023 e 09-10-2023. Nada alegaram nem nada nos autos justifica tal negligência grosseira em impulsionar o processo. Mais ainda: o interesse no prosseguimento dos autos não se mostra de qualquer forma e feitio, entorpecendo os autos com requerimentos estéreis. O interesse no prosseguimento dos autos, no caso concreto, mostrava-se com a dedução de incidente de habilitação de herdeiros no prazo a que alude o artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Pelo que se pode concluir que, por negligência das partes, o processo se encontrou a aguardar impulso processual mais de seis meses. Quanto ao facto 11), diga-se o seguinte: o incidente de habilitação de herdeiros já foi intentado após o decurso dos seis meses a que alude o artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, acto esse que não pode configurar um reactivar de uma instância já deserta. O legislador definiu o prazo de seis meses como aquele, findo o qual e sem que nada seja feito pela parte (e incumbindo-lhe determinado ónus), que determina que a instância tenha de ser declarada deserta, e desde que apurada a negligência das partes. A negligência das partes pode resultar de forma muito objectiva dos autos ou não. No caso em apreço, considera-se que a mesma se encontra objectivada nos factos provados. Falecida uma parte, os Autores não se dignaram a deduzir o incidente de habilitação de herdeiros nos 6 meses e 10 dias seguintes após o despacho que determinou a suspensão da instância (e o prazo ainda foi superior se se tiver em conta a junção aos autos da certidão de óbito). Não pode o julgador assumir o papel do legislador e definir que existe possibilidade de «reactivar» a instância após aquele termo, se o legislador não prevê essa hipótese. Por outro lado, parece estar descoberta a forma de liquidar o instituto da deserção: ouvindo as partes sobre a eventual deserção da instância, se a mesma intenta o incidente de habilitação de herdeiros no prazo do contraditório, podendo reactivar a instância, deixa de se estar perante um mecanismo de audição das partes para se estar perante um mecanismo para contornar o disposto no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Alcançou-se o verdadeiro «triângulo processual das Bermudas» para quem entenda que, enquanto não for proferida a sentença de deserção, é lícito às partes promover utilmente o seguimento do processo, e entenda simultaneamente ser de ouvir as mesmas sobre a deserção (em caso de deserção na sequência de falta de dedução de incidente de habilitação de herdeiros na sequência de suspensão da instância de óbito de uma parte). Isto porque se o contraditório é apenas uma forma para melhor avaliar se a falta de impulso processual é imputável a comportamento negligente, tal contraditório sai frustrado se a parte extravasar esse contraditório e deduzir o incidente de habilitação de herdeiros nesse prazo. Obstará, pois, sempre a parte a tal deserção, fazendo tábua rasa da ratio legis ínsita ao artigo 281.º do Código de Processo Civil, que é evitar que os processos andem ao sabor das faltas de impulso processual das partes por mais de seis meses, quando sobre as mesmas impendam um determinado ónus específico. Veja-se que o «tribunal não só não está obrigado a inquirir as partes sobre a razão da sua inércia como o não deve fazer por ser um terceiro imparcial que não deve intrometer-se nas decisões que as partes têm liberdade de adoptar como seja, não prosseguir com um processo que instauraram» (Acórdão do STJ, de 16-03-2023, Proc. 19315/16.0T8LSB.L2.S1).”. Os recorrentes discordam, pelas razões que alinham nas suas conclusões de recurso (cfr. as 1. a 41.). Elas são, pela ordem que apresentaram, as seguintes: - nulidade da decisão ao abrigo do art. 615º, nº 1, d), do NCPC; - não verificação dos pressupostos para declaração de extinção da instância por deserção; - não acatamento das decisões dos tribunais superiores e violação do caso julgado; - violação da tutela jurisdicional efectiva; - violação do princípio da confiança; - violação dos princípios da gestão processual, cooperação e inquisitório. Analisando. a) relativamente à apontada nulidade, artigo, número e alínea mencionados, os recorrentes não explicitam se é a prevista na 1ª parte, alusiva a omissão de pronúncia, ou a da 2ª parte, referente a excesso de pronúncia. Supomos que será a da 1ª parte, pois só ela faz sentido na economia do recurso. Não existe qualquer omissão de pronúncia: a questão em jogo era saber se havia lugar a extinção da instância por deserção e foi exactamente sobre tal questão que o tribunal a quo julgou. Situação diferente é não considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado, que não constituem omissão de pronúncia, como é defendido unanimemente pela jurisprudência e doutrina. Indefere-se, pois, a acusada nulidade. b) respeitante à não verificação dos pressupostos para declaração de extinção da instância por deserção, este é o busílis do recurso. Alegam os recorrentes, no essencial, que a deserção tem alcance constitutivo, assim, enquanto não for proferida, é licito às partes promover utilmente o seguimento do processo. Pelo que, a deserção opera, necessariamente, mediante decisão judicial. Tal significa que as partes podem promover o andamento do processo mesmo depois de transcorrido o prazo estabelecido na lei para a deserção (mais de seis meses), contando que esta não tenha ainda sido declarada, pelo que, os recorrentes ao deduzirem o incidente de habilitação fizeram com que ficasse sem efeito a sua eventual inércia. Entendemos que os recorrentes têm razão. c) dado o que se explanou na alínea que antecede e o que vai ser decidido, a partir daqui, nesta alínea e subsequentes, vai apresentar-se fundamentação jurídica sumária. Referente ao não acatamento das decisões dos tribunais superiores, não se compreende bem o invocado. O tribunal superior anulou a anterior sentença, determinando a audição das partes para se pronunciarem sobre os pressupostos da deserção da instância. O que a 1ª instância observou, tendo as partes emitido a sua pronúncia, antes de proferida a nova sentença ora sob recurso. E referente à suposta violação do caso julgado formal (art. 620º, nº 1, do NCPC), igualmente não se alcança como poderá ter ocorrido tal violação, pois foi decidido superiormente que as partes deviam ser ouvidas sobre os requisitos da deserção da instância e efectivamente as mesmas foram ouvidas. Assim a 1ª instância não só acatou a decisão do tribunal superior, como não violou o caso julgado formal, pelo que, evidentemente, por aqui soçobra a apelação. d) quanto à violação da tutela jurisdicional efectiva alegam os recorrentes que o acórdão da Relação que anulou a anterior sentença lhes incutiu confiança para deduzirem o incidente de habilitação em falta e assim impulsionarem o processo e que confiaram, como o dito acórdão defendeu, que a deserção tem natureza constitutiva, pelo que o agora decidido viola aquele princípio. Não se vê como ? Na realidade os recorrentes já deduziram o mencionado incidente de habilitação e impulsionaram o processo ! E o facto de na sua fundamentação jurídica o acórdão da Relação defender que a declaração de deserção da instância tem natureza constitutiva, não interferiu com o segmento decisório do acórdão que proferiu. E, por isso, logo ficou afastada a hipótese de se clamar que o caso julgado abarcava tal posicionamento jurídico. Como assim, a 1ª instância não estava vinculada a seguir por tal caminho, muito menos a Relação no novo acórdão a proferir, sob recurso dos AA. De qualquer maneira esta última razão de discordância avançada pelos AA está ultrapassada, visto o que explanou no presente aresto sob a supra b). Por aqui também não poderá proceder a apelação. e) relativamente à violação do princípio da confiança dizem os apelantes que tal princípio proíbe decisões surpresa, quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever. Não se descortina como possa ter ocorrido tal violação. Pois se a 1ª decisão recorrida declarou a deserção da instância, os ora recorrentes apelaram e sobre essa questão se pronunciaram, a Relação sobre ela também se pronunciou, ordenando novo julgamento sobre esta questão o que a 1ª instância voltou a observar, como podem os apelantes afirmar que a nova decisão é uma surpresa para eles. Não é obviamente ! Por aqui também não procede o recurso. f) finalmente no respeitante à violação dos princípios da gestão processual, cooperação e inquisitório. Quanto ao primeiro, alegam os apelantes, que o despacho proferido na 1ª instância para as partes se pronunciarem sobre os pressupostos da deserção da instância se revelou um acto inútil (art. 130º do NCPC), devendo o juiz ter aceite o incidente de habilitação de herdeiros e prosseguido com o processo. De maneira nenhuma! O juiz proferiu tal despacho de pronúncia (em 22.4.2024) porque o acórdão desta Relação assim o ordenou. Alegam os recorrentes, quanto ao segundo, que ao não aceitar o incidente de habilitação de herdeiros o juiz está a impossibilitar a resolução material do litígio e dificultar os interesses das partes que pretendem ver a sua pretensão o mais rapidamente resolvida. Não é rigorosamente verdade, pois o incidente foi deduzido pelos ora apelantes e nenhum despacho judicial de rejeição foi proferido. E, por fim, quanto ao terceiro, sendo verdade que o juiz tem oficiosamente poderes inquisitórios (art. 411º do NCPC), não se divisa, no caso concreto, como o juiz deveria ter actuado neste âmbito, nem os apelantes sequer sugerem algo em concreto que tal magistrado devesse/pudesse ter feito. Por aqui, mais uma vez, não procede a apelação. (…)
IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, assim se revogando a decisão recorrida, ordenando-se o prosseguimento dos autos. * Sem custas. * Coimbra, 25.10.2024
Moreira do Carmo Carlos Moreira Fonte Ramos |