Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
772/23.4T8MGR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: GESTOR PÚBLICO
RENÚNCIA AO CARGO
ÓRGÃO COLEGIAL – SUBSTITUIÇÃO
FUNCIONÁRIA DE AUTARQUIA CEDIDA A ENTIDADE LABORAL PRIVADA
REGIME DO CONTRATO
Data do Acordão: 10/28/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – MARINHA GRANDE – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 24º, 25º, 26º E 27º DO DECRETO-LEI Nº 71/2007 DE 27 DE MARÇO – ESTATUTO DO GESTOR PÚBLICO
ARTIGO 393º DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
ARTIGOS 237º, NOS 1 E 2, 240.º, N.º2, E 245º, Nº1, ALS. A) E B) DO CÓDIGO DO TRABALHO
Sumário: I – À luz e nos termos do “Estatuto do Gestor Público” [sobre o qual regula o Decreto-Lei nº 71/2007 de 27 de Março], a renúncia de um dos membros de um órgão colegial de gestão não faz caducar a nomeação do outro membro, por ser aplicável o disposto no artigo 393º do Código das Sociedades Comerciais respeitante à substituição de administradores.

II – Se no “acordo de cedência de interesse público” ajuizado, foi inserido uma cláusula a dizer que “O estatuto da trabalhadora cedida rege-se pelo regime do contrato de trabalho”, isso significa que as relações de trabalho entre a Autora (cedida) e a entidade de destino se regerão, por analogia, pelas normas do Código do Trabalho (ou regime de contrato individual de trabalho).


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                           *

1 – RELATÓRIO

AA, solteira, maior, assistente técnica, portadora do cartão de cidadão n.º ..., válido até 26-08-2029, com o número de identificação fiscal ...98, residente na Avenida ..., Edifício ... ... intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra A..., Unipessoal, S.A.”, com o número de identificação de pessoa colectiva ...48, com sede social na Rua ..., ... ..., pedindo que na procedência da ação, por provada, seja a Ré «(…) condenada a pagar à Autora a quantia de €: 30.243,57, acrescida de juros legais desde 02 de Junho de 2023 até efectivo e integral pagamento.»

 Alega para o efeito, em breve síntese, que ela Autora era, e é, trabalhadora do Município ... e, por acordo entre ambas, foi a autora exercer funções em regime de cedência, na Ré, sendo remunerada por esta; que a Câmara Municipal ..., em reunião ordinária de 11/11/2013 deliberou nomear a autora como membro do Conselho de Administração da Ré e a sua sujeição ao Estatuto do Gestor Público, com mandato a cessar aquando da cessação do mandato dos titulares municipais; que por e.mail de 31/05/2023, o Presidente da Câmara Municipal ... comunicou à R. que “tendo ocorrido a renúncia do cargo da Presidente do Conselho de Administração, a 30 de abril de 2023, da Dr.ª BB, e sendo o Conselho de Administração um órgão colegial da A..., constituído nos termos do artigo 13º do Estatutos, por dois membros, o mesmo deixou de ter condições de funcionamento, termos em que V. Ex.ª cessa as suas funções na qualidade de administradora, no dia 01 de junho de 2023, exclusive”; que até ao presente e não obstante sucessivamente interpelada para tal, a R. não efetuou qualquer pagamento à A. a título de remunerações vencidas, bem como a indemnização pela demissão operada; que não obstante ser trabalhadora do Município, o exercício das suas funções ao serviço da Ré, como administradora, configura um contrato de mandato; que ocorreu uma verdadeira demissão do gestor público (aqui autora) por mera conveniência; que tinha à data da demissão mais de 12 meses seguidos no exercício de funções, pelo que, ao abrigo do disposto no nº3 do art. 26º do EGP, tem o direito a uma indemnização correspondente ao vencimento de base que auferiria até ao final do mandato, com a redução do valor do lugar de origem à data da cessação de funções, para onde regressou; que tem ainda direito a 101 dias de férias acumulados que não gozou e ao respetivo subsidio de férias e de natal de 2023.

Conclui pedindo a procedência da ação e a condenação da ré nos termos supra descritos.

                                                           *

A ré, citada para o efeito, veio apresentar contestação, a qual principiou com a alegação da exceção de incompetência material; para além disso, prosseguiu por sustentar, em via de impugnação, que inexistia uma qualquer relação contratual de natureza laboral entre as partes, donde não poderiam ser exigidos pela Autora e liquidados pela Ré quaisquer pretensos créditos laborais devidos por esta última à primeira, acrescendo que a Autora estava reclamar o direito a uma indemnização que a lei [apenas] reconhece em caso de demissão por conveniência, sucedendo que o que ocorreu na circunstância foi uma cessação da relação de administração/gestão por caducidade, termos em que conclui no sentido da absolvição do Réu da instância atenta a verificação de incompetência material do Tribunal e, sem conceder, que deve a ação ser julgada improcedente, por não provada.

                                                           *

Respondeu a A., pugnando pela improcedência da exceção.

Foi na sequência processual proferido despacho saneador que decidiu julgar verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal, em razão da matéria, declarando competentes para dirimir o presente litígio os Juízos de Trabalho do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria.

Esta decisão foi alvo recurso, que foi julgado procedente, afirmando-se a competência do Tribunal de Competência Genérica da Marinha Grande.

                                                           *

Retomado o curso processual, procedeu-se à realização de audiência final, tendo sido observadas todas as formalidades legais.

Na sentença, considerou-se, em suma, que era de dar parcial procedência aos pedidos formulados pela A., na medida em que se considerou que a demissão da autora das suas funções enquanto administradora da ré consistiram numa “demissão por mera conveniência” (prevista nos termos do artigo 26º do Estatuto do Gestor Público), termos em que se concluiu com o seguinte concreto “dispositivo”:

«III – DECISÃO FINAL

Nestes termos e pelos fundamentos que antecedem, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência:

A. Condena-se a ré A..., Unipessoal, S.A., no pagamento à autora AA

(i) do montante de € 1.808,68 (mil oitocentos e oito euros e sessenta e oito cêntimos), correspondente aos subsídios de férias e de Natal proporcionais às funções desempenhadas pela autora no ano de 2023;

(ii) do montante de € 16.891,44 (dezasseis mil oitocentos e noventa e um euros e quarenta e quatro cêntimos), correspondente à indemnização relativa à demissão da autora por mera conveniência;

(iii) do montante de € 1.350,51 (mil trezentos e cinquenta euros e cinquenta e um cêntimos), correspondente a juros moratórios vencidos, bem como no pagamento dos juros moratórios que se vençam até efectivo e integral pagamento, computados à taxa supletiva legal a que alude o artigo 559.º n.º 1 do Código Civil,

num montante global correspondente a € 20.050,63 (vinte mil e cinquenta euros e sessenta e três cêntimos).

B. Absolver a ré A..., Unipessoal, S.A. do demais peticionado.

Fixa-se à acção o valor processual de € 30.243,57 (artigos 296.º n.º 1, 297.º n.º 1 e 306.º n.º 2 do Código de Processo Civil).

Custas na proporção fixada de 38,17- 61,83, a cargo da autora e da ré, respectivamente.

Registe-se e notifique-se.»

                                                           *

           Inconformada com essa sentença, apresentou a Ré recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«A) O presente recurso de apelação é interposto da sentença de fls. que julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados pela A., em concreto, os pedidos de pagamento dos montantes alegadamente devidos a título de subsídios de férias e natal proporcionais às funções desempenhadas no ano de 2023 e da pretensa indemnização que lhe seria devida por uma pretensa ‘demissão por mera conveniência’, nos termos e para os efeitos do Estatuto do Gestor Público.

B) Ante a concreta fundamentação mobilizada pelo Tribunal a quo para julgar procedente a pretensão de matriz indemnizatória reclamada pela A., ora Recorrida, verifica-se, salvo o devido respeito, que a mesma se sustenta num clamoroso erro de qualificação jurídica, em concreto quanto à causa que determinou a cessação das funções da Recorrida como gestora pública da Recorrente, que se impõe sanar.

C) Ao contrário do erradamente decidido pelo Tribunal a quo, as funções da Recorrida como gestora pública da aqui recorrente cessaram em virtude do respetivo órgão de administração não dispor do número mínimo suficiente de membros para funcionar nos termos legalmente exigíveis, não dispondo, na sua condição de órgão colegial, por virtude da renúncia livre do outro dos seus membros sobrantes, do indispensável quórum constitutivo e de decisão de que a lei faz depender o seu regular funcionamento.

D) Assim sendo, as funções da Autora como membro do órgão de administração da Recorrente não cessaram em virtude de qualquer ato voluntário – demissão por mera conveniência ou dissolução – do órgão responsável pela sua eleição ou nomeação, conforme seria condição para que lhe fosse reconhecido o direito a uma qualquer indemnização nos termos previstos e regulados dos n.os 3 e 4 do art.º 26.º do EGP.

E) O que sucedeu, muito ao invés, foi que o respetivo mandato cessou por uma causa estranha à vontade das partes – a inexistência de qualquer outro membro do órgão em apreço – que determinou a impossibilidade de regular funcionamento do mesmo nos termos legais e estatutários a consequente cessação, por caducidade, das suas funções como membro do órgão de administração da Recorrente, não cabendo, para estes efeitos, conforme o fez, ainda que mal, o Tribunal a quo, fazer da demissão uma causa legal supletiva e residual de cessação do mandato de gestor público, isto é, uma espécie de válvula de escape do sistema, sempre que a situação em causa não fosse de reconduzir a nenhuma das outras taxativamente previstas na lei.

F) Ora, tal raciocínio não é admissível não só na medida em que as causas legalmente previstas para a cessação do mandato de gestor público não devem ser tidas como constituindo um numerus clausus ou um elenco fechado ou taxativo de fundamentos justificativos da terminação daquela relação de mandato, mas também na medida em que não pode ser devida qualquer indemnização, uma vez que destituída de qualquer título razoável que constitua seu fundamento válido, sempre que a cessação de tal relação de mandato repouse numa qualquer causa objetiva estranha à vontade das partes na relação que determine a respetiva caducidade ope legis.

G) Nestas situações, conforme é sustentado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, «não se colhe qualquer semelhança com a figura de demissão por mera conveniência que, aliás, a lei trata como exoneração por conveniência de serviço; pelo contrário, ocorreu aqui claramente a caducidade do mandato, em que o termo caducidade ganha aqui o pleno relevo da sua significação técnico-jurídica, isto é, cessação dum direito ou de uma situação jurídica, não retroativamente, pela verificação dum facto jurídico stricto sensu ou pelo decurso de um prazo».

H) Pelo que bem se pode dizer, conforme a mesma jurisprudência, que a ora Recorrida «na qualidade de membro do conselho de administração da empresa municipal, não foi alvo da exoneração, designadamente por mera conveniência de serviço, figura a que se referia o art.º 6.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 464/82, de 9 de Dezembro, que era o diploma legal estatutário que estava em vigor à data em que foi nomeado para o referido cargo. Também à luz do novo Estatuto do Gestor Público, aprovado pelo Dec. Lei n.º 71/2007, de 27 de Março, que estava em vigor à data em que a autora cessou funções, não ocorreu a situação da dissolução do conselho de administração, prevista no art.º 24.º do sobredito diploma legal (dissolução sancionatória, como se colhe dos pressupostos de aplicação de tal medida), nem a demissão do seu presidente por mera conveniência, prevista no art.º 26.º e que confeririam direito à indemnização a que se reporta o n.º 3 do mesmo inciso legal».

I) Assim sendo, não resta se não concluir, ainda que com as devidas adaptações, que ««a situação extintiva do mandato da autora decorreu, não de qualquer declaração de vontade no sentido, explícito ou implícito, de pôr fim a tal mandato, mas da renúncia da maioria dos vereadores ao seu próprio mandato», concluindo o mencionado acórdão que «o mandato da autora caducou na data em que cessou o mandato dos vereadores renunciantes, ou seja, quando foi dissolvido o executivo que estava em funções quando tomou posse» (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.05.2014, proferido no âmbito do Proc. n.º 3062/08.9TVLSB.L2-6).

J) O que tudo converge no sentido de que tendo a autora cessado funções em virtude da caducidade, por determinação legal, do respetivo mandato e não por qualquer ato voluntário (demissão ou dissolução por mera conveniência – art.º 26.º, n.º 3, do EGP) imputável ao órgão de eleição ou de nomeação, excluído está, ao invés do decidido pelo Tribunal a quo, o direito a qualquer indemnização nos termos previstos e regulados nos n.os 3 e 4 do art.º 26.º do EGP.

K) Em face de tudo quanto antecede, é ostensivo o erro de julgamento de que enferma a Sentença recorrida e o dever que, em contrapartida, se impõe sob este douto Tribunal ad quem de o sanar em definitivo. Caso em que, em substituição da decisão recorrida, deverá ser emitida uma outra que expressamente reconheça inexistir qualquer direito de a Autora aferir a indemnização peticionada nos presentes autos.

Termos em que deverá julgar-se procedente o presente recurso e, em consequência, julgar-se integralmente improcedente o pedido indemnizatório formulado pela A. nos presentes autos.»                                                        

                                                                       *

            Por sua vez, também apresentou a A. recurso dessa sentença, de cujas alegações extraiu as seguintes conclusões:

«1 - Atenta à matéria de facto provada o tribunal a quo não poderia ter julgado a acção apenas parcialmente procedente, condenando a Recorrida em parte do pedido, sendo que tal decisão não tem suporte na factualidade apurada com vista a apurar o valor a que a Recorrente tem direito;

2 - Ficou provado que “por e-mail datado de 31-05-2023, CC, presidente da Câmara Municipal ..., comunicou à autora que (…) cessa as suas funções na qualidade de administradora, no dia 01 de junho de 2023, exclusive. Deste modo, no dia 2 de junho de 2023, deve proceder à entrega de todos os meios e instrumentos propriedade da A...”.

3 - Ademais, deverá passar a integrar o elenco dos factos provados, porque admitidos por acordo (nº4 do artigo 607º do CPC) que “a remuneração da A. era paga 14 vezes por ano (a exemplo dos trabalhadores da R.) tendo a A. direito ao gozo anual de 22 dias úteis de férias. E tais remunerações sempre ocorreram, e já assim era em mandatos anteriores”;

4 - Tal modificabilidade da decisão de facto tem fundamento por apelo à norma do nº1 do artigo 662º do CPC;

5 - A A. esteve ao serviço da R. pelo menos até dia 02 de Junho de 2023, sendo-lhe devida a retribuição por esses dois dias;

6 - Ficou igualmente provado que “a autora deixou de gozar férias (101 dias) no decurso da vigência do acordo referido em 3., assim como dos subsídios de férias e de Natal correspondentes ao ano de 2023 e, ainda, do vencimento correspondente ao mês de Junho de 2023”;

7 - Ora tendo a A. estado ao serviço da R. até ao dia 02 de Junho de 2023 e tendo deixado de gozar 101 dias de férias, tem direito a ser compensada por tais dias de serviço e pelas férias não gozadas;

8 - A R. nunca pôs em causa no processo tais valores e o direito ao seu recebimento por parte da A.;

9 - A totalidade dos valores peticionados pela A. são-lhe devidos;

10 - A entender-se de outra forma, a inesperada cessação do vínculo contratual entre a A. e a R. constituiria um enriquecendo da R. à custa da R. que se viu privada de gozar as férias a que tinha direito bem como ao recebimento da respectiva compensação;

11 - A sentença recorrida, ao condenar a R. apenas em parte do pedido não teve em devida consideração os factos assentes violando assim o disposto no acordo que esteve subjacente à nomeação da R. como sua

administradora bem como o Estatuto do Gestor Público;

12 - A douta sentença, ao absolver a Recorrida, parcialmente, do pedido, fez errada apreciação e aplicação do direito.

Nos termos sobreditos, deve ser dado provimento ao recurso interposto, revogando-se em conformidade a douta sentença recorrida, devendo a R. ser condenada nos termos peticionados, assim se fazendo a inteira e costumada»

                                                                       *

            Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                                       *

           O Exmo. Juiz a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído.

                                                                       *

           Cumprida a formalidade dos vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

           2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Ré nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

a) recurso da Ré “A..., Unipessoal, S.A.”:

- desacerto da decisão proferida em termos de indemnização [porquanto o tribunal concluiu indevidamente pela “demissão por mera conveniência” da A., quando devia ter concluído por uma caducidade do mandato da mesma, com a consequente integral improcedência do pedido indemnizatório formulado].

b) recurso da Autora AA:

            - inconformismo quanto à decisão sobre a matéria de facto [pugnando por que sejam aditados dois pontos de facto ao elenco dos factos” provados”, com a redação que enuncia];

- incorreto julgamento de direito/erro de decisão [porque entende ter direito à totalidade das quantias por si reclamadas nos autos, mormente no que à compensação por férias não gozadas diz respeito].

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso terá em vista a alteração dessa factualidade.   

            Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância: em termos de “Factos Provados”:

«1. A autora é trabalhadora da Câmara Municipal ..., auferindo um montante mensal correspondente a € 908,77.

2. A Câmara Municipal ... é o único accionista da ré.

3. Por acordo intitulado “Acordo de cedência de interesse público”, celebrado entre a autora, a ré e o Município ..., a primeira foi exercer funções em regime de cedência na ré, auferindo uma remuneração mensal equivalente a € 2.316,39, a qual, nos termos da Cláusula segunda n.ºs 1 e 2 de tal acordo, é paga “pela entidade cessionária [a ré] nos termos acordados entre ambas”, ficando “sujeita à redução remuneratória prevista no artigo 27.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro”.

4. Em reunião ordinária datada de 14-11-2013, a Câmara Municipal ... deliberou:

“emitir o seguinte mandato a executar pelo seu representante: […] 2) O Conselho de Administração deve ser constituído pelo Vereador DD, na qualidade de Presidente, e pela Dr.ª AA, na qualidade de administradora. […] 4) A designação como membro do Conselho de Administração da Dr.ª AA está sujeita ao Estatuto do Gestor Público […]. 5) O mandato dos membros dos órgãos estatutários cessa nos termos do artigo 8.º dos estatutos, ou seja, aquando da cessação do mandato dos titulares dos municipais. […]”;

Encontrando-se a sua designação registada na Inscrição 9 (através da Ap. 1 de 16-12-2013) da certidão permanente de registo da ré.

5. Em reunião ordinária datada de 13-11-2017, a Câmara Municipal ... deliberou:

“emitir o seguinte mandato a executar pela representante designada: […] 2) O Conselho de Administração deve ser constituído por EE, na qualidade de Presidente, e por AA, na qualidade de administradora. […] 4) A designação como administradora de AA está sujeita ao Estatuto do Gestor Público […]”;

Encontrando-se a sua designação registada na Inscrição 12 (através da Ap. 1 de 21-11-2017) da certidão permanente de registo da ré.

6. Em reunião extraordinária datada de 23-12-2021, a Câmara Municipal ... deliberou:

“emitir o seguinte mandato a executar pela representante designada: […] 2) O Conselho de Administração deve ser constituído por BB, na qualidade de Presidente, e por AA, na qualidade de administradora. […] 4) A designação como administradora de AA está sujeita ao Estatuto do Gestor Público […]”; Encontrando-se a sua designação registada na Inscrição 14 (através da Ap. 1 de 10-01-2022) da certidão permanente de registo da ré.

7. O artigo 8.º dos estatutos da ré lê que “[o] mandato dos membros do Conselho de Administração terá a duração de quatro anos e coincidirá com o mandato dos titulares dos órgãos do Município”.

8. Por e-mail datado de 31-05-2023, CC, presidente da Câmara Municipal ..., comunicou à autora que:

“Tendo ocorrido a renúncia do cargo da Presidente do Conselho de Administração, a 30 de abril de 2023, da Dr.ª BB, e sendo o Conselho de Administração um órgão colegial da A..., constituído, nos termos do artigo 13.º dos Estatutos, por dois membros, o mesmo deixou de ter condições de funcionamento, termos em que V.ª Ex.ª cessa as suas funções na qualidade de administradora, no dia 01 de junho de 2023, exclusive.

Deste modo, no dia 2 de junho de 2023, deve proceder à entrega de todos os meios e instrumentos propriedade da A..., designadamente chaves de acesso às instalações, equipamento informático ou outro, telemóvel, códigos de acesso a plataformas informáticas/instalações, cartões multibanco, entre outros pertences que estejam na sua posse. […] Em conformidade, sendo trabalhadora da Câmara Municipal, deve apresentar-se ao serviço no dia 05 de junho 2023”.

9. A autora regressou ao serviço na Câmara Municipal ... no dia 05-06-2023.

10. Em reunião extraordinária datada de 02-06-2023, a Câmara Municipal ... deliberou: “Designar, […] como representante do Município ..., na Assembleia Geral da empresa municipal A..., E.M. Unipessoal, em substituição do Vereador FF, o Presidente da Câmara, GG; - Emitir […] mandato a executar pelo representante designado: […] 2. O Conselho de Administração deve ser constituído pelo Vereador FF, na qualidade de Presidente, e por HH, na qualidade de administrador”;

Encontrando-se tal designação registada na Inscrição 15 (através da Ap. de 12-06-2023) da certidão permanente de registo da ré.

11. O último pagamento efectuado pela ré à autora reporta-se ao vencimento relativo ao mês de Maio de 2023.

12. A autora remeteu missivas à ré, datadas de 14-06-2023, 30-06-2023 e 14-03-2023, assim como e-mails datados de 14-06-2023 e 14-08-2023, peticionando o pagamento das quantias que reputa devidas pelo término das suas funções no Conselho de Administração da ré.

13. A autora deixou de gozar férias (101 dias) no decurso da vigência do acordo referido em 3., assim como dos subsídios de férias e de Natal correspondentes ao ano de 2023 e, ainda, do vencimento correspondente ao mês de Junho de 2023.»

                                                           *

3.2 – Inconformismo quanto à decisão sobre a matéria de facto

A A. pugna no seu recurso por que sejam aditados dois pontos de facto ao elenco dos factos” provados”.

Trata-se da factualidade correspondente ao que havia alegado no articulado de resposta à contestação, sob os artigos 5º e 6º, a saber:

«5º - A remuneração da A. era paga 14 vezes por ano (a exemplo dos trabalhadores da R.) tendo a A. direito ao gozo anual de 22 dias úteis de férias.»;

«6º - E tais remunerações sempre ocorreram, e já assim era em mandatos anteriores, o que a R., aliás, bem sabe.».

Como fundamento para um tal aditamento alega a Autora que “a R. não pôs em causa”.

Que dizer?

Salvo o devido respeito, desde logo a Ré estava impedida legalmente de impugnar essa factualidade.

Na verdade, consabidamente o articulado de resposta à contestação tem por justificação e objetivo processual constituir a resposta a exceção que tenha sido deduzida na contestação [cf. art. 3º, nº4 do n.C.P.Civil], não estando facultado à A. extravasar com uma resposta à matéria de impugnação.[2]

Acresce que não poderia a A. complementar ou concretizar a sua causa de pedir, sem que tal lhe tivesse sido facultado [mediante “convite” pelo Juiz, nos termos do art. 590º, nos 2, al. b) e 4 e 591, nº1, al.c), ambos do n.C.P.Civil].

Ora se assim é, não pode a A. invocar uma admissão dessa factualidade que indevidamente acrescentou no seu “articulado”, por a Ré não a ter impugnado na sequência, isto é, por via do efeito cominatório previsto no art. 574º do n.C.P.Civil…

Decisivamente porque a Ré não tinha legal direito de resposta que pudesse ter exercido, sendo certo que não lhe foi facultada a possibilidade de se pronunciar sobre tal!

O que tudo serve para dizer que esta pretensão, nos termos em que se encontra formulada, não pode de todo ser atendida.

                                                           *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre agora entrar na apreciação das questões neste particular supra enunciadas, estas já diretamente reportadas ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma.

Começando pela apelação da Ré.

Nesta foi suscitada o desacerto da decisão proferida em termos de indemnização [porquanto o tribunal concluiu indevidamente pela “demissão por mera conveniência” da A., quando devia ter concluído por uma caducidade do mandato da mesma, com a consequente integral improcedência do pedido indemnizatório formulado].

Salvo o devido respeito, esta pretensão naufraga inapelavelmente.

Senão vejamos.

É pacífico que na solução do caso se aplica juridicamente o Estatuto do Gestor Público.

Sendo que a relação de mandato estabelecida ao abrigo do regime do Estatuto do Gestor Público encontra a sua disciplina jurídica matriz no Decreto-Lei nº 71/2007 de 27 de Março.[3]

Na sentença recorrida tratou-se de encontrar solução para a questão de saber, mormente face ao regime estabelecido no dito “E.G.P.”, qual a resposta para a vacatura de membro do órgão executivo [in casu, da Presidente desse órgão] e dos correspondentes efeitos quanto ao outro remanescente membro (in casu a Autora, com o cargo de Administradora).

Recorde-se que foi face à renúncia por parte da Presidente do Conselho de Administração da empresa municipal A..., E.M. Unipessoal, a saber, BB [pessoa que havia sido nomeada conjuntamente com a ora A. AA para constituir o Conselho de Administração dessa entidade] que foi comunicado à Autora, pelo presidente da Câmara Municipal ..., que «(…) sendo o Conselho de Administração um órgão colegial da A..., constituído, nos termos do artigo 13.º dos Estatutos, por dois membros, o mesmo deixou de ter condições de funcionamento, termos em que V.ª Ex.ª cessa as suas funções na qualidade de administradora, no dia 01 de junho de 2023, exclusive.»

A resposta encontrada na sentença em recurso foi a de que «(…) nos termos legais e estatutários, tal facto não é determinativo da cessação automática (sob as vestes da caducidade, ou outro instituto) do mandato dos demais membros do órgão em questão.»

E a nosso ver – releve-se o juízo antecipatório! – com inteiro acerto.

Os artigos relevantes para este efeito, a saber, os artigos 24º, 25º, 26º e 27º, têm o seguinte teor literal, respetivamente:

                                                           «Artigo 24.º

                                                                               Dissolução

1 - O conselho de administração, a comissão executiva ou o conselho de administração executivo podem ser dissolvidos em caso de:

a) Grave violação, por acção ou omissão, da lei ou dos estatutos da empresa;

b) Não observância, nos orçamentos de exploração e investimento, dos objectivos fixados pelo accionista de controlo ou pela tutela;

c) Desvio substancial entre os orçamentos e a respectiva execução;

d) Grave deterioração dos resultados do exercício ou da situação patrimonial, quando não provocada por razões alheias ao exercício das funções pelos gestores.

2 - A dissolução compete aos órgãos de eleição ou de nomeação dos gestores, requer audiência prévia, pelo menos, do presidente do órgão e é devidamente fundamentada.

3 - A dissolução implica a cessação do mandato de todos os membros do órgão dissolvido, não havendo lugar a qualquer subvenção ou compensação pela cessação de funções.»

                                                                               «Artigo 25.º

                                                                                 Demissão

1 - O gestor público pode ser demitido quando lhe seja individualmente imputável uma das seguintes situações:

a) A avaliação de desempenho seja negativa, designadamente por incumprimento dos objectivos referidos nas orientações fixadas ao abrigo do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro, ou no contrato de gestão;

b) A violação grave, por acção ou por omissão, da lei ou dos estatutos da empresa;

c) A violação das regras sobre incompatibilidades e impedimentos;

d) A violação do dever de sigilo profissional.

2 - A demissão compete ao órgão de eleição ou nomeação, requer audiência prévia do gestor e é devidamente fundamentada.

3 - A demissão implica a cessação do mandato, não havendo lugar a qualquer subvenção ou compensação pela cessação de funções.»

                                                                               «Artigo 26.º

Dissolução e demissão por mera conveniência

1 - O conselho de administração, a comissão executiva, o conselho de administração executivo ou o conselho geral e de supervisão podem ser livremente dissolvidos, ou o gestor público livremente demitido, conforme os casos, independentemente dos fundamentos constantes dos artigos anteriores.

2 - A cessação de funções nos termos do número anterior pode ter lugar a qualquer tempo e compete ao órgão de eleição ou designação.

3 - Nos casos previstos no presente artigo e desde que conte, pelo menos, 12 meses seguidos de exercício de funções, o gestor público tem direito a uma indemnização correspondente ao vencimento de base que auferiria até ao final do respectivo mandato, com o limite de 12 meses.

4 - Nos casos de regresso ao exercício de funções ou de aceitação, no prazo a que se refere o número anterior, de função ou cargo no âmbito do sector público administrativo ou empresarial, ou no caso de regresso às funções anteriormente desempenhadas pelos gestores designados em regime de comissão de serviço ou de cedência especial ou ocasional, a indemnização eventualmente devida é reduzida ao montante da diferença entre o vencimento como gestor e o vencimento do lugar de origem à data da cessação de funções de gestor, ou o novo vencimento, devendo ser devolvida a parte da indemnização que eventualmente haja sido paga.»

                                                                               «Artigo 27.º

                                                                                 Renúncia

1 - O gestor público pode renunciar ao cargo, nos termos da lei comercial.

2 - A renúncia não carece de aceitação, mas deve ser comunicada aos órgãos de eleição ou de nomeação.»

            Confrontando estas normas, s.m.j., impõe-se a conclusão de que a renúncia de um membro de um órgão colegial de administração ou gestão não implica a caducidade automática da nomeação do outro membro remanescente.

            Na verdade, nenhuma dessas normas estabelece uma regra que vincule a cessação do mandato de um membro ao efeito sobre o outro.

Assim sendo, a renúncia de um dos membros de um órgão colegial de gestão não faz caducar a nomeação do outro membro.

Só não seria assim se houvesse uma norma específica (v.g., em estatutos ou em cláusulas de nomeação) que previsse essa consequência – o que não foi invocado e se desconhece existir.

Não obstante o vindo de dizer, temos presente que ao Conselho de Administração em causa, enquanto órgão colegial, naturalmente correspondia uma exigência de quórum mínimo (ou de uma composição específica) para o seu funcionamento: in casu, temos que o órgão se encontrava impossibilitado de tomar decisões válidas devido à falta de quórum (por o quórum mínimo exigir mais de um membro ativo).

Mas isso corresponde a outro plano – o do funcionamento do órgão.

Para o qual a lei existente apresenta soluções, desde logo a substituição do membro renunciante.

Com efeito, o mais normal e curial é que, verificando-se a necessidade de nomeação de substituto, a entidade competente deverá nomear um novo membro para preencher a vaga, a fim de restabelecer o normal funcionamento do órgão (garantindo que o órgão volta a ter a sua composição completa).

Isto mesmo se ajuizou na decisão recorrida, com expressa referência ao disposto no artigo 393º do Código das Sociedades Comerciais respeitante à substituição de administradores.[4]

Solução que não foi afrontada/contrariada nas alegações recursivas.

Sendo certo que nada vislumbramos que impedisse ou obstaculizasse uma tal solução.

Ademais, subscrevemos por inteiro o que foi grafado na decisão recorrida em resposta ao que constava do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.05.2014, proferido no âmbito do Proc. n.º 3062/08.9TVLSB.L2-6, invocado pela Ré ora recorrente (quer no articulado de contestação, quer nas alegações de recurso) para fundamentar a sua pretensão de que in casu tinha operado a caducidade do mandato da aqui Autora, a saber:

«Nem se considera aplicável ao caso concreto, a jurisprudência citada pela ré (o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-05-2014, com o n.º de processo 3062/08.9TVLSB.L2-6, disponível em https://www.dgsi.pt/), já que, no referido processo, estava em causa a renúncia de vereadores determinativa da dissolução do executivo camarário, sendo que o cargo dos administradores estavam, como no caso presente, indexados aos mandatos dos órgãos autárquicos. Em tal caso, a dissolução do executivo camarário teria por efeito a realização de eleições intercalares. Não é essa a situação dos presentes autos, estando aqui apenas em causa a renúncia de um administrador, o Presidente do Conselho de Administração, sem impactos no funcionamento dos órgãos autárquicos (de que depende a administração da ré, nos termos do artigo 8.º n.º 2 dos seus estatutos).»

Ora, foi precisamente na lógica e decorrência desta linha de entendimento que na sentença recorrida se veio a concluir no sentido de que «(…) reiterando-se não ter havido renúncia por parte da autora (artigo 27.º do Estatuto do Gestor Público), em face dos factos provados em 8. e 10., resta apenas concluir que a cessação das funções da autora enquanto administradora da ré consubstanciaram uma verdadeira demissão por mera conveniência, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 26.º do diploma em questão.»

Conclusão que assim sancionamos e a que aderimos sem necessidade de maiores considerações.

Está, assim, encontrada a resposta para a questão recursiva de mérito suscitada pela Ré, que é no sentido da sua improcedência.

¨¨

Passando então agora ao recurso da Autora.

Como visto, trata-se neste plano de dar resposta às discordâncias da Autora nesta sede recursiva em termos de mérito da decisão, mais concretamente invocando o incorreto julgamento de direito/erro de decisão [porque entende ter direito à totalidade das quantias por si reclamadas nos autos, mormente no que à compensação por férias não gozadas diz respeito].

De referir que embora a Autora apresente a sua discordância em termos generalistas, isto é, abrangendo todas as componentes da sua pretensão indemnizatória, o que é certo é que apenas centra a sua argumentação nos aspetos do vencimento relativo ao mês de Junho de 2023 e quanto às férias e compensação por férias não gozadas, do que retiramos a conclusão de que apenas da solução dada a estes aspetos verdadeiramente discorda.

Em todo o caso, por falta de especificação/enunciação das razões de discordância quanto às demais componentes da indemnização, particularmente quanto aos montantes atribuídos a título de “Subsídios de férias e de Natal de 2023” [no parcial de € 1.808,68] e a título de “Indemnização prevista para a demissão por mera conveniência” [no parcial de € 16.891,44] pela sentença recorrida, por não vislumbrarmos qualquer erro ou desacerto no correspondente cálculo, aderimos à solução encontrada na sentença.

Apreciando então o que está em causa.

O primeiro aspeto é o do vencimento relativo ao mês de Junho de 2023, clamando a Autora que esteve ao serviço da Ré em dois dias de Junho de 2023 [cf. «Se o email (de 31/05/2025) diz expressamente que cessa as funções no dia 01/06/2023 exclusive e ordena a entrega de equipamentos no dia seguinte, conclui-se que a A. esteve ao serviço da R. nesses dois dias de Junho de 2023»].

Quanto a nós não assiste qualquer razão à Autora nesta parte.

Se foi comunicado à Autora que «(…) cessa as suas funções na qualidade de administradora, no dia 01 de junho de 2023, exclusive» [com destaque da nossa autoria], tal significa, em boa interpretação linguística, que a A. não exerceu funções no dia 1 de Junho, cessando-as efetiva e realmente no dia anterior.

Por outro lado, ser-lhe em concreto determinado que «(…) no dia 2 de junho de 2023, deve proceder à entrega de todos os meios e instrumentos propriedade da A... (…)»[5], não significa nem implica que nesse dia 2 de Junho exerceu “funções”…

Passando à apreciação do aspeto das férias e compensação por férias não gozadas.

Na sentença recorrida, o Exmo. Juiz a quo perfilhou o entendimento de que o legislador havia removido do E.G.P. o direito do gestor público a férias, donde a conclusão de que «(…) não assiste à autora o direito à retribuição de férias no montante proporcional à vigência do seu mandato em 2023, nem qualquer crédito respeitante a férias não gozadas, por não serem devidas, no decurso desse mesmo mandato.»

Que dizer?

Quanto a nós, é de aceitar a tese geral de que efetivamente no Decreto-Lei nº 71/2007, de 27 de Março (dito “E.G.P.”), não existe uma norma expressa que consagre um “direito a férias” nos mesmos termos em que esse direito está previsto para os trabalhadores em geral (v.g. no Código do Trabalho ou na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas[6]).

Contudo, isso não significa que os gestores públicos não tenham direito a férias – o que acontece é que esse direito não está regulado de forma detalhada no “E.G.P.”.

Por outro lado, se o “E.G.P.”. não contempla/prevê a aplicação direta do Código do Trabalho ou da “L.G.T.F.P.” aos gestores públicos, também não veda que tal ocorra nos casos em que tal seja expressamente previsto.

O que, se bem atentarmos, sucede no presente caso.

Na verdade, no “acordo de cedência de interesse público” ajuizado, através do qual teve lugar a nomeação da aqui Autora como “administradora”, foi inserido uma cláusula a dizer que “O estatuto da trabalhadora cedida rege-se pelo regime do contrato de trabalho”.[7]

É que isso significa que as relações de trabalho entre a Autora (cedida) e a entidade de destino se regerão, por analogia, pelas normas do Código do Trabalho (ou regime de contrato individual de trabalho).

Tendo a Autora seguramente direito a férias no seu lugar de origem, o mais lógico e normal foi a salvaguarda de tal situação, e tanto assim quiseram as partes estabelecer que não foi acordada entre as partes a cessação do vínculo anterior, mas apenas a “suspensão do estatuto de origem”.[8]

Ora se assim é, importa então confrontar o que decorre do vigente Código do Trabalho.

Este, nos seus arts. 237º e segs., estabelece que o trabalhador tem direito a 22 dias úteis de férias por ano (regra geral); que o gozo de férias é obrigatório, e não pode ser substituído por compensação em dinheiro (exceto em caso de cessação do contrato).

Portanto, como o “acordo de cedência” determinou expressamente que o estatuto da cedida se regia pelo “regime do contrato de trabalho”, então ela tem direito ao gozo de férias nos termos do Código do Trabalho, nomeadamente, a 22 dias úteis de férias por ano civil, e bem assim a subsídio de férias correspondente.

Temos também presente que esse gozo de férias é obrigatório (exceto se impossibilitado por razões justificadas), e que a férias não gozadas devem ser gozadas até 30 de abril do ano seguinte (cf. art. 240º, nº2 do mesmo Código do Trabalho).

Daqui decorre que, não obstante o direito a gozo de férias pela Autora, não é possível reconhece o integralmente por ela pretendido – compensação por um total de 101 dias de férias não gozadas.

É que a sua cessação de funções teve lugar no final de Maio de 2023, pelo que se havia férias não gozadas anteriores ao ano de 2022, já estava prescrito esse direito à data da sua cessação de funções.

Acresce que, neste particular, e para ter o direito pretendido [compensação por férias não gozadas],  a Autora teria que ter alegado (para provar!) que o gozo das férias em causa (rectius, anterior ao ano de 2022) foi impedido por razões de serviço ou outras alheias à sua vontade (v.g., por exigência das funções, ausência de substituto, ou recusa do superior que presidia à entidade).

Sucede que não o tendo feito em tempo oportuno nos autos[9], por não resultar assente/apurado na circunstância que o não gozo das férias anteriores ao ano de 2022 ocorreu por impedimento justificado e não imputável a ela Autora, não tem a mesma  direito a qualquer compensação por esse não gozo.

Ressalva-se deste entendimento apenas o que diz respeito às férias vencidas no dia 1 de janeiro de 2023 e ainda não gozadas.

Relativamente a estas, decorre do aplicável art. 245º, nº1, al.a) do Código do Trabalho que cessando o contrato de trabalho, o trabalhador tem direito a receber a retribuição de férias correspondentes a férias vencidas e não gozadas, sendo que, consabidamente, as mesmas se vencem em 1 de Janeiro de cada ano e, em regra, se reportam ao trabalho prestado no ano civil anterior [cf. art. 237º, nos 1 e 2 do Código do Trabalho].

Donde se reconhece, a este título, o direito de a autora receber um valor unitário correspondente ao seu vencimento por inteiro, i.e., de € 2.200,57.

Procede assim apenas nestes termos restritos e limitados essa parte da sua pretensão recursiva.

                                                           ¨¨

Vejamos, de seguida, a questão do direito à retribuição de férias no montante proporcional à vigência do seu mandato em 2023.

Nesta parte, contrariamente ao entendimento da sentença recorrida, entendemos que assiste total razão à Autora/recorrente.

Com efeito, decorre do aplicável art. 245º, nº1, al.b) do Código do Trabalho que cessando o contrato de trabalho, o trabalhador tem direito a receber a retribuição de férias proporcional ao tempo de serviço prestado no ano da cessação.

Assim, considerando que o cálculo legal do valor das férias [correspondentes a 5 meses completos] se deve basear nos 22 dias úteis e na retribuição diária/mensal, obtém-se o seguinte resultado:

Férias anuais = 22 dias úteis; Retribuição Mensal = € 2.200,57

Período proporcional a 5 meses (5/12) = 22 dias × 5/12 = 9,17 dias de férias

Retribuição diária (base mensal / 30) =  € 2.200,57 : 30 = € 73,35 por dia

Valor da retribuição de férias proporcionais = 9,17 dias × € 73,35 € = € 672,63

É assim do montante de € 672,63 o valor a que a Autora tem direito a este título.

                                                           ¨¨

Do que vem de ser decidido, resulta o reconhecimento da Autora receber um montante acrescido ao da sentença de 1ª instância no valor de € 2.828,20 [ = € 2.200,57 + € 672,63].

Sucedendo que ao mesmo ainda acrescem os juros moratórios que foram reconhecidos na sentença, pelo que, adicionando o montante da condenação de 1ª instância [ = € 18.700,12] ao da presente decisão [ = € 2.828,20] resulta um total de € 21.528,32, o qual acrescido dos juros moratórios de 4% ao ano, pelo período entre 14.06.2023 [data da interpelação] e 3.04.2025 [data da sentença de 1ª instância], corresponde e um valor de € 1.551,88, donde um total final de € 23.080,20 [ = € 21.528,32 +  € 1.551,88] em que a Ré vai agora condenada a pagar à Autora, a que acrescem os juros vencidos (até ao presente) e vincendos até efetivo e integral pagamento.

Nestes termos procedendo as alegações recursivas e o recurso.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA (…).

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, na parcial procedência da apelação:

i. em revogar parcialmente a decisão recorrida no que ao seu item “A.” diz respeito, condenando agora a Ré a pagar à Autora um montante global correspondente a € 23.080,20 (vinte e três mil e oitenta euros e vinte cêntimos), acrescido dos juros moratórios vencidos desde 3.04.2025 [data da sentença de 1ª instância] e vincendos até efetivo e integral pagamento, sobre o montante de € 21.528,32, à taxa legal de 4% ao ano.

ii. em manter a sentença recorrida nos seus precisos termos no que ao demais diz respeito, designadamente quanto ao seu item “B.”.  

            As Custas do recurso da Ré serão suportadas integralmente pela mesma; já as custas do recurso da Autora serão suportadas por esta e Ré na proporção de ½ para cada uma.                                                                                                                                     


Coimbra, 28 de Outubro de 2025
Luís Filipe Cravo

Carlos Moreira

Fernando Monteiro



[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Carlos Moreira
  2º Adjunto: Des. Fernando Monteiro

[2] Cf. J. LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 3ª ed., Livª Almedina, 2017, em anotação aos arts. 584º e 587º do n.C.P.Civil.
[3] Doravante “E.G.P.”.
[4] Recorde-se que prevê o art. 40º do E.P.G. a aplicação ao gestor público do regime decorrente do Código das Sociedades Comerciais (cf. “em tudo quanto não esteja disposto no presente decreto-lei”).
[5] Cf. facto “provado” sob “8.”.
[6] Doravante “L.G.T.F.P.”
[7] Cf. correspondente “Claúsula quarta”, a fls. 10 da versão em papel destes autos de recurso.
[8] Cf. correspondente “Claúsula terceira” do já citado “acordo de cedência de interesse público”.
[9] Não o alegou enquanto os autos correram termos na 1ª instância, e, ainda que nesta sede recursiva tenha alegado «Por factos totalmente alheios à vontade da A., esta viu-se impedida de usufruir do direito a férias vencidos (…)», tal alegação, para além de ser claramente intempestiva, é uma generalidade sem qualquer factualismo/concretismo…