Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
429/20.8T9LRA.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA BRANCO
Descritores: CRIME DE RECEBIMENTO INDEVIDO DE VANTAGEM
Data do Acordão: 06/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA – J4)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 372º, N.º 1, E 386º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL
Sumário: Para o preenchimento do crime de recebimento indevido de vantagem não é necessária a obtenção de uma contraprestação por parte do funcionário, bastando a mera solicitação.
Decisão Texto Integral: Relator: Cristina Branco
Adjuntos: Maria Alexandra Guiné
Ana Carolina Cardoso
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Acordam, em conferência, na 5.ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 429/20.... do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Central Criminal de Leiria - Juiz ..., foi submetida a julgamento a arguida AA, filha de BB e de CC, natural de ..., nascida a ../../1974, solteira, funcionária pública, residente na Rua ... Fte., ..., pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de peculato, p. e p. pelo art. 375.º do CP, por referência ao art. 386.º, n.º 1, al a), do mesmo Código, e de um crime de recebimento indevido de vantagem, p. e p. pelo art. 372.º, n.º 1, do CP, por referência ao art. 386.º, n.º 1, al a), do mesmo Código, em concurso aparente com um crime de tráfico de influência, p. e p. pelo art. 335.º, n.º 1, al. a), do mesmo Código.

2. Realizado o julgamento, foi proferido acórdão no qual foi decidido, para além do mais (transcrição):
«Condenar a arguida AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de Peculato, previsto e punido pelo art. 26º e artº 386º, nº 1 al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão;
Absolver a arguida AA da imputada prática de um crime de recebimento indevido de vantagem, p.p. pelos arts. 26º e 372º, n.º 1 do Código Penal, por referência ao 386º, n.º 1, al. a) do mesmo Código, em concurso aparente com um crime de tráfico de influência, p.p. pelo art. 335º, n.º 1, al. a) do Código Penal.
Suspender a execução da pena de dois anos e três meses de prisão por igual período, sujeita a regime e prova e sob a condição da obrigação de pagamento de 412,40€ ao Estado.
Não aplicar à arguida pena acessória de proibição do exercício de funções publicas. Declarar procedente o pedido de declaração de perda de vantagens a favor do Estado Português, no valor e 412,40€. (…)»

3. Interposto recurso pelo Ministério Público, por acórdão deste Tribunal da Relação foi declarado nulo o acórdão recorrido, por falta de fundamentação (omissão de um adequado exame crítico da prova).

4. Na sequência, em obediência a tal decisão, foi proferido novo acórdão, no qual foi decidido, para além do mais, condenar e absolver a arguida, pela prática dos aludidos crimes, nos exactos termos anteriormente decididos.

5. Mais uma vez inconformado, interpôs o Ministério Público o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):

««1. O presente recurso visa a impugnação da decisão proferida pelo Tribunal a quo de absolver a arguida AA da prática de um crime de recebimento indevido de vantagem, previsto e punível pelo artigo 372.º, n.º 1, do Código Penal.

2. No Acórdão proferido pelo Tribunal a quo foi dado como não provado, em síntese, que a arguida não agiu com a intenção de obter uma vantagem quando solicitou um mútuo ao assistente pelas quantias de 1000,00€ e 500,00€, e que o fazia utilizando a sua condição de funcionária pública, conforme decorre do elenco de factos não provados sob os números 2 a 8.

3. Ao faze-lo, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, apreciando erradamente a prova, resultando tal erro da análise da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, interpretada à luz das regras da lógica, da experiência e da normalidade, pelo que nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3 e 4, do Código de Processo Penal impugna-se a decisão proferida sobre a matéria de facto.

4. Foram incorrectamente julgados os pontos 2 a 8 dos “Factos não provados”.

5. As provas que impõem decisão diversa da recorrida quanto à matéria de facto impugnada consistem nas declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento pelo assistente DD, gerente da sociedade A... Lda.

6. Na sessão de julgamento ocorrida no dia 10 de Novembro de 2022, constam gravadas no sistema H@billus Media Studio, disponível no CITIUS, as declarações do assistente - com início pelas 14:28:55 e termo pelas 15:01:20 horas – que quando questionado nesse sentido disse: - com início ao minuto 09:10 e seguintes, quando questionado pela Procuradora da República: “O Sr. sabia se a arguida pertencia ao B...?

Assistente: “Sim, conhecia. Sabia que ela era membro do B...”.

- com início ao minuto 10:04 e seguintes, quando questionado pela Procuradora da República: “Na reunião que foi promovida por alguns dos rotários, dos associados, a D. AA falou, deu-lhe a conhecer qual era a profissão dela, o que ela fazia?”

Assistente: “A reunião foi muito curta, onde estiveram 5/6 pessoas… Disse que trabalhava na ACES ...” (ao minuto 12h12);

- ao minuto 12:39ss, esclareceu o assistente que o “o descontentamento era público, era uma realidade que dava nas televisões”;

- ao minuto 14:20ss, esclareceu o assistente que “trocamos (com a arguida) contactos telefónicos; ela disse-me que ia falar com a pessoa que controlava internamente essa pasta”;

- ao minuto 15:06ss, pela Procuradora da República foi perguntado ao assistente: A disponibilidade que a Sra. AA lhe mostrou foi que iria falar com alguém dentro da ACES ... para tentar desbloquear a ida dos doentes para a sua clínica?

Assistente: “exactamente; que iria ajudar; sim” (minuto 15:23ss).

- ao minuto 15:50ss, perguntado pela Procuradora da República: “a dada altura a D. AA pediu-lhe dinheiro?”.

Assistente: “mandou mensagens a pedir um empréstimo (…)”;

- ao minuto 21:19ss, perguntado pela Procuradora da República: “Pergunto-lhe, pensou que, estando ela a pedir-lhe dinheiro e se eu lho der, ela vai desbloquear a situação dos doentes da ACES ...?

Assistente: “Ah… percebi que alguma coisa não estava correcta. A relação de confiança que eu tinha com a D. AA não era de confiança para lhe emprestar dinheiro.

“Foi um bocado descarado” (ao minuto 22:21ss).

“Se eu lhe der dinheiro é capaz…” (ao minuto 22:47).

7. De forma escorreita, circunstanciada e clara, o assistente descreveu a forma como conheceu a arguida e o modo como a mesma o abordou dando-lhe a conhecer que trabalhava na ACES ... e que podia e iria falar com a pessoa responsável pela pasta do encaminhamento dos doentes daquele agrupamento, a fim de a clínica do assistente prestar serviços aos mesmos.

8. É neste seguimento que a arguida envia duas mensagens de texto ao assistente - transcritas nos autos - onde lhe pede um empréstimo; numa primeira ocasião mil euros e num segundo momento quinhentos euros.

9. É o próprio assistente quem esclarece que, em face do comportamento da arguida, acreditou que esta lhe estava a pedir a dinheiro para agir em seu benefício junto da entidade administrativa para a qual desempenhava funções.

10. Foi por via das declarações prestadas pelo assistente que o Tribunal julgou provados os factos constantes sob os pontos 39 a 44. Tais declarações, quando compaginadas com o teor das mensagens de texto enviadas pela arguida ao assistente - a solicitar quantias em dinheiro - revelam-se ainda mais credíveis, podendo então ser construído um caminho lógico sobre o que aconteceu: a arguida tinha conhecimento das dificuldades do assistente e, anunciado que exercia funções na ACES ..., propôs-se a desbloquear as dificuldades de encaminhamento de doentes e para esse efeito pediu dinheiro.

11. Tendo sido julgado como provado aos apontados factos, perante o acervo probatório dos autos - necessariamente tinha de ser dado como provado que a arguida «decidiu mercadejar com o seu cargo e procurar obter do assistente as quantias que entendeu necessárias à satisfação das suas necessidades financeiras do momento».

12. Da análise conjugada de toda a prova produzida, interpretada de acordo com o artigo 127.º, do Código de Processo Penal, deveria ter sido dado como provado que a arguida praticou o crime de recebimento indevido de vantagem, previsto e punível pelo artigo 372.º, n.º 1, do Código Penal, pelo que ao não faze-lo, o Tribunal incorreu em erro de julgamento.

13. Assim sendo, o Tribunal a quo deveria ter julgado provados os seguintes factos: «1.Sabendo perfeitamente do desagrado do assistente pela falta de encaminhamento de doentes e estando, à data, com dificuldades financeiras e diversas quantias em dívida relativamente às taxas moderadoras cobradas no atendimento do ACES ..., que insistia para que procedesse, com urgência, à sua entrega/depósito,

2. Decidiu a arguida, mercadejar com o seu cargo e procurar obter do assistente as quantias que entendeu necessárias à satisfação das suas necessidades financeiras do momento.

3. Nesse contexto, aproveitando a preocupação e interesse do assistente nas diligências que pudesse encetar enquanto funcionária do ACES ... para resolver o problema com que o mesmo se enfrentava, decidiu a arguida, cumprindo o propósito referido em 3., solicitar-lhe dinheiro, na expectativa de que o mesmo, para esse efeito, lho entregasse.

4. A arguida valeu-se das suas funções como funcionária do ACES ... e da possibilidade, que pretendeu demonstrar perante outrem, de que poderia, por causa de tais funções, auxiliar, através de uma colega, também funcionária do ACES ..., na pretensão do assistente ao encaminhamento de doentes para hemodiálise, para solicitar a DD as quantias monetárias indicadas nas mensagens acima referidas.

5. Sabia perfeitamente a arguida que os pedidos efetuados não tinham qualquer justificação nem poderiam ser encarados pelo assistente senão como uma compensação pelas diligências que se comprometeu em realizar enquanto funcionária pública, adstrita ao ACES ..., junto de uma colega sua, estando simultaneamente ciente de que essas quantias não lhe eram devidas e que com essa atuação punha em causa a isenção, integridade e retidão das funções públicas desempenhadas, violando desse modo os seus deveres funcionais, sendo, por isso, indevidas.

6. Mais sabia a arguida que os pedidos formulados ao assistente não eram conformes aos usos e costumes, nem podiam, pela sua natureza e contexto em que foram efetuados, ser considerados socialmente adequados, estando perfeitamente ciente de que o seu destinatário também nunca os entenderia como tal.

7. A arguida atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime de recebimento indevido de vantagem.»

14. Factos com os quais o Tribunal a quo não poderia deixar de proferir decisão de condenação da arguida AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de recebimento indevido de vantagem, previsto e punido pelo artigo 372º, n.º 1 do Código Penal, por referência ao 386º, n.º 1, al. a) do mesmo Código, pelo qual foi acusada.

15. Comete o crime de recebimento indevido de vantagem previsto e punível pelo artigo 372.º, n.º 1, do Código Penal «1 - O funcionário que, no exercício das suas funções ou por causa delas, por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, que não lhe seja devida, é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.»

16. Para o preenchimento do tipo não se mostra necessário obter uma contraprestação por parte do funcionário. Ao contrário do crime de corrupção passiva - em que é punível a vantagem solicitada ou aceite em conexão com a prática de uma acção ou omissão pelo funcionário – o crime de recebimento indevido de vantagem basta-se com a mera solicitação.

17. A arguida é funcionária pública, vinculada à Câmara Municipal ..., por contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado.

18. Foi a arguida quem abordou o assistente e o informou de que desempenhava funções na ACES ... e que nessa qualidade poderá falar com a pessoa responsável pela pasta em causa.

19. A arguida enviou duas mensagens de texto ao assistente - 18 de Outubro de 2019 e 04 de Novembro de 2019 - onde lhe solicitava o empréstimo da quantia de 1000,00€ e posteriormente apenas de 500,00€, sem que entre ambos existisse qualquer relação pessoal anterior ou paralela.

20. A arguida praticou o crime de recebimento indevido de vantagem, previsto e punido pelo artigo 372.º, n.º 1, do Código Penal e deverá ser condenada pelo mesmo.

21. Considerando o bem jurídico que a incriminação pretende acautelar - “autonomia intencional do Estado”, “a legalidade da actuação dos agentes públicos e a sua objectividade decisional” ou a “integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário” - e as concretas condições da arguida e o modo de execução dos factos, entende-se que a pena deverá ser fixada em 2 (dois) anos de prisão.

22. Tendo a arguida sido condenada na pena parcelar de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão pela prática do crime de peculato, haverá que determinar a pena única do concurso, que se entende ser de fixar em 3 (três) anos e 6 (seis meses) de prisão, suspensa na sua execução subordinada à obrigação da arguida efectuar o pagamento de 412,40€ (tal como decidido no acórdão).

Vossas Excelências, farão como sempre, JUSTIÇA.»

6. Admitido o recurso, a arguida apresentou resposta, na qual conclui (transcrição):
« I. Face à prova produzida em audiência de julgamento bem andou o Tribunal a quo ao proferir acórdão no qual enendeu absolver a arguida do crime previsto e punido no art.º 372.º do CP do qual vinha acusada;
I. Não se provou que a arguida agiu com a intenção de obter uma vantagem quando, através de 2 mensagens sms, solicitou ao assistente as quantias de 1.000,00€ e de 500,00 €;
II. Com também ficou provado a arguida não o fez enquanto funcionária pública mas sim como uma cidadã comum;
III. A qual atravessava um difícil período a nível financeiro;
IV. Durante o qual, inclusive, perdeu a sua casa por total incapacidade de liquidar o empréstimo bancário;
V. O Tribunal a quo apreciou correctamente a prova produzida em audiência de julgamento fazendo-o de acordo com as regras da lógica, a experiência e da normalidade;
VI. Fundamenta o Ministério Público ora recorrente o seu recurso no facto de o assistente ter referido no seu depoimento que acreditava que a arguida lhe estava a pedir dinheiro;
VII. É com este facto que o MP, ora recorrente, entende que o Tribunal a quo não apreciou correctamente a prova produzida;
VIII. Ora, assim não pode ser;
IX. Não foi produzida prova;
X. Existe apenas um “sentimento” expresso pelo assistente;
XI. Mal andaria a Justiça se os Tribunais entendessem dar como provados factos pelo simples facto de as testemunhas “acreditarem” que os factos se passaram de determinada forma;
XII. O assistente acreditou….
XIII. Mas o assistente não consegue provar nada !!!!
XIV. Simplesmente porque tal não aconteceu.
XV. Pretende o recorrente, Ministério Público, que o Tribunal a quo desse como provados factos que não passam apenas e tão só de uma teoria que pretende construir.
XVI. Trata-se, apenas de uma teoria rocambulesca “imaginada” pelo Ministério Público e assente em….nada!!!
XVII. Bem andou o Tribunal a quo na decisão proferida.
XVIII. Não assiste, também, qualquer razão ao MP relativamente à nulidade invocada;
XIX. De facto, o Tribunal a quo fundamenta a sua decisão, na experiência de nos factos, não podendo fundamentar a sua decisão nas declarações do assistente as quais são uma mão cheia de nada.
XX. Não padece, assim, de qualquer nulidade.
XXI. Tendo assim feito uma correcta aplicação do Direito aos factos.
NESTES TERMOS E NOS DO SEMPRE DOUTO SUPRIMENTO, DEVE O DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO SER MANTIDO DEVENDO SER PROFERIDO ACÓRDÃO REITERANDO A DECISÃO PROFERIDA.
E ASSIM SE FARÁ A TÃO COSTUMADA JUSTIÇA!»

7. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer (Ref. Citius 11229879), pronunciando-se no sentido da procedência do recurso.

8. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, respondeu a recorrida, reafirmando o teor da sua resposta ao recurso.

9. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


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II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.

In casu, de acordo com as suas conclusões, o recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, sustentando que a mesma foi incorrectamente julgada e que devia ter sido proferida decisão condenatória da arguida (também) pela prática do crime de recebimento indevido de vantagem que lhe vinha imputado.


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2. Da decisão recorrida

Previamente à apreciação das questões suscitadas, vejamos qual a fundamentação de facto que consta do acórdão recorrido.
««Produzida a prova e discutida a causa, provaram-se os seguintes factos:
(inclui o NUIPC 3031/21....)
1.A arguida AA, é funcionária pública, vinculada à Câmara Municipal ..., por contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado.
2.Entre 01/12/2018 e 31/05/2020 a arguida exerceu funções como Assistente Técnica na UCSP (Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados) do ..., integrada no ACES ... (...), em regime de mobilidade interna, com proveniência na Câmara Municipal ....
3.A partir de 12/05/2019, a arguida exerceu também funções no Serviço de Atendimento Complementar das ... e da ..., igualmente pertencentes ao ACES ..., em regime de trabalho suplementar.
4.Enquanto Assistente Técnica e no período em que esteve a trabalhar no ACES ..., incumbia à arguida o atendimento ao público, incluindo o recebimento de taxas moderadoras.
5.Em qualquer Unidade do ACES ..., a cobrança de taxas por qualquer ato médico ou de enfermagem tinha de ser sempre registada no sistema informático por cada funcionário administrativo que as recebesse dos utentes.
6. Para o efeito, o funcionário em causa acedia ao sistema informático com as credenciais que lhes eram disponibilizadas, de natureza pessoal e intransmissível, e que permitiam sempre identificar quem realizava tais registos.
7. Com a finalidade de proceder a esses registos nas Unidades onde desempenhava as suas funções, a arguida recebeu credenciais de acesso aos sistemas informáticos SCLÍNICO e SINUS.
8. As credenciais de acesso relativas ao serviço de Atendimento Complementar da ... foram enviadas à arguida a 10/05/2019 data a partir da qual, sempre que desempenhava as suas funções nesse serviço procedia aos registos no sistema informático dos montantes pagos pelos utentes a título de taxas moderadoras.
9. De acordo com os procedimentos instituídos e vigentes no período em que a arguida trabalhou no ACES ..., ao final do dia, cada funcionário que cobrasse taxas moderadoras deveria extrair o mapa diário dos valores cobrados e entregar ao responsável da Unidade, juntamente com os valores em numerário recebidos nesse dia, para que este responsável solicitasse o talão de depósito, através do preenchimento do modelo PO.06.PROC.03-MOD.01 e procedesse depois a esse depósito.
10. No caso dos Atendimentos Complementares, como apenas se encontrava ao serviço, de cada vez, um único funcionário administrativo, inexistia qualquer funcionário com competências específicas para recolha e depósito dos montantes cobrados a título de taxas moderadoras.
11. Assim, nestes serviços (Atendimento Complementar), era o próprio funcionário que ali fazia o atendimento que deveria proceder, relativamente ao valor em numerário das taxas moderadoras cobradas aos utentes, de acordo com uma das seguintes alternativas:
a) Solicitar a emissão de talão de depósito, mediante preenchimento de formulário próprio, proceder a esse depósito e remeter o comprovativo do mesmo para os serviços de contabilidade/tesouraria do ACES; ou
b) Entregar o dinheiro diretamente na contabilidade/tesouraria do CES, juntamente com as fichas de trabalho diário; ou
c) Enviar por correio interno, para a contabilidade/tesouraria do ACES, em envelope fechado, acompanhado de protocolo, através de motorista.
12. Em conformidade com o procedimento (PO.06-PROC.03) instituído pelo ACES ... o depósito em Banco dos valores cobrados ou a sua entrega na tesouraria do ACES deveriam ocorrer no mais curto espaço de tempo e, sempre que possível, no próprio dia ou em dia seguinte.
13. Se a entrega/depósito nessas circunstâncias não fosse possível por algum motivo, deveria ser solicitada exceção ao Diretor executivo do ACES ....
14. Seguindo os procedimentos, que eram do seu conhecimento, a arguida entregou, na secretaria do ACES ..., os valores em numerário das taxas moderadoras cobradas nos meses de maio e junho de 2019 no Atendimento Complementar da ....
15. A partir de data não concretamente apurada de julho de 2019, a arguida não entregou/depositou as quantias em numerário que recebesse a título de taxas moderadoras nesse Atendimento Complementar, delas se apoderando.
16. O que fez relativamente a todas as quantias cobradas em numerário no Atendimento Complementar da ... entre o dia 21/07/2019 e o dia 01/12/2019, no valor global de 713,80 €.
17. Assim procedeu a arguida, apesar de logo no início de agosto de 2019 ter sido detetada a falta de entrega da quantia recebida em julho, e de ter sido advertida, pela funcionária EE, em exercício de funções na contabilidade/tesouraria e com competências para efetuar o lançamento de toda a receita do ACES ..., da necessidade de proceder prontamente à entrega/depósito da quantia em falta.
18. Apenas após diversas interpelações escritas efetuadas, em setembro e outubro de 2019, pelas funcionárias EE e FF, para a entrega urgente dos montantes cobrados e não entregues/depositados e depois de notificada pela Diretora executiva do ACES ..., com a advertência de encaminhamento da situação para o gabinete jurídico da ARS – LVT, veio a arguida a restituir, a 10/11/2019, o montante de 51,50 € correspondente ao valor das taxas moderadoras cobradas no dia 29/09/2019.
19. Nessa data (10/11/2019) e para além desse valor, a arguida tinha já feito suas as quantias de:
- 160,40 €, cobrada a 21/07/2019;
- 90,00 €, cobrada a 04/08/2019;
- 116,50 €, cobrada a 11/08/2019;
- 110,00 €, cobrada a 06/10/2019;
- 80,50 €, cobrada a 13/10/2019;
- 95,90 €, cobrada a 01/11/2019.
20. Por tais factos foi determinada, a 18/11/2019, a abertura de processo de inquérito contra a arguida (processo n.º 7/2019).
21.Já na pendência desse processo e depois de ouvida no âmbito do mesmo, veio a arguida a restituir os seguintes valores, recebidos a título de taxas moderadoras no Atendimento Complementar da ...:
a) A 26/02/2020:
- 80,50 €, cobrados a 13/10/2019;
- 9,00 €, cobrados a 01/12/2019.
b) A 30/04/2020:
- 160,40 €, cobrados a 21/07/2019.
22. Assim, relativamente ao serviço prestado no Atendimento Complementar da ..., a arguida apoderou-se do montante global de 713,80€, do qual nunca restituiu a quantia global de 412,40€, conforme se discrimina:

Valores recebidos entre julho e dezembro de 2019

DIASValor

Cobrado

TotalEntrega tesouraria/ACES/DepositoData depositoFls
ConsultasMCDT
21.7.2019141,00€19,40€160,40€Depositado pela arguida30.4.2020492
04.8.201990,00€0,00€90,00€Não entregue nem depositado
11.08.2019116,50€0,00€116,50€Não entregue nem depositado
29.09.201948,50€3,00€51,50€Entregue na secretaria14.11.2019489v a 490v
6.10.2019108,00€2,00€110,00€Não entregue nem depositado
13.10.201980,50€0,00€80,50€Depositado pela arguida26.02.2020491
01.11.201990,00€5,90€95,90€Não entregue nem depositado
01.12.20199,00€0,00€9,00€Depositado pela arguida26.02.2020491
Total                                                          713,80€

23. O processo de inquérito veio a dar origem ao processo disciplinar n.º ...20, que culminou com a aplicação de pena disciplinar de suspensão por 20 dias. Nesse contexto, e apesar de a arguida ter requerido a consolidação da mobilidade interna, foi a mesma indeferida, por decisão de 19/03/2020, tendo reiniciado funções na Câmara Municipal ... a 01/06/2020.
24. A arguida acedeu aos montantes em dinheiro acima discriminados devido à sua qualidade profissional e por força do exercício das funções que lhe foram atribuídas, dinheiro que tinha o dever de entregar ao ACES ... e que constituía receita da ARS-LVT.
25. Não obstante disso estar plenamente ciente, decidiu a arguida apoderar-se desse dinheiro, fazendo-o seu, sabendo que o mesmo não lhe pertencia e que atuava sem autorização e contra a vontade do ACES ..., em detrimento das finalidades públicas pela mesma prosseguidas, atingindo assim os deveres e obrigações decorrentes das suas funções públicas e o seu estatuto profissional.
26. A arguida atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime de peculato.
27. O assistente DD é gerente da sociedade A... Lda. (doravante C...), com o NIPC ...42, desde a sua constituição em 26/07/2016.
28. A sociedade C... faz parte do “Grupo ...” e é proprietária de uma clínica de hemodiálise instalada no Edifício... na ....
29. Para poder funcionar como clínica de hemodiálise, a C... teve de obter o necessário licenciamento e, para poder prestar serviço no âmbito do Serviço Nacional de Saúde (SNS), carecia da celebração de convenção (Decreto-Lei n.º 139/2013, de 9/10).
30. Todo o processo de obtenção do licenciamento e celebração de convenção com o SNS por parte da C... foi bastante demorado, tendo os representantes da sociedade acima referida, entre os quais o assistente, desenvolvido uma campanha e petição pública, difundida pelas redes sociais e que reuniu mais de 7.700 subscrições.
31. Pelo que a situação era do conhecimento público da região, tendo a celebração de convenção com o SNS, ocorrida em junho de 2019, sido notícia nos meios de comunicação social locais e nacionais, assim como foi divulgada na página eletrónica do SNS .
32. A entrada em funcionamento da clínica de hemodiálise da ... era, aliás, assunto de interesse social, face à necessidade de evitar que muitos doentes da zona tivessem de continuar a percorrer cerca de 100 quilómetros para efetuar os seus tratamentos.
33. A alocação e transporte dos pacientes às Clínicas do setor convencionado, como a C..., é assegurado gratuitamente para os utentes e organizado pelos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES), tendo por referência o domicílio do doente (cfr. Portaria n.º 142-B/2012, de 15/5 e Regulamento anexo ao Despacho n.º 7702-C/2012, de 4/6, em especial, art. 7º).
34. A C... situa-se na área de influência do ACES ... (Leiria), ACES ... (Santarém) e ACES ... (Caldas da Rainha).
35. Contudo, e apesar de obtida a convenção com o SNS, a C... apenas teve autorização para iniciar os tratamentos a partir de 1 de setembro de 2019.
36. Foram identificados cerca de 79 utentes da zona de influência da C..., relativamente aos quais era expectável o seu pronto encaminhamento para essa clínica.
37. Os associados do B..., realizaram em inícios de outubro de 2019, uma palestra com intervenção de um nefrologista a ter lugar em meados de novembro de 2019.
38. A arguida era membro do B..., sendo no mandato atual, de 2021-2022, Presidente do Conselho Diretor.
39. Em data não concretamente apurada, mas entre 10 e 16 de outubro de 2019, o assistente esteve presente numa reunião informal com alguns membros do B..., neles se incluindo a arguida, a fim de prepararem a referida palestra.
40. Nessa reunião, foi discutida a questão da existência de doentes que teriam de se deslocar a Leiria, Santarém e Óbidos para realizar tratamentos de hemodialise, quando a clínica C... estava plenamente em funcionamento e com convenção em vigor, demonstrando o assistente desagrado pela falta de encaminhamento de doentes para a esta clínica.
41. Nesse contexto, a arguida, também conhecida no meio dos Rotários por “GG”, interveio, informando que trabalhava no ACES ....
42. A arguida, no final da referida reunião informal, dirigiu-se ao assistente DD, abordando a questão da falta de encaminhamento de doentes pertencentes ao ACES ... para a sua clínica.
43. E propôs-se falar com uma colega do mesmo Agrupamento de Centros de Saúde para desbloquear a situação.
44. Tal disponibilidade, motivou que no dia seguinte ou nos dias imediatos, o assistente, que desconhecia as concretas funções da arguida no ACES ..., a tivesse questionado, através de contacto telefónico, se já tinha conseguido falar com a colega sobre a falta de encaminhamento de doentes, ao que esta disse ainda não ter efetuado tal contacto.
45. Assim, no dia 18/10/2019, pelas 12:53, a arguida, através do seu telemóvel com o número ...21, enviou uma mensagem escrita para o número de telemóvel ...52 do assistente DD, com o seguinte conteúdo:
“Boa tarde futuro companheiro rotary Surgiu-me 1 imprevisto e estou a necessitar de 1000,00 € para orientar umas que me apareceram extra..lembrei de si na possibilidade de ajudar…acha possível? O pagamento seria todos os meses 100,00 €..Acha que é possível? Aguardo 1 resposta breve pedindo o máximo sigilo…sei que não é assunto de sms mas como estou a trabalhar e estou um pouco “aflita”…ficaria lhe muito grata se me pudesse ajudar…Cumprimentos AA”
46. Inexistindo qualquer relação de proximidade, pessoal ou profissional, que motivasse um pedido como o formulado pela arguida, entendeu-o o assistente como a solicitação de uma contrapartida pela sua intervenção na resolução do problema da falta de encaminhamento de doentes do ACES ... para realização de hemodiálise na sua clínica.
47. Razão pela qual o assistente se absteve de qualquer resposta ao solicitado.
48. Perante o silêncio do assistente DD, no dia 04/11/2019, pelas 10:22, a arguida enviou nova mensagem para o mesmo destinatário e através do mesmo cartão telefónico, com o seguinte conteúdo (cfr. fls. 98 e 103 a 106):
“Bom dia…peço desculpa estar a incomodar..tentei ligar lhe para lhe pedir 1 grande favor…estou enrrascada” por um valor de 500,00 €…tenho que fazer 1 pagamento ate hoje o mais tardar amanha…lembrei de si…Sera que me pode ajudar ou sabe de alguém que o possa fazer com descrição…ficaria lhe eternamente grata…aguardo 1 resposta breve.. Obrigada…GG rotary.”
49 . Do relatório social da arguida consta o seguinte:
“O processo de desenvolvimento de AA decorreu num agregado de modesta condição económica e social, o progenitor era operário fabril e a mãe ajudante de cozinha. A arguida reconhece que lhe foram transmitidos valores e práticas integradas. Iniciou a escolaridade na idade normal, completando o 12.º ano de escolaridade com cerca de 21 anos. Regressou aos estudos em idade adulta, tendo completado, segundo referiu, a licenciatura em Gestão de Recursos Humanos no passado ano letivo. Referiu ter começado a trabalhar aos 16 anos, num café, ingressando no ministério da Educação aos 23 anos. Em 2011 foi transferida para a Câmara Municipal ..., onde desenvolveu atividade no departamento de educação, primeiro, e posteriormente, no departamento de urbanismo. Exerceu em regime de mobilidade atividade na ACES ... (Ministério da Saúde) a partir de dezembro de 2018. Em paralelo com as suas atividades laborais na administração pública, desenvolveu também atividade por conta própria como comissionista na venda de eletrodomésticos. Residiu com os progenitores até aos 29 anos, autonomizando-se então, adquirindo um apartamento na localidade de ..., onde passou a residir sozinha. Segundo referiu, procedeu à venda desse apartamento em novembro de 2018, por não dispor de rendimentos bastantes para o pagamento das prestações mensais, residindo em ..., em apartamento arrendado, no atual endereço. Não referiu qualquer relacionamento afetivo significativo na sua trajetória de vida. À data dos factos que originaram o presente processo, que as peças processuais nos permitem situar entre julho e dezembro de 2019, em fevereiro de 2021, a arguida residia sozinha, em ..., na morada acima indicada. Em termos profissionais, exercia atividade no ACES ... em regime de mobilidade, situação que se manteve até maio de 2020, retomando então funções na Câmara Municipal .... Encontra-se afeta ao setor da educação e desenvolve atividade no Centro Escolar .... Do contacto efetuado com o Chefe de Unidade onde se encontra inserida resulta uma avaliação crítica ao seu desempenho profissional, tanto em matéria de assiduidade, tanto ao nível das relações interpessoais, sendo considerada pessoa conflituosa. Expressou vivenciar algumas dificuldades de natureza económica. Aufere mensalmente um salário líquido de cerca de 700 euros. Paga de renda de casa, segundo referiu, 380 euros mensais (não celebrou contrato de arrendamento, de acordo com o que mencionou, não tendo apresentado qualquer documento comprovativo desse encargo bem como de encargos relativos a consumos de água e energia). Segundo referiu trata-se de uma pessoa isolada, com poucos contactos sociais, com um quotidiano rotineiro em que não são privilegiadas as interações sociais. A amiga e colega de trabalho que contactámos, descreve a arguida como pessoa educada e de bom trato, esforçada e trabalhadora, que exerceu sempre outras atividades para além da sua atividade profissional regular, como forma de reforçar o seu rendimento. Dos elementos recolhidos, no meio de residência anterior não era referenciada negativamente. O elemento das forças policiais que contactámos não associa AA a outro tipo de condutas delituosas. A arguida apresenta preocupação relativamente à sua situação jurídico-processual, sobretudo pelas eventuais consequências que daí poderão advir para a sua vida pessoal, nomeadamente pelo impacto negativo que a pena possa vir a ter ao nível da sua imagem social. Reconhece em abstrato o desvalor da tipologia criminal em causa no presente processo e gravidade das respetivas consequências, embora tenda para alguma minimização.
50. A arguida não tem antecedentes criminais.
Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a discussão da causa, nomeadamente que:
1.Apesar de obtida a convenção com o SNS, a C... só a 2 de outubro de 2019 começou efetivamente a receber alguns doentes, mas nenhum do ACES ....
2.Sabendo perfeitamente do desagrado do assistente pela falta de encaminhamento de doentes e estando, à data, com dificuldades financeiras e diversas quantias em dívida relativamente às taxas moderadoras cobradas no atendimento do ACES ..., que insistia para que procedesse, com urgência, à sua entrega/depósito,
3. decidiu a arguida, mercadejar com o seu cargo e procurar obter do assistente as quantias que entendeu necessárias à satisfação das suas necessidades financeiras do momento.
4. Nesse contexto, aproveitando a preocupação e interesse do assistente nas diligências que pudesse encetar enquanto funcionária do ACES ... para resolver o problema com que o mesmo se enfrentava, decidiu a arguida, cumprindo o propósito referido em 3., solicitar-lhe dinheiro, na expectativa de que o mesmo, para esse efeito, lho entregasse.
5. A arguida valeu-se das suas funções como funcionária do ACES ... e da possibilidade, que pretendeu demonstrar perante outrem, de que poderia, por causa de tais funções, auxiliar, através de uma colega, também funcionária do ACES ..., na pretensão do assistente ao encaminhamento de doentes para hemodiálise, para solicitar a DD as quantias monetárias indicadas nas mensagens acima referidas.
6. Sabia perfeitamente a arguida que os pedidos efetuados não tinham qualquer justificação nem poderiam ser encarados pelo assistente senão como uma compensação pelas diligências que se comprometeu em realizar enquanto funcionária pública, adstrita ao ACES ..., junto de uma colega sua, estando simultaneamente ciente de que essas quantias não lhe eram devidas e que com essa atuação punha em causa a isenção, integridade e retidão das funções públicas desempenhadas, violando desse modo os seus deveres funcionais, sendo, por isso, indevidas.
7. Mais sabia a arguida que os pedidos formulados ao assistente não eram conformes aos usos e costumes, nem podiam, pela sua natureza e contexto em que foram efetuados, ser considerados socialmente adequados, estando perfeitamente ciente de que o seu destinatário também nunca os entenderia como tal.
8. A arguida atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime de recebimento indevido de vantagem.
Motivação da decisão de facto
Uma vez que a arguida usou, validamente, o seu direito ao silêncio, apenas falou no final da audiência para referir que na altura estava a passar por dificuldades financeiras e que não teve qualquer intenção de prejudicar o assistente; a convicção do Tribunal teve por base as declarações de assistente: DD, que explicou como decorreu o processo do centro de diálise para os utentes da zona fazerem hemodiálise; e relatou a reunião havida com alguns membros do B... e aí trocaram contato telefónico e apenas falou com a arguida uma vez para saber se tinha conseguido falar com a colega; descreveu as mensagens que recebeu do telefone da arguida a pedir-lhe a quantia de 1000€ que pagaria 100€ por mês e afirmou que nunca lhe respondeu mas que aquela lhe voltou a mandar outra mensagem a pedir-lhe 500 € e que voltou a não lhe responder; sopesado o depoimento das declarações das testemunhas : FF, conhece a arguida por motivos laborais, exerceu funções na ACES desde 1.1.2018 até agora 31.8.22, na contabilidade e substitua a arguida quando ela estava de ferias na parte da tesouraria; as unidades de saúde cobravam as receitas e ao fim do dia havia uma pessoa responsável administrativa que verificava o que cada
um tinha cobrado e depositar no banco, nos atendimentos complementares cobrava as verbas em urgência neste caso era na ... que a arguida estava; o dinheiro é pago pelos utentes e é recebido pelo funcionário e a pessoa responsável tinha três hipóteses: ou guardada num local estabelecido para o efeito e no dia seguinte ia depositar ou podia deixar o dinheiro com um protocolo e era entregue na tesouraria ou passar na tesouraria e entregar a verba; há um programa onde é registada a taxa moderadora e no dia seguinte consegue saber-se o que cada profissional recebeu, têm credenciais intransmissíveis e pessoais; começaram a detetar a falta na ... e começaram a notificar a pessoa a dizer que tinha que entregar; notificou a arguida por emails , mas não recorda o valor inicial tem conhecimento que agora seria 400 e tal euros; a arguida repôs algum dinheiro, alegando dificuldades e que tinha sido assaltada e acabava por não entregar tudo; através do programa tudo é passível de ser extraído e a arguida sempre assumiu; houve um processo disciplinar e arguida teve uma sanção disciplinar; EE, está aposentada desde agosto de 2021, trabalhava na contabilidade, tinha funções de tesoureira e recebia as taxas moderadoras; nos atendimentos complementares também recebiam taxas moderadoras e tinha que entregar dinheiro na tesouraria, ou deposita, ou acorda com a diretora executiva para saber onde entregar o dinheiro e era através das plataformas informáticas que se tinha conhecimento; houve um problema na ... quando a arguida deixou de entregar dinheiro, chegavam ao fim do mês e não coincidia; foi confrontada com a listagem de fls. 434 vº ; a arguida foi confrontada com as faltas, quer por telefone, pagou qualquer coisa, por vezes era ela própria que pedia por email para pagar e quando saiu para a reforma faltava 400 e tal euros; teve que dar conhecimento à chefe, e a partir dai deixou de controlar; desconhece se a arguida tem, ou não, dificuldades financeiras; HH, conhece a arguida há mais de 20 anos , mas sobre a situação em concreto nada sabe; II, conhece a arguida apenas há um ano; e esclareceu o contexto em que conheceu a arguida, no mais estas testemunhas esclareceram o Tribunal sobre a personalidade da arguida e as suas dificuldades financeiras; na análise critica da documentação junta aos autos principais: Participação de fls. 22 a 26; Cópias do processo de inquérito n.º ...19 da ARS-LVT de fls. 27 a 47; - Mensagens de fls. 68 a 71; Registo fotográfico de fls. 97 a 107; Informação da Altice de fls. 122 e 123; Certidões permanentes de fls. 131 a 140; Informação da Altice de fls. 164 e 165; Análise de registo de chamadas de fls. 178 e 179; Extratos e fichas de assinaturas de fls. 211 a 242, 251 a 258, 261 a 322 verso; Informação/documentação do ACES ... de fls. 243 a 247; Informação/documentação do ACES ... de fls. 347 a 349; Prints extraídos de fontes abertas de internet de fls. 393 a 399; Informação da ARS-LVT de fls. 399 a 493 verso; informação/documentação da ARS-LVT de fls. 431 a 436 verso; Informação do ACES ..., de fls. 461 a 494 verso; Prints extraídos de fontes abertas de internet de fls. 498 a 502 verso. Anexo I: Certidão do processo de inquérito e disciplinar; Anexo II: DVD com gravação 15 de programa televisivo (por referência a fls. 176 dos autos). Anexo III: Documento da autoridade da concorrência. Inquérito 3031/21.... (apensado): Certidão de fls. 2 a 155; 244 e 244 verso, fls 465, 493 e 493 verso, 493 e 493 verso, 434v, 435, 436 e 436 verso, 34 a 46 do Anexo I, fls. 4 do Anexo I, fls. 49 a 51 do Anexo I, 6 do Anexo I, 348 e 349, 131 a 132 verso, 498 a 499, fls. 498 a 502, fls. 393, 98 a 102; Certificado de Registo Criminal e relatório social junto aos autos; já os factos dados como não provados os mesmos tiveram por base a ausência de prova quanto aos mesmos ou prova em contrário.
Vejamos:
Com efeito, da extensa prova documental junta aos autos, bem como do depoimento isento e credível das testemunhas FF e EE, bem assim das ultimas declarações da arguida, duvidas não restam ao Tribunal que os factos se passaram conforme supra descritos no que tange ao crime de peculato, ou seja a arguida, funcionária pública, e no exercício das suas funções, a partir de determinada altura – julho de 2019 – deixou de entregar e ou depositar as quantias que recebia a título de taxas moderadoras e fê-las suas; já relativamente ao crime de recebimento indevido de vantagem considerando os factos dados como não provados, ou seja a convicção do Tribunal sobre a pratica pela arguida deste crime, não se mostrou segura o suficiente de modo a proceder à condenação da arguida ou seja não se convenceu de forma segura que a arguida tenha “mercadejado” como seu cargo e tenha procurado obter do assistente, que afirmou apenas ter visto a arguida uma vez, quantias que satisfizessem as suas necessidades, ou que o tenha feito enquanto funcionária publica e se tenha valido das suas funções como funcionária do ACES ...; outrossim não se convenceu o Tribunal que a arguida, por causa das suas funções e através de uma colega tenha demonstrado perante terceiros de que podia encaminhar doentes de que podia encaminhar doentes para hemodiálise e por isso pedir dinheiro ao assistente, pelo que terá a arguida, necessariamente, que ser absolvida nesta parte.»

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3. Da análise dos fundamentos do recurso

Como é sabido, e resulta do disposto nos arts. 368.º e 369.º, ex vi art. 424.º, n.º 2, todos do CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem o objecto do recurso pela seguinte ordem:

Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.

Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e, depois dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP.

Por fim, das questões relativas à matéria de direito.

Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas.


*

Como acima deixámos dito, o recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, que pretende ver alterada por forma a sustentar a condenação da arguida (também) pela prática do crime de recebimento indevido de vantagem que lhe vinha imputado.

Invoca, para tanto, que o Tribunal incorreu em erro de julgamento, porquanto, em seu entender, a prova produzida, apreciada à luz das regras da lógica, da experiência e da normalidade, impunha que determinados pontos da matéria de facto dada como não provada fossem julgados provados.

No que se refere à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, cumpre, antes de mais, referir:

Em sede de recurso para o Tribunal da Relação, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: quer por arguição dos vícios a que faz referência o art. 410.º, n.º 2, do CPP (a chamada revista alargada), quer pela impugnação ampla da matéria de facto, a que alude o art. 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma.

No primeiro caso, os mencionados vícios decisórios têm de resultar do texto da decisão recorrida, encarado por si só ou conjugado com as regras gerais da experiência comum – sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo – visto tratar-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna, e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.

No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova registada e produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º s 3 e 4 do art. 412.º do CPP.

De acordo com este normativo, sempre que pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto o recorrente deve especificar:

- os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

- as provas que devem ser renovadas;

A especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação individualizada dos factos que constam da decisão recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.

Por seu turno, a especificação das “concretas provas” corresponde à indicação do conteúdo específico de meio de prova ou de obtenção da prova, com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida.

Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretende, dos vícios previstos no n.º 2 do art. 410.º do CPP e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cf. art. 430.º do CP).

E o n.º 4 do art. 412.º estabelece que «quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação», acrescentando o seu n.º 6 que «no caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.»

Como se lê no Ac. do STJ de 12-06-2008, Proc. n.º 4375/07 - 3.ª[1], esta possibilidade de sindicância da matéria de facto sofre quatro tipos de limitações:

«- desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso;

- já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições;

- por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação;

- a juzante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.»

No caso, o recorrente indica – na motivação e nas subsequentes conclusões – os pontos de facto da decisão recorrida que considera incorrectamente julgados (concretamente, os pontos 2 a 8 da matéria de facto dada como não provada), e refere os elementos que, também na sua perspectiva, imporiam decisão diversa da recorrida, a saber, as declarações prestadas pelo assistente, DD, transcrevendo excertos dessas declarações e concretizando a sua localização nos suportes digitais da gravação da audiência de julgamento.

Irá, assim, este Tribunal conhecer da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Mas, como com clareza se explica no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19-03-2014[2], «O recurso com base no disposto no art. 431º do CPP poderá ter como fundamento:

- a atribuição, pelo tribunal recorrido, aos meios de prova convocados como suporte da decisão, de conteúdo diverso daquele que efectivamente têm ou daquele que foi realmente produzido em audiência; ou

- a violação de critérios legais de valoração e apreciação da prova incorporada nos autos ou produzida oralmente em audiência): - pela valoração de meios de prova ilegais ou nulos; - pela violação de critérios de apreciação da prova vinculada (vg. prova documental e pericial) - pela violação de princípios gerais de apreciação da prova, designadamente o princípio da livre apreciação previsto no art. 127º do CPP e o princípio in dubio pro reo.

A reprodução da gravação dos depoimentos, no tribunal de recurso, como instrumento de garantia/comprovação da genuinidade dos mesmos e da eventual divergência entre o conteúdo material do depoimento prestado em audiência e o pressuposto na decisão recorrida, apenas tem sentido no caso de, segundo a motivação do recurso, a decisão recorrida ter atribuído, aos depoimentos prestados oralmente em audiência, conteúdo/afirmações relevantes, materialmente diversas daquelas que foram efectivamente produzido em audiência. Afinal quando o fundamento do recurso é o de que a testemunha ou o depoente afirmou em audiência “coisa” materialmente diversa daquela que é reportada/valorada como suporte da decisão recorrida e que, como tal, inquinou a decisão, impondo, por isso, a sua correcção pelo tribunal de recurso. Pois que, como instrumento de reprodução, apenas permite corrigir erros de “audição” do tribunal recorrido.

Competindo ao recorrente, em tal situação, especificar as “passagens” que confirmam a apontada desconformidade entre aquilo que foi dito em audiência e aquilo que foi valorado pelo tribunal recorrido como suporte da decisão impugnada.

A gravação (como instrumento de garantia da genuinidade dos depoimentos) nada adiantará quando o fundamento do recurso radica na violação de critérios de valoração – não reproduzidos pela gravação. Pois que, pela sua natureza, a gravação apenas reproduz e comprova o teor dos depoimentos gravados. Nada adiantando para efeito de apreciação da obediência aos critérios (legais) de ponderação/avaliação/valoração da prova - que resultam da lei e dos princípios gerais de direito processual penal.»

É precisamente esse o caso dos autos, em que o recorrente não afirma que o Tribunal não tenha compreendido ou tenha subvertido o teor ou sentido das declarações a que alude.

O que põe em questão é a convicção formada pelo Tribunal, com base na livre apreciação da prova e nas regras da experiência, da qual diverge, sustentando que a prova produzida era suficiente para ter como verificados determinados factos que foram dados como não provados.

Impõem-se, assim, antes de mais, algumas considerações no que respeita ao princípio da livre apreciação da prova.

«A liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e controlo. (…) A livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. (…) Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto, capaz de impor-se aos outros»[3].

«Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:

- a recolha de elementos – dados objectivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;

- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal – que é livre, art.º 127.º do Código de Processo Penal – mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;

- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;

- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis – como a intuição.

Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).

Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade) a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).

A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.

A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art.º 206.º) e, consequentemente, o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art.º 321.º); publicidade essa que se estende a todo o processo – a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art.º 86.º), querendo-se que o público assista (art.º 86.º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos actos (art.º 86.º/b)); que se consulte os autos, se obtenha cópias, extractos e certidões (art.º 86.º/c)). Há um controlo comunitário, quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade.

A oralidade da audiência, que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art.º 96.º do Código de Processo Penal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, p. ex..

A imediação vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.

É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.

A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.

Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.»[4]

Por outro lado, é um dado assente que a gravação dos depoimentos prestados oralmente em audiência permite o controlo e a fiscalização, pelo tribunal superior, da conformidade da decisão com as afirmações produzidas em audiência, mas não substitui a plenitude da comunicação que se estabelece na audiência pública com a discussão dos outros meios de prova, a oralidade e a imediação, no confronto dialéctico dos depoentes por parte dos vários sujeitos processuais, no exercício permanente do contraditório[5].

Daí que os julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, perante duas versões dos factos, só podem afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da 1.ª instância naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja, quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art. 374.º, n.º 2 do CPP[6].

Exigindo-se a convicção do julgador sobre a prática dos factos da acusação para além da dúvida razoável e radicando o princípio in dubio pro reo na mesma dúvida razoável, este situa-se no âmago da livre apreciação da prova, constituindo como que o “fio da navalha” onde se move a missão de julgar. Convicção “para lá da dúvida razoável” e “dúvida razoável” legitimadora do princípio in dubio pro reo limitam-se e completam-se reciprocamente, obedecendo aos mesmos critérios de legalidade da produção e da valoração da prova de apreciação vinculada e da livre apreciação dos restantes em conformidade com o critério do art. 127.º do CPP, sujeitos ambos à mesma exigência de legalidade da prova e da sua apreciação motivada e crítica, da objectividade, racionalidade e razoabilidade dessa apreciação.

No mesmo sentido podem ver-se diversos autores, designadamente Rodrigues Bastos[7], que refere que ao juiz «…não é permitido julgar só pela impressão que as provas oferecidas pelos litigantes produziram no seu espírito, mas antes se lhe exige que julgue conforme a convicção que aquela prova determinou e cujo carácter racional se expressará na correspondente motivação», Cavaleiro de Ferreira[8], que escreve que «o julgador é livre ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no direito probatório», e ainda Germano Marques da Silva[9]: «O juízo sobre a valoração da prova faz-se em diversos níveis. Num primeiro dependente da imediação, nele intervindo elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo intervindo as declarações e induções que realiza o julgador a partir de factos probatórios, que hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios de experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência”».

De entre abundante jurisprudência quanto a tal matéria, quer das Relações quer do Supremo Tribunal de Justiça, cita-se apenas, pela sua particular clareza, o proferido por este último Tribunal em 23-04-2009, no âmbito do Proc. n.º 114/09 - 5.ª[10]: «(…) a avaliação da decisão é a resposta, enquanto remédio jurídico, para incorrecções e ilegalidades concretamente assinaladas. Não um novo apuramento global do acontecido, ou a reapreciação do objecto do processo, porque a garantia do duplo grau de jurisdição, em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, antes visando, apenas, a detecção e correcção de pontuais, concretos, e em regra excepcionais, erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da dita matéria de facto.

Quanto ao julgamento de facto pela Relação, uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se fez da prova, e outra é detectar-se no processo de formação da convicção desse julgador, erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório.

Ora, ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no art. 127.º do CPP, ou seja, assenta (fora das excepções relativas a prova legal que não interessam ao caso), na livre convicção do julgador e nas regras da experiência. Por outro lado, também não pode esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá, e o julgamento da Relação não permite. Basta pensar, naquilo que, em matéria de valorização de testemunhos pessoais, deriva de reacções do próprio ou de outros, de hesitações, pausas, gestos, expressões faciais, enfim, das particularidades de todo um evento que é impossível reproduzir.

Serve para dizer, que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado.»

À luz destas considerações analisemos, então, a ponderação conjugada e exame crítico das provas de que resultou a fixação da «verdade histórica» vertida no texto da decisão recorrida, com vista a apurar se, como o recorrente sustenta, ocorreu erro de julgamento[11].

Porque o erro de julgamento se reporta à matéria de facto, o mesmo analisa-se em momento anterior à produção do texto, a fim de verificar se existem ou não os dados objectivos que se apontam na motivação ou se foram violados os princípios para a aquisição desses mesmos dados.

Assim, cabendo ao Tribunal proceder à audição das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa (cf. art. 412.º, n.º 6, do CPP), procedeu-se à audição integral das declarações do assistente, DD (únicas que para o efeito importam, já que, como refere o Tribunal recorrido na fundamentação da sua convicção, «a arguida usou, validamente, o seu direito ao silêncio, apenas falou no final da audiência para referir que na altura estava a passar por dificuldades financeiras e que não teve qualquer intenção de prejudicar o assistente»), confrontando-as com o acórdão recorrido e a restante prova junta aos autos, quanto aos factos e sua motivação, a fim de analisar as razões de discordância do recorrente.

O recorrente afirma que devia ser dada como provada toda a matéria de facto elencada nos pontos 2 a 8 dos factos não provados e que constava da acusação, ou seja:

«2. Sabendo perfeitamente do desagrado do assistente pela falta de encaminhamento de doentes e estando, à data, com dificuldades financeiras e diversas quantias em dívida relativamente às taxas moderadoras cobradas no atendimento do ACES ..., que insistia para que procedesse, com urgência, à sua entrega/depósito,

3. decidiu a arguida, mercadejar com o seu cargo e procurar obter do assistente as quantias que entendeu necessárias à satisfação das suas necessidades financeiras do momento.

4. Nesse contexto, aproveitando a preocupação e interesse do assistente nas diligências que pudesse encetar enquanto funcionária do ACES ... para resolver o problema com que o mesmo se enfrentava, decidiu a arguida, cumprindo o propósito referido em 3., solicitar-lhe dinheiro, na expectativa de que o mesmo, para esse efeito, lho entregasse.

5. A arguida valeu-se das suas funções como funcionária do ACES ... e da possibilidade, que pretendeu demonstrar perante outrem, de que poderia, por causa de tais funções, auxiliar, através de uma colega, também funcionária do ACES ..., na pretensão do assistente ao encaminhamento de doentes para hemodiálise, para solicitar a DD as quantias monetárias indicadas nas mensagens acima referidas.

6. Sabia perfeitamente a arguida que os pedidos efetuados não tinham qualquer justificação nem poderiam ser encarados pelo assistente senão como uma compensação pelas diligências que se comprometeu em realizar enquanto funcionária pública, adstrita ao ACES ..., junto de uma colega sua, estando simultaneamente ciente de que essas quantias não lhe eram devidas e que com essa atuação punha em causa a isenção, integridade e retidão das funções públicas desempenhadas, violando desse modo os seus deveres funcionais, sendo, por isso, indevidas.

7. Mais sabia a arguida que os pedidos formulados ao assistente não eram conformes aos usos e costumes, nem podiam, pela sua natureza e contexto em que foram efetuados, ser considerados socialmente adequados, estando perfeitamente ciente de que o seu destinatário também nunca os entenderia como tal.

8. A arguida atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime de recebimento indevido de vantagem.»

E, como já referimos, alega que a prova produzida em audiência através das declarações do assistente impunha que tal matéria factual tivesse sido dada como provada, o que não sucedeu porquanto o Tribunal não terá feito uma análise global da prova, documental e por declarações, segundo «uma discricionariedade guiada pelas regras da ciência, da lógica e da argumentação, em respeito pelo princípio da livre apreciação da prova».

Adiantamos, desde já, que, no essencial, se nos afigura assistir razão ao recorrente.

Vejamos porquê.

Sendo inequívoco que a prova tem como função a demonstração da realidade dos factos (art. 341.º, n.º 1, C. Civil) ela não pressupõe, como vem afirmando a melhor jurisprudência que aqui se segue de perto, uma certeza absoluta, lógico-matemática, bastando que permita alcançar «um grau de certeza que as pessoas mais exigentes reclamariam para dar como verificado um certo facto» ou que permita afastar toda a dúvida razoável, não qualquer dúvida mas a dúvida fundada em razões adequadas.

E não é decisivo para se poder concluir pela realidade dos factos descritos na acusação ou na pronúncia que haja provas directas do seu cometimento pelo arguido, designadamente que alguém tenha vindo relatar em audiência que o viu a praticá-los ou que o próprio arguido os assuma expressamente.

Condição necessária, mas também suficiente, é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa, dentro do que é lógico e normal, de que os factos se passaram da forma narrada na acusação.

Ou seja, dentro do quadro probatório global a apreciar existem, para além da prova directa, «os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.

A noção de presunção (noção geral, prestável como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos, e por isso válida também, no processo penal) consta do artigo 349º do Código Civil: «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido».

Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.

As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. «Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência [ou de uma prova de primeira aparência». (cfr., v. g., Vaz Serra, "Direito Probatório Material", BMJ, nº 112 pág. 190).

Em formulação doutrinariamente bem marcada e soldada pelo tempo, as presunções devem ser «graves, precisas e concordantes». «São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar» (cfr. Carlos Maluf, "As Presunções na Teoria da Prova", in "Revista da Faculdade de Direito", Universidade de São Paulo, volume LXXIX, pág. 207).

A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerum que accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção.

A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção (cfr. Vaz Serra, ibidem).

Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.

A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros.

A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.

Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência experimental típica determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.»[12]

No caso dos autos, constata-se o seguinte:

A arguida optou por não prestar declarações sobre os factos que lhe vinham imputados, tendo afirmado, no final da audiência de julgamento, que na época em que os factos socorreram estava a passar por dificuldades financeiras e que não teve qualquer intenção de prejudicar o assistente.

Este último, DD, gerente da sociedade “A... Lda.”, relatou a forma como, numa reunião informal com alguns membros do B..., nos quais se incluía a arguida, que então informou que trabalhava no ACES ..., foi discutida a questão da existência de doentes necessitados de tratamentos de hemodiálise que tinham de se deslocar a Leiria para o efeito, não sendo encaminhados para a referida clínica quando estava já em vigor a convenção entre ela e o SNS.

Explicou que, no final dessa reunião, a arguida se lhe dirigiu e propôs-se ajudar a desbloquear a situação, falando com uma colega do mesmo ACES que «controlava internamente essa pasta», pelo que, num dos dias imediatos, o assistente lhe telefonou para saber se teria concretizado tal contacto, tendo a arguida respondido ainda não o ter feito.

E que, mais tarde, a arguida lhe enviou para o seu telemóvel duas mensagens a pedir um empréstimo (inicialmente de 1000,00€, depois de 500,00€) o que, dada a existência de qualquer relação de confiança entre ambos que pudesse sustentar tal pedido (não eram amigos nem sequer se conheciam antes daquela ocasião), o levou a crer que «alguma coisa não estava correcta» e que essa solicitação estaria relacionada com a «ajuda» que ela se propusera dar, tendo até achado tudo «um bocado descarado».

Apesar de não o afirmar expressamente, o Tribunal recorrido terá considerado credíveis as declarações do assistente, já que com base nelas (complementadas com os SMS documentados nos autos) foram dados como provados os factos constantes dos pontos 39 a 48 (para além de outros que agora não importam).

Perante a credibilidade dessas declarações (cuja audição permite apreender serem espontâneas e consistentes, pese embora a ausência de imediação), não se alcança – nem o Tribunal verdadeiramente explica – por que motivo «não se convenceu de forma segura que a arguida tenha “mercadejado” como seu cargo e tenha procurado obter do assistente, que afirmou apenas ter visto a arguida uma vez, quantias que satisfizessem as suas necessidades, ou que o tenha feito enquanto funcionária publica e se tenha valido das suas funções como funcionária do ACES ...; outrossim não se convenceu o Tribunal que a arguida, por causa das suas funções e através de uma colega tenha demonstrado perante terceiros de que podia encaminhar doentes de que podia encaminhar doentes para hemodiálise e por isso pedir dinheiro ao assistente».

É que, como com pertinência alega o recorrente na sua motivação, «tal conclusão é a única que podemos tirar do encadeamento dos acontecimentos tal como apurado em julgamento.

Certo que, nem as mensagens de texto enviadas pela arguida ao assistente, nem este o relatou, a arguida não anunciou directamente que intercederia em favor do assistente, desde que este lhe entregasse quantias em dinheiro… Mas também diremos que tal não acontece no normal desenrolar desta realidade criminosa. A mensagem que se pretende enviar está nas meias palavras, no que parece, sem que nada seja afirmado e deixando que seja o outro a concluir no sentido pretendido.

É precisamente o caso dos autos.

A arguida, num primeiro momento, informou o assistente de que exerce funções na ACES ... e que irá diligenciar por tentar desbloquear o problema da falta de encaminhamento dos doentes.

Num segundo momento, após trocar contactos telefónicos com o assistente, volta a referir que irá diligenciar junto da pessoa que tem a pasta.

Dias mais tarde a arguida envia mensagens de texto a solicitar um empréstimo em dinheiro ao assistente.

Tal como o assistente concluiu que a arguida lhe estava a pedir dinheiro para desbloquear a ida dos doentes, também deveria ter sido essa a conclusão do Tribunal a quo.

Foi por via das declarações prestadas pelo assistente que o Tribunal julgou provados os factos constantes sob os pontos 39 a 44.

Tais declarações, quando compaginadas com o teor das mensagens de texto enviadas pela arguida ao assistente – a solicitar quantias em dinheiro - revelam-se ainda mais credíveis, podendo então ser construído um caminho lógico sobre o que aconteceu: a arguida tinha conhecimento das dificuldades do assistente e, anunciado que exercia funções na ACES ..., propôs-se a desbloquear as dificuldades de encaminhamento de doentes e para esse efeito pediu dinheiro.

Ora, tendo sido julgado como provado aos apontados factos, perante o acervo probatório dos autos - necessariamente tinha de ser dado como provado que a arguida «decidiu mercadejar com o seu cargo e procurar obter do assistente as quantias que entendeu necessárias à satisfação das suas necessidades financeiras do momento»

Sabendo-se que a verificação dos elementos subjectivos do ilícito, que correspondem a uma realidade do foro íntimo, na ausência de confissão por parte do agente terão de ser aferidos através de factos objectivos que apontem nesse sentido, apreendendo-se a intenção daquele a partir da materialidade assente, em conformidade com aquelas regras da normalidade das coisas, dúvidas não há de que, no caso vertente, os factos conhecidos que resultam dos elementos de prova disponíveis nos autos constituem uma base segura e consistente para, mediante um raciocínio lógico, baseado na experiência comum, nas regras de normalidade da vida e das coisas, deles se retirar a conclusão de que a arguida, tendo conhecimento das dificuldades do assistente, ao propor-lhe auxiliar na sua resolução, invocando as funções que exercia na ACES ... e afirmando que para aquele efeito iria contactar com uma sua colega naquela entidade, e ao solicitar-lhe, na sequência, um empréstimo de determinados valores, estava a agir com a intenção de obter do assistente quantias que não lhe eram devidas e que, não existindo qualquer outra justificação para o pedido, o mesmo só poderia ser entendido como a solicitação de uma contrapartida pela ajuda oferecida em virtude das suas funções de funcionária pública, bem sabendo que essa sua conduta não era socialmente adequada e conforme aos usos e costumes, pois que não se configura como razoavelmente possível outro cenário fáctico, susceptível de gerar uma dúvida inultrapassável que pudesse justificar a convocação do princípio in dubio pro reo.

Salvo o devido respeito, na sucessão de acontecimentos que a materialidade dada como assente evidencia, a conclusão retirada pelo assistente, de que a arguida lhe estaria a solicitar uma contrapartida monetária em troca da sua ajuda, junto de uma terceira pessoa que conhecia em virtude das suas funções, para desbloquear o mencionado problema da falta de encaminhamento dos doentes, é a única que se apresenta lógica e conforme às regras da experiência comum, da normalidade da vida e das coisas, já que não existia entre arguida e assistente qualquer relacionamento pessoal (ou outro) em que se pudesse fundamentar esse pedido, conclusão lógica que o Tribunal recorrido só não retirou por se ter atido apenas à prova directa, sem a correlacionar, de forma conjugada e crítica, com os elementos de prova indirecta, absolutamente legítima e conforme à regra estabelecida no art. 127.º do CPP.

Também não oferece dúvidas que a arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, e de que tinha consciência da ilicitude da sua conduta e da sua punibilidade criminal, por ser do conhecimento generalizado dos cidadãos, embora não concretamente da previsão legal como «crime de recebimento indevido de vantagem».

Porque uma avaliação global das provas, à luz das regras da lógica e da experiência comum, não podia ter conduzido o Tribunal a dar como não provada a matéria constante dos pontos 2 a 8 dos “Factos não Provados”, com excepção do segmento final do ponto 8 («como crime de recebimento indevido de vantagem»), impondo decisão diversa, há que concluir que, nesta parte, incorreu em erro de julgamento.

Dispondo este Tribunal de poderes de intromissão na matéria de facto, nos termos da al. b) do art. 431.º do CPP, será de concluir que, perante a prova produzida e também em decorrência lógica da matéria de facto fixada e da fundamentação da convicção aduzida pelo Tribunal recorrido, se impõe eliminar dos «Factos não provados» os pontos 2 a 8 (com excepção do segmento do ponto 8 «como crime de recebimento indevido de vantagem»), que passarão a integrar o elenco dos Factos Provados, modificando-se este em conformidade.

Sanado o erro de julgamento, assim como o vício de erro notório na apreciação da prova em que o Tribunal incorreu ao ter dado como não provada a referida factualidade constante dos pontos 2 a 8 (extraindo da prova produzida uma conclusão ilógica e violadora das regras da experiência comum, que devem presidir à livre apreciação da prova e à formação da convicção do julgador, vício imediatamente apreensível a partir do texto da própria decisão), através das alterações introduzidas no elenco da matéria de facto, não se perfila no texto decisório qualquer outro dos vícios a que alude o n.º 2 do art. 410.º do CPP, pois que a decisão se mostra coerente, harmónica, destituída de antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para suportar um juízo seguro de direito.

A matéria de facto terá de considerar-se, pois, definitivamente assente nos termos em que o foi pelo Tribunal recorrido, com as modificações já determinadas.

Procede, assim, este segmento do recurso.


*

O recorrente alega, em síntese, que, decidindo-se pela inserção dos factos não provados como provados, necessariamente a arguida terá de ser condenada pela prática do crime de recebimento indevido de vantagem, p. e p. pelo art. 372.º, n.º 1, do CP, por se encontrarem preenchidos os respectivos elementos típicos, que caracteriza detalhadamente.

O Tribunal recorrido fundou a sua decisão de absolvição da arguida da prática desse ilícito nos seguintes termos:
«Vem ainda a arguida acusada de um crime de recebimento indevido de vantagem, p.p. pelos arts. 26º e 372º, n.º 1 do Código Penal, por referência ao 386º, n.º 1, al. a) do mesmo Código, em concurso aparente com um crime de tráfico de influência, p.p. pelo art. 335º, n.º 1, al. a) do Código Penal.
Preceitua o artigo 372.º sob a epigrafe: Recebimento ou oferta indevidos de vantagem que:
1 - O funcionário que, no exercício das suas funções ou por causa delas, por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, que não lhe seja devida, é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
Por sua vez o artº artigo 335.º - Tráfico de influência refere que:
1 - Quem, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para abusar da sua influência, real ou suposta, junto de qualquer entidade pública, nacional ou estrangeira, é punido:
a) Com pena de prisão de 1 a 5 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal, se o fim for o de obter uma qualquer decisão ilícita favorável;
Por sua vez, e conforme já dissemos supra dispõe o artigo 386°, n.º1 al. d) do Código Penal, anterior alínea c), antes das alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei nº. 32/2010, de 2 de Setembro que:
1 - Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange:
b) O empregado público civil e o militar:
O artigo 372.º, n.º 1, do Código Penal, refere-se à solicitação ou aceitação de vantagem pelo funcionário no «exercício das suas funções ou por causa delas», ou seja, baseia-se no simples facto da vantagem lhe ser atribuída em razão de estar investido no exercício de funções públicas, ocorrendo no «contexto do cargo» do funcionário.
O crime de recebimento indevido de vantagem distingue, aliás, entre o «recebimento» do funcionário «no exercício das suas funções» e «por causa das suas funções», não se restringindo a incriminação às hipóteses em que o funcionário está «no exercício das suas funções», ou seja, aos casos em que a vantagem é auferida ou solicitada no decurso e contexto da atuação do funcionário, mas também abarca as situações em que o pedido ou a aceitação da vantagem ocorrem «por causa das funções», isto é, em que algo só lhe é dado devido à sua condição, pela simples circunstância de o funcionário ter essa qualidade em virtude de ocupar determinada função pública.
Ora, no caso dos autos não se provou que a arguida sabendo perfeitamente do desagrado do assistente pela falta de encaminhamento de doentes e estando, à data, com dificuldades financeiras e diversas quantias em dívida relativamente às taxas moderadoras cobradas no atendimento do ACES ..., que insistia para que procedesse, com urgência, à sua entrega/depósito, decidiu mercadejar com o seu cargo e procurar obter do assistente as quantias que entendeu necessárias à satisfação das suas necessidades financeiras do momento.
Também não se provou que a arguida, aproveitando a preocupação e interesse do assistente nas diligências que pudesse encetar enquanto funcionária do ACES ... para resolver o problema com que o mesmo se enfrentava, decidiu a arguida, solicitar-lhe dinheiro, na expectativa de que o mesmo, para esse efeito, lho entregasse.
Outrossim não ficou provado que a arguida se valeu das suas funções como funcionária do ACES ... e da possibilidade, que pretendeu demonstrar perante outrem, de que poderia, por causa de tais funções, auxiliar, através de uma colega, também funcionária do ACES ..., na pretensão do assistente ao encaminhamento de doentes para hemodiálise, para solicitar a DD as quantias monetárias indicadas nas mensagens supra  referidas.
Tão pouco se provou que a arguida sabia perfeitamente que os pedidos efetuados não tinham qualquer justificação nem poderiam ser encarados pelo assistente senão como uma compensação pelas diligências que se comprometeu em realizar enquanto funcionária pública, adstrita ao ACES ..., junto de uma colega sua, estando simultaneamente ciente de que essas quantias não lhe eram devidas e que com essa atuação punha em causa a isenção, integridade e retidão das funções públicas desempenhadas, violando desse modo os seus deveres funcionais, sendo, por isso, indevidas, e que, mais sabia a arguida que os pedidos formulados ao assistente não eram conformes aos usos e costumes, nem podiam, pela sua natureza e contexto em que foram efetuados, ser considerados socialmente adequados, estando perfeitamente ciente de que o seu destinatário também nunca os entenderia como tal.
Não se provou ainda que a arguida atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime de recebimento indevido de vantagem.
Destarte, não se verificando os elementos objetivo e subjetivo do tipo do crime pela qual a arguida vinha acusada e face à indemonstrada conduta da arguida, impõe-se a sua absolvição, nesta parte.»

Importará, antes de mais, sublinhar que, uma vez alterada a factualidade provada nos termos acima determinados, será agora a essa luz que caberá enquadrar jurídico-criminalmente a apurada conduta da recorrida.

E, perante ela, não nos oferece dúvidas que o comportamento da arguida preenche todos os elementos típicos do tipo de crime de recebimento indevido de vantagem, p. e p. pelo art. 372.º, n.º 1, do CP.

Deixando de lado extensas considerações teóricas sobre os vários elementos do tipo, que o caso não convoca, e não sendo controvertida a qualidade de «funcionário» da arguida nem a possibilidade de a previsão legal ser preenchida pela solicitação ou aceitação da vantagem quer quando o funcionário está «no exercício da suas funções» quer quando tal ocorre por causa delas, ou seja devido a essa condição de funcionário, diremos apenas, acompanhando de perto a peça recursiva, da qual citamos alguns excertos, que:

«A essência do preceito legal é que as vantagens mencionadas, patrimoniais ou não, tenham em vista o exercício das funções públicas do funcionário, o “mercadejar do cargo”, na medida que é devido a estes factos, que as vantagens se consideram “indevidas”. (…)

Para a consumação do tipo-ilícito previsto no n.º1 do artigo 372.º do Código Penal, é exigido que a vontade do funcionário seja conhecida pelo destinatário, ou seja, o crime encontra-se consumado assim que o funcionário manifeste a intenção de receber vantagem que não lhe seja devida junto de pessoa que tenha interesse no desempenho das suas funções.

Tal exigência justifica-se devido ao bem jurídico tutelado, a autonomia intencional do Estado.

Se o particular não tiver conhecimento da vontade do funcionário, não existe ainda uma ofensa à dignidade e à objetividade dos serviços públicos, tal ofensa só se verifica se o particular tiver conhecimento da intenção do funcionário. Resumidamente, em caso de solicitação o crime consuma-se no momento em que a mesma chega ao conhecimento da outra parte»1[13] (sublinhado e negrito nossos).

É da comparação deste artigo com o disposto no artigo 373.º, do Código Penal (corrupção passiva), que percebemos que para o preenchimento do tipo não se mostra necessário obter uma contraprestação por parte do funcionário. Ao contrário do crime de corrupção passiva - em que é punível a vantagem solicitada ou aceite em conexão com a prática de uma acção ou omissão pelo funcionário – o crime de recebimento indevido de vantagem basta-se com a mera solicitação2[14]. (…)

No que respeita à solicitação, Maria do Carmo Dias (ob. cit., p. 781) refere que solicitar significa pedir, implicando uma atitude, por regra da iniciativa do autor do crime, mesmo quando este actua através de interposta pessoa, desde que consentida ou posteriormente ratificada pelo funcionário público; aceitar, por sua vez, significa receber o que foi oferecido ou dado ou prometido.»3[15] (…)

Por último diga-se que a vantagem é indevida quando «não corresponde a uma prestação devida ao funcionário nos termos da lei»5[16]

No caso vertente, decorre da factualidade apurada, nos termos agora fixados, que a arguida, funcionária pública, quando exercia funções na UCSP do ..., integrada no ACES ..., numa reunião do B... em que participou, tal como o assistente, gerente de uma clínica de hemodiálise, e sabendo das dificuldades que este vinha sentindo em obter o encaminhamento de doentes para aquela clínica, deu-lhe a conhecer que era funcionária da ACES ... e propôs-se auxiliar na resolução daquele problema, afirmando que para aquele efeito iria contactar com uma sua colega responsável pela pasta em causa.

E que, nos dias imediatos, depois de ter sido contactada telefonicamente pelo assistente para saber se já teria desenvolvido tal diligência e de lhe ter respondido que ainda não o tinha feito, e sem que entre os dois existisse qualquer relação de proximidade, pessoal ou profissional, lhe enviou duas mensagens de texto nas quais lhe pedia um empréstimo, comportamento que foi entendido pelo assistente como uma solicitação de uma contrapartida pela ajuda que se propusera dar-lhe, em virtude das suas funções na ACES, tal como era intenção da arguida, bem sabendo que essa vantagem patrimonial não lhe era devida e que a sua conduta não era socialmente adequada e conforme aos usos e costumes.

A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente da ilicitude criminal da sua conduta.

Inexistindo base factual que permita configurar qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, encontram-se, pois, preenchidos os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime de recebimento indevido de vantagem, p. e p. pelo art. 372.º, n.º 1, do CP, pelo qual se impõe a sua condenação.

Mostrando-se a recorrida incursa na prática do mencionado crime, pelo qual vinha (também) acusada, e dispondo o Tribunal dos elementos necessários para o efeito, importará proceder à escolha da pena e à determinação da sua medida concreta, dentro da respectiva moldura penal abstracta, que é a de prisão de 1 (um) mês a 5 (cinco) anos ou de multa de 10 (dez) a 600 (seiscentos) dias – cf. arts. 41.º, n.º 1, e 47.º, n.º 1, ambos do CP.

O art. 70.º do CP refere que «Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

Esta regra, que se reporta às penas alternativas, vale para as penas substitutivas da pena de prisão, como resulta do art. 45.º, n.º 1, do CP: «A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, exceto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes (…)».

Por outro lado, dispõe o art. 40.º do CP que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» (n.º 1), e que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2).

É, pois, de acordo com as proposições fundamentais de política criminal sobre a função e os fins das penas condensadas nesta norma, que estabelece um modelo de prevenção, que haverá que interpretar e aplicar os critérios de determinação da medida da pena.

Como se escreve no Ac. do STJ de 16-01-2008 (Proc. n.º 4565/07 - 3.ª)[17], «O modelo de prevenção acolhido – porque de protecção de bens jurídicos – estabelece que a pena deve ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva, e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.

Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente».

Assim, dentro dessa linha de orientação, o Tribunal terá de atender, de acordo com o disposto no n.º 2 do art. 71.º do CP, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.

«Na escolha da pena, considera Figueiredo Dias, a prevalência não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, na perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão.

Essa prevalência opera a dois níveis diferentes:

- em primeiro lugar, o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas, coisa que só raramente acontecerá se não se perder de vista o carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração;

- em segundo lugar, sempre que, uma vez recusada pelo tribunal a aplicação efectiva da prisão, reste ao seu dispor mais do que uma espécie de pena de substituição (v.g., multa, prestação de trabalho a favor da comunidade, suspensão da execução da prisão), são ainda considerações de prevenção especial de socialização que devem decidir qual das espécies de penas de substituição abstractamente aplicáveis deve ser a eleita.

Por seu turno, a prevenção geral surge aqui sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.»[18]

As necessidades de prevenção geral são muito relevantes relativamente aos crimes cometidos no exercício de funções públicas, em particular quanto aos que, como o agora em apreço, aos olhos da comunidade se assemelham ao de corrupção, que mina a confiança dos cidadãos nas instituições e nos serviços públicos.

Acresce que, tanto quanto resulta dos factos apurados, a conduta da arguida surgiu, ao que parece, como forma de obter fundos para reparar o prejuízo patrimonial provocado por outro ilícito criminal que havia cometido, também ele no exercício das suas funções públicas, o que impõe particular atenção às necessidades de prevenção especial, pelo que se afigura não ser de sancionar o seu comportamento em causa nestes autos com uma mera pena pecuniária.

Para além dessa necessidade de assegurar com eficácia as finalidades da punição, acrescentamos tão-só o que tem sido o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça relativamente à aplicação de pena de multa quando o arguido já se encontra condenado em pena de prisão por outro crime, considerando que a unidade do sistema jurídico impõe que também por aquele ilícito seja imposta pena privativa da liberdade, sendo desaconselhada a aplicação de pena de multa face aos inconvenientes associados às chamadas «penas mistas»: «A propósito da manutenção desse tipo de penas no Código Penal então vigente, escreveu o Prof. Figueiredo Dias: “Uma tal pena «mista» é, numa palavra profundamente dessocializadora, além de contraditória com o sistema dos dias de multa: este quer colocar o condenado próximo do mínimo existencial adequado à sua situação económico-financeira e pessoal, retirando-lhe as possibilidades de consumo restantes, quando com a pena «mista» aquele já as perde na prisão! O desaparecimento da pena complementar de multa (e portanto da pena mista de prisão e multa) impõe-se, pois, numa futura revisão do CP, como forma de restituir à pena pecuniária o seu sentido político-criminal mais profundo e de aumentar a sua eficácia penal.”[19]

A situação, não sendo a mesma, é no entanto equivalente. Daí, com os mesmos inconvenientes em concreto.»[20]

Assim, apesar de a arguida não averbar antecedentes criminais, será de optar pela aplicação de uma pena de prisão.

E, ponderando, em ordem à determinação da medida concreta da pena:

O grau de ilicitude dos factos/desvalor da acção é mediano, tal como o desvalor do resultado, que atingiu a confiança do assistente nos serviços públicos mas não chegou a produzir lesão patrimonial.

Na componente subjectiva da ilicitude, há que ter em conta que a arguida agiu com dolo directo, com alguma intensidade, dada a insistência com uma segunda mensagem dirigida ao assistente perante a falta de resposta à primeira, sendo a sua motivação para o cometimento do ilícito, tanto quanto se conseguiu apurar, a de obter valores patrimoniais a que sabia não ter direito, porventura destinados, em parte, à reparação do prejuízo causado com o crime de peculato que havia cometido (sendo certo que o montante solicitado na primeira mensagem excedia o valor apropriado por força daquele ilícito).

Em julgamento não evidenciou qualquer espírito crítico relativamente à sua apurada conduta.

Não averba antecedentes criminais e mostra-se profissional e socialmente inserida, como resulta da matéria de facto dada como assente.

Assim, sopesados todos os elementos reunidos nos autos, em conformidade com o disposto no art. 71.º, n.º 2, do CP, e tendo em consideração que a medida da tutela dos bens jurídicos, correspondente à finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime, entre esses limites se devendo satisfazer, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, às quais cabe, em última análise, a função de determinação da medida da pena dentro dos limites supra assinalados, considera-se necessário, proporcional e adequado, porque ajustado à culpa concreta do agente, fixar a pena concreta da recorrida, pela prática do crime de recebimento indevido de vantagem, p. e p. pelo art. 372.º, n.º 1, do CP, em 1 (um) ano de prisão.

Impõe-se agora proceder ao cúmulo jurídico desta pena com a que foi imposta à arguida pela prática do crime de peculato, de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão.

Os limites abstractos da pena única a aplicar oscilam entre 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão, correspondente à pena parcelar mais grave, e 3 (anos) e 3 (três) meses de prisão, correspondente à soma das penas parcelares em concurso.

Estabelecida a moldura legal do concurso, caberá determinar, dentro dos limites referidos, a medida da sua pena conjunta, relativamente à qual a lei elegeu como elementos determinadores os factos e a personalidade do agente, elementos que devem ser considerados em conjunto.

«Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema de acumulação material é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente. Como doutamente diz Figueiredo Dias (Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 290-292), como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado.

Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso»[21].

Assim, considerando em conjunto os factos e a personalidade da arguida, não olvidando as exigências de prevenção geral, de tutela das expectativas comunitárias contra o facto, de dissuasão de potenciais delinquentes, nem as de prevenção especial, que reclamam, pela via da pena, a interiorização da consciência do acto ilícito, em termos de prevenção da reincidência, e levando em conta os critérios orientadores decorrentes da jurisprudência do STJ nesta matéria[22], considera-se adequado às exigências de prevenção e à culpa concreta do agente fixar a pena única a aplicar à arguida/recorrida em 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Por fim, o Tribunal recorrido considerou que, in casu, «a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição» e decidiu, por isso, suspender a execução da pena aplicada, por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova e subordinada à condição de pagamento de 412,40€ ao Estado.

Não vemos motivo para divergir de tal opção, desde logo atendendo à circunstância de a arguida não averbar antecedentes criminais, pelo que a pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão agora fixada ficará suspensa na sua execução, por igual período de tempo, nas condições estabelecidas no acórdão recorrido.

Perante tudo o que se deixa exposto, procede o recurso interposto pelo Ministério Público.

*

III. Decisão

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em, concedendo provimento ao recurso do Ministério Público,

a) alterar a matéria de facto fixada nos termos acima determinados a fls. 40;

b) revogar o acórdão recorrido na parte em que absolveu a arguida AA do crime de recebimento indevido de vantagem, p. e p. pelo art. 372.º, n.º 1, do CP, que lhe vinha imputado, e condená-la, pela prática desse mesmo ilícito, na pena de 1 (um) ano de prisão;

c) em cúmulo jurídico desta pena com a de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão que lhe foi aplicada pela prática de um crime de peculato, p. e p. pelo art. 386.º, n.º 1, al. a), do CP, condenar a arguida na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime e prova e sob a condição da obrigação de pagamento de 412,40€ ao Estado.

d) manter, quanto ao mais, o acórdão recorrido.

Sem tributação.

Notifique.


*
(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária, sendo ainda revisto pelos demais signatários, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20-09)

*
Coimbra, 05 de Junho de 2024


[1] In www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[2] Proferido no Proc. n.º 811/12.4JACBR.C1, in www.dgsi.pt.
[3] Cf. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, vol. I, pág. 202.
[4] Cf. Ac. do TC n.º 198/2004, de 24-03-2004, in www.tribunalconstitucional.pt.
[5] Cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, págs. 233-234.
[6] Cf. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. II, págs. 126-127, que, por sua vez, cita o Prof. Figueiredo Dias.
[7] In Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 221.
[8] In Curso de Processo Penal, vol. I, Reimpressão da Universidade Católica.
[9] In Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo, págs. 126-127.
[10] In www.dgsi.pt.
[11] «O erro de julgamento existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então o inverso, e tem que ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do art. 127.º do CPP», lê-se no Acórdão do STJ de 12-03-2009, Proc. n.º 3781/08 - 3.ª, in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[12] Cf. Acórdão de STJ de 07-01-2004, proferido no Proc. n.º 3213/03 - 3.ª, in www.dgsi.pt.
[13] 1 “O crime de recebimento indevido de vantagem”, Dissertação de Ana Isabel Rodrigues da Cunha, Mestrado Forense, Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, 2015, pág. 13 e 14.
[14] 2 «O tipo legal de crime da corrupção distingue-se do crime de recebimento indevido de vantagem, porquanto, para o preenchimento do crime de corrupção própria ou imprópria, é necessário demonstrar qual o concreto acto ou omissão visada, exigência que é afastada com o crime de recebimento indevido de vantagem, que incrimina as condutas em que é solicitada ou aceite uma vantagem sem conexão com a prática de uma acção ou omissão pelo funcionário», conforme se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 01-06-2021, proferido no Processo 9590/11.1TDLSB.L2-5 e disponível em www.dgsi.pt.
[15] 3 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 01-06-2021, proferido no Processo 9590/11.1TDLSB.L2-5 e disponível em www.dgsi.pt.
[16] 5 Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 2010, 2.ª ed., p. 980 e 983.
[17] In www.dgsi.pt.

[18] Cf. Ac. do STJ de 29-04-2009, Proc. n.º 939/07.2PYLSB.S1 - 3.ª, in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[19] 7 Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, § 192.
[20] Cf. o acórdão do STJ de 14-12-2006, Proc. n.º 4344/06 - 3.ª, in www.dgsi.pt, entendimento já anteriormente plasmado nos acórdãos de 05-02-2004, Proc. n.º 151/04 - 3.ª, de 17-02-2005, Proc. n.º 4324/04 - 5.ª, de 23-06-2005, Proc. n.º 2106/05 - 3.ª, e de 26-10-2006, Proc. n.º 3119/06 - 3.ª, e reafirmado posteriormente nos acórdãos de 12-02-2009, Proc. n.º 110/09 - 5.ª, e de 27-01-2021, Proc. n.º 153/20.1JAPRT.S1 - 3.ª, todos ibidem.
[21] Cf. Ac. do STJ de 27-04-2006, Proc. n.º 669/06 - 3.ª, ibidem.
[22] Sem deixar de sublinhar não serem de aceitar quaisquer critérios matemáticos alheios a uma valoração normativa – cf., a propósito, a título exemplificativo, os Acs. do STJ de 07-01-2016, Proc. n.º 606/07.7PHLRS.S1 - 5.ª, e de 27-01-2016, Proc. n.º 178/12.0PAPBL.S2 - 3.ª, ibidem.