Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1079/22.0T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA PÊGO BRANCO
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO
OMISSÃO
IDENTIFICAÇÃO DA PESSOA FÍSICA
Data do Acordão: 05/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA GUARDA – J1)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 7º, N.º 2, DO DEC.-LEI N.º 433/82
Sumário: Para a responsabilização da arguida pelo cometimento de uma contraordenação por omissão, não se exige a identificação da pessoa física que concretamente cometeu a infração, já que a responsabilidade da pessoa coletiva não é uma imputação reflexa ou indireta, mas sim autónoma.
Decisão Texto Integral: Relator: Cristina Pêgo Brando
Adjuntos: Maria Alexandra Guiné
Isabel Valongo
*


Acordam, em conferência, na 5.ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. Nos autos de contra-ordenação com o n.º ...... do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Juízo Local Criminal da Guarda – Juiz ..., “A..., Lda.”, identificada nos autos, impugnou judicialmente a decisão administrativa da Inspecção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT), que lhe aplicou, pela prática de uma contra-ordenação ambiental qualificada de muito grave, p. e p. pelos arts. 49.º, n.º 1, al. b), e 184.º, n.ºs 2, al. r), e 5, ambos do DL n.º 108/2018, de 03-12, e pelo art. 22.º, n.º 4, al. b), da Lei n.º 50/2006, de 29-08, a coima de 24 000,00€ (vinte e quatro mil euros).

2. Por despacho proferido nos termos do art 64.º, n.º 2, do RGCOC[1], foi julgada improcedente a impugnação judicial e mantida a decisão administrativa proferida.

3. Inconformada com essa decisão, interpôs a arguida o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«8.1)- Para a efetivação do direito de audição, o arguido tem de ter conhecimento da descrição dos factos imputados, o que implica a “descrição sequencial, narrativamente orientada e espácio-temporalmente circunstanciada, dos elementos imprescindíveis à singularização do comportamento contraordenacionalmente relevante e essa descrição deve contemplar a caraterização, objetiva e subjetiva, da ação ou omissão de cuja imputação se trate”;
8.2)- No caso, a descrição constante do “auto de notícia” não contém os elementos subjetivos da infração imputada;
8.3)- Por isso que, mesmo em matéria contra-ordenacional, da narração acusatória devem constar os factos relativos à culpabilidade, onde se reconheça o conhecimento (representação) e a vontade de realização do facto material típico - do tipo objectivo (elementos objectivos, naturalísticos ou normativos) de uma infracção;
8.4)- Acontece que o auto de notícia nada refere quanto a factos suscetíveis de preencher este elemento;
8.5)- E o mesmo se diga relativamente à decisão administrativa, que, nos factos provados que descreve limita-se ao tratamento genérico e conclusivo da negligência;
8.6)- E, depois da decisão administrativa, o Tribunal de 1ª instância, na Sentença proferida e no que tange ao elemento subjetivo, também se limita a considerações de carácter genérico e conclusivo, tipicamente doutrinárias, sem qualquer suporte factual;
8.7)- A Sentença revidenda omite a factualidade respeitante ao elemento subjetivo da contraordenação, o que viola o disposto nos arts. 374º e 97º, n.º 5, Cód. Proc. Penal, aqui aplicáveis “ex vi” dos arts. 2º, Lei n.º 50/2006, de 29/08, e 41º, n.º 1, DL n.º 433/82, de 27/10;
8.8)- Vício este que, aliás, nunca poderia suprir, remetendo neste particular para o Acórdão Uniformizador proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27/01/2015 e integralmente aplicável ao caso;
8.9)- Assim, nunca a ausência de factos integradores do elemento subjetivo da contraordenação, quer no auto de notícia, quer na decisão administrativa, quer ainda na Sentença de 1ª instância, poderá ser suprida;
8.10)- E daqui decorrerá, desde logo e necessariamente, a absolvição da arguida da prática da contraordenação que lhe foi imputada;
8.11)- Na sentença sob recurso em lado algum se encontra identificado quem foi o autor da conduta/omissão contraordenacional em causa nos autos;
8.12)- Tal identificação e imputação factual mostram-se imprescindíveis à imputação (orgânica) da ação ou omissão à pessoa coletiva, por se não revelar minimamente indiciado o preenchimento do pressuposto exigido pela 2ª parte do n.º 2 do art. 7º do RGCO, transcrito (praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções);
8.13)- No caso dos autos, percorrida a matéria de facto provada verifica-se que em lado algum é identificado(s) o(s) responsável(eis) que deveria atuar no âmbito da conduta pretensamente imputada à recorrente como constituindo uma contra ordenação;
8.14)- Ou seja, nada consta dos factos provados que nos permita ajuizar se podemos imputar a uma pessoa que integre os órgãos da pessoa coletiva a conduta ilícita aqui em causa, bem como que a pessoa que representa a arguida terá atuado no exercício das suas funções;
8.15)- Não sendo a matéria de facto suficiente para sustentar a imputação à arguida/recorrente da conduta ilícita geradora de responsabilidade contraordenacional impõe-se concluir pela insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, conforme previsto no art. 410º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal;
8.16)- Acontece que a insuficiência detetada não é já suprível, o que eventualmente determinaria o reenvio dos autos para novo julgamento (arts. 426º, n.º 1, e 426º-A) a fim de determinar a pessoa que representa a arguida e a pessoa que concretamente agiu e/ou praticou os factos, bem como se o fez no exercício das suas funções ou de ordens transmitidas pelo representante da arguida;
8.17)- Acontece, no entanto, que o reenvio resultaria na violação do princípio da vinculação temática do tribunal, pois não pode a 1ª instância indagar factos que não constem da decisão administrativa impugnada, que vale como acusação mediante a sua apresentação em juízo pelo Ministério Público na sequência de impugnação deduzida (art. 62º, n.º 1, do RGCO);
8.18)- Os factos em falta extravasam, por outro lado, os conceitos de alteração não substancial e de alteração substancial dos factos, não cabendo no caso recurso aos mecanismos previstos nos arts. 358º e 359º do Código de Processo Penal;
8.19)- Assim, outra solução não resta senão a absolvição da arguida;
8.20)- Só podia a aqui impugnante ser sancionada pelo não envio à Agência Portuguesa do Ambiente, até 31 de janeiro de 2020, de cópia do inventário da fonte radioativa selada que detinha, acompanhado da cópia da apólice do seguro de responsabilidade civil e fotografias da fonte, do seu contentor, da embalagem de transporte, dispositivo ou equipamento, caso tivesse sido dado como provado que, durante o ano de 2019, a recorrente era detentora de uma fonte radioativa selada -o que manifestamente não foi dado como provado…, e também não se pode presumir…;
8.21)- A Sentença revidenda violou, entre outras (salvo o devido respeito e melhor opinião), as normas dos arts. 2º, Lei n.º 50/2006, de 29/08; 58º, DL n.º 433/82, de 27/10; 97º, n.º 5, 283º, n.º 3, alínea b), 374º e 379º, Cód. Proc. Penal; e 32º, n.º 10 e 205º, CRP.
Termos em que, e nos melhores de direito cujo suprimento antecipadamente se pede, deve a Sentença revidenda ser substituída por outra decisão que contemple tudo quanto vem de alegar-se, assim se fazendo Justiça.»

4. Admitido o recurso, o Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta, na qual conclui (transcrição):
«1. Recorre a arguida da douta sentença proferida nos autos, a qual julgou improcedente a impugnação judicial por aquela apresentada e decidiu manter a decisão administrativa proferida pela autoridade administrativa.
2. O recurso a que se responde não merece, salvo o devido respeito, provimento, devendo manter-se, na íntegra, a douta sentença recorrida, cujos fundamentos não são abalados pela motivação e conclusões de recurso apresentados pela arguida.
3. O Auto de Notícia contém a descrição completa dos factos imputados à recorrente, assim como da decisão administrativa e da sentença constam todos os elementos objectivos e subjectivos do ilícito contra-ordenacional em causa.
4. Para que a fundamentação de uma decisão administrativa cumpra o disposto no art. 58.º do RGCO, é necessário tão-somente que da sua leitura sejam perceptíveis, para um cidadão de são e normal entendimento, as razões pelas quais o arguido foi sancionado com uma coima, de modo a possibilitar a sua defesa e impugnação, não sendo necessário que detenham o mesmo grau de rigor de uma sentença penal, na medida em que, no processo de contra-ordenação, não existe a possibilidade de aplicação de sanções privativas da liberdade, não existindo, portanto, o mesmo grau de lesão de bens jurídicos fundamentais do cidadão que se verifica no processo penal.
5. Ao contrário do sustentado pela Recorrente, na sentença sob recurso está claramente identificado o autor do ilícito contra-ordenacional, sendo este claramente imputado à arguida, ora Recorrente.
6. Nestes termos, bem andou a douta sentença recorrida ao julgar improcedente a impugnação judicial do arguido, mantendo a decisão proferida pela autoridade administrativa, nos seus precisos termos.
Nestes termos e nos mais de Direito, e com o douto suprimento de Vossas Excelências, não merece quaisquer reparos a douta sentença recorrida, pelo que deverá a mesma manter-se na íntegra, com as legais consequências,
ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!»

5. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer (Ref. Citius 11118536).

6. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foi oferecida resposta.

7. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


*

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.

Em processo contra-ordenacional, o Tribunal da Relação conhece apenas da matéria de direito (art. 75.º, n.º 1, do RGCOC), sem prejuízo do aludido conhecimento oficioso relativamente aos vícios previstos no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP.

In casu, a recorrente considera, em primeiro lugar, que a decisão recorrida omite a factualidade respeitante ao elemento subjectivo da infracção, em violação do disposto nos arts. 374.º e 97.º, n.º 5, do CPP, aplicáveis ex vi arts. 2.º da Lei n.º 50/2006, de 29-08, e 41.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27-10.

Afirma, por outro lado, que a decisão recorrida padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, por nela não estar identificado o autor da conduta/omissão contraordenacional.

Por fim, sustenta que só podia ter sido sancionada pelo não envio à Agência Portuguesa do Ambiente, até 31-01-2020, de cópia do inventário da fonte radioactiva selada que detinha, acompanhado da cópia da apólice do seguro de responsabilidade civil e fotografias da fonte, do seu contentor, da embalagem de transporte, dispositivo ou equipamento, caso tivesse sido dado como provado que, durante o ano de 2019, era detentora de uma fonte radioativa selada, o que não foi dado como provado nem se pode presumir.

Conclui que, em consequência, devia ter sido proferida decisão absolutória.


*

2. Da decisão recorrida

Previamente à apreciação das questões suscitadas, vejamos qual a fundamentação de facto que consta da decisão recorrida.
«DOS FACTOS:
Com relevância para a decisão final, o tribunal julga como provados designadamente os seguintes factos:
A) A aqui recorrente “A..., Lda.”, com sede em EN ...6 – ..., ... ..., ..., e nesse local, é detentora de uma fonte radioactiva selada com as características seguintes:
Tipo de equipamento: Gamadensímetro;
Marca / Modelo / Serial Number: Troxler / 3440 / 25076;
Fonte selada (actividade): Cs-137 (0,30 GBq); Am-241:Be (1,48GBq);
Número de registo no inventário nacional: DGS n.º A...51;
Número de licença: ...9;
Data de emissão: 18/02/2019.
B) A recorrente não enviou à Agência Portuguesa do Ambiente qualquer cópia do inventário da fonte radioactiva selada que detém, acompanhada de cópia da apólice do respectivo seguro de responsabilidade civil e fotografias da fonte radioactiva, do seu contentor, da embalagem de transporte, dispositivos e equipamentos, até ao dia 31 de Janeiro de 2020.
C) Ao proceder como referido, a recorrente não agiu com a diligência necessária e de que era capaz.
D) À recorrente não são conhecidos quaisquer antecedentes criminais ou contra-ordenacionais.
(…)


*

3. Da análise dos fundamentos do recurso

(…)


*

A recorrente sustenta, por outro lado, que a decisão recorrida padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, por nela não estar identificado o autor da conduta/omissão contraordenacional.

Na sua perspectiva, tal «identificação e imputação factual mostram-se imprescindíveis à imputação (orgânica) da ação ou omissão à pessoa coletiva, por se não revelar minimamente indiciado o preenchimento do pressuposto exigido pela 2ª parte do n.º 2 do art. 7º do RGCO, transcrito (praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções).»

E essa insuficiência não é suprível através do reenvio do processo para novo julgamento, nos termos dos arts. 426.º, n.º1, e 426.º-A, do CPP, «a fim de determinar a pessoa que representa a arguida e a pessoa que concretamente agiu e/ou praticou os factos, bem como se o fez no exercício das suas funções ou de ordens transmitidas pelo representante da arguida», porque tal redundaria na violação do princípio da vinculação temática do tribunal, já que não pode a 1.ª instância indagar factos que não constem da decisão administrativa impugnada, não restando outra solução que não seja a sua absolvição.

A concreta questão de saber se o art. 7.º, n.º 2 do RGCOC exclui a responsabilidade das pessoas colectivas ou equiparadas relativamente às contra-ordenações que não sejam praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções e se a imputação à pessoa colectiva exige a concreta identificação da pessoa física que deu concretização à infracção em causa tem suscitado, de há muito, divergências na doutrina e na jurisprudência, sendo o entendimento propugnado no recurso o de que a imputação da responsabilidade sancionatória das pessoas colectivas é um modelo de imputação reflexa ou indirecta, em obediência ao princípio de que no domínio das contra-ordenações a societas delinquere non potest.

Como escrevemos noutro lugar[2], que seguimos de perto, «não é esse o entendimento que sufragamos, mas sim o explanado, entre outros, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-10-2021, proferido no Proc. n.º 3682/20.3T9LRA.C1[3], no qual se lê, para além do mais:

«Com efeito, já muito se problematizou sobre o tema, assistindo-se a uma orientação dominante no seio da jurisprudência dos tribunais superiores [cf., v.g., os acórdãos do TRL de 27.06.2019 (proc. n.º 5840/14.OECLSB.L1), 12.01.2021 (proc. n.º 1874/19.7), do TRE de 26.06.2018 (proc. n.º 3716/17.9T9STB.E1), do TRG de 27.01.2020 (proc. n.º 510/19.6T8FAF.G1)], contrária à posição da recorrente, a qual encontrando sustentação em parte da doutrina [cf., v.g., Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Regime Geral das Contraordenações”, Universidade Católica Editora, págs. 52/53], surge ainda alcandorada no Parecer do Conselho Consultivo da PGR, n.º 11/2013 [in D.R., 2.ª Série, n.º 178, 16.09.2013), de cujas conclusões ora se destaca: “3. O Regime Geral das Contraordenações consagra um regime de imputação restritivo, no número 2 do artigo 7.º, ao limitar a responsabilidade das pessoas coletivas às contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções, ao contrário do que acontece na maioria dos regimes especiais (…). 4. O preceito do número 2 do artigo 7.º do Regime Geral das Contraordenações deve ser interpretado extensivamente, como, aliás, tem sido feito pela jurisprudência, incluindo do Tribunal Constitucional, de modo a incluir os trabalhadores, os administradores e gerentes e os mandatários ou representantes da pessoa coletiva ou equiparada, desse que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas. 5. A responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas assenta numa imputação direta e autónoma, quer o fundamento dessa responsabilidade se encontre num “defeito estrutural da organização empresarial” (defective corporate organization) ou “culpa autónoma por défice de organização”, quer pela imputação a uma pessoa singular funcionalmente ligada à pessoa coletiva, mas que não precisa de ser identificada nem individualizada. […]. 7. O artigo 7.º do Regime Geral das Contraordenações adota a responsabilidade autónoma, tal como os regimes especiais em matéria laboral (artigo 551.º do Código do Trabalho), tributária (artigo 7.º do Regime Geral das Infrações Tributárias), económica (artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro), de valores mobiliários (artigo 401.º do Código dos Valores Mobiliários), de concorrência (artigo 73.º da Lei da Concorrência) e de contraordenações ambientais (artigo 8.º da Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais), pelo que não é necessária a identificação concreta do agente singular que cometeu a infração para que a mesma seja imputável à pessoa coletiva.”

E, como bem realça o Senhor Procurador-Geral Adjunto, também no acórdão n.º 566/2018 (proc. n.º 336/18) o Tribunal Constitucional concluiu não existirem razões para questionar e desconsiderar a referida interpretação extensiva do art.º 7º, n.º 2, do RGCO, reproduzindo-se, a respeito: Acresce que o termo “órgão”, do ponto de vista conceptual, não está necessariamente associado a um centro autónomo e institucionalizado de poderes funcionais- a uma realidade institucional ou estatutária (…). Por isso mesmo, são descortináveis diversas definições legais de “órgão”, consoante os fins concretamente visados pelo diploma em que as mesmas se inserem (…).

Na perspetiva material da atividade dos entes coletivos (por contraposição à perspetiva da sua estrutura organizatória) – que é aquela que releva a propósito da imputação de condutas individuais a uma pessoa coletiva -, pode entender-se o órgão como o indivíduo cuja atuação é imputada ao ente coletivo. Estando em causa uma conduta correspondente a uma declaração de vontade, é evidente que as regras estatutárias sobre os processos deliberativos internos tendem a assumir maior relevância (cfr. a mencionada definição legal constante do artigo 20.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo). Mas, tratando-se de simples atuações materiais, nada obsta a que a imputação se fundamente com base numa atuação em nome do ente coletivo e no seu interesse (representante) ou na circunstância de o mesmo indivíduo dispor no âmbito de tal ente de autoridade ou de uma posição de liderança para controlar a respetiva atividade.

Nessa medida, faltando uma definição legal própria aplicável no domínio específico do RGCO, e abstraindo de argumentos teleológicos e outros argumentos sistemáticos (por exemplo, uma maior adequação ao princípio da equiparação consignado no artigo 7.º, n.º 1, do RGCO), não se pode ter por absolutamente incompatível com o sentido literal do termo “órgão” referido no artigo 7.º, n.º 2, do RGCO um entendimento extensivo do mesmo, na linha da previsão das alíneas a) e b) do n.º 2 e do n.º 4 do artigo 11.º do Código Penal. De resto, o artigo 32.º do RGCO reforça tal entendimento: «[e]m tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal» (e, não, por exemplo, as do Código do Procedimento Administrativo)”.

(…)

Na verdade, “Considerando a complexidade que pode ter uma organização empresarial, em certos casos pode tornar-se ineficaz a procura de identificação do agente concreto, uma vez que um ato poderá passar por mais de um órgão, não sendo por vezes fácil determinar a pessoa concreta que agiu, exigindo-se, apenas, a certeza que a infração foi cometida no seio da instituição (pessoa coletiva)” – [cf. acórdão TRL, de 12.01.2021].»

Pela sua manifesta relevância, chamamos também aqui à colação o explanado no acórdão da Relação de Lisboa de 10-04-2018, proferido no Proc. n.º 210/17.1YUSTR.L1-5[4]:

«Conforme se refere no acórdão do TC de 9/01/2014 (DR – 2.ª série, de 11/02/2014), «no âmbito das contraordenações, a imputação de um facto a um agente tem por referente legal e dogmático um conceito extensivo de autoria de matriz causal, conceito este segundo o qual é considerado autor de uma contraordenação todo o agente que tiver contribuído causal ou cocausalmente para a realização do tipo, ou seja, que haja dado origem a uma causa para a sua realização ou que haja promovido, com a sua acção ou omissão, o facto ilícito, podendo isso ocorrer de qualquer forma (cfr. Frederico Lacerda da Costa Pinto, em “O ilícito de mera ordenação social”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 7, Fasc. 1, pag. 25-26). O relevo da opção legal por um conceito extensivo de autor no âmbito da responsabilidade contra-ordenacional, por oposição ao conceito restritivo de autoria que vigora, em regra, no domínio do direito penal, é especialmente perceptível nas hipóteses em que, como na presente situação, os factos cometidos envolvem a estrutura orgânica e funcional de uma empresa. Esta construção é uma decorrência lógica da existência no direito de mera ordenação social de normas de dever, cujo incumprimento é sancionado com coimas. Se o sistema impõe deveres a um leque alargado de destinatários é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e também para os violar. Daí que, apurando-se a violação do dever legalmente estabelecido os destinatários do mesmo serão responsáveis por essa violação. “O critério de delimitação da autoria neste tipo de ilícito não é do domínio do facto, mas sim o da titularidade do dever” (Frederico Lacerda da Costa Pinto, na obra citada, pag. 48).

Aquele conceito extensivo de autoria conduzirá, em regra, à responsabilização da entidade sobre a qual recai o dever, sempre que se tenha verificado o resultado que aquela estava legalmente incumbida de evitar.»

Também com interesse, o acórdão da Relação de Lisboa de 21-12-2021, proferido no Proc. n.º 1104/17.6Y5LSB.L1-5[5], cujo sumário transcrevemos parcialmente:

«IV – A culpa na prática das contraordenações não tem as exigências éticas da culpa penal. Nesta, e partindo sempre de um direito penal do facto, há que formar um juízo de censura sobre a conduta do agente por ter violado um dever ser ético, que lhe era exigido face aos bens jurídicos protegidos pela lei penal, em última análise assentes na dignidade da pessoa humana. Nas contraordenações, como se refere no preâmbulo do DL 433/82, o seu aparecimento “ficou a dever-se ao pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem progressivamente alargando a sua acção conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, cultura, equilíbrios ecológicos, etc.”.

V - Por conseguinte, face a estas menores exigências éticas e à redacção da lei, é nosso entendimento que, ao invés do que sucede no direito penal português, no art.º 7.º, n.º 2, do DL 433/82, estamos perante um modelo de responsabilidade autónoma das pessoas colectivas, em que estas são responsabilizadas por não se terem organizado para evitar o cometimento de contraordenações.»

Mais recentemente, no sentido que sufragamos, pronunciaram-se os acórdãos desta Relação de Coimbra de 08-03-2023, proferido no Proc. n.º 536/22.2T9PBL.C1, e de 13-12-2023, proferido no Proc. n.º 705/23.8T8GRD.C1, ambos in www.dgsi.pt.[6]

Na situação em apreço está em causa uma infracção consistente numa conduta omissiva, por a arguida, pessoa colectiva, sendo detentora de uma fonte radioactiva selada, com as características descritas no ponto A) dos factos provados, não ter enviado «à Agência Portuguesa do Ambiente qualquer cópia do inventário da fonte radioactiva selada que detém, acompanhada de cópia da apólice do respectivo seguro de responsabilidade civil e fotografias da fonte radioactiva, do seu contentor, da embalagem de transporte, dispositivos e equipamentos, até ao dia 31 de Janeiro de 2020», omissão que só tem sentido imputar aos serviços da recorrente, não havendo margem para dúvidas de que a infracção foi cometida no seio da pessoa colectiva, sobre si recaindo, pelas razões expostas, a responsabilidade pelo ilícito contraordenacional que lhe vem imputado, a tal não obstando a não identificação, na decisão condenatória, da (s) concreta(s) pessoa(s) singular(es) que, no seio da instituição procedeu à omissão indevida.

Em suma, no entendimento que perfilhamos, não pode exigir-se, para a responsabilização da arguida, a identificação da pessoa física que concretamente, neste caso por omissão, cometeu a infracção, já que a responsabilidade da pessoa colectiva não é, como subjaz ao que vem sustentado no recurso, uma imputação reflexa ou indirecta, mas sim autónoma (decorrente, como vimos, ou de um «defeito estrutural da organização empresarial» ou «culpa autónoma por défice de organização» ou da imputação a uma pessoa singular funcionalmente ligada à pessoa coletiva, mas que não precisa de ser identificada nem individualizada).

Se assim é, não assiste razão à recorrente quando sustenta que a decisão administrativa impugnada e a decisão recorrida carecem de «matéria de facto suficiente» para que lhe seja imputada a conduta ilícita geradora de responsabilidade contraordenacional, omissão que, a ocorrer, conduziria, na nossa perspectiva e salvo o devido respeito por opinião contrária, à absolvição, por falta, a montante, de uma completa descrição dos elementos típicos do ilícito, insusceptível de ser colmatada com o reenvio do processo (não sendo, por isso, caso de verificação do invocado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada[7]).

Improcede, assim, também este segmento do recurso.


*

Aqui chegados, cumprirá afirmar que inexiste questão que possa obstar ao conhecimento do mérito da decisão, e da leitura do texto da sentença recorrida, concretamente dos factos provados (inexistindo factos não provados) e da fundamentação da convicção formada, constata-se que a mesma se mostra coerente, harmónica, destituída de antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para suportar uma segura solução de direito.

Não ocorre, pois, nenhum dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, tendo de considerar-se a matéria de facto definitivamente fixada nos termos em que o foi pelo Tribunal recorrido.


*

A recorrente sustenta, por fim, que só podia ter sido sancionada pelo não envio à Agência Portuguesa do Ambiente, até 31-01-2020, de cópia do inventário da fonte radioactiva selada que detinha, acompanhado da cópia da apólice do seguro de responsabilidade civil e fotografias da fonte, do seu contentor, da embalagem de transporte, dispositivo ou equipamento, caso tivesse sido dado como provado que, durante o ano de 2019, era detentora de uma fonte radioativa selada, o que não foi dado como provado nem se pode presumir.

Conclui que, também por este motivo, devia ter sido proferida decisão absolutória.

Esta questão foi suscitada pela arguida/recorrente em sede de impugnação judicial da decisão administrativa e sobre ela se pronunciou o Tribunal recorrido, nos seguintes termos (transcrição):
«(…) concordamos com o respectivo raciocínio em abstracto, designadamente no sentido de que para que se possa condenar a aqui recorrente ao abrigo da norma legal invocada por não haver enviado determinadas informações à Agência Portuguesa do Ambiente até ao dia 31 de Janeiro do ano “subsequente” à detenção de uma fonte radioactiva selada, sendo neste caso o ano de 2020, sempre seria essencial que se tivesse dado como provado que essa detenção teria ocorrido necessariamente no ano anterior de 2019.
Contudo, como melhor veremos ainda a respeito da fundamentação de direito da presente decisão, entendemos que ainda assim a matéria de facto que foi dada como provada permite alcançar esta conclusão, nomeadamente porque a tabela que se fez constar dos factos provados contém a menção de que a fonte radioactiva detida pela aqui recorrente dispõe de uma licença n.º ...9, cuja “data de emissão” é 18 de Fevereiro de 2019. Como tal, entendemos que daqui decorre de forma suficiente que a detenção da fonte radioactiva selada aqui em causa por parte da aqui recorrente se verificou nesse ano de 2019.
Aliás, sem prescindir, mais não podemos deixar de constatar que ainda na fase administrativa do presente processo, foi a própria aqui recorrente que informou a autoridade administrativa aqui autuante, após ser notificada para tanto e conforme consta de fls. 8 e 9, que efectivamente detém na sua sede a fonte radioactiva selada aqui em apreço desde 23 de Fevereiro de 2013, por a mesma lhe ter sido cedida pela empresa “B..., S.A.”.»

E mais adiante, na fundamentação de direito (transcrição):
Em sede da decisão administrativa agora em crise foi a recorrente condenada pela prática de uma contra-ordenação ambiental qualificada de muito grave, p. e p. pelos artigos 49º, n.º 1, al. b), e 184º, n.º 2, al. r), e n.º 5, ambos do Dec.-Lei n.º 108/2018, de 3 de Dezembro, e pelo artigo 22º, n.º 4, al. b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto.
Ora, assim sendo, estabelece então antes do mais tal artigo 49º, n.º 1, al. b), do Dec.-Lei n.º 108/2018, que “O titular de práticas que envolvam fontes radioactivas seladas deve: b) Enviar à autoridade competente, até ao dia 31 de Janeiro do ano subsequente, cópia do inventário das fontes registadas nos termos da alínea anterior, acompanhado da cópia da apólice do seguro de responsabilidade civil, quando aplicável.”.
Atendendo à remessa desta norma para a sua “alínea anterior” (alínea a)), estabelece então esta última que os mesmos titulares de prática de que envolvam fontes radiactivas seladas devem: “Manter actualizado um inventário de todas as fontes sob a sua responsabilidade, bem como da respectiva localização, transmissão e transferência, e disponibilizar essa informação para inspecção quando tal for solicitado pela autoridade competente”, complementando ainda o n.º 2 desse mesmo artigo 49º no sentido de que “As informações referidas nas alíneas a) e i) do número anterior devem incluir fotografias da fonte, do seu contentor, da embalagem de transporte, dispositivo ou equipamento, consoante o caso.”.
Por seu turno, o supra aludido artigo 184º, n.º 2, al. r), desse mesmo Dec.-Lei n.º 108/2018, estabelece que a violação destas obrigações constitui contra-ordenação ambiental muito grave, complementado pelo subsequente n.º 5 da mesma norma, no sentido de que a mera negligência é punível.
Ora, isto posto, e revertendo desde já ao nosso caso concreto, resultou como provado que a aqui recorrente possuía uma fonte radioactiva selada activa licenciada no ano de 2019, e por isso possuía-a nesse ano, sendo certo que até ao dia 31 de Janeiro de 2020 (ano subsequente) não enviou à Agência Portuguesa do Ambiente (que era aqui a autoridade competente) qualquer cópia do inventário da fonte radioactiva selada que detinha naquele ano de 2019, acompanhada de cópia da apólice do respectivo seguro de responsabilidade civil e fotografias da fonte radioactiva, do seu contentor, da embalagem de transporte, dispositivos e equipamentos.
Assim, sem necessidade de mais acrescidas considerações, entendemos que a conduta da aqui recorrente preencheu integralmente a tipicidade objectiva da contra-ordenação que aqui lhe foi imputada e pela qual foi condenada na decisão administrativa recorrida.
Quanto ao tipo subjectivo de ilícito, foi dado como provado que a aqui recorrente não agiu com a diligência necessária e de que era capaz. Agiu por isso a recorrente de forma negligente, sendo certo que a negligência é punível, como já antes vimos.
Prosseguindo, na medida em que não existe qualquer causa que exclua a ilicitude, a culpa ou a punibilidade da conduta da aqui recorrente, é manifesto que se terá de manter a respectiva condenação pela contra-ordenação aqui em apreço, conforme foi decidido nesse sentido na decisão administrativa aqui recorrida.»

Analisados os factos dados como assentes à luz das regras legais atinentes, não podemos deixar de subscrever esta apreciação, que temos por correcta.

Na verdade, tal como o Tribunal recorrido refere, na fase administrativa a IGAMAOT, no âmbito das suas competências e atribuições, com o objectivo de avaliar o cumprimento das obrigações dos titulares quanto à al. b) do nº 1 do art. 49.º do DL n.º 108/2018, de 03-12, «referente aos deveres dos titulares, no que respeita a fontes radioativas seladas», notificou a ora recorrente para apresentar:
«i) Cópia do inventário das fontes radiativas seladas enviado à Agência Portuguesa do Ambiente (APA, I.P.), contendo a sua localização;

ii) Cópia da apólice do seguro de responsabilidade civil e comprovativo do pagamento;

iii) Comprovativo do envio, à APA, até 31 de janeiro de 2020, dos elementos indicados em i) e ii)

Acrescentando que
«No caso de não ter enviado o inventário à APA, deve apresentar a esta Inspeção-Geral, no prazo acima indicado, uma descrição das fontes radioativas seladas, contendo:
i) Características de cada fonte, incluindo:
a) Tipo;
b) Radionuclídeo;
c) Atividade nominal;
d) Data a que se refere a atividade;

ii) Localização de cada fonte;
iii) Data da transmissão/transferência da fonte e destinatário, caso se aplique;
iv) Identificação da fonte/contentor:
a) Fabricante;
b) Modelo;
c) Número de série;
d) Outras referências relevantes;
e) Utilizações atuais

v) Registos fotográficos
a) Dos contentores das fontes;
b) Das embalagens de transporte, se aplicável.» (sublinhados nossos)

Perante esta notificação a arguida respondeu, em 8 de Julho de 2020, enviando (apenas) cópia da apólice do seguro de responsabilidade civil e do comprovativo do pagamento e os elementos descritivos e informativos solicitados para o caso de não ter sido oportunamente enviada à APA o devido inventário, assumindo assim ser detentora de fonte radioactiva selada, in casu um gamadensímetro, e não ter procedido àquele envio.

Informava, nessa resposta, que a fonte em causa lhe havia sido cedida em 23-02-2013 pela empresa “B..., SA”, sendo que tal fonte havia sido licenciada em 18-02-2019, tal como figura no elenco dos factos provados, pelo que não poderia ter deixado de se concluir que detinha a referida fonte no ano de 2019 e que não cumpriu com a sua obrigação legal de envio à Agência Portuguesa do Ambiente, até 31-01-2020, de cópia do inventário da fonte radioactiva selada que detinha e dos demais elementos que devem acompanhá-lo.

Em suma, perante a factualidade fixada pelo Tribunal a quo, e tendo presentes os elementos típicos do ilícito contraordenacional pelo qual a recorrente vem condenada, que vêm devidamente analisados na decisão recorrida em termos que merecem a nossa concordância e que, por isso, nos dispensamos de aqui repetir, não oferece quaisquer dúvidas o preenchimento destes, a título de negligência.

O Tribunal fez uma correcta interpretação das normas legais que ao caso importam e uma adequada subsunção da factualidade apurada ao Direito, não tendo violado qualquer preceito legal, pelo que improcede também este segmento do recurso.


*

Sem embargo, constata-se que, como bem assinala o Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, já depois de proferida a decisão judicial em 16-09-2022, no diploma sancionatório da conduta da recorrente apurada nos autos foi introduzida uma relevante alteração.

A recorrente foi condenada pela prática de uma contraordenação ambiental qualificada como «muito grave», p. e p. pelos arts. 49.º, n.º 1, al. b), e 184.º, n.ºs 2, al. r), e 5, do DL n.º 108/2018, de 03-12, e pelo art. 22.º, n.º 4, al. b) da Lei n.º 50/2006, de 29-08, com uma coima de 24 000,00€ a 144 000,00€, em caso de negligência.

Com a publicação do DL n.º 81/2022, de 06-12, em vigor a partir de 01-01-2023, a conduta em causa passou a constituir uma contraordenação «grave», nos termos do disposto no art. 184.º, n.º 3, al. q), na sua actual redacção, sendo punível agora pelo art. 22.º, n.º 3, al. b) da Lei n.º 50/2006, de 29-08, com uma coima entre 12 000,00€ e 72 000,00€ (no caso de se tratar, como aqui sucede, de pessoa colectiva e de conduta negligente).

Ora, o princípio da aplicação retroactiva da lei de conteúdo mais favorável vale também no domínio do ilícito de mera ordenação social, dispondo o art. 3.º, n.º 2, do RGCOC que «Se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgado e já executada.»

Assim, tendo em conta a ponderação efectuada na decisão recorrida, que manteve a coima no seu (então) mínimo legal, já aplicado na decisão administrativa, é manifesto que o regime legal actualmente vigente se mostra, em concreto, mais favorável à arguida, pelo que por ele cumpre optar, fixando a coima no seu actual mínimo legal, de 12 000,00€ (doze mil euros).


*

III. Decisão

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em

- negar provimento ao recurso interposto pela arguida, “A..., Lda.”;

- por aplicação retroactiva da lei mais favorável, fixar a coima que lhe foi aplicada em 12 000,00€ (doze mil euros), mantendo-se, no mais, o decidido.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC (arts. 513.º, n.ºs 1 e 3, e 514.º, n.º 1, ambos do CPP, 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa).

Notifique.


*
(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária, sendo ainda revisto pelos demais signatários, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20-09)

*
Coimbra, 08 de Maio de 2024


[1] Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27-10, e sucessivamente alterado pelos DL n.º 356/89, de 17-10, n.º 244/95, de 14-09 e 323/2001, de 17-12, e pela Lei n.º 109/2001, de 24-12.
[2] Concretamente nos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-06-2022, Proc. n.º 822/20.6Y4LSB.L1, e de 14-07-2022, Proc. n.º 1131/21.9T9FNC.L1.
[3] In www.dgsi.pt.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.
[6] Em sentido divergente, os acórdãos deste mesmo Tribunal de 13-12-2022 e de 10-05-2023, proferidos nos Procs. n.ºs 11/22.5T8CNF.C1 e 181/22.2T9SCD.C1, respectivamente, ambos ibidem.
[7] Como explica o Senhor Conselheiro Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág.1358, referindo-se a tal vício: «A afirmação do vício ora em causa, importa, sim, sempre, uma adequada perspectiva do objecto do processo, cujos confins são fixados pela acusação e ou pronúncia complementada pela pertinente defesa. A partir daí, impõe-se o confronto de tal objecto processual com o que o tribunal de julgamento em concreto indagou, independentemente de o resultado dessa indagação ter tido ou não êxito, isto é, independentemente de os factos indagados terem sido dados como provados ou não provados. Importa, sim, que esses factos pertinentes ao objecto do processo tenham sido averiguados em julgamento do facto e obtido a necessária resposta, seja positiva ou negativa. Se se constar que o tribunal averiguou toda a matéria postulada pela acusação/defesa pertinente – afinal o objecto do processo – ainda que toda ela tenha porventura obtido resposta de “não provada”, então o vício de insuficiência está afastado. Os factos pertinentes obtiveram resposta do tribunal, a matéria de facto é bastante para a decisão.»