Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CRISTINA PÊGO BRANCO | ||
Descritores: | CONTRAORDENAÇÃO OMISSÃO IDENTIFICAÇÃO DA PESSOA FÍSICA | ||
Data do Acordão: | 05/08/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | GUARDA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA GUARDA – J1) | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 7º, N.º 2, DO DEC.-LEI N.º 433/82 | ||
Sumário: | Para a responsabilização da arguida pelo cometimento de uma contraordenação por omissão, não se exige a identificação da pessoa física que concretamente cometeu a infração, já que a responsabilidade da pessoa coletiva não é uma imputação reflexa ou indireta, mas sim autónoma. | ||
Decisão Texto Integral: | Relator: Cristina Pêgo Brando Adjuntos: Maria Alexandra Guiné Isabel Valongo *
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra
I. Relatório 1. Nos autos de contra-ordenação com o n.º ...... do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Juízo Local Criminal da Guarda – Juiz ..., “A..., Lda.”, identificada nos autos, impugnou judicialmente a decisão administrativa da Inspecção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT), que lhe aplicou, pela prática de uma contra-ordenação ambiental qualificada de muito grave, p. e p. pelos arts. 49.º, n.º 1, al. b), e 184.º, n.ºs 2, al. r), e 5, ambos do DL n.º 108/2018, de 03-12, e pelo art. 22.º, n.º 4, al. b), da Lei n.º 50/2006, de 29-08, a coima de 24 000,00€ (vinte e quatro mil euros). 2. Por despacho proferido nos termos do art 64.º, n.º 2, do RGCOC[1], foi julgada improcedente a impugnação judicial e mantida a decisão administrativa proferida. 3. Inconformada com essa decisão, interpôs a arguida o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição): 4. Admitido o recurso, o Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta, na qual conclui (transcrição): 5. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer (Ref. Citius 11118536). 6. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foi oferecida resposta. 7. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. * II. Fundamentação 1. Delimitação do objecto do recurso Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior. Em processo contra-ordenacional, o Tribunal da Relação conhece apenas da matéria de direito (art. 75.º, n.º 1, do RGCOC), sem prejuízo do aludido conhecimento oficioso relativamente aos vícios previstos no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP. In casu, a recorrente considera, em primeiro lugar, que a decisão recorrida omite a factualidade respeitante ao elemento subjectivo da infracção, em violação do disposto nos arts. 374.º e 97.º, n.º 5, do CPP, aplicáveis ex vi arts. 2.º da Lei n.º 50/2006, de 29-08, e 41.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27-10. Afirma, por outro lado, que a decisão recorrida padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, por nela não estar identificado o autor da conduta/omissão contraordenacional. Por fim, sustenta que só podia ter sido sancionada pelo não envio à Agência Portuguesa do Ambiente, até 31-01-2020, de cópia do inventário da fonte radioactiva selada que detinha, acompanhado da cópia da apólice do seguro de responsabilidade civil e fotografias da fonte, do seu contentor, da embalagem de transporte, dispositivo ou equipamento, caso tivesse sido dado como provado que, durante o ano de 2019, era detentora de uma fonte radioativa selada, o que não foi dado como provado nem se pode presumir. Conclui que, em consequência, devia ter sido proferida decisão absolutória. * 2. Da decisão recorrida Previamente à apreciação das questões suscitadas, vejamos qual a fundamentação de facto que consta da decisão recorrida. * 3. Da análise dos fundamentos do recurso (…) * A recorrente sustenta, por outro lado, que a decisão recorrida padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, por nela não estar identificado o autor da conduta/omissão contraordenacional. Na sua perspectiva, tal «identificação e imputação factual mostram-se imprescindíveis à imputação (orgânica) da ação ou omissão à pessoa coletiva, por se não revelar minimamente indiciado o preenchimento do pressuposto exigido pela 2ª parte do n.º 2 do art. 7º do RGCO, transcrito (praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções).» E essa insuficiência não é suprível através do reenvio do processo para novo julgamento, nos termos dos arts. 426.º, n.º1, e 426.º-A, do CPP, «a fim de determinar a pessoa que representa a arguida e a pessoa que concretamente agiu e/ou praticou os factos, bem como se o fez no exercício das suas funções ou de ordens transmitidas pelo representante da arguida», porque tal redundaria na violação do princípio da vinculação temática do tribunal, já que não pode a 1.ª instância indagar factos que não constem da decisão administrativa impugnada, não restando outra solução que não seja a sua absolvição.
A concreta questão de saber se o art. 7.º, n.º 2 do RGCOC exclui a responsabilidade das pessoas colectivas ou equiparadas relativamente às contra-ordenações que não sejam praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções e se a imputação à pessoa colectiva exige a concreta identificação da pessoa física que deu concretização à infracção em causa tem suscitado, de há muito, divergências na doutrina e na jurisprudência, sendo o entendimento propugnado no recurso o de que a imputação da responsabilidade sancionatória das pessoas colectivas é um modelo de imputação reflexa ou indirecta, em obediência ao princípio de que no domínio das contra-ordenações a societas delinquere non potest. Como escrevemos noutro lugar[2], que seguimos de perto, «não é esse o entendimento que sufragamos, mas sim o explanado, entre outros, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-10-2021, proferido no Proc. n.º 3682/20.3T9LRA.C1[3], no qual se lê, para além do mais: «Com efeito, já muito se problematizou sobre o tema, assistindo-se a uma orientação dominante no seio da jurisprudência dos tribunais superiores [cf., v.g., os acórdãos do TRL de 27.06.2019 (proc. n.º 5840/14.OECLSB.L1), 12.01.2021 (proc. n.º 1874/19.7), do TRE de 26.06.2018 (proc. n.º 3716/17.9T9STB.E1), do TRG de 27.01.2020 (proc. n.º 510/19.6T8FAF.G1)], contrária à posição da recorrente, a qual encontrando sustentação em parte da doutrina [cf., v.g., Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Regime Geral das Contraordenações”, Universidade Católica Editora, págs. 52/53], surge ainda alcandorada no Parecer do Conselho Consultivo da PGR, n.º 11/2013 [in D.R., 2.ª Série, n.º 178, 16.09.2013), de cujas conclusões ora se destaca: “3. O Regime Geral das Contraordenações consagra um regime de imputação restritivo, no número 2 do artigo 7.º, ao limitar a responsabilidade das pessoas coletivas às contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções, ao contrário do que acontece na maioria dos regimes especiais (…). 4. O preceito do número 2 do artigo 7.º do Regime Geral das Contraordenações deve ser interpretado extensivamente, como, aliás, tem sido feito pela jurisprudência, incluindo do Tribunal Constitucional, de modo a incluir os trabalhadores, os administradores e gerentes e os mandatários ou representantes da pessoa coletiva ou equiparada, desse que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas. 5. A responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas assenta numa imputação direta e autónoma, quer o fundamento dessa responsabilidade se encontre num “defeito estrutural da organização empresarial” (defective corporate organization) ou “culpa autónoma por défice de organização”, quer pela imputação a uma pessoa singular funcionalmente ligada à pessoa coletiva, mas que não precisa de ser identificada nem individualizada. […]. 7. O artigo 7.º do Regime Geral das Contraordenações adota a responsabilidade autónoma, tal como os regimes especiais em matéria laboral (artigo 551.º do Código do Trabalho), tributária (artigo 7.º do Regime Geral das Infrações Tributárias), económica (artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro), de valores mobiliários (artigo 401.º do Código dos Valores Mobiliários), de concorrência (artigo 73.º da Lei da Concorrência) e de contraordenações ambientais (artigo 8.º da Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais), pelo que não é necessária a identificação concreta do agente singular que cometeu a infração para que a mesma seja imputável à pessoa coletiva.” E, como bem realça o Senhor Procurador-Geral Adjunto, também no acórdão n.º 566/2018 (proc. n.º 336/18) o Tribunal Constitucional concluiu não existirem razões para questionar e desconsiderar a referida interpretação extensiva do art.º 7º, n.º 2, do RGCO, reproduzindo-se, a respeito: Acresce que o termo “órgão”, do ponto de vista conceptual, não está necessariamente associado a um centro autónomo e institucionalizado de poderes funcionais- a uma realidade institucional ou estatutária (…). Por isso mesmo, são descortináveis diversas definições legais de “órgão”, consoante os fins concretamente visados pelo diploma em que as mesmas se inserem (…). Na perspetiva material da atividade dos entes coletivos (por contraposição à perspetiva da sua estrutura organizatória) – que é aquela que releva a propósito da imputação de condutas individuais a uma pessoa coletiva -, pode entender-se o órgão como o indivíduo cuja atuação é imputada ao ente coletivo. Estando em causa uma conduta correspondente a uma declaração de vontade, é evidente que as regras estatutárias sobre os processos deliberativos internos tendem a assumir maior relevância (cfr. a mencionada definição legal constante do artigo 20.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo). Mas, tratando-se de simples atuações materiais, nada obsta a que a imputação se fundamente com base numa atuação em nome do ente coletivo e no seu interesse (representante) ou na circunstância de o mesmo indivíduo dispor no âmbito de tal ente de autoridade ou de uma posição de liderança para controlar a respetiva atividade. Nessa medida, faltando uma definição legal própria aplicável no domínio específico do RGCO, e abstraindo de argumentos teleológicos e outros argumentos sistemáticos (por exemplo, uma maior adequação ao princípio da equiparação consignado no artigo 7.º, n.º 1, do RGCO), não se pode ter por absolutamente incompatível com o sentido literal do termo “órgão” referido no artigo 7.º, n.º 2, do RGCO um entendimento extensivo do mesmo, na linha da previsão das alíneas a) e b) do n.º 2 e do n.º 4 do artigo 11.º do Código Penal. De resto, o artigo 32.º do RGCO reforça tal entendimento: «[e]m tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal» (e, não, por exemplo, as do Código do Procedimento Administrativo)”. (…) Na verdade, “Considerando a complexidade que pode ter uma organização empresarial, em certos casos pode tornar-se ineficaz a procura de identificação do agente concreto, uma vez que um ato poderá passar por mais de um órgão, não sendo por vezes fácil determinar a pessoa concreta que agiu, exigindo-se, apenas, a certeza que a infração foi cometida no seio da instituição (pessoa coletiva)” – [cf. acórdão TRL, de 12.01.2021].»
Pela sua manifesta relevância, chamamos também aqui à colação o explanado no acórdão da Relação de Lisboa de 10-04-2018, proferido no Proc. n.º 210/17.1YUSTR.L1-5[4]: «Conforme se refere no acórdão do TC de 9/01/2014 (DR – 2.ª série, de 11/02/2014), «no âmbito das contraordenações, a imputação de um facto a um agente tem por referente legal e dogmático um conceito extensivo de autoria de matriz causal, conceito este segundo o qual é considerado autor de uma contraordenação todo o agente que tiver contribuído causal ou cocausalmente para a realização do tipo, ou seja, que haja dado origem a uma causa para a sua realização ou que haja promovido, com a sua acção ou omissão, o facto ilícito, podendo isso ocorrer de qualquer forma (cfr. Frederico Lacerda da Costa Pinto, em “O ilícito de mera ordenação social”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 7, Fasc. 1, pag. 25-26). O relevo da opção legal por um conceito extensivo de autor no âmbito da responsabilidade contra-ordenacional, por oposição ao conceito restritivo de autoria que vigora, em regra, no domínio do direito penal, é especialmente perceptível nas hipóteses em que, como na presente situação, os factos cometidos envolvem a estrutura orgânica e funcional de uma empresa. Esta construção é uma decorrência lógica da existência no direito de mera ordenação social de normas de dever, cujo incumprimento é sancionado com coimas. Se o sistema impõe deveres a um leque alargado de destinatários é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e também para os violar. Daí que, apurando-se a violação do dever legalmente estabelecido os destinatários do mesmo serão responsáveis por essa violação. “O critério de delimitação da autoria neste tipo de ilícito não é do domínio do facto, mas sim o da titularidade do dever” (Frederico Lacerda da Costa Pinto, na obra citada, pag. 48). Aquele conceito extensivo de autoria conduzirá, em regra, à responsabilização da entidade sobre a qual recai o dever, sempre que se tenha verificado o resultado que aquela estava legalmente incumbida de evitar.»
Também com interesse, o acórdão da Relação de Lisboa de 21-12-2021, proferido no Proc. n.º 1104/17.6Y5LSB.L1-5[5], cujo sumário transcrevemos parcialmente: «IV – A culpa na prática das contraordenações não tem as exigências éticas da culpa penal. Nesta, e partindo sempre de um direito penal do facto, há que formar um juízo de censura sobre a conduta do agente por ter violado um dever ser ético, que lhe era exigido face aos bens jurídicos protegidos pela lei penal, em última análise assentes na dignidade da pessoa humana. Nas contraordenações, como se refere no preâmbulo do DL 433/82, o seu aparecimento “ficou a dever-se ao pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem progressivamente alargando a sua acção conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, cultura, equilíbrios ecológicos, etc.”. V - Por conseguinte, face a estas menores exigências éticas e à redacção da lei, é nosso entendimento que, ao invés do que sucede no direito penal português, no art.º 7.º, n.º 2, do DL 433/82, estamos perante um modelo de responsabilidade autónoma das pessoas colectivas, em que estas são responsabilizadas por não se terem organizado para evitar o cometimento de contraordenações.»
Mais recentemente, no sentido que sufragamos, pronunciaram-se os acórdãos desta Relação de Coimbra de 08-03-2023, proferido no Proc. n.º 536/22.2T9PBL.C1, e de 13-12-2023, proferido no Proc. n.º 705/23.8T8GRD.C1, ambos in www.dgsi.pt.[6]
Na situação em apreço está em causa uma infracção consistente numa conduta omissiva, por a arguida, pessoa colectiva, sendo detentora de uma fonte radioactiva selada, com as características descritas no ponto A) dos factos provados, não ter enviado «à Agência Portuguesa do Ambiente qualquer cópia do inventário da fonte radioactiva selada que detém, acompanhada de cópia da apólice do respectivo seguro de responsabilidade civil e fotografias da fonte radioactiva, do seu contentor, da embalagem de transporte, dispositivos e equipamentos, até ao dia 31 de Janeiro de 2020», omissão que só tem sentido imputar aos serviços da recorrente, não havendo margem para dúvidas de que a infracção foi cometida no seio da pessoa colectiva, sobre si recaindo, pelas razões expostas, a responsabilidade pelo ilícito contraordenacional que lhe vem imputado, a tal não obstando a não identificação, na decisão condenatória, da (s) concreta(s) pessoa(s) singular(es) que, no seio da instituição procedeu à omissão indevida. Em suma, no entendimento que perfilhamos, não pode exigir-se, para a responsabilização da arguida, a identificação da pessoa física que concretamente, neste caso por omissão, cometeu a infracção, já que a responsabilidade da pessoa colectiva não é, como subjaz ao que vem sustentado no recurso, uma imputação reflexa ou indirecta, mas sim autónoma (decorrente, como vimos, ou de um «defeito estrutural da organização empresarial» ou «culpa autónoma por défice de organização» ou da imputação a uma pessoa singular funcionalmente ligada à pessoa coletiva, mas que não precisa de ser identificada nem individualizada). Se assim é, não assiste razão à recorrente quando sustenta que a decisão administrativa impugnada e a decisão recorrida carecem de «matéria de facto suficiente» para que lhe seja imputada a conduta ilícita geradora de responsabilidade contraordenacional, omissão que, a ocorrer, conduziria, na nossa perspectiva e salvo o devido respeito por opinião contrária, à absolvição, por falta, a montante, de uma completa descrição dos elementos típicos do ilícito, insusceptível de ser colmatada com o reenvio do processo (não sendo, por isso, caso de verificação do invocado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada[7]). Improcede, assim, também este segmento do recurso. * Aqui chegados, cumprirá afirmar que inexiste questão que possa obstar ao conhecimento do mérito da decisão, e da leitura do texto da sentença recorrida, concretamente dos factos provados (inexistindo factos não provados) e da fundamentação da convicção formada, constata-se que a mesma se mostra coerente, harmónica, destituída de antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para suportar uma segura solução de direito. Não ocorre, pois, nenhum dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, tendo de considerar-se a matéria de facto definitivamente fixada nos termos em que o foi pelo Tribunal recorrido. * A recorrente sustenta, por fim, que só podia ter sido sancionada pelo não envio à Agência Portuguesa do Ambiente, até 31-01-2020, de cópia do inventário da fonte radioactiva selada que detinha, acompanhado da cópia da apólice do seguro de responsabilidade civil e fotografias da fonte, do seu contentor, da embalagem de transporte, dispositivo ou equipamento, caso tivesse sido dado como provado que, durante o ano de 2019, era detentora de uma fonte radioativa selada, o que não foi dado como provado nem se pode presumir. Conclui que, também por este motivo, devia ter sido proferida decisão absolutória.
Esta questão foi suscitada pela arguida/recorrente em sede de impugnação judicial da decisão administrativa e sobre ela se pronunciou o Tribunal recorrido, nos seguintes termos (transcrição): E mais adiante, na fundamentação de direito (transcrição):
Analisados os factos dados como assentes à luz das regras legais atinentes, não podemos deixar de subscrever esta apreciação, que temos por correcta. Na verdade, tal como o Tribunal recorrido refere, na fase administrativa a IGAMAOT, no âmbito das suas competências e atribuições, com o objectivo de avaliar o cumprimento das obrigações dos titulares quanto à al. b) do nº 1 do art. 49.º do DL n.º 108/2018, de 03-12, «referente aos deveres dos titulares, no que respeita a fontes radioativas seladas», notificou a ora recorrente para apresentar: ii) Cópia da apólice do seguro de responsabilidade civil e comprovativo do pagamento; iii) Comprovativo do envio, à APA, até 31 de janeiro de 2020, dos elementos indicados em i) e ii);» Acrescentando que ii) Localização de cada fonte; v) Registos fotográficos
Perante esta notificação a arguida respondeu, em 8 de Julho de 2020, enviando (apenas) cópia da apólice do seguro de responsabilidade civil e do comprovativo do pagamento e os elementos descritivos e informativos solicitados para o caso de não ter sido oportunamente enviada à APA o devido inventário, assumindo assim ser detentora de fonte radioactiva selada, in casu um gamadensímetro, e não ter procedido àquele envio. Informava, nessa resposta, que a fonte em causa lhe havia sido cedida em 23-02-2013 pela empresa “B..., SA”, sendo que tal fonte havia sido licenciada em 18-02-2019, tal como figura no elenco dos factos provados, pelo que não poderia ter deixado de se concluir que detinha a referida fonte no ano de 2019 e que não cumpriu com a sua obrigação legal de envio à Agência Portuguesa do Ambiente, até 31-01-2020, de cópia do inventário da fonte radioactiva selada que detinha e dos demais elementos que devem acompanhá-lo.
Em suma, perante a factualidade fixada pelo Tribunal a quo, e tendo presentes os elementos típicos do ilícito contraordenacional pelo qual a recorrente vem condenada, que vêm devidamente analisados na decisão recorrida em termos que merecem a nossa concordância e que, por isso, nos dispensamos de aqui repetir, não oferece quaisquer dúvidas o preenchimento destes, a título de negligência. O Tribunal fez uma correcta interpretação das normas legais que ao caso importam e uma adequada subsunção da factualidade apurada ao Direito, não tendo violado qualquer preceito legal, pelo que improcede também este segmento do recurso. * Sem embargo, constata-se que, como bem assinala o Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, já depois de proferida a decisão judicial em 16-09-2022, no diploma sancionatório da conduta da recorrente apurada nos autos foi introduzida uma relevante alteração. A recorrente foi condenada pela prática de uma contraordenação ambiental qualificada como «muito grave», p. e p. pelos arts. 49.º, n.º 1, al. b), e 184.º, n.ºs 2, al. r), e 5, do DL n.º 108/2018, de 03-12, e pelo art. 22.º, n.º 4, al. b) da Lei n.º 50/2006, de 29-08, com uma coima de 24 000,00€ a 144 000,00€, em caso de negligência. Com a publicação do DL n.º 81/2022, de 06-12, em vigor a partir de 01-01-2023, a conduta em causa passou a constituir uma contraordenação «grave», nos termos do disposto no art. 184.º, n.º 3, al. q), na sua actual redacção, sendo punível agora pelo art. 22.º, n.º 3, al. b) da Lei n.º 50/2006, de 29-08, com uma coima entre 12 000,00€ e 72 000,00€ (no caso de se tratar, como aqui sucede, de pessoa colectiva e de conduta negligente). Ora, o princípio da aplicação retroactiva da lei de conteúdo mais favorável vale também no domínio do ilícito de mera ordenação social, dispondo o art. 3.º, n.º 2, do RGCOC que «Se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgado e já executada.» Assim, tendo em conta a ponderação efectuada na decisão recorrida, que manteve a coima no seu (então) mínimo legal, já aplicado na decisão administrativa, é manifesto que o regime legal actualmente vigente se mostra, em concreto, mais favorável à arguida, pelo que por ele cumpre optar, fixando a coima no seu actual mínimo legal, de 12 000,00€ (doze mil euros). * III. Decisão Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em - negar provimento ao recurso interposto pela arguida, “A..., Lda.”; - por aplicação retroactiva da lei mais favorável, fixar a coima que lhe foi aplicada em 12 000,00€ (doze mil euros), mantendo-se, no mais, o decidido. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC (arts. 513.º, n.ºs 1 e 3, e 514.º, n.º 1, ambos do CPP, 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa). Notifique. * * Coimbra, 08 de Maio de 2024 [1] Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27-10, e sucessivamente alterado pelos DL n.º 356/89, de 17-10, n.º 244/95, de 14-09 e 323/2001, de 17-12, e pela Lei n.º 109/2001, de 24-12. [2] Concretamente nos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-06-2022, Proc. n.º 822/20.6Y4LSB.L1, e de 14-07-2022, Proc. n.º 1131/21.9T9FNC.L1. [3] In www.dgsi.pt. [4] Ibidem. [5] Ibidem. [6] Em sentido divergente, os acórdãos deste mesmo Tribunal de 13-12-2022 e de 10-05-2023, proferidos nos Procs. n.ºs 11/22.5T8CNF.C1 e 181/22.2T9SCD.C1, respectivamente, ambos ibidem. [7] Como explica o Senhor Conselheiro Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág.1358, referindo-se a tal vício: «A afirmação do vício ora em causa, importa, sim, sempre, uma adequada perspectiva do objecto do processo, cujos confins são fixados pela acusação e ou pronúncia complementada pela pertinente defesa. A partir daí, impõe-se o confronto de tal objecto processual com o que o tribunal de julgamento em concreto indagou, independentemente de o resultado dessa indagação ter tido ou não êxito, isto é, independentemente de os factos indagados terem sido dados como provados ou não provados. Importa, sim, que esses factos pertinentes ao objecto do processo tenham sido averiguados em julgamento do facto e obtido a necessária resposta, seja positiva ou negativa. Se se constar que o tribunal averiguou toda a matéria postulada pela acusação/defesa pertinente – afinal o objecto do processo – ainda que toda ela tenha porventura obtido resposta de “não provada”, então o vício de insuficiência está afastado. Os factos pertinentes obtiveram resposta do tribunal, a matéria de facto é bastante para a decisão.» |