Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA TERESA COIMBRA | ||
Descritores: | METADADOS DADOS DE BASE DADOS DE TRÁFEGO DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL DAS NORMAS - AC. DO TC N.º 268/2022 CONFISSÃO - VALOR E AUTONOMIA PROBATÓRIA PENAS ACESSÓRIAS CRITÉRIOS DE APLICAÇÃO. | ||
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Data do Acordão: | 02/19/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA - JUIZ 4 | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 176º, N.º 1-C) DO C.P. E 177º, N.ºS 1-C) E 7 (NA REDACÇÃO CONFERIDA PELA LEI N.º 40/2020); LEI N.º 32/2008, DE 17-07; ARTIGOS 187.º, N.ºS 1 E 4, E 189.º, N.º 2, AL. E) DO ART. 269º, 344º TODOS DO CPP; LEI 109/2009, DE 15-09; LEI 41/2004, DE 18-08; ARTIGO 69.º-B, N.º 2, 69.º-C, N.º 2, DO CÓDIGO PENAL. | ||
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Sumário: | 1 - A jurisprudência fixada pelo Ac. do Tribunal Constitucional 268/2022, de 19/04, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do art. 4º, conjugada com os art.s 6º e 9º (na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros) todos da Lei 32/2008 de 17 de julho, normas que determinavam para os fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas, publicamente disponíveis, a obrigação de conservação para fins criminais e por um ano, dos dados gerados ou tratados no âmbito dos serviços de comunicações eletrónicas.
2 - O Tribunal Constitucional, no referido acórdão, não fiscalizou, nem censurou as normas do código de processo penal que prevêem a possibilidade de obter e juntar aos autos dados sobre a localização celular ou registos de realização de conversações ou comunicações quanto a crimes previstos no nº 1 do artigo 187º (onde se inclui o crime de pornografia de menores), nem afastou a possibilidade de conservação de dados ao abrigo de outros diplomas, por exemplo para fins contratuais, como ocorre com a lei 41/2004 de 18.08, que prevê a conservação de dados de tráfego, por um período de 6 meses. 3 - São válidas as provas que forem obtidas a partir de dados guardados pelas operadoras, respeitando os limites impostos legalmente pelas leis que se mantêm em vigor, designadamente pela lei 41/2004 de 18.08. ( art. 6º, n º7) e que continuam a prever a possibilidade de obtenção, guarda e transmissão de tais dados. 4 - As informações da MEO que respeitam a dados de base, isto é, à identificação do utilizador, número de telefone e morada, não constituem uma compressão desproporcionada dos direitos previstos no artigo 35º, nºs 1 e 4 e 26º, nº 1 da Constituição, nem constituem prova nula nos termos do nº 8 do artigo 32º do mesmo diploma, de acordo com o decidido pelo Tribunal Constitucional. 5 - Assim também as informações obtidas respeitantes a dados de tráfego, já que o Acórdão do Tribunal Constitucional dirigiu-se essencialmente aos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis e afastou a possibilidade de serem por eles guardados dados de tráfego relativos às comunicações dos respetivos assinantes, pelo período de um ano e para fins criminais, conforme previsto nos art. 4º,6º e 9º da Lei 32/2008 de 17.07. 6 - O Tribunal Constitucional não vedou o acesso, no âmbito do processo penal, a dados conservados na posse de operadoras de serviços de comunicações, que continua previsto nos artigos 187º a 189º e na al. e ) do art. 269º do CPP e, bem assim, na Lei do Cibercrime, nem as operadoras de comunicações ficaram impedidas de conservar dados de tráfego dos seus clientes, v.g. para fins de faturação, como ocorre com a Lei 41/2004 de 18.08 - que transpôs a Diretiva 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e, que contrariamente à Diretiva 2006/24/CE ( transposta pela Lei 32/2008 de 17.07) se mantém válida – pelo prazo de 6 meses, prazo que foi respeitado no presente processo.
7 - As declarações do arguido não se subsumem ao disposto no artigo 344º do CPP, na medida em que foram parciais e com reservas. 8 - À confissão meramente estratégica em julgamento não pode ser atribuído o mesmo valor que à confissão espontânea, o mesmo ocorrendo quanto à confissão após produção de prova, quando confrontada com a realizada antes de produzida qualquer outra prova. Mas apesar do valor da confissão poder variar em função da sua utilidade, nem por isso deixa de constituir prova válida e autonomamente valorável. 9 - O Ac. TC nº 688/2024 publicado no DR, II, Série nº 219 de 12/11/2024 julgou inconstitucionais as normas dos artigos 69.º-B, n.º 2, e 69.º-C, n.º 2, do Código Penal (na redação conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto) nos segmentos normativos em que determinam a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para as proibições, em caso de punição pela prática de crime de abuso sexual de menores dependentes ou de importunação. 10 - Na decisão recorrida a imposição das penas acessórias não resultou necessariamente da obrigatoriedade prevista na lei, antes da redação dada pela Lei 15/2024 de 29 de janeiro, mas da avaliação feita pelo tribunal a quo, - com observância das exigências de proporcionalidade decorrentes do artigo 18, nº 2, da CRP, - a partir da observação na situação concreta de exigências de comprovação no todo comportamental protagonizado pelo agente, de um particular conteúdo do ilícito, justificante materialmente da aplicação das ditas penas acessórias. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra.
I. No processo comum com intervenção de tribunal coletivo que, com o nº 285/22.1JGLSB, corre termos pelo juízo central criminal de Coimbra foi proferida a seguinte decisão (transcrição): - Condena-se o arguido AA, como autor material de um crime de pornografia de menores, p. e p. nos arts. 176º/n.º 1-c) C.P. e 177º/n.os 1-c) e 7 (na redacção conferida pela Lei n.º 40/2020), na pena de 4 (quatro) anos de prisão; - Absolve-se o arguido AA dos demais crimes por que vinha acusado nos presentes autos; - Condena-se o mesmo arguido AA na pena acessória de proibição do exercício de profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 5 (cinco) anos; - Condena-se o arguido AA na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores (seja de que tipo for), pelo período de 5 (cinco) anos; - Condena-se o arguido nas custas do processo, com o mínimo de taxa de justiça. * Nos termos dos arts. 50º e 53º, todos C.P., esperando-se (pelos fundamentos acima enunciados) que a ameaça de prisão o afaste da prática de novos ilícitos criminais, decide-se suspender a execução da pena de prisão definida ao arguido AA pelo período de 4 (quatro) anos, acompanhada de um regime de prova assente em plano individual de reinserção social especialmente vocacionado para o seu acompanhamento psicoterapêutico (com primacial abordagem a temas essenciais dos relacionamentos interpessoais e suas componentes, maxime no domínio sexual), e ainda para a potenciação e preservação de hábitos de trabalho a manter pelo arguido [tudo nos moldes a definir oportunamente mediante plano a elaborar pelos serviços de reinserção social e a aprovar pelo Tribunal; para tais efeitos, deve ainda o arguido apresentar-se e(ou) responder a todas as convocatórias que lhe venham a ser dirigidas pelo Tribunal e pelos técnicos de reinserção social, e sem prejuízo de o plano de reinserção poder vir a ser completado posteriormente pelos referidos serviços]. (…) * Inconformado com a condenação recorreu o arguido para este tribunal concluindo a sua motivação do seguinte modo (transcrição): 1º Foi o arguido BB condenado na pena de 4 (quatro) anos de prisão pela prática de um crime de pornografia de menores, p. e p. nos artigos 176.º, nº 1 –c) e 177.º, nº 1 – c) e 7 do Cod. Penal. 2º Para prova dos factos dados como provados, nomeadamente a distribuição, a detenção, a divulgação ou partilha de filmes ou imagens correspondentes a pornografia infantil, foram obtidas informações junto da operadora MEO; 3º Nomeadamente a identificação do arguido, a sua morada e informações de comunicações realizadas através de IP. 4º Considerando o doutamente decidido pelo Tribunal Constitucional noAcórdão268/2022, de relativamente aos chamados metadados, tais elementos não poderiam ter sido divulgados pela respetiva operadora; 5º E muito menos ter sido utilizados para, dessa forma, obter o Ministério Publico indícios orientadores da investigação e conducentes à acusação do arguido, conforme veio a suceder. 6º Resulta unanimemente assente que os dados disponibilizados pela operadora MEO não são dados de base, obtidos a partir da relação contratual estabelecida entre a operadora MEO e o cliente, mas sim dados gerados pela utilização da rede; 7º E portanto abrangidos pelo principio da reserva da intimidade e da vida privada, constitucionalmente consagrado. 8º Encontrando-se assim indubitavelmente aplicável a norma de inconstitucionalidade, com forca obrigatória geral, consagrada pelo TC no Acórdão n.º 268/2022, que declarou “a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma Lei” e “a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para a investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê a notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou a integridade física de terceiros”. – douto Acórdão do TRE, datado de 05-03-2024, Processo nº 355/22.6JGLSB, Relator: Fátima Bernardes. 9º Verificando-se a forma como tais dados foram recolhidos, mal andou o Tribunal a quo ao validar a prova obtida, posteriormente; nomeadamente: 10ºMal andou ao validar os relatórios periciais efetuados ao computador do arguido; 11ºMal andou ao validar a prova recolhida da conta MEGA registada em nome do arguido; 12ºE, mal andou ao ter condenado o arguido, como o fez, fazendo tábua rasa de decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional, com força obrigatória geral, que visam salvaguardar o mais nobre direito dos cidadãos. 13ºTendo a morada do arguido sido obtida de forma inválida, consequentemente os mantados de buscas e apreensões que lhe sobrevem padecem de ilegalidade e os indícios obtidos pelo órgão de polícia criminal por tais perícias encontram-se contaminados pela ilegalidade inicial; 14ºAssim, por força do “efeito à distância” daquela proibição de prova (prova primária), a apreensão do equipamento/material informático, que teve lugar no âmbito da busca domiciliária realizada, mostra-se “contaminada”, não podendo ser utilizada a prova obtida por esse meio (prova sequencial ou secundária), sendo que, no caso concreto, não ocorre qualquer exceção ou limitação do “efeito à distância” decorrente da assinalada proibição de prova, designadamente a existência de prova sequencial obtida através de uma fonte independente e autónoma da prova inquinada ou a ocorrência da situação de “mácula dissipada”. 15ºNão podendo relevar para efeitos de apuramento de responsabilidade criminal do arguido. 16ºHá uma proibição absoluta de utilizar essas provas no processo pois seria intolerável que para realizar a justiça fossem utilizados elementos de prova obtidos por meios vedados pela Constituição e incriminados pela lei. 17ºDebruçando-nos agora sobre a confissão parcial efetuada pelo mesmo, em sede de audiência de discussão e julgamento, importa referir que a mesma resultado pressuposto de legalidade da prova existe nos autos; 18ºAs declarações do arguido surgem na sequência da prova inicialmente recolhida, no pressuposto da validade dos elementos de prova – apreensão e perícia – equacionando-se que caso soubesse da sua invalidade as suas declarações poderiam ter sido outras. 19ºOra, não sendo a prova válida, nunca se poderá considerar a confissão realizada como prova autónoma e independente de acesso aos factos, sem conexão estreita com a prova proibida, na medida em que é motivada pela apreensão e exame aos equipamentos informáticos onde é descoberta matéria com relevância criminal; 20ºDonde, cremos não se poder igualmente valorar as declarações prestadas pelo arguido por estarem igualmente contaminadas pelo vício da prova inicial. 21ºTermos em que deverá a decisão condenatória ser revogada integralmente e substituída por outra que absolva o arguido AA da prática dos factos de que vem condenado; 22ºBem se requer a revogação das penas acessórias aplicadas ao arguido. 23ºSalvaguardando-se assim os mais elementares princípios do Direito Penal e dos Direitos do Arguido, bem como da Constitucionalidade do funcionamento da Justiça; 24ºSob pena de violação do art. 32.º da CRP. TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO,SEMPRE COM O DOUTO SUPRIMENTO DE V.EXAS. DEVERÁ: a. SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADO O ACÓRDÃO RECORRIDO E,EM CONSEQUÊNCIA: b. SER O ARGUIDO ABSOLVIDO DOS FACTOS EM QUE FOI CONDENADO. FAZENDO-SE ASSIM A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA * Recebido o recurso a ele respondeu em primeira instância o Ministério Público, resposta que concluiu assim (transcrição):
1- O presente processo teve inicio com a comunicação, por parte da entidade norte-americana “National Center for Missing and Exploited Children”, da notícia de partilha de ficheiros contendo imagens/vídeos de pornografia de menores (com o conteúdo descrito no ponto 2, dos factos dados como provados), gravadas no CD remetido e que se encontra a fls. 18 dos autos. 2- A denúncia ao NCMEC foi efectuada pela empresa norte-americana “Facebook” (que presta serviço de redes sociais e comunicações), tem por fundamento a monitorização que as empresas fazem à utilização dos serviços que prestam, foi executada através do canal “Cyber Typeline”, e encontra-se devidamente enquadrada nos termos da legislação norte-americana e portuguesa (cfr. artigo 19-A, do Decreto-Lei n.º 7/2004, de 7 de Janeiro- Comércio Electrónico no Mercado Interno e Tratamento de Dados Pessoais). 3- Na denúncia efectuada pela empresa Facebook, que foi feita através do canal “Cyber Typeline, consta a identificação do arguido AA (nome, data de nascimento e n.º de telemóvel) como o utilizador daquele perfil, bem como a identificação do IP. 4-Com base nos elementos remetidos, foi possível a Polícia Judiciária, apurar que o perfil da rede social Facebook identificado ainda estava activo e tinha como titular o arguido AA, e da consulta da bases de dados dos Serviços de Identificação Civil, encontrar o endereço do arguido AA, Rua ..., ..., garagem, em ... 5- Foi solicitada à Meo a identificação do titular do contrato do endereço IP que foi utilizado. 6- O único dado obtido com interesse reporta-se apenas ao domicílio associado àquele contrato, ou seja, ao local onde fora instalado o serviço de internet, domicílio esse que, aliás, já constava dos autos como sendo o do arguido AA. 7- De todo o modo, trata-se de acesso a dado que não respeita a comunicações efetuadas, tratadas e armazenadas ao abrigo da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho e constitui nas palavras do acórdão 268/2022 do TC “caracteres permanentes, pelo que a identificação do sujeito a que pertencem pode ser obtida independentemente de qualquer comunicação” 8- Para além de que, com a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 4.º, da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, a conservação e armazenamento de dados de base, designadamente, de dados de subscritor do IP pelos fornecedores de serviço, não passou a ser proibida. 9- A Lei n. º41/2004, de 18 de Agosto, permite a conservação e tratamento das informações dos assinantes das comunicações eletrónicas e mesmo dos dados tráfego necessários à faturação detalhada dos assinantes e pagamento das comunicações. 10- Por sua vez a Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro, chamada de Lei do Cibercrime, embora não regule a conservação de dados, regula a sua obtenção e também não foi objecto de declaração de inconstitucionalidade pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022. 11- Aa informação fornecida pela MEO foi obtida ao abrigo do disposto na Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto (em conjugação com Lei nº 23/96, de 26 de Julho) e dos artigos 11º, nº 1, alíneas b) e c), e 14º, nºs 1 a 3, da Lei n.º 109/2009, de 15/09, ou seja, em observância dos formalismos legais, não constituindo prova de valoração proibida. 12- Foi efectuada busca domiciliária na residência do arguido para a efectiva apreensão do computador, discos, pens e todos dados informáticos relativos ao crime de pornografia de menores e para a pesquisa desses dados informáticos. 13- Os dados (ficheiros) que vieram a ser objecto de perícia pela Polícia Judiciária foram extraídos do computador do arguido no IP que era por ele utilizado, na sequência dessa busca domiciliária legalmente autorizada e realizada de acordo com as exigências legais previstas no Código de Processo Penal e artigo 15.º, n.º 1, 2 e 5 e 16.º , n.º 1, da Lei 109/2009, de 15 de Setembro e não com recurso a quaisquer dados de tráfego fornecidos por qualquer operadora. 14- Portanto, os elementos de prova avaliados pelo Coletivo, que serviram para formar a sua convicção, observaram o formalismo legal, constituindo provas válidas e, por isso legais, sendo que o raciocínio feito pelo recorrente assenta em pressupostos errados, uma vez que neste caso concreto, a prova não foi recolhida por aplicação da Lei n.º 32/2008, de 17.07, designadamente, dos artigos que foram declarados inconstitucionais pelo acórdão do TC n.º 268/2022 15- O douto acórdão recorrido não interpretou deficientemente qualquer preceito legal e, designadamente, os apontados na motivação dos recorrentes. Nestes termos e pelo mais que, V.ªs Ex.as, Venerandos Juízes Desembargadores, por certo e com sabedoria, não deixarão de suprir, julgando-se improcedente o recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, confirmando-se a douta sentença condenatória recorrida, far-se-á Justiça.
Remetidos os autos a este Tribunal o Ministério Público emitiu parecer que sintetizou nos seguintes termos (transcrição): * Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (doravante CPP). * Após os vistos, foram os autos à conferência.
II. Cumpre apreciar e decidir tendo em conta que são as conclusões de recurso que delimitam a apreciação a fazer por este tribunal - sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - e que, analisando-as, temos como questão nuclear a solver a de aferir se o arguido foi condenado com valoração de provas proibidas. * É a seguinte a matéria de facto fixada em primeira instância e respetiva fundamentação (transcrição): 1 – o arguido era o utilizador comum da conta de correio electrónico ..........@..... e do número de telefone móvel ...63; 2 – através do serviço de Internet instalado na Rua ..., ..., garagem, em ..., realizou, no dia 11 de Novembro de 2021, a partilha de dois ficheiros de vídeo onde constam: - em um dos ficheiros, várias crianças de ambos os sexos, menores de 14 anos, envolvidos em práticas sexuais, beijando-se na boca e órgãos sexuais; - e, no outro ficheiro, um individuo do sexo masculino a introduzir o pénis na vagina de uma criança do sexo feminino, menor de 14 anos; 3 – no dia 7 de Novembro de 2022, na sequência da emissão de mandados de busca para a residência do arguido indicada no ponto 1 (destes factos provados), foi apreendido o computar portátil da marca “HP” (“Omen Bang & Olufsen”), modelo “15-dc0012np”, com o ID do produto 00325-81218-48177-AAOEM, pertencente e utilizado exclusivamente pelo mesmo arguido, o qual se encontrava ligado e com sessão aberta; 4 – efectuada a pesquisa informática, foram ali localizados: - 3.167 ficheiros de pornografia de menores sob a forma de vídeos, e 34 ficheiros de pornografia de menores sob a forma de fotografias, armazenados em uma conta tipo cloud (“nuvem privada”) da plataforma “Mega” (https://mega.io/), em um total de 26,77 gigabytes, que se encontrava configurada com o endereço de correio eletrónico ..........@....., também pertencente ao arguido; - 142 ficheiros de pornografia de menores sob a forma de fotografias e vídeos, armazenados na pasta das transferências; - conversações mantidas com outros utilizadores da aplicação do “Telegram” (serviço de mensagens instantâneas baseado na nuvem), onde existem registos de partilha efectuados pelo arguido nomeadamente de caminhos para pastas de nuvens da “Mega”, onde estão armazenados conteúdos de pornografia de menores; 5 – os vídeos e imagens localizadas de pornografia de menores dizem respeito a crianças, manifestamente menores de 14 anos de idade, e nos quais são visíveis crianças, nomeadamente exibindo os seus órgãos sexuais (vagina, seios, pénis, ânus), a masturbarem-se, a serem tocadas nos seus órgãos sexuais, a introduzirem pénis nas suas bocas, nos seus ânus e vaginas; 6 – o arguido adquiriu e alojou pornografia de menores em uma escala dos milhares, partilhando tal conteúdo com terceiros através da aludida aplicação do “Telegram”; 7 – o arguido visualizou, armazenou e partilhou aquelas fotografias e filmes de cariz pornográfico com crianças desde, pelo menos, Novembro de 2021 a Outubro de 2022; 8 – o arguido bem sabia que os referidos ficheiros expunham o corpo de diversas crianças com idade inferior a 14 anos em práticas sexuais e que, por tal circunstância, estava proibida a sua detenção, exibição, cedência ou partilha; 9 – o arguido não se inibiu e quis visioná-las, armazená-las, detê-las e exibi-las e cedê-las, partilhá-las, assim satisfazendo os seus intentos libidinosos; 10 – não obstante o afirmado nos pontos 23 a 26 (dos presentes factos assentes), o arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal; 11 – o arguido nasceu em ..., sendo criado e educado pelos seus avós maternos, até ao falecimento destes, dado que o pai do arguido nunca assumiu a respectiva paternidade e a mãe foi mantendo diversos relacionamentos maritais, em várias localidades do país e no estrangeiro; 12 – o arguido iniciou a frequência do ensino escolar em idade côngrua, na sua terra natal, mantendo normais resultados até à conclusão do sétimo ano, altura em que se deu o decesso dos avós e o arguido se deslocou para junto da progenitora e do seu então companheiro, que se encontravam a residir na Ilha ..., nos ...; 13 – posteriormente, na sequência do fim daquela relação afectiva da mãe e com o início de outras, o arguido passou a acompanhá-la em diversas localidades, terminando a frequência do ensino aos 18 anos, após haver frequentado o décimo ano de escolaridade; 14 – apesar da diversidade de locais de residência, o arguido tem-se mantido profissionalmente activo, desenvolvendo principalmente funções na área da restauração e do comércio; 15 – em 2018, passou a viver sozinho, vindo fazê-lo para a cidade ..., em uma garagem adaptada a habitação, local que ocupava aquando da ocorrência dos factos objecto dos presentes autos e ainda ocupa actualmente; 16 – laborou em uma grande superfície comercial desta cidade, como operador de carnes; 17 – entretanto, restou na situação de baixa médica, durante alguns meses, devido a uma úlcera intravenosa no membro inferior direito; 18 – no período da referida baixa médica, foi percebendo o inerente subsídio mensal, assim como algumas ajudas económicas por parte de uma tia, residente em ...; 19 – de Maio deste ano de 2024 até ao presente esteve a laborar em um restaurante; 20 – actualmente, encontra-se inscrito para começar a frequentar um curso de formação profissional; 21 – foi e vai contando igualmente com o apoio afectivo e material de um primo, que reside próximo dele e o auxiliava no respectivo quotidiano; 22 – o arguido está arrependido dos factos por si praticados e objecto do presente processo; 23 – padece de uma perturbação da personalidade, condicionadora de um humor tendencialmente instável, com dificuldade em manter o controlo sobre as suas emoções e reacções e em controlar os ímpetos de forma adequada, agindo de modo tendencialmente impulsivo e hostil; 24 – apesar de se tratar de uma pessoa extrovertida, enérgica, sensível e altruísta, desenvolve relações superficiais com os outros e interpreta de forma inadequada os estímulos sociais, privilegiando sempre aquilo que elege como sendo o seu interesse mais imediato, acabando por se tornar uma pessoa solitária, com alguma falta de força de vontade e de ambição; 25 – tende a focar na sexualidade de outrem e na visualização de tudo o que tem que ver com essa temática (não exclusivamente atinente a menores) uma forma de fixação dos seus interesses pessoais mais óbvios; 26 – beneficiará de um acompanhamento psicoterapêutico, tendo por base uma abordagem psicológica (não necessariamente farmacológica), tendente à estruturação de regras de comportamento social e à capacidade de tolerância à frustração; 27 – o arguido foi condenado no processo comum singular n.º 111/15...., do Juiz Local Criminal – Juiz ... – de ..., da Comarca de Aveiro, por decisão de 30 de Janeiro de 2019, transitada em julgado em 1 de Março de 2019, pela perpetração, em 4 de Fevereiro de 2015, de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na respectiva execução pelo período temporal de 2 anos, vindo posteriormente a pena a ser declarada extinta, por normal decurso do prazo suspensivo. * Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa. Assim, não se apurou que os ficheiros de fotografias e vídeos armazenados na pasta de transferências e nas pastas de nuvens do arguido, exibindo menores de 14 anos de idade em actos ou poses sexuais, ascendessem a um total de 3818. * O Tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica, ponderada e maturada do conjunto dos elementos probatórios produzidos, “peneirados”, nos termos do art. 127º do Código de Processo Penal (C.P.P.), à luz das regras normais da experiência da vida [ou seja, das «(…) definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judicio, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade» – Prof. Manuel Cavaleiro de Ferreira, “Curso de processo penal”, volume II, Lisboa, 1988, pág. 30]. Portanto, o ditame do art. 127º C.P.P. – com o seu apelo às regras da experiência e à livre convicção da entidade julgadora – revelou-se de uma clara acuidade e oportunidade na apreciação da prova produzida (e, também, não produzida), por forma a, de modo realista e convincente, edificar a estrutura sustentadora de uma ciência minimamente resistente a dúvidas, incertezas e aporias. Tudo o que acaba de ser dito é enquadrável, no entanto, na ideia geral de que a verdade judicial não é (nem pode ser) uma verdade “absoluta”, no sentido de uma verdade “ontologicamente” indestrutível. A verdade judicial alicerça-se em factos alcançados – e alcançáveis – através da interpretação e depuração dos diversos elementos probatórios produzidos e analisados em audiência de julgamento (quando a mesma ocorra) ou relativamente aos quais as partes estão de acordo quanto à significação e valoração próprias. A convicção do julgador baseia-se, pois, em tal conjunto de elementos, mediante a produção do dito juízo de verosimilhança, a que as normais regras da experiência comum não serão alheias. Podendo assim acrescentar-se que a verdade intra-processual assume contornos algo “formais” (no sentido de que é “elaborada” a partir de um determinado percurso metódico delineado pelas próprias regras processuais) e “contextuais” (porque dependente da prova adquirida e da quantidade e qualidade de informação e conhecimento que tal prova inclui) (a propósito, cfr. Prof. Rossano Adorno, “La fisionomia del thema probandum nel processo penale”, “Il Foro Italiano”, Anno CXXXVIII, n.º 4, 2013, págs. 134 e 135). Posto isto, o que temos nós in casu? Desde logo, a prestação de declarações – aqui e ali confessórias – por parte do arguido, o qual, a seu jeito, e segundo a sua versão, aduziu esclarecimentos sobre as razões por que – e o modo como – “recolheu” tantos ficheiros referentes à matéria de que aqui tratamos nestes autos e que, em certa medida, decorreu de alguns “enganos” do próprio declarante, que não faria ideia da multiplicidade de ficheiros que albergava no seu material informático (maxime, no seu computador). Por outro lado, as partilhas que foi efectuando – e que se destinavam a uma outra conta sua, para, assim, ter mais espaço na conta de correio electrónico identificada na acusação pública – ocorreram, também elas, em alguns casos, devido a “enganos” do arguido. Tudo sem embargo de assumir saber estar errado deter e partilhar material com as características do ora em questão no processo. Bom, é evidente que parte destas justificações e alegações do arguido não colheram, nem poderiam, em momento algum, colher. Por um lado, porque não nos parece que a postura do declarante, para além daquilo que surge bem documentado e ilustrado no conjunto de elementos probatórios existentes nos presentes autos, possa reduzir-se a uma série de lamentáveis “enganos”, atentas a frequência, a dimensão e a magnitude do material encontrado nos dispositivos do arguido, em grande medida subordinado ao tema imagético que consta da factualidade dada como assente. E o que encontrámos mostra-nos, portanto, algo de essencial quanto ao animus (o qual, segundo se crê, não admite segundas interpretações) com que actuou o arguido, na recolha e posterior partilha de material envolvendo crianças em poses e actos sexuais explícitos. Com efeito, a valoração da chamada “prova indirecta” ou “prova indiciária” é, em tese geral, entendível como a que incide sobre factos não exactamente coincidentes com o tema de prova mas que permitem, com o auxílio das regras da experiência, uma ilação da qual se inferem os factos a demonstrar. Nas palavras do Prof. Manuel Cavaleiro de Ferreira, «a prova indiciária é prova indirecta: dela se induz, por raciocínio alicerçado em regras de experiência comum ou da ciência ou técnica, o facto probando. A prova deste reside na inferência do facto conhecido ou provado – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido ou a provar, ou tema último da prova. Como tal, constitui uma prova em segundo grau; a prova respeita directamente ao facto indiciante e da comprovação deste se infere um indício – prova indirecta – para comprovação do facto relevante» (“Curso de processo penal”, volume I, Lisboa, 1986, págs. 207 e 208). Por outro lado, é indubitável exigir a avaliação da prova indiciária um conjunto de predicados que certamente nos remetem para a inteligência e sagacidade do julgador, assim como para o importante papel desempenhado – mais do que em qualquer outro meio de prova tarifado – pelo contacto directo do mesmo julgador com a sua produção (ou melhor, com os elementos através dos quais se atinge aquela demonstração probatória), assim avaliando a credibilidade do material indiciário. E, em tal avaliação, regerão enorme papel, como já dissemos supra, as normais (e não – e perdoe-se-nos a expressão e a aparente evidência – as “anormais”) regras da experiência da vida (cfr., entre nós, o art. 127º C.P.P.), assim auxiliadoras e sustentadoras da segura eleição dos meios de prova indiciários a atender em cada caso concreto. Não sendo a prova indiciária proibida pela regra geral da liberdade dos meios de prova (vide arts. 125º e 126º C.P.P.), sempre exigirá, portanto, um especial cuidado na sua mobilização e apreciação, por forma a que apenas possa ser extraído o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, assim afastando também diversas hipóteses factuais igualmente possíveis mas descabidas em cada situação decidenda. Assim, no nosso caso, perante aquilo que pericialmente adquirimos (e que consta dos autos de pesquisa informática de fls. 91 a 110, 211 a 213, 376 e 377 e ainda 540 a 542, e inerentes fotografias, tudo devidamente complementado pelos esclarecimentos prestados em audiência pelo responsável pela investigação CC e pelos técnicos de informática da Polícia Judiciária DD e EE), e dissipada que foi (a partir do resultado dos relatórios periciais referentes aos exames às suas faculdades mentais) uma qualquer hipotética “suspeita” quanto ao modo livre, deliberado e consciente como actuou aquele mesmo arguido (cfr. fls. 477 a 480 e 482 a 488, e ainda os esclarecimentos prestados em audiência pelos peritos especialistas em psiquiatria e psicologia FF e GG, respectivamente), dúvidas não teve o Colectivo de que quem agiu como o arguido agiu – pela repetitiva “preferência” imagética que foi revelando sempre em relação ao mesmo tema – não o poderia fazer senão com uma atitude volitiva bem marcada. E não se argumente que os elementos técnico-periciais a que fizemos referência não poderiam ser valorados. Vejamos porquê. A maioria dos processos em que se investiga o crime de pornografia de menores, como o presente, tem início com a comunicação da notícia de partilha de ficheiros contendo imagens dessa natureza, por parte da entidade norte-americana “National Center for Missing and Exploited Children”. Se atentarmos no formulário das comunicações feitas pela aludida entidade (cfr. fls. 4 a 12), constatamos que a denúncia é normalmente efetuada pelas empresas norte-americanas que prestam serviços de redes sociais e comunicações (“Facebook” ou “Instagram”, por exemplo). Essa denúncia parte das próprias empresas, é comunicada à “National Center for Missing and Exploited Children” e tem por fundamento a monitorização que as empresas fazem à utilização dos serviços que prestam; denúncias, portanto, feitas voluntariamente pelas empresas, através do canal “Cyber Typeline”, e que se encontram devidamente enquadradas nos termos da legislação norte-americana e europeia. Importando também realçar que as condições de utilização dos serviços daquelas empresas, que são dadas a conhecer aos usuários, contêm disposições contratuais que não permitem a partilha de pornografia infantil, sendo os utilizadores inclusivamente advertidos da possibilidade de participação à mencionada “National Center for Missing and Exploited Children”. No caso dos presentes autos, ocorreu a participação, pela “Facebook” à “National Center for Missing and Exploited Children”, dos primeiros conteúdos ilícitos de pornografia infantil de que damos conta na súmula de factos provados. Na ordem jurídica portuguesa, o art. 19º-A D.L. n.º 7/2004, de 7/1, os prestadores intermediários de serviços em rede informam o «(…) Ministério Público da detecção de conteúdos disponibilizados por meio dos serviços que prestam sempre que a disponibilização desses conteúdos, ou o acesso aos mesmos, possa constituir crime, nomeadamente crime de pornografia de menores ou crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência», para além de que impendem ainda sobre aqueles prestadores deveres de bloqueio sobre os sítios identificados como contendo pornografia de menores ou material conexo (art. 19º-B do mesmo diploma legal). Por outro lado, o Regulamento (UE) 2021/1232, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14/7, faz menção, no seu art. 3º/n.º 1, à Directiva (EU) 2002/58/CE, de 12/7 (a qual foi transposta para o ordenamento jurídico português pela Lei n.º 41/2004, de 18/8, e versa sobre aspectos do tratamento de dados pessoais no contexto da prestação de serviços de comunicações eletrónicas pelas operadoras), derrogando várias normas de tal Directiva, tais como, entre outras, a regra da confidencialidade, e a regra do prazo e objetivo de conservação dos dados, ou seja, e neste último caso, derrogando a obrigação de que os dados de tráfego relativos aos assinantes e aos utilizadores tratados e armazenados pelas empresas que oferecem redes e-ou serviços de comunicações electrónicas fossem eliminados ou tornados anónimos [vide, respectivamente, o art. 5º/n.º 1 da Directiva (UE) 2002/58/CE, correspondente aos arts. 3º e 4º da Lei n.º 41/2004, e o art. 6º/n.º 1 da mesma Directiva (EU) 2002/58/CE, correspondente ao art. 6º da Lei n.º 41/2004]. Consequentemente, entende o Colectivo que, para efeitos de denúncia de crimes de abusos sexuais de crianças em linha por parte de empresas que exploram serviços de comunicações interpessoais independentes do número, não existe o dever de confidencialidade nem o dever de eliminar ou anonimizar os dados de tráfego decorrido que esteja o prazo legal no qual a factura pode ser legalmente contestada ou o pagamento reclamado. Logo, o prazo de conservação de dados de tráfego pode ser feito até ao prazo máximo de 12 meses, de acordo com o art. 3º/n.º 1-i) do Regulamento (EU) 2021/1232. Ou seja, resumindo e concluindo, os dados de tráfego podem ser conservados até ao máximo de 12 meses, pelos prestadores do serviço que façam a denúncia ao “National Center for Missing and Exploited Children” e, por maioria de razão (pois que servem amiúde de “fonte” da percepção dos materiais proibidos), pelas empresas (nacionais) que prestam serviços de telecomunicações (ou seja, as operadoras). Face a isto, nada parece obstar a que esses dados de tráfego possam ser obtidos no processo penal, quer estejam em poder das empresas denunciantes (que os comunicam através do “National Center for Missing and Exploited Children”), quer ainda estejam, eventualmente, em poder das operadoras de telecomunicações, respeitado que seja aquele prazo máximo de 12 meses. Sabendo nós que os regulamentos europeus são de aplicabilidade direta, valendo e vinculando directamente todos os poderes públicos e os particulares, mesmo que não haja nenhuma lei nacional que o determine (art. 288º do Tratado sobre o Fundamento da União Europeia), só poderemos concluir que as denúncias feitas através do “National Center for Missing and Exploited Children” ao Ministério Público contém prova válida, a ser plenamente considerada, tal como dados respeitantes à identificação dos utilizadores, à identificação de contactos telefónicos, identificação do IP utilizado, data e hora. Por fim, a percepção da situação pessoal do arguido, da sua personalidade e do seu modus vivendi essencial, para além de tudo o que ressuma do já exposto, decorreu também das declarações do mesmo arguido, assim como do teor do relatório social junto de fls. 506 a 508, estando os antecedentes criminais atestados pelo certificado de fls. 502 a 504. Os factos dados como não provados explicam-se, como se percebe, pela ausência de elementos sérios de demonstração dos mesmos. * III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO * Integremos, do ponto de vista jurídico-criminal, os factos. Antes, porém, crê o Tribunal, neste domínio da chamada criminalidade sexual, ser útil a sensibilização para três ou quatro ideias básicas. No limite, as normas reguladoras da matéria sexual constituem restrições ao seu exercício, marcadas pelas preocupações e significâncias societário-culturais mais importantes de cada época histórica. Nas palavras do Dr. Karl Prelhaz Natscheradetz, «(…) a regulamentação da sexualidade é condicionada pelo tempo e pela cultura, e muda com eles. Determinadas normas sexuais que muito naturalmente regeram nos seus tempos, com o decurso dos séculos depararam hoje com um repúdio generalizado (…)» (“O direito penal sexual: conteúdo e limites”, Coimbra, 1985, pág. 75). Não podemos olvidar, pois, a forte componente cultural do direito penal sexual (como, aliás, de todo o direito penal), «(…) na sua natural e incindível ligação com o todo social de cada povo em cada época (…)» (Prof. Américo Taipa de Carvalho, “Condicionalidade sócio-cultural do direito penal”, Coimbra, 1985, pág. 13). No ordenamento jurídico-penal português, e desde a redacção introduzida no C.P. pelo D.L. n.º 48/95, de 15/3, é a lei dominada, na área dos crimes sexuais, pela «(…) proposição político-criminal segundo a qual em caso algum constitui crime a actividade sexual levada a cabo em privado por adultos que nela consentem (…)», apresentando-se tal proposição político-criminal, própria de um Estado de Direito democrático, laico e pluralista, «(…) como consequência de uma concepção que vê como função exclusiva do direito penal a protecção subsidiária de bens jurídicos (art. 40º/n.º 1 C.P. e art. 18º/n.º 2 da Constituição da República Portuguesa – C.R.P.) e culmina uma complexa e intranquila evolução histórica, moral e social (…)» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, Coimbra, 1999, pág. 442). Daí que, tendo sido inevitável a dinâmica de uma natural evolução, se haja assistido a uma tendência geral de progressiva descriminalização e despenalização de certos comportamentos ligados à sexualidade humana (podendo pensar-se, por exemplo, na não punição da homossexualidade enquanto tal, mas apenas quando se tratasse do “desencaminhar” de menores de 16 anos de idade – art. 175º C.P., na redacção D.L. n.º 48/95). Significa o acabado de expor que falamos hoje de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, depois de durante séculos (desde as Ordenações) serem observados sob o enfoque da moral sexual dominante, dos costumes ou dos fundamentos éticos da sociedade, em uma evidente circunscrição da etiologia destes crimes à tutela da chamada “moralidade sexual pública”. É, pois, interessante verificar algumas diferenças diacrónicas de enfoque e perspectiva legal do mundo sexual e sua moralidade: pense-se no conceito de “pudor” inerente aos tipos dos arts. 205º, 207º e 216º-c) C.P., na redacção anterior ao D.L. n.º 48/95, e cuja razão de ser radicava nos referidos sentimentos gerais de moralidade sexual. Com a revisão operada pelo D.L. n.º 48/95, o C.P. passou a adoptar a categoria conceptual de “acto sexual de relevo” (cfr., a título de exemplo, os arts. 163º, 165º e 166º C.P.), por via da qual se tornou evidente a não assunção, pela lei penal, de uma ética moral e social que não lhe competiria defender (enfatizando-se, ao invés, a relevância do acto, antes do mais, para quem o sofre e a sua própria esfera de autonomia sexual – com muito interesse, vide também, a propósito, as Actas da Comissão Revisora, 12ª Sessão, págs. 94 e 95). Logo – e esta é uma ideia fundamental –, desde 1995 são a liberdade e a autodeterminação sexual os valores jurídicos essencialmente protegidos, integrando os tipos que visam a repressão das violações a tais bens a categoria dos crimes contra as pessoas e não contra os fundamentos da sociedade (para uma visão crítica do direito penal sexual de cariz “moralista” – de que o positivado pela versão originária do C.P. de 1982, como já se referiu, ainda era parcialmente tributário –, enquanto complexo de crimes consagradores de bens jurídicos ligados aos fundamentos ético-sociais da vida em sociedade e seus costumes, vide Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Crimes contra os costumes”, in “Enciclopédia Polis”, volume I, Lisboa, 1983, págs. 1371 a 1377, Dr. Karl Prelhaz Natscheradetz, “O direito penal sexual: conteúdo e limites” citado, págs. 134 a 154, e Prof. Vera Lúcia Raposo, “Da moralidade à liberdade: o bem jurídico tutelado na criminalidade sexual”, in “Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias”, Coimbra, 2003, págs. 931 a 938; a propósito do direito italiano, cfr. Prof. Marta Bertolino, “I reati contro la libertà sessuale tra codice e riforma”, in “Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale”, Anno XXVI, 1983, págs. 1489 a 1492). Seja como for, este é um dos domínios onde o direito penal sempre assumirá um importante papel sancionador, constituindo uma das formas mais marcantes de prover à reconhecida necessidade de controlo ou regulação social da matéria. Desde logo, porque é de todos conhecida a insegurança biológica e a plasticidade do chamado instinto sexual humano, tantas vezes manifestadas em situações inesperadas e díspares, e geradoras de consequências de difícil apreensão e antecipação. Efectivamente (e, sobretudo, após o tratamento científico do tema, nos inícios do século XX, por Sigmund Freud), sabe-se que os instintos sexuais humanos não apresentam um ritmo periódico: na feliz expressão do Prof. José António da Silva Soares, «no homem existem necessidades e as respectivas tendências para as satisfazer» (“Sexualidade humana”, in “Enciclopédia Polis”, volume V, Lisboa, 1987, pág. 741). Contrariamente aos dos (restantes) animais, aqueles instintos (e ainda que em latência) estão continuamente presentes e podem manifestar-se das mais variadas formas, ligadas ou não ao aspecto biológico-reprodutor. Por isso mesmo, tem o homem de aprender a satisfazer as suas necessidades, em um «(…) longo processo lento e complexo que, muitas vezes, é interrompido no seu desenvolvimento (fixações) ou se orienta num sentido não desejado (desvios). É neste contexto que se põe o problema da educação sexual. Com ela, pretende-se levar o ser humano a atingir a maturidade sexual e afectiva que o torne capaz, quer de integrar a sua sexualidade no amor (…), quer de sublimar as suas tendências ao serviço de bens superiores (…)» (Prof. José António da Silva Soares, “Sexualidade humana” citado, pág. 741). Portanto, reconhecendo-se a indisfarçável ineficácia (e, em muitos casos, a ausência) dos mecanismos de educação, maturação e contenção, pelo ser humano, da sua própria sexualidade, caberá ao ordenamento jurídico, maxime na dimensão de ultima ratio própria do direito penal, intervir enquanto forma de tutela dos bens jurídicos mais facilmente atingíveis e postos em causa por aquela ineficácia reguladora. A ideia básica, no entanto, será esta: na fase de desenvolvimento em que nos encontramos, a intervenção do direito (mormente na sua feição repressiva) na vida íntima das pessoas reger-se-á por limites de certa contenção. Se a lei tem em linha de conta a maior liberdade possível nos comportamentos sexuais, e se a liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem (cfr. art. 4º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão), o direito penal sexual apenas surgirá como último patamar na criminalização de condutas que atentem contra a liberdade ou poder de autodeterminação da vítima, na medida em que a obriguem a praticar, sofrer ou presenciar determinados actos violadores ou contrários aos seus mais lídimos sentimentos de afirmação sexual. E este será, repete-se, um dos pontos essenciais: salvaguardando a evidente necessidade de obviar aos efeitos futuros verdadeiramente devastadores de um despertar sexual precoce (mesmo que não violento), protegendo-se, assim, aqueles cuja vontade ainda não é completamente autónoma – seja, pois, por inexperiência em razão de idade e se encontram em plena fase de desenvolvimento como pessoas, seja também pelas suas limitações de índole intelectivo-cognitiva, seja pela sua incapacidade de opor, no momento, qualquer tipo de resistência ao arrimo sexual relevante –, o direito penal não encontrará legitimidade para intervir no complexo de relações de índole sexual mantidas entre adultos, senhores da sua vontade, e no recesso da sua intimidade. No contexto acabado de expor, note-se que o nosso legislador de 1995 passou a distinguir os crimes contra a liberdade sexual (arts. 163º e ss. C.P.) dos crimes contra a autodeterminação sexual (arts. 172º – actualmente, 171º – e ss.), nos primeiros prevendo os atentados directos à liberdade sexual e nos segundos os atentados ao livre desenvolvimento sexual (sobre os exactos contornos desta nuance, cfr. Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, págs. 441 e 442). No domínio dos crimes contra a autodeterminação sexual, a ideia básica é a de que a eventual manifestação de “vontade” por parte do menor em termos de relacionamento sexual não tem qualquer validade ou relevância. As razões de ser desta opção são claras e prendem-se com o que há pouco se disse: o fundamental é a protecção de uma vontade ainda em desenvolvimento e, portanto, ainda não completamente autónoma. De que modo se protegem então, hoje, as crianças e os jovens menores neste tipo de crimes? Por meio da incriminação específica do abuso sexual de crianças, do abuso sexual de menores dependentes, dos actos sexuais com adolescentes, do recurso à prostituição de menores, da pornografia de menores, e ainda prevendo a idade como agravante do crime comum aos crimes que não sejam definidos em função desta (cfr. arts. 171º, 172º, 173º, 174º, 175º, 176º e 177º/n.os 5 e 6, todos C.P., na redacção da Lei n.º 103/2015, de 24/8). Nota abrangente de todos os tipos de crimes de carácter sexual é a que se deixa exposta no art. 178º C.P., relativa aos requisitos de procedibilidade (fazendo-se depender o procedimento criminal da vontade – queixa – da vítima, nos casos em que esta não é menor ou deles não resulta suicídio ou morte da mesma, mas permitindo-se a oficialidade, isto é, o impulso autónomo pelo Ministério Público em determinadas circunstâncias, enumeradas na norma em questão). * Relativamente ao crime de pornografia de menores, que agora mais nos importa nestes autos, estatui o n.º 1-a), b), c) e d) do art. 176º C.P., na redacção introduzida pela Lei n.º 40/2020, de 18/8: «quem: a) utilizar menor em espectáculo pornográfico ou o aliciar para esse fim; b) utilizar menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte, ou o aliciar para esse fim; c) produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir, ceder ou disponibilizar a qualquer título ou por qualquer meio, os materiais previstos na alínea anterior; d) adquirir, detiver ou alojar materiais previstos na alínea b) com o propósito de os distribuir, importar, exportar, os distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos». Conforme ensinou o Prof. Jorge de Figueiredo Dias, a propósito do tipo legal contido no n.º 3-b) do art. 171º C.P. (abuso sexual de crianças), incidente sobre conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos, tratam-se de materiais de um conteúdo objectivo «(…) idóneo, segundo as características concretas da sua utilização, a excitar sexualmente a vítima, violando por isso os limites exigidos por um desenvolvimento livre e sem entraves da personalidade do menor na esfera sexual» (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, 2ª edição, Coimbra, 2012, pág. 838). E, de acordo com as vozes autorizadas das Profs. Maria João Antunes e Cláudia Santos, deve ser igualmente de atender à «(…) definição constante do art. 2º do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança de 25 de Maio de 2000, nos termos do qual a adjectivação supõe a representação do desempenho de actividades sexuais explícitas reais ou simuladas ou a representação dos órgãos sexuais para fins predominantemente sexuais; e do art. 1º-b) da Decisão-Quadro n.º 2004/68/JAI, de acordo com o qual a qualificação supõe que o material descreva ou represente visualmente o envolvimento em comportamentos sexualmente explícitos ou a entrega a tais comportamentos, incluindo a exibição lasciva dos órgãos genitais ou partes púbicas» (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I e 2ª edição citados, pág. 882). Aliás, o próprio legislador passou a consagrar, a partir da redacção emprestada pela Lei n.º 40/2020 ao citado art. 176º C.P. (e diferentemente do que acontecia até aí) uma definição, constante do n.º 8 desse normativo, o que deve ser entendido por “pornográfico”: «para efeitos do presente artigo, considera-se pornográfico todo o material que, com fins sexuais, represente menores envolvidos em comportamentos sexualmente explícitos, reais ou simulados, ou contenha qualquer representação dos seus órgãos sexuais ou de outra parte do seu corpo». Note-se, por outra via, que «(…) a concreta identificação de vítimas não constitui elemento do tipo de pornografia de menores, previsto no art. 176º/n.º 1-c) e d) C.P.. Trata-se de crime de perigo abstracto (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de mera actividade (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção), sendo que a utilização de material pornográfico com representação realista de menor e a mera detenção de materiais pornográficos merecem atenção punitiva» (Ac. Rel. Évora de 17/3/2015, in www.dgsi.pt). Concentrando-nos no caso dos autos, e aqui chegados, pensa o Tribunal inexistir fundamento para qualquer dúvida acerca do cariz pornográfico dos ficheiros de vídeo e fotografia encontrados no material informático do arguido. Com efeito, trata-se de um conjunto de vídeos e fotografias relativos a menores de 14 anos de idade e em um óbvio contexto lascivo e de excitação sexual, com a prática de comportamentos sexualmente explícitos. Por outro lado, percebemos ser indubitável que ocorreu a partilha de diversos ficheiros contidos no computador do arguido. Também não se nos afigurando passível de dúvida o facto de presidir à actuação do arguido um animus doloso, em relação a todos os elementos constitutivos da figura objectiva de delito prevista no n.º 1-c) do art. 176º e dos n.os 1-c) (não podendo, em face da idade dos “visualizados” em questão, ser contestada a sua especial vulnerabilidade existencial) e 7 do art. 177º C.P., ambos na redacção trazida a lume pela Lei n.º 40/2020 (ou seja, aquando da ocorrência da factualidade em causa nos presentes autos, sendo que a actual redacção das normas em causa, conferida pela Lei n.º 4/2024, de 15/1, em nada mexe para o nosso tema, pelo que se considerará a referida redacção da Lei n.º 40/2020, em homenagem ao princípio geral contido no art. 2º/n.º 1 C.P.). Pelo que a hipótese sub judicio nos remete para a detenção do material (pelo menos parte dele) pornográfico pelo arguido, tendo-o distribuído, divulgado ou cedido [alínea c) do n.º 1 do art. 176º C.P.]. Sabemos que foi imputada ao arguido a prática de múltiplos crimes de pornografia de menores, ou seja, uma miríade de ilícitos penais, segundo uma lógica de concurso efectivo de crimes. O que acaba de ser exposto implica, necessariamente, que perscrutemos, de novo, o específico bem jurídico que, no caso concreto do art. 176º C.P., ilumina a incriminação. E, a propósito do ponto ora focado, não poderemos deixar de manifestar a nossa concordância de base com a circunstância, bem enfatizada pelas Profs. Maria João Antunes e Susana Aires de Sousa, de que «o bem jurídico ofendido pelas condutas típicas descritas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 176º é a autodeterminação sexual. Com efeito, o bem jurídico cuja protecção fundamenta a punição das condutas de utilização ou aliciamento de menor para espectáculo pornográfico (al. a)) e de utilização ou aliciamento de menor para fotografia, filme ou gravação pornográficos (alínea b)) é o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual» (“Da relevância da identificação do bem jurídico protegido no crime de pornografia de menores”, R.P.C.C. Ano 29, n.º 2, pág. 248). Isso parece-nos certo. Todavia, quando falamos das condutas típicas previstas nas alíneas c) e d) do n.º 1 do art. 176º C.P., o universo temático, conquanto a nós inequivocamente relevante, não assume a densidade axiológica – nem tão-pouco ofensiva –, para a preservação da autodeterminação sexual dos menores, que decorre dos comportamentos descritos nas alíneas a) e b) do referido n.º 1 do art. 176º. Com efeito, «(…) as dificuldades em relacionar a detenção de material pornográfico com a lesão da autodeterminação sexual dos menores têm vindo a ser fortemente destacadas pela doutrina penal, desde logo, pela razão decisiva de aquela autodeterminação sexual ser ofendida em momento anterior: no momento em que se utiliza directamente o menor em fotografia, filme ou gravação ou se alicia directamente para esse fim. A referência longínqua à autodeterminação sexual dos menores constitui, deste modo, um ponto essencial que tem vindo a ser evidenciado pela doutrina» (Profs. Maria João Antunes e Susana Aires de Sousa, “Da relevância da identificação do bem jurídico protegido no crime de pornografia de menores” citado, pág. 250). Tendemos, por isso mesmo, a concordar com o Prof. Jorge de Figueiredo Dias quando, a propósito da alínea d) do n.º 3 do art. 172º C.P., na redacção então imposta pela Lei n.º 65/98, de 2/9 (norma de acordo com a qual se previa e punia a exibição ou cedência a qualquer título ou por qualquer meio a fotografia, o filme ou a gravação pornográficos), sustentava estar em questão a punibilidade do comércio de material pornográfico e não propriamente das actuações perante ou sobre menores com base na protecção da personalidade do menor na esfera sexual que é posta em crise pelas condutas de abuso sexual de crianças; daí que, em rigor, com a criminalização do tráfico de fotografias, filmes ou gravações pornográficos com crianças, terá erigido o legislador um bem jurídico supraindividual distinto do da liberdade e autodeterminação sexual dos menores (“Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, págs. 542 e 548). Consequentemente – e indo àquilo que mais releva para o caso sub judicio –, terá todo o sentido «(…) distinguir, no universo de comportamentos típicos, aqueles que pressupõem uma relação directa entre o agente da prática do crime e o menor, ofendendo a sua autodeterminação sexual – os previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 176º –, e os que não pressupõem uma relação directa entre um e outro – alíneas c) e d) do n.º 1 e n.os 4, 5 e 6 do art. 176º. Com efeito, o objecto destes comportamentos típicos já não é o menor, mas antes sim os materiais pornográficos com menor, o que exclui que o bem jurídico protegido seja um qualquer bem jurídico individual e, nomeadamente, o bem jurídico da autodeterminação sexual dos menores» (Profs. Maria João Antunes e Susana Aires de Sousa, “Da relevância da identificação do bem jurídico protegido no crime de pornografia de menores” citado, pág. 256). Tudo ponderado, intuitiva nos parece, agora, a conclusão de que a proibição e criminalização da detenção e do comércio de material pornográfico relativo a menores comporta consequências na forma como surpreendemos a unidade e pluralidade infracções que a propósito possamos e devamos cogitar. Assim, de modo algo similar, se o crime de tráfico de estupefacientes (que tutela, e antes do mais, a saúde pública e o livre desenvolvimento das personalidades em formação, em si mesmos valores ou bens jurídicos de cariz trans-individuais – neste sentido, Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Uma proposta alternativa ao discurso da criminalização/descriminalização das drogas”, in “Scientia Iuridica”, tomo XLIII, n.os 250 a 252, 1994, pág. 198, e Ac. S.T.J. de 11/3/2020, disponível em www.dgsi.pt) não se consuma atomisticamente por cada ocasião em que o agente vende ou cede uma substância estupefaciente, não deparando nós com um crime por cada operação desse jaez, também não deveremos entender que se verifica um crime de pornografia de menores por cada ficheiro ou partilha de ficheiro de cariz pornográfico que o agente efectue. Aliás, se recorrermos àquilo que alguma doutrina denomina de critério do sentido social de ilicitude do comportamento global do agente, cremos que situações como as dos autos denunciarão, de forma clara, um único sentido de ilicitude típica, a partir do comportamento global do arguido, e, assim, surpreenderemos, apenas um facto punível e, por essa via, apenas um crime (em tese, acerca de tal critério, Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal. Parte Geral. Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime”, tomo I, 2ª edição, Coimbra, 2011, págs. 988 e ss.). Pelo que, resumindo e concluindo, deverá ser o arguido punido apenas pela prática de um crime de pornografia de menores, p. e p. nos arts. 176º/n.º 1-c) e 177º/n.os 1-c) e 7 C.P. (na redacção conferida pela Lei n.º 40/2020). * Quanto à medida concreta da pena a aplicar ao arguido, tomar-se-á em conta, dentro da moldura penal cabida ao caso [1 ano e 6 meses de prisão a 7 anos e 6 meses de prisão – arts. 176º/n.º 1-c) e 177º/n.os 1-c) e 7 C.P., na redacção conferida pela Lei n.º 40/2020], o princípio contido no n.º 1 do art. 71º C.P.: a análise da culpa do agente e das exigências de prevenção suscitadas pelo caso. Sabemos que na aplicação de penas a defesa da ordem jurídico-penal é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre um mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e um máximo consentido pela culpa do agente. Entre esses limites, satisfazem-se as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (cfr., a este propósito, Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, Lisboa, 1993, págs. 227 e ss.). A culpa funciona como fundamento e, sobretudo, como limite de pena a não ultrapassar em caso algum (n.º 2 do art. 40º C.P.); as exigências de prevenção geral – de integração (as expectativas comunitárias na validade e vigência das normas violadas) – e especial – de ressocialização – farão com que se encontre o quantum concreto de pena a aplicar. O que nos leva a admitir a possibilidade de uma sanção inferior à que seria dada apenas pela culpa (cfr., por todos, Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime” citado, págs. 257 e ss., 298 e 299). Portanto, poderemos dizer – e é conveniente repetir esta ideia – que dentro do limite consentido pela culpa a medida da pena dependerá, ao cabo e ao resto, das necessidades preventivas: por um lado, das de ressocialização e reinserção social, e, por outro lado, das de prevenção geral de integração (como já foi dito, as que se ligam à manutenção e ao reforço da confiança comunitária na validade “fáctica” das normas violadas). Nos termos do n.º 2 do art. 71º C.P. citado, considerar-se-ão os seguintes elementos que, não fazendo parte dos tipos, depõem contra ou a favor do arguido: - o não despiciendo grau da ilicitude dos factos (que apela ao número e sentido de violação dos interesses ofendidos, aspecto em que importará realçar o concreto tipo de actos praticados pelo arguido, ou seja, na nossa hipótese, a divulgação de imagens de nudez completa e de actos sexuais explícitos, no mundo digital, em uma cadência, número de ficheiros e multiplicação de situações a exigirem um sério e veemente plus de censura objectiva); - o concreto modo de actuação (com um certo rigor de “organização” por parte do arguido, que distribuiu as imagens e as partilhas por mais do que um canal informático); - o dolo revelado no caso (que se perspectiva sempre como directo, pois provado ficou ter actuado sempre o arguido de modo consciente, determinado e lúcido, orientado por uma evidente voluntas de preenchimento do tipo de ilícito em questão); - a personalidade do arguido (que só agora, após a sua sujeição a um processo penal com as características do presente, parece apontar para uma certa consciencialização do sentido dos seus factos e o que os mesmos acabam por contribuir para uma “indústria” que, na sua base, tem a lógica da coisificação sexual das crianças, a par, ainda, de um indisfarçado gosto por uma certa abordagem – a sua… – em relação à sexualidade, que se afigura pautada por uma óbvia dose de voyeurismo quanto à exposição sexual de seres indefesos) e, no mais, o seu percurso de vida e as respectivas condições existenciais mais recentes, a apontarem para alguns hábitos de trabalho; - a assunção de parte da factualidade a si imputada nos autos (embora quase só praticamente naquilo que os elementos objectivos aqui já recolhidos não lhe permitiam negar…); - a condenação penal anteriormente incidente sobre o arguido (condenação essa, em pena de cariz não detentivo, por factualidade ligada ao “tema do sexo”). Ponderando todos os critérios e elementos referidos, entende o Tribunal adequada a fixação da pena de 4 anos de prisão a aplicar ao arguido. * Como é sabido, impõe o art. 50º C.P. a análise judicativa da especificidade de cada hipótese por forma a poder concluir-se (ou não) por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do agente, isto é, por forma a entender-se (ou não) que a «(…) censura do facto e a ameaça da pena – acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta (…) “bastarão para afastar o delinquente da criminalidade” (…)». E «para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto –, o Tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto». Mas a lei torna também claro que, «(…) na formulação do aludido prognóstico, o Tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime” citado, pág. 343; a propósito, cfr. ainda o Ac. Rel. Guimarães de 10/5/2010, in www.dgsi.pt). O preceito citado – art. 50º C.P. – consagra um verdadeiro poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização das finalidades da punição, sempre que se verifiquem os pressupostos necessários (Ac. Rel. Coimbra de 12/7/2017, in www.dgsi.pt). Para o efeito em questão será então necessário que o julgador possa fazer o tal juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do agente, no sentido de que a ameaça da pena se mostrará adequada e bastante para realizar os fins punitivos e, consequentemente, a ressocialização (em liberdade, note-se) do mesmo agente. Pois bem, o que se passa no nosso caso? Passa-se existirem, apesar de tudo, fundamentos susceptíveis de sustentarem a formulação do dito juízo de prognose social favorável relativamente ao arguido. De facto, e reafirmando uma ideia que já tentámos expressar no presente acórdão, se é certo que a personalidade do arguido carece, de modo evidente, de um acompanhamento e tratamento psicoterapêuticos, sobretudo em relação à sua óbvia “inclinação” para os temas sexuais (e, dentro destes, para aqueles que envolvem, de forma absolutamente antinatural, as crianças mais novas), parecerá também que a situação concreta dos autos representa como que uma faceta mais “negra” de uma vida em que, pese embora indubitáveis laivos de isolamento familiar mais próximo (leia-se “dos seus progenitores”), foram existindo inegáveis hábitos laborais e de inserção social por parte do próprio arguido (não sendo propriamente conhecidos sentimentos gerais de rejeição comunitária à sua presença). Pensa-se, portanto, que, não obstante o carácter censurável da actuação em análise, teremos de perceber estar aqui em causa um comportamento que, mercê da apontada integração laboral e comunitária do arguido, admitirá claramente, em termos dos sentimentos gerais da comunidade jurídica, uma não efectividade no cumprimento da pena de prisão a ele cominada, assim se consiga o referido acompanhamento Em suma, afigura-se-nos estar ainda presente o pressuposto fundamental de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão (o juízo de prognose favorável no tocante ao comportamento futuro do arguido, desde que devidamente acompanhado – art. 50º/n.º 1 C.P.), lidando nós com uma pessoa com oportunidade para inflectir o rumo até agora tomado. Assim ela o deseje de modo real e sem cedências a novas e eventuais “tentações”…, pois que lhe serão as mesmas, a acontecerem, porventura “fatais”… Mister será, no entanto, submeter o arguido a um regime de prova, assente em um plano de reinserção social especialmente focado no acompanhamento psicoterapêutico (aliás, aceite pelo mesmo, conforme consta da respectiva acta de audiência de discussão e julgamento – art. 52º/n.º 3 C.P.), com primacial abordagem a temas essenciais dos relacionamentos interpessoais e suas componentes, maxime no domínio sexual, nos termos dos arts. 53º e 54º C.P., que o faça desviar do tipo de comportamentos em questão nos presentes autos. Tudo sopesado, decide-se, pois, suspender a execução da pena de prisão cominada ao arguido, mediante um complementar regime de prova, nos termos acabados de expor. * Decorre do art. 109º C.P. deverem ser declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos; depois, se a lei não fixar destino especial aos objectos perdidos, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio. Dada a prática do crime ora em questão pelo arguido, mediante o evidente recurso ao material apreendido nos presentes autos (computador portátil e telefone móvel), e as suas características especialmente atreitas a tal prática, entende-se fazer todo o sentido declarar o dito material perdido a favor do Estado (como, aliás, o requereu o Ministério Público na parte final da acusação pública por si deduzida). * Quanto à questão, também constante da acusação pública, de que sejam aplicadas igualmente as penas acessórias de proibição do exercício de funções que envolvam contactos regulares com menores e de proibição de confiança de menores (arts. 69º-B/n.º 2 e 69º-C/n.º 2 C.P.), importará ter presente o seguinte. Conhecemos o essencial princípio constitucional de que «nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos» (n.º 2 do art. 30º da nossa Lei Fundamental). E, sob pena de entendermos os arts. 69º-B e 69º-C.P. como irremissivelmente feridos de uma óbvia inconstitucionalidade, somos da opinião de que, como há muito ensinou o Prof. Jorge de Figueiredo Dias, será imperioso, em cada situação concreta de uma condenação pela prática de um crime de natureza sexual, comprovar, no todo comportamental protagonizado pelo agente, um particular conteúdo do ilícito que justifique materialmente a aplicação da pena acessória em causa (“Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime” citado, pág. 158). O que acabamos de dizer enquadra-se igualmente em indeclináveis exigências de proporcionalidade (maxime, entre os valores inerentes à aplicação da justiça penal e a compressão de direitos em que essa mesma aplicação se traduz), desde logo decorrentes da norma do art. 18º/n.º 2 C.R.P.. Somos remetidos, pois, para as especificidades próprias de cada caso trazido a julgamento. E o presente caso, na óptica do Colectivo, atenta a sua expressividade e características (de repetição) próprias, há pouco (sobretudo aquando da operação de determinação concreta da pena) melhor elencadas, reúne em si os especiais requisitos de ilicitude sustentadores da aplicação das penas acessórias em questão, porquanto nos parece que, se é certo que a via utilizada pelo arguido em termos de “devassa” do recato e personalidade dos mais novos em termos sexuais, é, como acima vimos, indirecta e reflexa, não deixa, ainda assim, de revelar uma preocupante “inclinação” para tudo o que possa potenciar, em termos muito mais graves, a aludida “devassa”, tal como decerto aconteceria se fossem propiciadas condições de contacto directo do arguido com crianças. Assim, e movendo-nos na amplitude permitida pelos arts. 69º-B/n.º 2 e 69º-C/n.º 2 C.P., entende-se ser de proceder à aplicação das aludidas penas acessórias ao arguido pelo período de 5 anos (quantum temporal que nos parece proporcionado à gravidade do caso e às exigências pessoais e gerais que do mesmo deveremos retirar relativamente ao futuro próximo do arguido nas apontadas matérias). (…) * Apreciação do recurso. Questão prévia. Antes de entrarmos na apreciação da questão nuclear trazida à apreciação deste Tribunal, impõe-se dizer que o arguido recorrente para além de pedir a revogação da decisão condenatória a nível de pena principal, pede também (conclusão 22) a revogação das penas acessórias que lhe foram aplicadas. No corpo da motivação não aborda as penas acessórias, percebendo-se que a referência feita na síntese conclusiva decorre tão só da pretendida absolvição. A falta de alegação na motivação do recurso de matéria levada às conclusões, determinaria a sua não apreciação, no caso de não resultar como consequência da decisão a tomar. No entanto, entende-se que, em face da recente publicação do Acórdão do Tribunal Constitucional 688/2024 in DR II série, de 12/11/2024 e da análise feita pelo tribunal a quo a propósito da inconstitucionalidade das normas aplicadas, que sempre seria de conhecimento oficioso, se deve conhecer também da pretendida revogação das penas acessórias. Posto isto, As questões trazidas pelo recorrente à apreciação deste Tribunal reconduzem-se ao entendimento de que a decisão recorrida não respeitou a jurisprudência fixada, com força obrigatória geral pelo Ac. TC 268/2022 de 19/04, o que afeta também, no seu entender, o valor de outras provas, designadamente da confissão dos factos realizada pelo arguido. Assim, para melhor enquadrar a questão e se perceber a decisão que será tomada impõe-se uma breve referência - seguindo de perto o entendimento exposto no Ac. desta Relação proferido no processo 13/20.6PEVIS.C1 - ao âmbito de aplicação do referido Acórdão 268/2022 de 19.04.2022 que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do art. 4º, conjugada com os art.s 6º e 9º (na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros) todos da Lei 32/2008 de 17 de julho. A Lei 32/2008 de 17 de julho tem como objeto regular a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas coletivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Diretiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Junho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no sector das comunicações eletrónicas ( art. 1 nº 1). No art. 2º encontramos a definição de dados nela se incluindo os dados de tráfego e de localização, bem como os dados conexos necessários para identificar o assinante ou utilizador. O art. 3º reporta-se à finalidade (exclusivamente criminal) do tratamento dos dados; o art. 4º enumera os dados a conservar e o art. 6º indica o período de conservação (um ano). Nos art. 9º e 10º é regulada a transmissão dos dados; a sua destruição está prevista no art.11º, sendo os restantes artigos referentes às penalizações decorrentes do incumprimento da lei e a dados estatísticos. Foi, então, a recolha, registo, conservação e acesso de dados pessoais, de tráfego e localização em relação a todos os assinantes e utilizadores registados nas empresas fornecedoras de serviços de comunicações eletrónicas, de modo generalizado e indiferenciado e em relação a todos os meios de comunicação eletrónica, durante um ano, que, pela abrangência subjetiva (que pode atingir qualquer cidadão e não só os suspeitos de crimes) e temporal (um ano), o Tribunal Constitucional entendeu violar o princípio constitucional da proporcionalidade na restrição dos direitos à reserva da intimidade da vida privada, ao sigilo nas comunicações, ao livre desenvolvimento da personalidade, à autodeterminação informativa e à tutela jurisdicional efetiva. Fê-lo à semelhança do que já decidira noutros acórdãos (por ex. Ac. 403/2015 e 464/2019) e do que já ocorrera noutros países europeus (os Tribunais Constitucionais Romeno, Alemão e Checo já há mais de 10 anos haviam declarado nas respetivas jurisdições a inconstitucionalidade das leis ordinárias que procederam à transposição da diretiva 2006/24/EU relativa à conservação de dados), ao abrigo dos comandos constitucionais ínsitos nos artigos 18º nº2, 20º nº1, 26ºnº1 e 35º nº 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa. E assim, por força da decisão do Tribunal Constitucional deixaram de existir na ordem jurídica as normas constantes dos artigos 4º, 6º e 9º (este na dimensão apontada no acórdão) da Lei 32/2008 de 17 de julho que determinavam para os fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas, publicamente disponíveis, a obrigação de conservação para fins criminais e por um ano, dos dados gerados ou tratados no âmbito dos serviços de comunicações eletrónicas.
Mas é evidente que a conservação dos dados respeitantes a cada indivíduo não viola com igual intensidade o direito à reserva da intimidade da vida privada, porque nem todos os dados têm igual aptidão para a devassa que se pretende evitar. De facto, são diferentes os chamados dados de base (os que respeitam ao acesso à rede e permitem identificar o utilizador do equipamento – (endereços de protocolos de IP, identidade civil do titular, números de telefone e endereços de correio eletrónico)) dos designados dados de tráfego que são os que revelam circunstâncias das comunicações, como a localização dos intervenientes na comunicação, duração, data, hora das comunicações interpessoais, mas também os que não pressupõem uma comunicação interpessoal. Assim, entende o Tribunal Constitucional (à semelhança do que já havia sido a orientação, por exemplo, do acórdão 420/2017 de 13 de julho e a posição expressa, na doutrina, por exemplo por Costa Andrade in “RLJ - Bruscamente no Verão Passado…, ano 137º nº 3951, 341) que a conservação dos dados de base enquanto medida restritiva dos direitos à reserva da intimidade da vida privada e à autodeterminação informativa, respeita o princípio da proporcionalidade, uma vez que apenas se identificam os utilizadores do meio de comunicação e não pressupõem a análise de qualquer comunicação. Diferentes considerações mereceu ao Tribunal Constitucional a conservação, por um ano a contar da data de conclusão da comunicação e para fins criminais, dos dados de tráfego, com especial relevância para os dados de localização e comunicações de todas as pessoas (todos os assinantes), isto é, das comunicações eletrónicas da quase totalidade da população, que concluiu ser uma solução legislativa desequilibrada por atingir pessoas contra quem não há qualquer suspeita de atividade criminosa. Idêntica censura mereceu a ausência de notificação ao visado de que os seus dados foram acedidos pelo entendimento de que ficam comprimidos, de forma desproporcionada, o direito à autodeterminação informativa e a uma tutela jurisdicional efetiva. Mas o Tribunal Constitucional, no referido acórdão, não fiscalizou, nem censurou outras normas, ou outros diplomas legais. A declaração de inconstitucionalidade dele emanada não tem, portanto, a virtualidade de abranger toda e qualquer prova obtida por meios digitais uma vez que visa, essencialmente, os serviços de comunicações eletrónicas nas vertentes nele apontadas.
E é a esta luz que tem de ver-se se as provas obtidas nos autos que levaram à apreensão de material informático e condenação do arguido foram indevidamente valoradas pelo tribunal a quo, por serem suscetíveis de ser abarcadas pelas normas feridas de inconstitucionalidade e, nessa medida, constituírem prova proibida. Por outro lado, há que ver se a confissão do arguido no pressuposto da legalidade da prova existente nos autos também não se poderá considerar como prova autónoma e independente de acesso aos factos não podendo ser valoradas as declarações do arguido por estarem igualmente contaminadas pelo vício da prova inicial. Analisando os autos constata-se que obtida a notícia da prática de crimes em 11/11/2021 23/11/2021 e 26/12/2021 os dados que vieram a ser pedidos e obtidos da operadora MEO - e contra os quais se insurge o arguido -, o foram a partir do despacho de 31/03/2022 (fls 24) do seguinte teor: Investiga-se nos presentes autos a prática de crime de pornografia de menores p e p pelo artigo 176º, nº 1, alíneas c) e d) do Código Penal. Este crime foi cometido por meio de sistema informático pelo que se aplica o disposto no artigo 11º, nº 1 alíneas b) e c) e 14º, nº 1 a 3 da Lei 109/2009 de 15/09. Por outro lado, está em causa crime a que se refere o artigo 2º, g) da Lei 32/2008 de 17 de julho. Para que a presente investigação possa ter sucesso, como refere o Ministério Público, em vista do meio criminoso utilizado, torna-se indispensável ter acesso a determinados dados constantes de suporte electrónico. A operadora de telecomunicações apenas fornecerá as informações pretendidas pelo Ministério Público se o pedido for formulado pelo Tribunal. Assim, ao abrigo do disposto nos artºs 11º, nº 1, alíneas b) e c), e 14º, nºs 1 e 3 da Lei nº 109/2009 de 15/09 e artigo 2º, g) da Lei 32/2008 de 17 de julho, determino que tal operadora proceda ao envio dos elementos referidos pelo Ministério Público, sendo tal restrição da privacidade dos visados proporcional aos indícios já obtidos e à finalidade da investigação em causa (artigo 18º e 34º da Constituição da República Portuguesa). (…) Na sequência do despacho foi, então, pedido à operadora de telecomunicações MEO que fornecesse os seguintes elementos: - Identificação do utilizador do endereço IP; - a data/hora do início e a hora de fim de cada ligação; - a morada de instalação do equipamento; - a morada de faturação; a descrição dos serviços contratados e dos equipamentos fornecidos para tal efeito. Ora, entende o recorrente que as informações obtidas constituem prova proibida à luz do citado Acórdão do Tribunal Constitucional e, portanto, não podem ser valoradas nos autos, nem por si mesmas, nem as que lhe sucederam, v.g. a confissão do arguido. Antes de mais impõe-se dizer que as informações da MEO que respeitam a dados de base, isto é, à identificação do utilizador, número de telefone e morada, não constituem uma compreensão desproporcionada dos direitos previstos no artigo 35º, nºs 1 e 4 e 26º, nº 1 da Constituição, nem constituem prova nula nos termos do nº 8 do artigo 32º do mesmo diploma, de acordo com o decidido pelo Tribunal Constitucional. Mas também não, adianta-se já, as informações obtidas respeitantes a dados de tráfego. É que, como já se disse, o Acórdão do Tribunal Constitucional dirigiu-se essencialmente aos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis e afastou a possibilidade de serem por eles guardados dados de tráfego relativos às comunicações dos respetivos assinantes, pelo período de um ano e para fins criminais, conforme previsto nos art. 4º,6º e 9º da Lei 32/2008 de 17.07. Mas não mais do que isso. Isto é, o Tribunal Constitucional não entendeu estarem feridas de inconstitucionalidade as normas do código de processo penal que preveem a possibilidade de obter e juntar aos autos dados sobre a localização celular ou registos de realização de conversações ou comunicações quanto a crimes previstos no nº 1 do artigo 187º (onde se inclui o crime de pornografia de menores), nem afastou a possibilidade de conservação de dados ao abrigo de outros diplomas, por exemplo para fins contratuais, como ocorre com a lei 41/2004 de 18.08, que prevê a conservação de dados de tráfego, por um período de 6 meses. E assim se o CPP prevê a possibilidade de obtenção de dados relativos a conversações e comunicações telefónicas, se eles existirem validamente conservados no âmbito de outros diplomas em vigor, (v.g. artigo 14 da lei 109/2009), nada impede que as autoridades a eles acedam ainda que observando as condições técnicas e de segurança exigidas pelo SAPDOC (Sistema de Acesso ou Pedido de Dados às Operadoras de Comunicação) (cfr Portaria 469/2009 de 6.5 alterada pelas portarias 915/2009 de 8.8 e 694/2010 de 16.8), quando estão em causa valores como a segurança, a legalidade democrática e o exercício da ação penal no combate à criminalidade. De igual modo, se há dados que podem ser guardados, por exemplo, para fins contratuais, nomeadamente, de faturação, nada impede que possam ser utilizados para fins de investigação criminal, tanto mais quanto a Lei 41/2004 o admite ( art. 6º, n º7) e no âmbito do processo criminal ao arguido são obrigatoriamente transmitidos (artigo 141º, nº 4 e) do CPP) os elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não ponha em causa a investigação, não dificulte a descoberta da verdade, nem crie perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas de crime. Não se ignora que a jurisprudência tem adotado posições divergentes da que acaba de expor-se (cfr, por todos, Ac. RP de 07-12-2022 proferido no processo 5011/22.2JAPRT-A.P1) pelo entendimento de que não se pode tornear o acórdão do tribunal constitucional “deixando entrar pela janela” aquilo a que ele “fechou a porta”, ou seja não podemos recorrer a outras normas para obter o mesmo efeito que resultaria da aplicação das normas declaradas inconstitucionais sem que essas outras normas contenham aquelas garantias que faltam a estas e que levaram a essa declaração de inconstitucionalidade. Não é, por isso, legalmente possível recorrer para esse efeito aos regimes dos artigos 187 e 189 do Código de Processo Penal ( relativo às comunicações em tempo real, não à conservação de dados de comunicações pretéritas), da Lei 41/2008 de 18 de agosto (relativo à proteção contratual no contexto das relações entre empresas fornecedoras de serviços de comunicações eletrónicas e seus clientes, campo distinto do da investigação criminal) e da Lei 109/2009 de 15 de setembro (Lei do Cibercrime). Não podem os tribunais substituir-se ao legislador suprindo omissões de onde resultam graves inconvenientes para a investigação criminal”. Mas o entendimento assim expresso, salvo o devido respeito, vai muito além do afirmado e pretendido pelo Tribunal Constitucional no referido Acórdão 268/2022. O Tribunal Constitucional não vedou o acesso, no âmbito do processo penal, a dados conservados na posse de operadoras de serviços de comunicações, que continua previsto nos artigos 187º a 189º e na al. e ) do art. 269º do CPP e, bem assim, na Lei do Cibercrime, nem as operadoras de comunicações ficaram impedidas de conservar dados de tráfego dos seus clientes, v.g. para fins de faturação, como ocorre com a Lei 41/2004 de 18.08 - que transpôs a Diretiva 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e, que contrariamente à Diretiva 2006/24/CE ( transposta pela Lei 32/2008 de 17.07) se mantém válida – pelo prazo de 6 meses, prazo este que, diga-se, foi respeitado no presente processo. Isto mesmo é afirmado no Ac. RG de 02-05-2023 in www.dgsi.pt, proferido no processo 12/23.6PBGMR-A.G1, com o qual concordamos e passamos a citar: “(…)não nos revemos na posição daqueles que, na sequência do Ac. TC nº 268/2022, defendem a impossibilidade de os dados conservados ao abrigo da Lei 41/2004, de 18.08, serem usados para efeitos de prova em processo penal. Efetivamente, desde logo porque o Tribunal Constitucional, no referido acórdão, não se pronunciou especificamente sobre esta questão. Por outro lado, o próprio Tribunal Constitucional já se pronunciou em sentido favorável noutros casos em que foram utilizadas bases de dados informáticas existentes para fins diferentes da prova em processo penal. Assim, vide v.g. o Ac. TC 213/2018. Importa também salientar que a Lei nº 58/2019 (Lei de proteção de dados pessoais) no seu artigo 23º, nº 2 não impede a transmissão de dados pessoais entre entidades públicas para finalidades diversas das determinadas na recolha. Não menos relevante, regista-se que própria Lei 41/2004, de 18.08 prevê a possibilidade de os dados serem usados para prova em processo penal e não apenas no âmbito do processo civil, cfr. nº 7 do artigo 6º. Nesse sentido, vide o citado Ac. TC nº 486/2009. Para que uma prova seja admissível em processo penal não é necessário que exista uma norma expressa que a preveja expressamente, pois que de acordo com o princípio da legalidade da prova, previsto no artigo 125º do CPP “São admissíveis as provas que não forem proibidas”. A Lei nº 41/2004, de 18.08 não prevê a notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, porque constitui uma lei de conservação de dados, não estando nela previsto o acesso a esses dados. Ora, o Tribunal Constitucional apontou a falta de notificação apenas quanto ao artigo 9º da Lei 32/2009, de 17.07, que constituía uma norma de acesso a dados, pelo que a questão não se coloca relativamente à Lei nº 41/2004. Por ultimo, quanto à omissão de previsão legal obrigando à conservação dos dados em território da União Europeia referida pelo no Ac. TC 268/2022 relativamente à Lei nº 38/2022, de 17.07, a Lei nº 41/2004, de 18.08 nada diz. Porém, a questão da territorialidade e da transferência na e para a União Europeia encontra-se prevista nos artigos 44º a 50 da Lei nº 59/2019, que é aplicável à base de dados da Lei nº 41/2004, de18.08. (…)
Assim, se as provas forem obtidas a partir de dados guardados pelas operadoras, respeitando os limites impostos legalmente pelas leis que se mantêm em vigor, designadamente pela lei 41/2004 de 18.08. e que continuam a prever a possibilidade de obtenção, guarda e transmissão de tais dados, tais provas são válidas. Se não o fossem, então, seriam prova proibida.
Aqui chegados impõe-se, então, constatar que para além das considerações vertidas no acórdão recorrido a simples análise das datas permite a conclusão de que o tribunal não se socorreu de prova proibida, designadamente, porque as informações obtidas respeitaram o prazo de 6 meses a que se reporta a lei 41/2004, que se mantém em vigor no ordenamento jurídico, como atrás foi dito, pelo que, pode afirmar-se que o juízo de inconstitucionalidade de que o recorrente se socorre para inviabilizar a obtenção da prova não tem aplicação à prova carreada para os autos, quer obtida digitalmente, quer resultado das subsequentes buscas e apreensões.
Mas a condenação do arguido teve ainda outro fundamento que só por si levaria à mesma conclusão: a confissão do arguido. Entende o recorrente que a confissão também não pode ser valorada, porque se soubesse que as provas eram proibidas não a teria feito. Antes de mais impõe-se dizer que não se está perante a confissão a que alude o art. 344.º do CPP. Para que o fosse a confissão teria de evidenciar um conjunto de requisitos cumulativos: isto é, deveria ser livre - portanto, fora de qualquer coação -, integral, - portanto abarcando todos os factos - e sem reservas, - portanto, incondicional, isto é, sem condições ou alterações dos factos imputados. Tal confissão implicaria que o juiz devesse inquirir o arguido sobre a liberdade com que confessava os factos, sob pena de nulidade do meio de prova. A uma confissão assim feita seguir-se-iam os efeitos previstos no nº 2 da mesma disposição legal, (ressalvadas as exceções do n.º 3) e tal confissão faria prova plena, cabendo ao juiz, na sua livre convicção, apenas questionar os pressupostos inerentes à liberdade, integralidade e incondicionalidade da confissão, bem como a eventual não verificação das exceções previstas no n.º 3. Normalmente uma confissão com estas características apresenta-se como valiosa (cfr Ac. STJ de 09/07/1986 proferido no processo 038510) porque, as mais das vezes, projeta um sentimento de arrependimento e revela facetas positivas da personalidade do arguido essenciais para a avaliação do fim preventivo especial da pena. Mas mesmo que a confissão não tenha tais características, ou mesmo que o seu contributo para a descoberta da verdade seja inexistente, por exemplo nos casos de flagrante delito, ou perante prova pericial incontroversa, nem por isso deve ser desconsiderada, dado revelar, independentemente da sua utilidade em termos de prova, uma faceta da personalidade do arguido não descurável, no momento da avaliação da medida da pena. É verdade que à confissão meramente estratégica em julgamento não pode ser atribuído o mesmo valor que à confissão espontânea, o mesmo ocorrendo quanto à confissão após produção de prova, quando confrontada com a realizada antes de produzida qualquer outra prova. Mas apesar do valor da confissão poder variar em função da sua utilidade, nem por isso deixa de constituir prova válida e autonomamente valorável, porque como refere Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, 3ª edição atualizada, pág. 363, “de um modo genérico, toda a colaboração prática com as autoridades na descoberta da verdade deve ser creditada a favor do agente no balanço das necessidades preventivas do caso”. As declarações do arguido - que ele agora pretende que não sejam valoradas como prova - não se subsumem ao disposto no artigo 344º do CPP, na medida em que foram apenas “aqui e ali confessórias”. De facto, o recorrente confessou os factos da forma como entendeu fazê-lo, que foi parcial e com reservas, mas as declarações que prestou não deixaram, obviamente, de poder ser livremente apreciadas pelo Tribunal, como o foram. Por outro lado, elas foram acompanhadas do reconhecimento de saber estar errado deter e partilhar material com as caraterísticas do ora em questão no processo, posição que não refletindo um verdadeiro arrependimento teve, naturalmente, influência na determinação da medida da pena. Portanto, trata-se de um meio de prova relevante, atendível também relativamente à avaliação da personalidade do arguido e das necessidades da prevenção especial. Ao vir agora o recorrente fazer depender a validade da confissão da validade das demais provas, tal corresponde a subverter o verdadeiro valor da confissão, tanto mais quanto não foi obrigado ou determinado a fazê-la, - podia ter ficado em silêncio, obviamente – revelando, até, uma personalidade algo desvaliosa que sublinha a necessidade da pena imposta. Assim sendo, não há qualquer dúvida de que não foi a prova apreciada erradamente, como alega o recorrente e de que não podia deixar de ser condenado, como o foi.
Vejamos agora se a condenação na pena principal justifica a condenação nas penas acessórias impostas ao abrigo dos artigos 69º-B, nº 2 e 69º-C, nº 2 do CP. O tribunal a quo considerou estarem os artigos 69º-B e 69º-C “irremissivelmente feridos de uma óbvia inconstitucionalidade”, certamente referindo-se à redação anterior à conferida pela lei 15/2024 de 29.01., pela qual foi o arguido acusado. Disse-o, justificadamente e vemo-lo, em certa medida, confirmado pelo recente Ac. TC nº 688/2024 publicado no DR, II, Série nº 219 de 12/11/2024 que decidiu julgar inconstitucional a norma do artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal (na redação conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto) no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição, em caso de punição pela prática de crime de abuso sexual de menores dependentes, p. p. pelos artigos 172.º, n.º 2 e 171.º, n.º 3, alínea b), ou de importunação, p. p. pelo artigo 170.º, todos do Código Penal (na redação conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto); e ainda que decidiu também julgar inconstitucional a norma do artigo 69.º-C, n.º 2, do Código Penal (na redação conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto) no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição, em caso de punição pela prática de crime de abuso sexual de menores dependentes, p. p. pelos artigos 172.º, n.º 2 e 171.º, n.º 3, alínea b), ou de importunação, p. p. pelo artigo 170.º, todos do Código Penal (na redação conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto); Assim decidiu o Tribunal Constitucional por, em síntese, ter considerado que embora a introdução no regime jurídico-penal de penas acessórias estatutivas da proibição do exercício de funções relacionadas com menores (artigo 69.º-B, n.º 2, do CP) e da proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidades parentais (artigo 69.º-C, n.º 2, do CP) como fórmulas de reação penal aos crimes de abuso sexual de menores dependentes, p. p. pelos artigos 172.º, n.º 2 e 171.º, n.º 3, alínea b), ambos do CP, e de importunação, p. p. pelo artigo 170.º do CP, não seja proibida pela Lei Constitucional, uma vez que o domínio de tutela em causa é extremamente sensível e legitima respostas jurídico-penais de grau de ingerência expressivo, também em função da especial vulnerabilidade dos titulares dos bens jurídicos protegidos pelos tipos incriminadores, certo é que o modelo jurídico adotado, ao associar o caráter injuntivo de aplicação das penas a molduras legais de mínimos de proibição de cinco anos, sinaliza rotura com o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), isto perante o nível de intrusão que as medidas sinalizam na liberdade de escolha e de exercício de profissão (artigo 47.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), no direito ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) e no direito a constituir família (artigo 36.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) e a ampla heterogenia (em medida de lesão, censurabilidade e necessidades preventivas) das condutas incriminadas pelos tipos-de-crime em referência. Ocorre que, não só o tipo de crime em causa nos autos é diferente do que motivou a referida declaração de inconstitucionalidade, como sobretudo a análise feita pelo tribunal a quo é reveladora de que a imposição das penas acessórias e a dimensão em que o foram não resultou necessariamente da obrigatoriedade prevista na lei, antes da redação dada pela Lei 15/2024 de 29 de janeiro, mas da avaliação imperiosa - de acordo com os ensinamentos do Professor Figueiredo Dias – feita pelo tribunal a quo a partir da observação na situação concreta de exigências de comprovação no todo comportamental protagonizado pelo agente, de um particular conteúdo do ilícito, justificante materialmente da aplicação das penas acessórias em causa. Por outro lado, avaliou, igualmente, o tribunal a quo as exigências de proporcionalidade decorrentes do artigo 18, nº 2 da Constituição e as concretas circunstâncias em que os crimes foram cometidos, vindo, fundadamente, a concluir pela necessidade da aplicação das penas acessórias. Uma vez que, como se disse, o entendimento expresso pelo tribunal a quo não foi questionado pelo recorrente - que apenas requereu a revogação das penas acessórias como consequência da pretendida absolvição relativamente ao crime pela qual foi condenado, absolvição que não poderá ser sentenciada - e não merece reparo já que teve em conta a expressividade da atuação, os especiais requisitos de ilicitude e a preocupante inclinação do arguido para práticas delituosas desta natureza, capazes de assumir contornos de maior gravidade, no caso de contacto direto com crianças, também as penas acessórias deverão manter-se. Deverá, pois, o recurso ser julgado improcedente. * III. DECISÃO. Em face do exposto, decide-se na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA e, consequentemente, confirma-se o acórdão proferido em 1ª instância. Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 4 Uc. Notifique. Coimbra, 19 de fevereiro de 2025 Maria Teresa Coimbra Isabel Cristina Gaio Ferreira de Castro Fátima Sanches |