Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
I- Relatório:
-» A arguida AA foi condenada nos autos, por decisão transitada em julgado em 25.03.2019 (refª 90993462), pela prática de um crime de burla informática, p. e p. pelo artigo 221º, nº 1 e nº 5, alínea b) do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova e, ainda, à condição de pagar à ofendida BB a quantia total de € 41.179,75, devendo documentar nos autos, ao fim do primeiro ano após o trânsito, o pagamento de € 8.235,95 e, no final dos anos seguintes, a mesma quantia (cfr. refª 88408938 e refª 8481503).
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No mesmo processo foi proferida, em 24.09.2024, uma decisão judicial a declarar extinta, pelo cumprimento, a supra referida pena de prisão suspensa na sua execução.
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-» Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o M.º P.º, motivando o recurso, que apresenta as seguintes conclusões: (transcrição)
I – Nos autos, o Tribunal decidiu extinguir a pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, mediante regime de prova, nos termos do artigo 57.º, n.º 1, do Código Penal.
II – A arguida foi condenada na pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução sujeita ao regime de prova e subordinada à condição de pagar à ofendida a indemnização global de 41.179,75€ (38.679,75€ correspondente a anos patrimoniais e 2.500,00€ correspondente a danos não patrimoniais), devendo documentar nos autos ao fim do primeiro ano após o trânsito o pagamento de 8.235,95€ e no final dos anos seguintes a mesma quantia.
III – Todavia a arguida não cumpriu com a referida condição, não tendo pago qualquer quantia aos herdeiros da ofendida.
IV- Estabelece o artigo 56.º, n.º 1 do Código Penal os fundamentos para a revogação da suspensão da execução da pena: quando o condenado infringir de forma grosseira os deveres ou regras de conduta que lhe foram impostos (…).
V – Nos termos do artigo 56.º, n.º 1. al. a), do Código Penal, a revogação da pena suspensa só pode ocorrer se esse incumprimento se ficar a dever a culpa grosseira do arguido.
VI – A arguida não fez qualquer esforço para reverter a aparente incapacidade financeira.
Os autos espelham um comportamento deliberado em manter tal incapacidade financeira, esperando que desta forma a pena viesse a ser declarada extinta.
VII - Apesar de auferir um salário desde Agosto de 2022 - no valor de 400,00€, sem que tivesse de pagar uma renda ou de pagar a sua alimentação - a arguida não encetou qualquer esforço para proceder ao pagamento da quantia fixada.
VIII - Ainda que tenha verbalizado a disponibilidade para fazer pagamentos mensais da quantia de 100,00€, a arguida nada fez ou pagou.
IX - A arguida tinha na sua posse a quantia de 38.679,75€ que retirou à ofendida nos autos.
Não sabemos o que lhe fez, tendo-se recusado a responder a tal questão.
X- E esta disponibilidade do produto do crime tem de ser entendida como demonstrador da culpa grosseira no incumprimento da condição da suspensão da execução da pena.
XI - A arguida não procedeu ao pagamento de qualquer quantia.
A arguida não demonstrou ou fez um esforço para entregar qualquer valor da quantia fixada.
A arguida não cumpriu com o plano fixado, tendo abandonado qualquer contacto com a DGRSP.
Apesar de várias vezes instada a demonstrar as alegadas fragilidades médicas, a arguida não o fez.
Foi o Tribunal a quo quem diligenciou repetidamente para contactar a arguida, para ouvir e procurar justificação para o incumprimento objectivamente constatado.
XII - O comportamento da arguida configura uma violação grosseira das condições da suspensão da execução da pena, pelo que a mesma deve ser revogada e determinado o cumprimento da pena de 5 anos de prisão.
XIII - Ao decidir extinguir a pena de 5 anos de prisão, suspensa na execução, pelo cumprimento, o Tribunal violou o disposto no artigo 56.º, n.º 1, al. a) e 57.º, n.º 1, do Código Penal, pelo que o despacho deverá ser revogado e determinado o cumprimento da pena de prisão efectiva”.
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-» Também o assistente interpôs recurso, que motivou, apresentando as seguintes conclusões:
1.Ao longo dos últimos anos a Arguida incumpriu repetida, grosseira e culposamente os deveres que lhe foram impostos como condição da suspensão da execução da pena de prisão a que foi condenada.
2.Este incumprimento traduz-se em: não ter indicado ao Tribunal as suas constantes alterações de morada, ter cortado todo o contacto com a DGRSP, não ter respeitado as ordens do Tribunal de que foi notificada e não ter pagado um cêntimo da indemnização global por si devida à ofendida no valor total de 41.179,75 € (quarenta e um mil, cento e setenta e nove euros e setenta e cinco cêntimos), acrescidos de juros à taxa de 4%.
3.Algumas alterações de morada da Arguida merecem particular atenção: (i) a mudança de julho de 2019, logo após o trânsito em julgado da condenação, que teve como único objetivo dissociar-se dos altos rendimentos do agregado familiar em que se encontrava inserida de forma a simular uma situação de carência económica, e (ii) as mudanças operadas a partir do início de 2021, logo após o Assistente ter requerido a revogação da suspensão da pena de prisão, que tiveram como único objetivo impedir a sua notificação.
4.Relativamente ao corte de contacto com a DGRSP, também este se deu logo após o Assistente ter requerido a revogação da suspensão da pena de prisão, tendo-se mantido até à presente data.
5.Quanto à falta de resposta às ordens do Tribunal, a Arguida ignorou, nomeadamente, notificações de 5 de maio de 2021 e de 9 de março de 2023 que lhe foram entregues em mão por OPC.
6. As referidas violações dos devedores a que a suspensão da execução da sua pena de prisão ficou sujeita foram grosseiras e culposas e são suficientes, por si só, para determinar a revogação de tal suspensão e ordenar o cumprimento da pena, nos termos do artigo 56.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do Código Penal.
De qualquer modo, de toda a prova produzida nos autos até à data, resulta evidente que a violação da obrigação de pagamento que também foi imposta à Arguida é igualmente grosseira e culposa.
Ora veja-se,
8. Em primeiro lugar, a Arguida tem estado sempre na posse dos frutos do seu crime.
9. A Arguida burlou a vítima obtendo para si mesma um enriquecimento ilícito de, pelo menos, 38.679,75 € (trinta e oito mil, seiscentos e setenta e nove euros e setenta e cinco cêntimos). A suspensão da execução da pena de prisão em que a Arguida foi condenada ficou sujeita a regime de prova e ao pagamento, à ofendida, de 41.179,75 € (quarenta e um mil, cento e setenta e nove euros e setenta e cinco cêntimos), acrescidos de juros à taxa de 4%.
10. Assim, cerca de 94% da indemnização global a cujo pagamento foi condicionada a suspensão da pena de prisão da Arguida corresponde a um valor de que esta comprovadamente se locupletou em dinheiro, cabendo-lhe, tão-só, proceder à sua restituição. Contudo, aquando da sua Audição de 2024, a Arguida não alegou sequer já não estar na posse dos valores em causa, tendo-se apenas recusado a falar sobre o assunto (cfr. registado ao minuto 00:10:12 do Ficheiro áudio “Diligencia_147-14.6JAAVR_2024-05-13_14-19-45”). O que demonstrou claramente que a Arguida não tem qualquer desculpa para não ter procedido à restituição devida.
11. Em segundo lugar, a Arguida já deixou claro que entende não ter de pagar qualquer valor a título da indemnização a que foi condenada (cfr. registado ao minuto 00:10:33 do Ficheiro áudio “Diligencia_147-14.6JAAVR_2023-06-12_14-42-54”).
12. Em terceiro lugar, a Arguida só começou a invocar insuficiência económica depois do trânsito em julgado da sua condenação.
13. Quando foi julgada, a Arguida encontrava-se empregada e alegava que os seus rendimentos, conjugados com os da sua filha com quem residia, eram suficientes para não precisar de burlar a ofendida. Apenas em meados de 2019, poucos meses depois do trânsito em julgado do Acórdão do TRC de 2019 (que confirmou a condenação da Arguida), esta começou, pela primeira vez, a alegar que padecia de insuficiência económica e incapacidade para trabalhar.
14. Contudo, a incapacidade de trabalho da Arguida nunca foi comprovada nos autos pela mesma. Pelo contrário: na sua Audição de 2023, a própria Arguida confessou que não sofria de qualquer doença (cfr. registado ao minuto 00:21:28 do Ficheiro áudio “Diligencia_147-14.6JAAVR_2023-06-12_14-42-54”), a não ser de uma dor de dentes (cfr. registado ao minuto 00:24:20 do Ficheiro áudio “Diligencia_147-14.6JAAVR_2023-06-12_14-42-54).
15. Em quarto lugar, há pelo menos dois anos que a Arguida se encontra a trabalhar e aufere um rendimento global considerável (embora engenhosamente montado para parecer mais baixo).
16. Desde agosto de 2022 que a Arguida voltou a exerceu a atividade de cuidadora informal pela qual alega auferir uma remuneração de 400,00 € (quatrocentos euros) mensais, acrescidos da oferta de alojamento, comida e vestuário (cfr. registado ao minuto 00:06:47 do Ficheiro áudio “Diligencia_147-14.6JAAVR_2023-06-12_14-42-54”). Estes últimos benefícios, (i) quarto em apartamento num condomínio com piscina e as despesas de água, luz e gás incluídas, (ii) comida, e (iii) roupa, têm um valor (livre de impostos) de mais, pelo menos, 750,00 € (setecentos e cinquenta euros) mensais.
17. Assim, há cerca de dois anos que a Arguida aufere mensalmente uma remuneração equivalente a, pelo menos, 1.150,00 € (mil, cento e cinquenta euros) mensais (dos quais parte lhe é entregue em dinheiro e a outra parte em géneros).2 Além disso, com os 400,00 € (quatrocentos euros) que a Arguida recebe em dinheiro, esta apenas precisa de adquirir café com leite, pão com manteiga e queijo ralado, não lhe sobrevindo qualquer outra despesa (cfr. registado ao minuto 00:08:24 do Ficheiro áudio “Diligencia_147-14.6JAAVR_2023-06-12_14-2 A atual morada da Arguida, na Travessa ..., ... ..., corresponde a um condomínio com piscina e vistas sobre a natureza. O imóvel está situado a apenas 1 km da Praia da ... e a 2 km da Praia do .... 42-54”), nem sequer com medicação (cfr. registado ao minuto 00:22:07 do Ficheiro áudio “Diligencia_147-14.6JAAVR_2023-06-12_14-42-54”).
18. Em quinto lugar, a Arguida não procedeu aos pagamentos que ela própria confessou ter disponibilidade para fazer.
19. Na sua Audição de 2023, a Arguida confessou ter disponibilidade para proceder a um pagamento de 100,00 € (cem euros) por mês desde que não morresse ou adoecesse (cfr. registado ao minuto 00:27:38 do Ficheiro áudio “Diligencia_147-14.6JAAVR_2023-06-12_14-42-54”). Até à data, por um lado, não foi apresentada nos autos qualquer prova de que a Arguida tenha morrido ou adoecido, mas, por outro lado, também não foi realizado qualquer um dos pagamentos que a própria Arguida confessou poder fazer.
20. Quando questionada a este propósito na sua Audição de 2024, a Arguida não apresentou qualquer explicação plausível para a inexistência dos pagamentos a que ela própria se havia proposto, limitando-se a alegar que não sabia onde pagar (cfr. registadoao minuto 00:01:30 do Ficheiro áudio “Diligencia_147-14.6JAAVR_2024-05-13_14-19-45”).
21. Em sexto lugar, a capacidade económica da Arguida tem sido sempre manietada pela própria.
22. Na sua Audição de 2024, a Arguida confessou que, apesar de se encontrar atualmente empregada, não declara rendimentos junto da Segurança Social desde o início do presente processo (cfr. registado ao minuto 00:04:17 do Ficheiro áudio “Diligencia_147-14.6JAAVR_2024-05-13_14-19-45”). Porém, certo é que a Arguida sempre teve como se sustentar e já por várias vezes veio depor em juízo sobre os montantes que aufere, o que só mostra que a Arguida tem tido rendimentos que escapam ao controlo do Estado e, igualmente, do Tribunal.
23. Nessa mesma data, e quando confrontada com o facto do seu salário se encontrar escandalosamente abaixo do preço de mercado para os serviços por si prestados, a Arguida limitou-se a retorquir que não se sentia bem a pedir mais por considerar que não trabalha o suficiente para ganhar mais (cfr. registado ao minuto 00:08:53 do Ficheiro áudio “Diligencia_147-14.6JAAVR_2024-05-13_14-19-45”). Contudo, segundo a prova que consta dos autos, nada impede a Arguida de efetivamente trabalhar mais para, segundo a própria, merecer mais…
24. A verdade é que o valor diminuto dos rendimentos declarados ou confessados em juízo pela Arguida tem como único objetivo aparentar uma situação de carência económica, que não corresponde à realidade, enquanto esta vive à custa dos frutos do crime porque foi condenada.
25. Sendo um absoluto abuso de direito que, durante o período de suspensão da pena de prisão, um arguido se dê ao luxo de não auferir determinados rendimentos, sustentando-se com os frutos do seu crime, para logo afirmar que o incumprimento dos seus deveres de pagamento se deve à falta de condições económicas.
26. Perante todo o exposto, é evidente que a Arguida violou repetida, grosseira e culposamente todas as condições da suspensão da sua pena de prisão e que este incumprimento se deve, nomeadamente, ao facto de a Arguida ainda não ter interiorizado a gravidade dos seus atos e apresentar um completo desinteresse pela pena em que foi condenada.
27. Paralelamente, cinco anos depois do trânsito em julgado da condenação da Arguida em que esta continua a incumprir as suas obrigações legais, é também evidente que esta desaproveitou todas as oportunidades que lhe têm vindo a ser dadas para colaborar com a justiça na reparação dos danos por si causados e lograr a sua reinserção social.
28. Por este motivo, as finalidades de prevenção especial negativa (dissuasão o agente do crime da violação da lei) e positiva (correção do agente e respetiva reinserção na sociedade) ainda não foram cumpridas nem o poderão vir a ser sem o efetivo cumprimento da pena de prisão.
Pelo que deve a Decisão Recorrida ser revogada e substituída por outra que revogue a suspensão da execução da pena de prisão da Arguida e a ordene ao respetivo cumprimento nos termos do artigo 56.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2 do Código Penal.
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-» Os recursos foram admitidos, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo – cfr. artigos 399º; 400º; 401º, nº1, alíneas a) e b); 406º, nº 1; 407º nº 2, alínea b) e 408º a contrario, todos do Código de Processo Penal
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-» Ao recurso respondeu a arguida pugnando pela improcedência do recurso, apresentando as seguintes conclusões:
A) A Recorrida entende o tribunal a quo andou bem ao não revogar a suspensão da pena de prisão, devendo ser mantida nos seus exatos termos.
B) O que as Recorrentes pretendem é que o Tribunal da Relação profira um acórdão diferente ao do já por si proferido em 13.12.2023, que já transitou em julgado e é insuscetível de recurso.
C) Por acórdão de 13.12.2023 o Tribunal da Relação de Coimbra concluiu que os factos constantes no processo eram insuficientes para fundamentar uma decisão de revogação da suspensão da pena de prisão.
D) E, se eram insuficientes à data, também agora são insuficientes, pelo que não pode agora o Tribunal da Relação fazer uma apreciação diferente da já feita, alterando o aí já decidido.
E) Pelo que as alegações das Recorrentes, na medida em que recaem sobre factos que já foram apreciados pelo Tribunal da Relação de Coimbra, não têm qualquer relevância para o presente recurso.
F) E, novo acórdão da Relação que volte a reapreciar esses factos, proferindo uma decisão diferente, violará, ainda que de forma indireta, o trânsito em julgado do Acórdão de 13.12.2023, atentando contra o Princípio da Estabilidade das Decisões Judiciais, decorrentes dos Princípios Constitucionais da confiança e da Segurança jurídica que, por sua vez, decorrem da consagração do Estado de Direito (cfr. art. 2.º da C.R.P.).
G) Sem conceder, caso se entenda que o Tribunal da Relação poderá voltar a reapreciar os mesmos factos e alterar o decidido em 1.ª instância, nem assim os Recursos das Recorrentes merecem provimento.
H) Entende a Recorrida que não se acometeu ao incumprimento das injunções de forma culposa.
I) A Recorrida, enquanto se encontrava a ser seguida junto da DGRSP da Equipa Pinhal Litoral, cumpriu escrupulosamente o plano, e adotou sempre uma postura correta e era tida pelo meio onde residia como uma pessoa cordial – cfr. último relatório de execução periódico, de 05.03.2021, referência citius 7513250.
J) Porém, após a comunicação da alteração da nova residência da Recorrida, esta passou a ser seguida pela equipa DGRSP da Equipa Oeste 1, nunca tendo sido contactada para atender a reuniões, não lhe tendo sido dada segunda tentativa para cumprir com esta injunção – vide audição do Técnico da DGRSP, Dr. CC, a 13.05.2024, min 00:11:29 a 00:12:18.
K) Pelo que o incumprimento do plano de reinserção social não pode ser culposamente imputável à Recorrida, na medida em que nem sequer lhe foi dada oportunidade de cumprir.
L) Também o incumprimento do pagamento da indemnização global de 41.179,75 € não pode ser imputável à Recorrida dada à sua situação económica, na medida em que não contribuiu ou agudizou tal situação
M) A situação económica da Recorrida mudou drasticamente a partir de 2017, que passou a estar desempregada e sem rendimentos para suportar as suas despesas.
N) Em 2021 ainda se encontrava desempregada e a depender financeiramente da sua filha e irmã, não cabendo a estas, cumprir com tal obrigação, contrariamente ao que a Assistente pretende fazer valer (cfr. 30.º, n.º 3 CRP).
O) Perante estes factos, o tribunal podia (e devia!) ter ajustado a condição ao montante que a condenada poderia, efetivamente, pagar, o que não fez.
P) As condições económicas da Recorrida durante o período de suspensão da pena de prisão não foram as mais favoráveis, sem que a Recorrida as provocasse, pois não dissipou bens e sempre tentou encontrar um emprego fixo (o que efetivamente conseguiu) e requereu reforma antecipada, de modo a auferir rendimentos certos que lhe permitissem solucionar a sua vida financeira.
Q) A Recorrida aufere a quantia de € 400,00 mensais, exercendo funções de serviço doméstico, vivendo na residência onde presta serviços, conforme confirmado pela própria em sede de audição em 13.05.2024.
R) Com estes rendimentos, cumprir com qualquer tipo de plano de pagamentos –ainda que de € 100,00 mensais – mostra-se inexequível para a Recorrida.
S) Não pode a Assistente, aqui Recorrente, concluir que a Recorrida poderia, simplesmente, arranjar novo trabalho ou até que a Recorrida aufere um salário equivalente a 1.150,00 € mensais, resultando de meras “suposições”, que não valem como meio de prova.
T) Mesmo equacionando a possibilidade de a Recorrida ter pago € 100,00 mensais, ou até € 400,00 mensais (“adquirindo apenas café com leite, pão com manteiga e queijo ralado” como afirma a assistente) desde setembro de 2022 até Março de 2024, nunca teria conseguido pagar a indemnização, pelo que estaria sempre votada ao seu incumprimento.
U) Aliás, se nem um executado tem o seu salário penhorado quando este é de valor igual a um salário mínimo nacional, exigir à Recorrida dispor de todos os rendimentos que tem atentaria contra o princípio da dignidade humana.
V) É irrelevante nesta sede saber o destino que a Recorrida deu à quantia de € 38.630,00 pois o que se pretendeu foi compensar a vítima por algo que, como se sabe, já não existe, tendo sido consumido pela prática do crime.
W) É, porém, relevante é saber se durante o período da suspensão a mesma possui capacidades económicas para proceder ao pagamento da indemnização à vítima o que, como se viu, não tem.
X) De toda a prova produzida, seja antes de 13.05.2024, seja após essa data, não se verificam as circunstâncias de que dependa a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, pelo contrário, só se pode fazer um juízo de prognose positivo relativamente à conduta e inserção social da Recorrida, pelo que a decisão proferida em 1.ª instância se deverá manter na íntegra.
Termos em que nestes e nos melhores de direito, os quais V.as Ex.as doutamente suprirão, deve o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão proferida pelo Tribunal a quo, com todos os efeitos legais, quanto à aqui Recorrida.”
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-» Neste Tribunal, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta, aderindo aos fundamentos aduzidos nos recursos interpostos - o do Ministério Público e o do assistente -emitiu parecer no sentido de que os recursos devem ser julgados procedentes.
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Cumprido que foi o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP, não foi dada resposta.
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Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II – questões a decidir.
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, págs. 89 e 113-114)
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada, a questão a examinar e decidir prende-se com saber se uma pena de prisão suspensa na sua execução já extinta, apesar de não entrar no cúmulo jurídico, deve funcionar como marco relevante para tal efeito.
III – Com relevo para a questão em apreciação importa salientar alguma da tramitação processual levada a cabo (necessária à compreensão da mesma).
A) A arguida AA foi condenada nos autos, por decisão transitada em julgado em 25.03.2019 (refª 90993462), pela prática de um crime de burla informática, p. e p. pelo artigo 221º, nº 1 e nº 5, alínea b) do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova e, ainda, à condição de pagar à ofendida BB a quantia total de € 41.179,75, devendo documentar nos autos, ao fim do primeiro ano após o trânsito, o pagamento de € 8.235,95 e, no final dos anos seguintes, a mesma quantia (cfr. refª 88408938 e refª 8481503).
B) O plano da DGRSP data de 16/8/2019 e foi judicialmente homologado, constando de fls. 1568
C) Por requerimento de fls. 1631, datado de 22/12/2021, o assistente veio informar os autos de que, decorrido que foi um ano após o trânsito em julgado da sentença, a arguida não procedeu ao pagamento de qualquer quantia, nem a BB, nem a oherdeiro DD nem os contactou para o efeito.
D) A arguida foi notificada para se pronunciar.
E) Foi junto aos autos relatório da DGRSP, datado de março de 2021, onde é mecionado que a arguida tinha problemas de saúde e que por isso mão trabalhava e requereu a reforma, estando a ser economicamente apoiada por familiares e não podendo por isso proceder ao pagamento da indemnização.
F) Por despacho de 12/3/2021, o Tribunal solicitou a requisiçã e junção aos autos de pesquisa de registo automóvel da arguida e informação sobre situação profissional e financeira da mesma junto da Segurança Social.
Solicitou ainda e à AT o envio da última declaração de rendimentos da arguida e ao OPC competente que apure e informe da existência de bens ou rendimentos por banda da arguida.
Solicitou e foi junto CRC atualizado.
G) Por ofício de 24/3/2021, a DGRSP informou que a arguida não compareceu nas entrevistas agendadas, não responde a chamadas telefónicas.
H) O OPC informou, a 25/3/2021 que a arguida se ausentou da morada constante dos autos e tem o telefone desligado
I) O Tribunal notificou a Ilustre advogada da arguida para que este indicasse a atual morada da arguida, tendo esta dito não a conhecer – cfr- fls. 1690
J) Por ofício de 25/5/2021, a DGRSP informou que a arguida não compareceu na entrevista para a qual foi convocada nem responde a chamadas telefónicas
K) O M.º P.º promoveu, a 1/6/2021, que “o Tribunal dirija à arguida uma advertência solene e que solicite à DGRSP a introdução de exigências acrescidas no plano de reinserção, advertindo-se a arguida que o seu incumprimento determinará a revogação da suspensão da execução da pena e o consequente cumprimento de cinco anos de prisão.”
L) A 2/8/2021, o OPC informou que continua a desconhecer o paradeiro da arguida e que desconhece o património desta.
M) A 10/1/2023, a PSP informou novamente que continua a desconhecer o paradeiro da arguida e a 13/2/2023, a GNR prestou idêntica informação
N) A 29/3/2023, a DGRSP informou que a arguida não voltou a contactar a equipe
O) Na mesma data, a GNR jutou aos autos o comprovativo da notificação da arguida para, em dez dias, se pronunciar sobre o requerimento do assistente no sentido da revigação da suspensão da pena por incumprimento dos deveres em que foi condenada e para se apresentar na DGRSP e para juntar prova da ausência de rendimentos e da doença de que padece.
A arguida nada disse e não se apresentou junto da DGRSP.
P) O M.º P.º promoveu, a 11/4/2023, no sentido de que arguida violou culposamente e de forma grosseira as condições da suspensão da execução da pena de prisão e de que deve ser “revogada a suspensão da execução da pena e determinado o cumprimento da pena de 5 anos de prisão, nos termos do artigo 56.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do Código Penal”.
Q) A arguida foi notificada da promoção por via postal simples e por OPC para se pronunciar e foi designada data para audição da condenada, na presença do Técnico responsável pelo acompanhamento do regime de prova, nos termo do imposto pelo artigo 495º, nº 2 do CPP.
R) A arguida foi ouvida a 12/6/2023 e declarou que não conseguiu pagar a indemnização por não ter rendimentos.
Presta cuidados a um senhor idoso desde agosto de 2022 e recebe €:400,00 por mês, acrescidos de comida e alojamento. Utiliza o dinheiro para comprar comida de que gosta e calçado.
De abril de 2022 até agosto de 2022 recebeu o RSI e, antes disso, trabalhou de forma irregular como empregada de limpeza.
Declarou que não pagou a indemnização porque não tem condições económicas para pagar e porque não cometeu o crime pelo qual foi condenada e porque uma senhora cujo nome desconhece foi a casa dela lhe disse em 2021 que “os relatórios eram falsos” e que “o processo tinha caído”.
Relativamente à notificação que a polícia lhe entregou, não respondeu à mesma porque achou que “o documento era falso”.
Manifesta vontade de pagar a indemnização, entendendo que tem condições financeiras de pagar €:100,00 por mês ao assistente durante cinco anos.
S) A 21/6/2023, o MP reiterou a promoção no sentido da revogação da suspensão da pena de prisão.
T) A arguida, ouvida, pronunciou-se no sentido de lhe ser dada a derradeira oportunidade de proceder ao pagamento da quantia de €:100,00 por mês.
U) Por despacho de 5/7/2023, foi proferida a seguinte decisão:
“Por tudo quanto fica exposto, e por se considerar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas, uma vez que a arguida tem incumprido culposa e repetidamente o plano individual de readaptação que lhe foi traçado, assim como a condição imposta para a suspensão, reunindo condições para o cumprimento de ambos, e sem que altere a sua conduta, decide-se revogar a suspensão da execução da pena aplicada e, em consequência, determinar o cumprimento, pela arguida AA, da pena de 5 (cinco) anos de prisão a que foi condenada nos autos.”
V) Foi interposto recurso de tal despacho, na sequência do qual foi proferido Acórdão por esta Relação, datado de 13/12/2023, que decidiu:~
“conceder parcial provimento ao recurso intentado pelo arguido e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que espelhe o que se deixa exarado no ponto 2.5. deste acórdão.”
W) Em obediência ao referido Acórdão, e a impulso do MP , foram notificados centros médicos, hospitalares e de saúde a fim de saber qual o acompanhamento médico de que a arguida beneficia e ainda a Segurança social e OPC da área de residência da arguida para aferir das suas condições económico-financeiras, tendo estes repondidos nos termos que constam da refª 10541876 e da refª 10593564.
X) A arguida, notificada que foi, a impulso do MP, para prestar informações respeitantes às suas condições económicas e de saúde e juntar prova do invocado, respondeu a 5/2/2024, dizendo que não aufere rendimentos declarados nem possui bens imóveis nem bens móveis sujeitos a registo, que procedeu ao pedido de reforma antecipada, encontrando-se a aguardar o desfecho do mesmo e que mantém o mesmo trabalho e vencimento, de €:400,00 por mês, acrescidos de comida e alojamento.
Alegou ainda necessitar de acompanhamento psiquiatrico.
Juntou documentos – fls 1852 e ss. E 1872 e ss.
Y) O prazo da suspensão da execução da pena de prisão ocorreu em 25 de Março de 2024.
Z) A arguida não procedeu ao pagamento de qualquer quantia no prazo da suspensão.
AA) A arguida foi ouvida nos termos do artigo 495.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, no dia 13/5/2024, tendo a mesma esclarecido que a sua situação se mantém a mesma, em relação ao já por si descrito em momento anterior, isto é:
- aufere desde agosto de 2022 a quantia de 400,00€ mensais, pela prestação de serviços como cuidadora de um idoso;
- no âmbito dessa prestação de serviços é- lhe disponibilizada morada (sem pagamento de renda) e as refeições;
- não fez ainda qualquer entrega de quantia em dinheiro à assistente, porque ficou a aguardar essa indicação por parte do Tribunal, não sabendo onde pagar.
BB) A 18/12/2023, o MP promoveu no sentido da revogação da suspensão da execução da pena de prisão e consequente cumprimento da pena de 5 anos de de prisão.
CC) Em 19/4/2024 foi proferido despacho judicial com o seguinte teor:
“A arguida AA foi condenada nos autos, por decisão transitada em julgado em 25.03.2019 (refª 90993462), pela prática de um crime de burla informática, p. e p. pelo artigo 221º, nº 1 e nº 5, alínea b) do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova e, ainda, à condição de pagar à ofendida BB a quantia total de € 41.179,75, devendo documentar nos autos, ao fim do primeiro ano após o trânsito, o pagamento de € 8.235,95 e, no final dos anos seguintes, a mesma quantia (cfr. refª 88408938 e refª 8481503).
BB faleceu a 01.12.2019, habilitando-se como herdeiro da mesma nos autos DD, seu filho – cfr. refª 95743113 do Apenso A.
No decurso do período da suspensão da execução da pena, e face ao incumprimento total, pela arguida, da condição imposta (refª 7337781), foi esta notificada para justificar nos autos o incumprimento, tendo alegado encontrar-se gravemente doente, sem juntar qualquer documento comprovativo do alegado (refª 7390878).
Pela DGRSP foi junto relatório dando conta de problemas de saúde da arguida (não concretizados ou comprovados) e do facto de esta não dispor de condições para pagar a quantia em dívida – cfr. refª 7513250.
Das pesquisas efetuadas nos autos, decorre a ausência de rendimentos e bens declarados por banda da arguida até 12.04.2021 (cfr. refª 96449475).
Do último relatório junto pela DGRSP (refª 7725651) decorre que a arguida, até 25.05.2021, deixou de comparecer junto dos referidos serviços e de responder às convocatórias efetuadas, sem que tenha apresentado qualquer justificação para o efeito.
Agendada data para audição da arguida, foi a mesma reagendada por duas vezes, face à dificuldade de notificação e de comparência da mesma, tendo-se procedido à sua audição no passado dia 12.06.2023, cfr. refª 104087787, juntamente com o Técnico responsável pelo acompanhamento do regime de prova homologado nos autos.
Promove o Ministério Público a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada à arguida nos autos, nos termos e pelos fundamentos constantes da douta promoção de refª 104127289.
Notificada para se pronunciar sobre a referida promoção, a arguida nada disse.
Aderiu o habilitado DD ao promovido pelo Ministério Público, pugnando pela revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada (refª 9893763).
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Conforme decorre do supra exposto, procedeu o Tribunal, a 12 de Junho de 2023, à audição da arguida, na presença do Técnico da DGRSP que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão (nos termos dos artigos 56º, nº 1 do CP e 495º, nº 2 do CPP) – cfr. refª 104087787.
Na diligência em causa, a arguida não apresentou justificação para o incumprimento do regime de prova delineado ou para a falta de resposta às convocatórias da DGRSP, assim como não logrou justificar a falta de pagamento, ainda que parcial, das quantias fixadas, antes referindo encontrar-se a trabalhar desde Agosto/Setembro de 2022, por conta de outrem, auferindo € 400,00 mensais de vencimento e tendo casa e comida suportadas pela sua entidade patronal. Mais referiu ter trabalhado em limpezas, no ano de 2021, e que, desde 2019 até agora, trabalhou sempre (desconhecendo-se os concretos rendimentos auferidos e não o tendo feito de forma declarada).
Instada a justificar a falta de pagamento das quantias a que foi condenada, referiu não ter condições para pagar e porque ‘não tirou nada a esta Senhora’.
Propôs-se a arguida, no final da sua audição, a pagar € 100,00 mensais, durante cinco anos, por conta do montante em dívida, referindo dispor de condições para o efeito.
Pelo Técnico da DGRSP responsável pelo acompanhamento da pena aplicada foi confirmada a manutenção do incumprimento injustificado por banda da arguida do plano delineado e da ausência de qualquer contacto com a mesma.
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Decidiu o Tribunal revogar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada à arguida, por despacho proferido nos autos a 05.07.2023 (refª 104360751).
Interposto recurso dessa decisão, foi pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra decidido, por acórdão proferido nos autos apensos a 13.12.2023, que inexistia prova segura de infração grosseira e repetida do dever indemnizatório, por banda da arguida, determinando-se que o Tribunal recorrido produza prova suplementar, com nova audição da arguida, que permita decidir:
• Pela aplicação do artigo 55º do Código Penal, ou,
• Pela revogação da execução da pena de prisão, explicitando, devida e fundamentadamente as razões:
o Pelas quais não se bastará pela aplicação do artigo 55º;
o Pelas quais entende que as condições económicas da arguida ainda assim lhe permitiriam ter pago a indemnização à assistente no prazo dado pelo tribunal, e
o Pelas quais entende que é grosseira a violação pela arguida das regras contidas no seu plano de reinserção social.
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Os autos de recurso foram remetidos a este Tribunal, para cumprimento do determinado pelo Venerando Tribunal Superior, a 23.01.2024.
O prazo de suspensão da execução da pena aplicada à arguida nos autos terminou a 25.03.2024.
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No estrito cumprimento do determinado pelo Venerando Tribunal Superior, determinou-se que se oficiasse à Segurança Social e ao órgão de polícia criminal da área de residência da arguida, de molde a apurar a situação financeira atual da mesma, e determinou-se, ainda, a notificação da arguida para prestação de esclarecimentos nos autos e para junção de documentos comprovativos dos alegados problemas de saúde, assim como das suas condições financeiras atuais.
Dos elementos remetidos pela Segurança Social decorrem as contribuições e subsídios da arguida até ao ano de 2013 – refª 10541876.
Da informação do OPC decorre que a arguida reside na ..., sendo cuidadora de pessoa de 84 anos de idade, auferindo € 400,00 mensais – refª 10593564.
Não obstante a notificação efetuada, a arguida não juntou qualquer documento comprovativo dos problemas de saúde alegados ou da sua situação financeira atual.
Da audição da arguida, na presença do Técnico da DGRSP responsável pelo acompanhamento do regime de prova elaborado nos autos (refª 107215082) decorre que a DGRSP não estabeleceu qualquer contacto com a arguida.
Referiu a arguida, m sede de audição, que a sua situação financeira permanece igual à última audição ocorrida nos autos, e que, não obstante se tenha prontificado perante o Tribunal, a pagar € 100,00 mensais nos autos, para cumprimento da obrigação fixada, nada pagou, porquanto ficou a aguardar saber onde ia pagar e o envio de nota de liquidação. Referiu ainda encontrar-se a aguardar que lhe seja atribuída pensão de reforma, em valor que situa entre os € 300 e € 400 mensais.
Instada, em sede de audição, a juntar aos autos relatório médico que confirme os problemas psicológicos alegados (depressão), a arguida nada juntou.
Promoveu o Ministério Público a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada à arguida nos autos, no que foi secundado pelo habilitado (cfr. refª 107249258 e refª 10904373) e pugnou a arguida pela extinção da pena aplicada (cfr. refª 10895266).
Do CRC atual da arguida e da listagem de processos pendentes não decorre a existência de qualquer processo pendente ou de condenação sofrida pela mesma.
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Decorrido que se mostra o período de suspensão da execução da pena de prisão aplicada à arguida nos autos, cumpre decidir.
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O incumprimento das condições impostas na suspensão não conduz sempre, segundo a lei, às mesmas consequências, podendo o Tribunal escolher entre diversas medidas: fazer ao condenado uma solene advertência; exigir-lhe garantias de cumprimento dos deveres impostos; prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de 1 ano nem além do limite de 5 anos previsto na lei para a suspensão; ou revogar a suspensão de execução da prisão.
Nos termos do disposto no artigo 56º do Código Penal:
1. A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas”.
2. A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença (…).
Tal significa que a revogação não é automática e que não deverá ter lugar enquanto se não mostrarem esgotadas as possibilidades de ressocialização do agente.
Pressuposto material comum à verificação de qualquer destas consequências é que o incumprimento das condições da suspensão tenha ocorrido com culpa.
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No caso em apreço, decidiu o Venerando Tribunal Superior revogar o despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada à arguida nos autos, por entender ser prematuro concluir pela violação culposa das condições da suspensão, determinando se recolhessem novos elementos que permitissem alcançar tal conclusão e ainda apurar da aplicação do previsto no artigo 55º do Código Penal.
Entre 23.01.2024 e 25.03.2024 (término do período da suspensão), não se revelou possível a este Tribunal, não obstante a celeridade consignada nos autos, recolher os elementos necessários, proceder à audição da arguida, conceder o contraditório a todos os sujeitos processuais e proferir decisão transitada em julgado quanto ao (in)cumprimento por banda da arguida das condições da suspensão.
*
Findo que se mostra o período de suspensão da execução da pena de prisão aplicada, não é possível já a este Tribunal equacionar da possibilidade de realização à arguida de uma solene advertência, de exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão, de impor novos deveres ou regras de conduta ou de prorrogar o período de suspensão (atenta a medida da pena aplicada).
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Cumpre, então, apurar se se verifica o incumprimento culposo, pela arguida, do regime da suspensão.
Os elementos recolhidos nos autos nada acrescentam quanto à situação conhecida da arguida no momento de prolação do despacho revogado (que decidiu pela revogação da suspensão da execução da pena aplicada à mesma nos autos).
Da audição da arguida, na presença do Técnico da DGRSP, não resultou situação diferente da existente à data do despacho revogado, antes decorrendo que a arguida mantém a falta de contacto com a DGRSP.
A arguida não pagou, sequer parcialmente, a quantia imposta como condição da suspensão.
Dos autos não resulta que a arguida disponha atualmente de meios para proceder ao pagamento do montante em falta – de € 41.179,75.
*
Assim, e perante a dúvida suscitada pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra acerca do incumprimento culposo por banda da arguida, dúvida essa que este Tribunal, não obstante o integral cumprimento do determinado, não conseguiu ultrapassar, não nos resta que não considerar não culposo o incumprimento, pela arguida, do regime da suspensão da execução da pena aplicada e da condição imposta – o pagamento à ofendida do montante de € 41.179,75.
Decorrido que se mostra o período de suspensão, e atenta a pena de 5 anos de prisão aplicada, já não é possível ao Tribunal dirigir à arguida uma solene advertência, alterar os deveres impostos ou prorrogar o período de suspensão.
O Venerando Tribunal da Relação de Coimbra entendeu que os elementos recolhidos não permitiam a este Tribunal concluir fundamentadamente pelo incumprimento culposo por banda da arguida da suspensão da execução da pena aplicada nos autos.
Os elementos recolhidos, em cumprimento do superiormente determinado, não permitem contrariar tal conclusão, uma vez que coincidem com os elementos anteriormente recolhidos, nada acrescentando aos mesmos.
Em face do exposto, no seguimento do entendimento sufragado pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, e não resultando suficientemente demonstrado nos autos o incumprimento culposo, por banda da arguida, da condição imposta para a suspensão da execução da pena de prisão aplicada nos autos, nem o incumprimento culposo do regime de prova delineado nos mesmos, impõe-se declarar extinta, pelo cumprimento, a pena de prisão aplicada à arguida nos autos, o que se decide.
Notifique.
Após trânsito, remeta boletim ao registo.
Oportunamente, arquive.”
IV - Apreciando o mérito do recurso:
A suspensão da execução da pena de prisão, prevista no artigo 50º do Código Penal tem como pressuposto material de aplicação que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja, que conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente.
Subjacente à suspensão da execução da pena de prisão está sempre “a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda” (Jorge de Figueiredo Dias, “As Consequências Jurídicas do Crime”, Notícias Editorial, 1993, 344).
E o Tribunal da condenação, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, que foi o que aconteceu no caso em apreço.
Esses deveres ou regras de conduta podem ser modificados até ao termo do período de suspensão sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tenha tido conhecimento, o que significa que o conteúdo da pena de suspensão da execução da prisão está sujeito, dentro dos limites legais, mesmo independentemente de incumprimento do condenado, a uma cláusula “rebus sic stantibus” (artigos 51.º, n.º 3, 52.º, n.º 3 e 54.º, n.º2, do C. P).
Verificando-se uma situação de incumprimento das condições da suspensão, haverá que distinguir duas situações: uma primeira, quando no decurso do período de suspensão, o condenado, com culpa, deixa de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta, ou não corresponde ao plano de readaptação, podendo o tribunal optar pela aplicação de uma das medidas previstas no artigo 55.º do CP (a saber: fazer uma solene advertência; exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão; impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de readaptação; prorrogar o período de suspensão) e outra segunda, quando no decurso da suspensão, o condenado, de forma grosseira ou repetida, viola os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de readaptação, ou comete crime pelo qual venha a ser condenado e assim revele que as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam, por intermédio desta, ser alcançadas, a suspensão é revogada (artigo 56.º, n.º 1, do C. Penal).
A revogação da suspensão só se impõe, nos termos da al. a) do nº 1 do art. 56º do Código Penal, quando o condenado infrinja grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de reinserção e cumulativamente revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas, infirmando-se definitivamente o juízo de prognose sobre o seu comportamento futuro.
As causas de revogação da suspensão da execução da pena de prisão “não devem, de facto, ser entendidas com um critério formalista, mas antes como demonstrativas das falhas do condenado no decurso do período da suspensão. O arguido deve ter demonstrado com o seu comportamento que não se cumpriram as expectativas que motivaram a concessão da suspensão da pena”– cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, editora: Rei dos Livros em anotação ao art.º 56º
Impõe-se, por isso, uma especial exigência na indagação e apreciação de todos os factos e circunstâncias susceptíveis de relevar na aferição da possibilidade de manutenção ou não do juízo de prognose favorável relativo ao comportamento que o condenado irá de futuro adoptar.
Ou seja, mesmo em caso de infracção grosseira e repetida aos deveres e às regras de conduta (podendo já configurar-se a previsão do art. 56º, nº 1, al. a), do CP), há que ponderar sempre, e previamente, a viabilidade da manutenção da ressocialização em liberdade.
A este respeito, lembra o Ac. da RE de 08-03-2018, Processo: 2207/13.1GBABF-A.E, in www.dgsi.pt:
“Os princípios da intervenção mínima do direito penal, da proporcionalidade e da necessidade da pena cobrem todo o iter aplicativo, todo o processo de determinação da sanção, que é uma actividade judicialmente vinculada, na expressão de Figueiredo Dias e de Anabela Rodrigues. Esta vinculação perdura até à extinção da sanção aplicada, no processo, ao condenado. Assim, a revogação da suspensão da prisão é a consequência máxima para o incumprimento culposo, e este sentido de ultima ratio retira-se também da evolução histórica do preceito legal em causa.”
Paulo Pinto de Albuquerque n Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, págs. 201 e 202, esclarece que a infração grosseira “não tem de ser dolosa, sendo bastante a infração que resulta de uma atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade (…) A colocação intencional do condenado em situação de incapacidade de cumprir as condições da suspensão constitui violação grosseira dessas condições” enquanto a infração repetida “é aquela que resulta de uma atitude de descuido e leviandade prolongada no tempo, isto é, que não se esgota num acto isolado da vida do condenado, mas revela uma postura de menosprezo pelas limitações resultantes da sentença condenatória”.
Ainda segundo a mesmo autor: “O critério material para decidir sobre a revogação da suspensão é exclusivamente preventivo, isto é, o tribunal deve ponderar se as finalidades preventivas que sustentaram a decisão de suspensão ainda podem ser alcançadas com a manutenção da mesma ou estão irremediavelmente prejudicadas em virtude da conduta posterior do condenado. Com efeito, a condição prevista na parte final da al. b) do n.º 1 (”e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas”) refere-se a ambas as causas de revogação da suspensão previstas nas duas alíneas”
Na jurisprudência, é comumente aceite que há uma violação grosseira quando o arguido tem uma actuação indesculpável, em que o cidadão comum não incorre, não merecendo ser tolerada (neste sentido, Ac. da RG de 19.1.2009, proferido no processo nº 2555/08.1 e de 4.5.2009, proferido no processo nº 2625/05.9PBBRG-A.G1 e Ac. da RP de 9.12.2004, proferido no processo nº 0414646 e da RC de 06-03-2013, Processo: 15/07.8GCGRD.C2, todos in www.dgsi.pt)
Naturalmente que a formulação deste juízo apenas é possível após a recolha dos elementos indispensáveis para o efeito, sem deixar de ter em consideração, por um lado, que a prisão constitui sempre a ultima ratio e, por outro, que nessa avaliação não podem ser postergados os direitos constitucionais do contraditório e da audiência do arguido consagrados no art. 32º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
Na doutrina, André Lamas Leite, in “A suspensão da Execução da Pena Privativa de Liberdade sob Pretexto da Revisão de 2007 do Código Penal, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol. II, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra Editora, pág. 620 e 621, defende que:
"…, a exigência constitucional do exercício do contraditório (art. 32º, nº 2, in fine) e as previsões normativas dos artigos 61º, nº 1, al. b), e 495, nº 2, ambos do CPP, só admitem a conclusão de que é obrigatório que o tribunal, antes de determinar a revogação da suspensão de execução da pena privativa de liberdade, envide todos os esforços necessários à audição do condenado."
A culpa do arguido não se pode evidentemente presumir. Tem de resultar de factos ou elementos concretos.
Ora, no caso dos autos, é irrefutável o incumprimento pela arguida do dever imposto. A condenada sabia perfeitamente que o cumprimento da pena de prisão dependia do pagamento de uma indemnização ao lesado, mas nunca manifestou interesse em pagar. E teve rendimentos suficientes para, pelo menos, pagar parcialmente a indemnização.
Quanto à causa do incumprimento, a arguida indicou a insuficiência económica e o desconhecimento do local onde podia pagar.
Mas a verdade é que se constata que a arguida, apesar de trabalhar, pelo menos desde agosto de 2022, não pagou ao longo dos 5 anos da suspensão da pena, um único cêntimo ao assistente.
Mais: não obstante tenha sido ouvida pelo Tribunal sobre os motivos desse incumprimento em 12/6/2023, tenha nesta data dito que pretendia pagar €:100,00 por mês ao assistente e “eu podia pagar esta quantia”, tenha sido notificada do despacho judicial que revogou a suspensão (despacho este posteriormente revogado por Acórdão do Tribunal da Relação), nem assim a arguida se deixou intimidar e aproveitou para proceder ao pagamento de um euro que fosse ao lesado.
E tinha meios económicos para o fazer.
Assim sendo, a recorrente infringiu grosseiramente, culposamente (com grau qualificado) a condição da suspensão da execução da pena.
A recorrente não interiorizou a obrigação de pagar a indemnização. E teve muito anos para o demonstrar. E teve rendimentos suficientes para, pelo menos, pagar parcialmente a indemnização.
Da conduta demonstrada resulta que agiu de modo reprovável, com uma imprevidência particularmente elevada.
E se é certo que quando ouvida pela primeira vez, verbalizou vontade de amortizar o valor devido à assistente, o que, conjugado com a sua situação económico-financeira, não permitiu concluir ntes do término do prazo desta suspensão, que o incumprimento da condição da suspensão assume contornos graves de molde a poder ser qualificado como infracção grosseira do dever imposto, neste momento, continuando a arguida sem proceder ao pagamento de um único cêntimo, apesar de ter condições financeiras para o fazer, a situação é distinta e permite-nos afirmar que a arguida não pagou um qualquer cêntimo da indemnização porque manifestamente não quis, revelando indiferença e distanciamento perante o seu dever.
Trata-se de uma atitude particularmente censurável, de persistente descuido, leviandade e desprezo pela condição de suspensão de execução da pena, que não pode deixar de ser qualificada de grosseira e de repetida.
E, assim, a arguida infirmou o juízo de prognose favorável de que beneficiou aquando da condenação, frustrando as finalidades de ressocialização que estiveram na base da suspensão da execução.
Houve claramente da parte da condenada, ao longo de vários anos, uma vontade consciente e intencional de não cumprir o dever que lhe foi imposto, demonstrando não estar minimamente empenhado em proceder ao pagamento a que estava obrigada e, dessa forma, promover a sua ressocialização.
Em suma: a arguida agiu com culpa e demonstrou uma atitude deficitária ao nível da interiorização do desvalor da sua conduta e incapacidade de alterar de forma consistente as suas opções de vida e de passar a pautar a sua vida pela conformidade ao direito, manifestamente desaproveitando a oportunidade que lhe tinha ido concedida com a suspensão da execução da pena de prisão.
(em situação análoga ao dos autos, cfr. Ac RL de 24-09-2024, Proc.º:404/09.3GCALM.L2-5 e ainda o Ac da RP de 21/06/2023, Proc.º 606/10.0GBPRD-A.P1, este citado no douto parecer que antecede, ambos acessíveis em www.dgsi-pt)
Estando assim demonstrado que as finalidades de ressocialização que estiveram na base da decisão de suspender a execução da pena não puderam ser alcançadas, mostrando-se inequivocamente frustradas, há que julgar procedentes os recursos interpostos.
*
Uma última observação se impõe ainda, no sentido de que a presente decisão não viola o caso julgado formado pelo Acórdão desta Relação proferido no apenso B.
O caso julgado é um efeito processual da sentença transitada em julgado, que, por razões de segurança jurídica, impede que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material) e constitui um efeito negativo do princípio ne bis in idem, consagrado no art. 29°, n° 5, da Constituição da República Portuguesa.
Caso julgado significa a existência de decisão imutável e irrevogável; significa imutabilidade do mandado que nasce da sentença.
Escreve-se no Acórdão do STJ de 20.10.2010, Processo: 3554/02.3TDLSB.S2, in www.dgsi.pt:
“ (…) III - Com os conceitos de caso julgado formal e material descrevem-se os diferentes efeitos da sentença. Com o conceito de caso julgado formal refere-se a inimpugnabilidade de uma decisão no âmbito do mesmo processo (efeito conclusivo) e converge com o efeito da exequibilidade da sentença (efeito executivo). Por seu turno, o caso julgado material tem por efeito que o objecto da decisão não possa ser objecto de outro procedimento. O direito de perseguir criminalmente o facto ilícito está esgotado.
IV - No que concerne à extensão do caso julgado pode distinguir-se entre caso julgado em sentido absoluto e relativo: no primeiro caso a decisão não pode ser impugnada em nenhuma das suas partes. O caso julgado relativo é objectivamente relativo quando só uma parte da decisão se fixou e será subjectivamente relativo quando só pode ser impugnada por um dos sujeitos processuais.
V - Há caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicati). O caso julgado formal respeita, assim, a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito.
VI - Em processo penal o caso julgado formal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade – a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual ou que defina nos termos da lei o objecto do processo –, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, supondo a inalterabilidade sic stantibus aos pressupostos de conformação material da decisão. No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta a relação processual.
VII - A decisão definitiva sobre a materialidade de facto que consta da anterior decisão do STJ constitui caso julgado formal nos sobreditos termos impedindo qualquer nova apreciação. Está precludida qualquer apreciação da mesma matéria que se impõe agora como definitiva”.
É, pois, a autoridade do caso julgado formal que torna as decisões judiciais transitadas em julgado, proferidas ao longo do processo, insuscetíveis de serem modificadas na mesma instância.
Ora, na situação presente o caso julgado abrangeu apenas a decisão aí recorrida, de revogação da pena de prisão num momento em que ainda não havia decorrido o prazo de suspensão da execução da pena de prisão e sem que tivessem sido realizadas diligências probatórias que este Tribunal da Relação julgou que eram importantes para que o Tribunal a quo, no momento em que tomou a decisão de que se recorreu, estivesse habilitado a tomar a decisão que lhe era requerida.
Escreve-se no referido Acórdão:
“Aqui chegados, não podemos, assim, deixar de considerar prematura esta decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão de 5 anos, assente até que o prazo de suspensão só expira em 25 de Março do próximo ano (2024).
Temos como certo que a imposição de deveres ao condenado, como condição de suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 51º do CP, incluindo o dever de pagar indemnização, encontra-se subordinada a um princípio de razoabilidade, não devendo ser fixadas, nessa sede, obrigações que ao condenado seja, previsivelmente, impossível cumprir;
Mas também o é que a apreciação sobre a falta de cumprimento dos deveres impostos em sentença como condição da suspensão da execução da pena deve ser cuidada e criteriosa, de modo que apenas uma falta grosseira determina a revogação, ou seja, o condenado apenas verá a suspensão revogada por falta de pagamento da indemnização, se tal falta de pagamento lhe for de todo imputável;
Como se decidiu no acórdão da Relação de Évora, datado de 7/3/2017 (Pº 68/04.0IDSTR.E1):
«A análise destas normas legais demonstra que só se justifica alterar ou revogar a suspensão da execução da pena, por violação dos deveres ou das regras de conduta impostas na sentença, quando houver culpa no incumprimento da obrigação.
Sendo que, no caso de revogação, essa mesma culpa tem de ser grosseira.
Sobre o conceito de culpa, Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, pág. 316, adianta que a culpa contém um juízo de censura ético-jurídica dirigida ao agente por ter actuado de determinada forma, quando podia e devia ter agido de modo diverso.
O condenado age com culpa ao violar as condições que foram impostas à suspensão da execução da pena, quando, fundamentalmente, ficar demonstrado: que tinha condições para as cumprir e não o fez, ou então, que se colocou voluntariamente na situação de não as poder cumprir.
O citado art. 56º, n.º 1 alínea a), do Código Penal, ao mencionar a infracção grosseira, pretende equipará-la a um comportamento injustificável ou imperdoável, pelo comum dos cidadãos.
A mesma está ligada à violação do dever ou regra de conduta concretamente imposto aos condenados.
Contudo, como já referido, “a al. a) do nº 1 do art. 51º do CP claramente consagra um «princípio da possibilidade» - este, sim, de cariz económico-material – na medida em que permite ao Tribunal cingir o condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da parte da indemnização, que considere ser possível ao condenado satisfazer».
Noutro aresto do Tribunal da Relação do Porto, datado de 7/7/2011 (Pº 13626/13.3TDPRT.P1), foi decidido o seguinte:
«I- A imposição de execução da pena de prisão, quer ab initio, quer em decorrência da revogação da pena substitutiva, corresponde à ultima ratio do sistema punitivo, isto é, tem lugar somente quando arredada em absoluto a possibilidade de sancionar o comportamento delituoso e obter a satisfação das finalidades preventivas da pena mediante a fixação e cumprimento de pena não privativa da liberdade (cfr. artigos 40.º, n.º 1; 45.º, n.º 1; 70.º; 56.º, n.º 1, do Código Penal).
II - A simples omissão de satisfação da condição imposta, no prazo fixado, não constitui, por si só, razão determinante da revogação da suspensão, mais exige a lei que se trate de uma violação grosseira dos deveres ou condições estabelecidos na condenação.
III - No concernente ao preenchimento do conceito legal de infração grosseira dos deveres ou obrigações, de acordo com o entendimento uniforme da jurisprudência, considera-se que nele se abrangem as situações em que o condenado assume atitude indesculpável ou intolerável quanto ao dever imposto, desinteressando-se, em absoluto, de proceder à respetiva satisfação, apesar de dispor de capacidade financeira para o efeito, ou de ter-se voluntariamente colocado na situação de não poder pagar».
Note-se até o teor de anteriores promoções do MP nos autos (datadas de 9/3/2021 e 1/6/2021), nas quais não se entendeu esta violação como culposa e grosseira.
Ora, aqui chegados e olhando para a situação dos nossos autos, visualizamos muita incúria e desinteresse desta mulher pelo cumprimento dos seus deveres.
Contudo, o seu comportamento global, apesar de não demonstrar total empenhamento e disposição para cumprir a condição imposta, revela ainda vontade de amortizar o valor devido à assistente, o que, conjugado com a sua situação económico-financeira, não permite concluir, desde já, e antes do término do prazo desta suspensão, que o incumprimento da condição da suspensão assume contornos graves de molde a poder ser qualificado como infracção grosseira do dever imposto.
De facto, entendemos que não foi produzida a prova relevante para se chegar à conclusão de que as finalidades da suspensão – da pena inicial – não foram alcançadas pela arguida.
Por isso, entendemos revogar a decisão recorrida por não haver ainda prova segura da infracção grosseira e repetida do dever indemnizatório que sobre si pendia, a justificar, JÁ, a entrada desta mulher numa prisão para cumprir esta pena, devendo o tribunal recorrido agora, baixados os autos, produzir prova suplementar a fim de, após nova audição da arguida, posteriormente, decidir:
• ou pela aplicação do artigo 55º do CP (admoestando ou alterando alguma cláusula);
• ou, em última instância, pela revogação da execução da pena de prisão (artigo 56º do CP), explicitando devida e fundamentadamente as razões:
o pelas quais não se bastará pela aplicação do artigo 55º;
o pelas quais entende que as condições económicas da arguida ainda assim lhe permitiriam ter pago a indemnização em causa à assistente no prazo dado pelo tribunal e
o pelas quais entende que é grosseira a violação pela arguida das regras contidas no seu plano de reinserção social (cfr. parte final do nosso ponto 2.3.).
É uma pena privativa de liberdade que está em causa e todo o esforço derradeiro para alguém conseguir escapar a esse capital castigo deve ser incentivado.
Desta forma, previamente, deve o tribunal recorrido diligenciar no sentido de recolher factos que lhe permitam concluir, conforme exige a al. b), do nº 1, do art. 56º do CP, que com a condenação sofrida as finalidades que estavam na base da suspensão da execução da pena aplicada à arguida já não podem ser alcançadas (cfr. nº 2 do artigo 495º do CPP) .
Ou seja: terá o tribunal recorrido que diligenciar pela obtenção de elementos sobre a situação real da arguida, em termos económicos, para, obtidos estes, decidir pela eventual aplicação do artigo 55º do CP ou pela revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada nos autos, caso se demonstre que as finalidades que a determinaram não poderão mais ser alcançadas por esta via.
E deve agir de forma célere de forma a ainda aproveitar o tempo que tem para poder ainda agir [até 25.3.2024, por força do artigo 55º, nº 1, alínea d) do CP].
2.6. Desta forma, o recurso procederá na medida em que se revogará o despacho recorrido (não se decidindo, contudo, a favor da tese da arguida segundo a qual há já provas da sua insuficiência económica para pagar esta indemnização, aduzindo-se ainda que não decidiremos no sentido desejado de lhe ser dada a possibilidade de «proceder ao pagamento em prestações em montante que se venha a considerar como adequado»).
DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - desta Relação em conceder parcial provimento ao recurso intentado pelo arguido e, em consequência:
• revoga-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que espelhe o que se deixa exarado no ponto 2.5. deste acórdão.”
Ora, a decisão de que agora se recorre foi proferida num momento em que já havia decorrido o prazo da suspensão da execução da pena de prisão, em que foram ordenadas e realizadas novas diligências probatórias, em cumprimento do ordenado no referido Acórdão tendo nessa decisão sido ponderados novos factos.
Ou seja: embora a questão de direito em ambas as decisões seja a das consequências do incumprimento das condições da suspensão, a factualidade a ponderar é distinta em ambas as situações.
Deste modo, não há qualquer violação do caso julgado nem do Princípio da Estabilidade das Decisões Judiciais, decorrentes dos Princípios Constitucionais da confiança e da Segurança jurídica que, por sua vez, decorrem da consagração do Estado de Direito (cfr. art. 2.º da C.R.P.), que a arguida invocou na resposta ao recurso.
Por fim, este Tribunal em momento algum pretendeu que a condição da suspensão fosse cumprida por outro que não a arguida, não ocorrendo nenhuma violação do disposto no art.º 30º, n.º 3 da CRP.
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IV. Decisão:
Pelo exposto, acordam as juízas desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar procedentes os recursos interpostos pelo M.º P.º e pelo assistente, revogando a decisão recorrida e determinando a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, ao abrigo do disposto no art. 56º, n.º 1, al. a), do Código Penal e, em consequência, o cumprimento, pela arguida AA, da pena de 5 (cinco) anos de prisão a que foi condenada nos autos.
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Sem custas.
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Notifique.
Coimbra, 05/02/2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sara Reis Marques - Juíza Desembargadora Relatora)
Sandra Ferreira (Juíza Desembargadora Adjunta)
Maria da Conceição Miranda - Juíza Desembargadora Adjunta)