Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
45349/22.7YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: CONTRATO DE ATRIBUIÇÃO DE CARTÃO DE CRÉDITO
CONCEITO DE CONSUMIDOR
PERSI
Data do Acordão: 01/14/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - SÁTÃO - JUÍZO COMPETÊNCIA GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 2.º, 12.º DO DECRETO-LEI N.º 227/2012, DE 25 DE OUTUBRO.
ARTIGO 2º, N.º 1 DA LEI DEFESA DO CONSUMIDOR - LEI N.º 24/96, DE 31 DE JULHO
Sumário: 1. A Lei Defesa do Consumidor – Lei n.º 24/96, de 31 de julho – adere ao conceito estrito de consumidor, excluindo deste conceito os casos em que ocorre utilização do bem ou serviço para necessidades profissionais.

2. A parte que intervém num contrato de atribuição de cartão de crédito, não como adquirente dos serviços, mas como utilizador, não é consumidor.

3. Aplicando-se o regime do PERSI somente às situações de incumprimento dos contratos exarados no seu art.º 2, n.º 1, celebrados com consumidores, está afastada a sua aplicação ao simples utilizador do cartão de crédito.

Decisão Texto Integral: Relatora: Sílvia Pires

Adjuntos: Cristina Neves 

            Anabela Ferreira


Autora: Banco 1..., S. A.

Réus: A..., L.da
                    AA

                                                           *

Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A agora Autora requereu, em procedimento de injunção a notificação dos Réus para lhe pagarem a quantia de € 6.184,55, acrescida de juros vencidos no montante de € 588,95, vincendos calculados sobre o capital em divida, até integral pagamento e, ainda, no pagamento de € 40,00 a título de outras quantias e € 102 a título de taxa de justiça.
Para tanto alegou que celebrou com a Ré um contrato de cartão de crédito, pelo qual o Réu enquanto utilizador, se responsabilizou solidariamente, não tendo os RR. pago as quantias em dívida.

O Requerido deduziu oposição na qual se defendeu por exceção, alegando a ineptidão do requerimento injuntivo e, por impugnação, alegando não ser devedor de qualquer quantia à Autora, por não ter solicitado nenhum cartão de crédito nem se ter responsabilizado pelo pagamento do cartão de crédito mencionado no requerimento injuntivo, concluindo pela litigância de má-fé da Requerente, pedindo a condenação desta no pagamento de indemnização a seu favor e em multa.

Os autos foram remetidos à distribuição, tendo-se transmutado o procedimento de injunção em ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, nos termos do artigo16º do anexo da AECOP.

Por sentença proferida no Apenso A, foi julgada habilitada como adquirente a B..., S.A.R.L., a prosseguir na ação em substituição da Autora.

Por requerimento de 24.04.2024 a Autora reduziu o pedido para a quantia de € 6.084,55.

Veio a ser proferida decisão que decidiu:
 não se aplicam as normas de integração no PARI/PERSI previstas no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, já que esta não integra o conceito de consumidor, sendo que tal regime também não se aplica às pessoas singulares que garantam o cumprimento do contrato de crédito (vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.102023, no proc. 4984/18.4TG8OAZ-A.P1.S1).

Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide este Tribunal julgar a presente acção totalmente procedente, por provada, e em consequência condena-se os RR. A... LDA e AA a pagar à A. B..., S.A.R.L. a quantia de € 6.084,55, (seis mil e oitenta e quatro euros e cinquenta e cinco cêntimos), acrescida de juros vencidos e vincendos calculados sobre o capital em divida, à taxa contratual de 19,00% desde 07.11.2021 até integral pagamento e, ainda, no pagamento de imposto de selo de € 22,65 e de € 40,00 a título de outras quantias.

                                                           *

O Réu interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. Face à posição assumida pelas partes, no que tange à natureza do crédito peticionado nos autos, por referência à aplicação ou não do disposto no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, importa decidir.
2. Importando considerar a responsabilidade que a Autora pretende imputar ao Réu/Recorrente.
3. Temos, pois, que, segundo a Autora, a responsabilidade do Réu resulta da sua alegada qualidade de “utilizador”.
4. De facto, importa ter presente que, a responsabilidade que se tenta imputar ao Recorrente assenta, só e apenas, na sua alegada qualidade de “Utilizador”, e, assim, diremos, de consumidor.
5. Quem utiliza é quem consume, quem consome é quem utiliza.
6. Como provado, atento, nomeadamente do tipo de contrato que constitui a causa de pedir, o contrato de crédito foi celebrado com a Ré A...,
7. Sendo que a intervenção do Réu AA NÃO PODE, COMO ERRADAMENTE SE CONCLUI, ser enquadrada, “como garante do pagamento”, mas, apenas, como “Utilizador”/Consumidor do crédito concedido.
8. E, por isso, aplicam-se as normas de integração no PARI/PERSI previstas no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, já que o Recorrente integra o conceito de consumidor,
9. Reiterando-se que, como resulta de toda a documentação junta os autos, o Recorrente não é, nem isso foi alegado ou demonstrado, “garante” do crédito.
10. Ao invés, sublinhe-se, a sua alegada responsabilidade resulta da invocada utilização/consumo.
11. A Autora, notificada para tal, confessou não ter cumprido as obrigações a que alude o Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro (PARI/PERSI).
12. O Réu, atento o alegado pela própria Autora, é, efectivamente e, ao contrário do, entretanto, infundadamente, invocado, “consumidor”, nos termos do art, 3 a) do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro (PARI/PERSI).
13. Ora, como, doutamente determinado,
a. “A não demonstração pela autora do cumprimento das normas imperativas que instituem o procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI), implica a falta de um pressuposto processual ou uma condição de admissibilidade da ação (declarativa ou executiva), a qual deve ser enquadrada como uma exceção dilatória (inominada) insuprível, de conhecimento oficioso, que determina a absolvição dos Requeridos/Réus da instância [artigo 576º, n.º 2, do Código de Processo Civil].”
14. Logo, porque a Autora confessa não ter dado cumprimento ao indicado imperativo normativo,
15. Não tendo com se impunha, proceder “ao aperfeiçoamento do requerimento inicial, alegando e demonstrando o cumprimento das obrigações a que alude o Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro (PARI/PERSI), mormente o disposto nos seus artigos 12º a 17º”
16. Deve, como se requer, ser declarada a verificação da exceção dilatória (inominada) insuprível, de conhecimento oficioso,
17. Determinando-se a absolvição dos Requeridos/Réus da instância [artigo 576º, n.º 2, do Código de Processo Civil].
Sem prescindir:
18. Como ficou provado, entre o demais:
a) No Ponto 2 das Cláusulas Gerais do contrato, as partes acordaram que: o Titular do cartão é uma pessoa colectiva, titular de uma conta de depósito à ordem no Banco 1..., com o qual contrata a emissão de um ou mais cartões em nome de uma pessoa singular que é o seu Utilizador. O Titular e o Utilizador ficam ambos responsáveis pela Correta utilização do mesmo.
b) O referido contrato tinha vários cartões associados.
c) Nos termos das Cláusulas Gerais, sob a epígrafe Utilização, o titular é sempre responsável perante o Banco 1... pelos Débitos efetuados decorrentes da emissão e utilização dos referidos cartões, sem prejuízo da responsabilidade solidária dos Utilizadores relativamente às dívidas resultantes das transações efectuadas.
d) Ainda nos termos das Cláusulas Gerais, sob a epígrafe Liquidação do Extrato de Conta-Cartão, o não pagamento dos montantes devidos confere ao Banco 1... a possibilidade de reclamar o pagamento imediato da totalidade do montante em dívida, podendo exigir esse pagamento, solidariamente, ao Titular e/ou Utilizadores., sendo que, os Utilizadores dos respectivos cartões são solidariamente responsáveis perante o Banco 1... por todas as quantias que lhe sejam devidas e, salvo indicação expressa em contrário, o Titular representá-los-á para efeitos de recepção de quaisquer comunicações, considerando-se estas feitas ao Titular e a todos os Utilizadores. Estes autorizam o Banco 1... a enviar à empresa Titular, toda a correspondência relativa à celebração, execução ou cessação deste contrato, incluindo extratos reportados às transacções efectuadas com o respectivo cartão.
19. Assim, da prova produzida, não se pode concluir que o Réu AA é o “utilizador”, pelo menos, exclusivo, dos cartões, conforme resulta do contrato.
20. Falta de prova que há de determinar a absolvição do pedido relativamente ao Recorrente.
21. Tanto mais que, como resulta da sentença recorrida:
-  “... tanto o Réu AA como a testemunha BB (funcionária da Ré) terem asseverado, de uma forma que nos mereceu credibilidade (porque através de declarações/depoimento objectivos e espontâneos), que os cartões eram utilizados por vários funcionários da sociedade no âmbito da actividade da mesma, nomeadamente para efectuar compras da empresa e pagar estadias em viagens da empresa.”
22. Ao tal se concluir, não podia o Tribunal “a quo” ter condenado o Recorrente.
23. Ao invés, na falta de prova, como sentenciado, quanto à qualidade de “utilizador” exclusivo, deveria o mesmo ter sido absolvido do pedido.
24. A decisão recorrida, violou, assim, designadamente, o disposto no invocado artigo 397º do Código Civil.
25. O Réu/Recorrente AA não é responsável solidário por toda a dívida aqui reclamada.
26. Apenas é responsável solidário pela dívida enquanto utilizador e,
27. A verdade é que, como se pode ler na sentença recorrida, “os cartões eram utilizados por vários funcionários da sociedade no âmbito da actividade da mesma, nomeadamente para efectuar compras da empresa e pagar estadias em viagens da empresa.”
28. Logo não fica provado, ao invés, que o Recorrente foi o “utilizador”, pelo menos, em exclusivo” dos cartões.
29. E, por isso, não pode ser condenado no pedido.
30. Sendo que a decisão recorrida viola, ainda, o disposto no artigo 513º do Código Civil.
31. Resulta do clausulado do contrato que o titular do contrato (isto é, a Ré A... Lda) é sempre responsável perante o Banco 1... pelos Débitos efectuados decorrentes da emissão e utilização dos referidos cartões, sem prejuízo da responsabilidade solidária dos Utilizadores relativamente às dívidas resultantes das transações efectuadas,
32. Sendo que, ainda que conste no contrato que o utilizador do cartão é o Réu AA.
33. Essa menção foi “contrariada” pela prova produzida nos autos.
Termos em que, como se requer, deve o recurso ser julgado procedente, por provado e, assim, revogada a decisão recorrida, o Recorrente absolvido do pedido.

A Autora não apresentou resposta.

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1. Do objeto do recurso
Considerando que o objeto do recurso é definido pelas conclusões formuladas, as questões a apreciar são:
-  incumprimento pela Exequente da obrigatoriedade de integraçao do Réu no PERSI,
- a ausência da responsabilidade do Réu no cumprimento do contrato porquanto não era utilizador exclusivo dos cartões.


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2. Os factos
Os factos provados são:
 1. A Autora é uma instituição bancária de crédito que se dedica, entre o mais, ao financiamento de crédito.
2. No âmbito do exercício da sua actividade, a Autora celebrou com a 1.º Ré, A... Lda, em 21.10.2014, um contrato de atribuição de cartão de crédito com o n.º 0...7-6, denominado Cartões de Crédito Business Trade e Business Gold.
3. No Ponto 2 das Cláusulas Gerais do contrato, as partes acordaram que: o Titular do cartão é uma pessoa colectiva, titular de uma conta de depósito à ordem no Banco 1..., com o qual contrato a emissão de um ou mais cartões em nome de uma pessoa singular que é o seu Utilizador. O Titular e o Utilizador ficam ambos responsáveis pela Correta utilização do mesmo.
4. O contrato foi subscrito pelo 1.º Réu, na qualidade de gerente da 2.ª Ré, titular do contrato e, como utilizador do cartão.
5. O referido contrato tinha vários cartões associados.
6. Nos termos das Cláusulas Gerais, sob a epígrafe Utilização, o titular é sempre responsável perante o Banco 1... pelos Débitos efectuados decorrentes da emissão e utilização dos referidos cartões, sem prejuízo da responsabilidade solidária dos Utilizadores relativamente às dívidas resultantes das transações efectuadas.
7. Ainda nos termos das Cláusulas Gerais, sob a epígrafe Liquidação do Extrato de Conta-Cartão, o não pagamento dos montantes devidos confere ao Banco 1... a possibilidade de reclamar o pagamento imediato da totalidade do montante em dívida, podendo exigir esse pagamento, solidariamente, ao Titular e/ou Utilizadores, sendo que, os Utilizadores dos respectivos cartões são solidariamente responsáveis perante o Banco 1... por todas as quantias que lhe sejam devidas e, salvo indicação expressa em contrário, o Titular representá-los-á para efeitos de recepção de quaisquer comunicações, considerando-se estas feitas ao Titular e a todos os Utilizadores. Estes autorizam o Banco 1... a enviar à empresa Titular, toda a correspondência relativa à celebração, execução ou cessação deste contrato, incluindo extratos reportados às transacções efectuadas com o respectivo cartão.
8. Ao subscreverem o contrato em apreço, os Réus aderiram às suas condições gerais de utilização e correspectivos direitos e deveres.
9. Através dos supra referidos cartões de crédito foi concedido aos Réus a possibilidade de estes adquirirem bens e/ou serviços, bem como emitirem ordens de pagamento, efectuarem levantamento em numerário a crédito, efectuarem transacções na rede de ATM’s e ter acesso a um conjunto de serviços.
10. Os Réus utilizaram, de forma efectiva, os cartões de crédito que lhe foram concedidos durante cerca de 6 anos.
11. Sucede, porém, que os Réus não liquidaram à Autora o saldo em dívida resultante da utilização dos cartões do contrato n.º 0...5-2.
12. Com efeito, desde 07.11.2021 que os Réus não efectuam qualquer pagamento do saldo em dívida, apesar de interpelados e de terem recebido os respectivos extratos.
13. Razão pela qual, o montante de capital em dívida ascende nesta data ao valor de € 6.084,55.
14. A taxa de juro nominal anual inscrita no contrato é de 10,70%, tendo sido posteriormente actualizada, sendo na data do incumprimento de 19%.
15. Pelo incumprimento é devido imposto de selo de 4%.
16. Por contrato de cessão de créditos, celebrado a 30 de Novembro de 2022, a Banco 1... cedeu à B..., S.A.R.L. créditos pecuniários de que era titular, entre os quais, o reclamado nos autos com o n.º 0...7-6.
17. A Banco 1... enviou missivas aos Réus em Março de 2023 comunicando a cedência do crédito à B..., S.A.R.L., sendo que apenas a missiva enviada ao Réu AA foi entregue, mas tais missivas referem-se ao crédito 0...0-2.
18. Na Cláusula 10.12 do contrato consta:
Os Utilizadores dos respetivos cartões são solidariamente responsáveis perante o Banco 1... por todas as quantias que lhe sejam devidas e, salvo indicação expressa em contrário, o Titular representá-los-á para efeitos de receção de quaisquer comunicações, considerando-se estas feitas ao Titular e a todos os Utilizadores. Estes autorizam o Banco 1... a enviar à empresa Titular, toda a correspondência relativa à celebração, execução ou cessação deste contrato, incluindo extratos reportados às transações efetuadas com o respetivo cartão. – facto provado por acordo das partes.


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3. O direito aplicável
A Autora e a Ré celebraram entre si um contrato de atribuição de cartão de crédito, subscrito pelo 1.º Réu, na qualidade de gerente da 2.ª Ré, titular do contrato e, intervindo o 2º Réu como utilizador do cartão.
Entre os outorgantes foi acordado que:
 6. Nos termos das Cláusulas Gerais, sob a epígrafe Utilização, o titular é sempre responsável perante o Banco 1... pelos Débitos efectuados decorrentes da emissão e utilização dos referidos cartões, sem prejuízo da responsabilidade solidária dos Utilizadores relativamente às dívidas resultantes das transações efectuadas.
7. Ainda nos termos das Cláusulas Gerais, sob a epígrafe Liquidação do Extrato de Conta-Cartão, o não pagamento dos montantes devidos confere ao Banco 1... a possibilidade de reclamar o pagamento imediato da totalidade do montante em dívida, podendo exigir esse pagamento, solidariamente, ao Titular e/ou Utilizadores, sendo que, os Utilizadores dos respectivos cartões são solidariamente responsáveis perante o Banco 1... por todas as quantias que lhe sejam devidas e, salvo indicação expressa em contrário, o Titular representá-los-á para efeitos de recepção de quaisquer comunicações, considerando-se estas feitas ao Titular e a todos os Utilizadores. Estes autorizam o Banco 1... a enviar à empresa Titular, toda a correspondência relativa à celebração, execução ou cessação deste contrato, incluindo extratos reportados às transacções efectuadas com o respectivo cartão.
Na decisão recorrida e com a qual o Réu não se conforma entendeu-se que o mesmo, face à qualidade que assumiu no referido contrato, e que se admite poder ser de garante, não está abrangido pelas medidas previstas no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro.
O DL nº 227/2012, de 25.10, entrado em vigor em 1.1.2013, estabelece princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários e criar uma rede extrajudicial de apoio a esses clientes bancários no âmbito da regularização dessas situações.
Consta do seu preâmbulo:
A degradação das condições económicas e financeiras sentidas em vários países e o aumento do incumprimento dos contratos de crédito, associado a esse fenómeno, conduziram as autoridades a prestar particular atenção à necessidade de um acompanhamento permanente e sistemático, por parte de instituições, públicas e privadas, da execução dos contratos de crédito, bem como ao desenvolvimento de medidas e de procedimentos que impulsionem a regularização das situações de incumprimento daqueles contratos, promovendo ainda a adoção de comportamentos responsáveis por parte das instituições de crédito e dos clientes bancários e a redução dos níveis de endividamento das famílias.
Neste contexto, com o presente diploma pretende-se estabelecer um conjunto de medidas que, refletindo as melhores práticas a nível internacional, promovam a prevenção do incumprimento e, bem assim, a regularização das situações de incumprimento de contratos celebrados com consumidores que se revelem incapazes de cumprir os compromissos financeiros assumidos perante instituições de crédito por factos de natureza diversa, em especial o desemprego e a quebra anómala dos rendimentos auferidos em conexão com as atuais dificuldades económicas.
Em concreto, prevê-se que cada instituição de crédito crie um Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI), fixando, com base no presente diploma, procedimentos e medidas de acompanhamento da execução dos contratos de crédito que, por um lado, possibilitem a deteção precoce de indícios de risco de incumprimento e o acompanhamento dos consumidores que comuniquem dificuldades no cumprimento das obrigações decorrentes dos referidos contratos e que, por outro lado, promovam a adoção célere de medidas suscetíveis de prevenir o referido incumprimento.
Adicionalmente, define-se um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), no âmbito do qual as instituições de crédito devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objetivos e necessidades do consumidor.

O seu âmbito de aplicação rege-se pelo art.º 2º que dispõe:
1 - O disposto neste diploma aplica-se aos seguintes contratos de crédito celebrados com clientes bancários:
a) Contratos de crédito para a aquisição, construção e realização de obras em habitação própria permanente, secundária ou para arrendamento, bem como para a aquisição de terrenos para construção de habitação própria;
b) Contratos de crédito garantidos por hipoteca sobre bem imóvel;
c) Contratos de crédito a consumidores abrangidos pelo disposto no Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 72-A/2010, de 18 de junho, com exceção dos contratos de locação de bens móveis de consumo duradouro que prevejam o direito ou a obrigação de compra da coisa locada, seja no próprio contrato, seja em documento autónomo;
d) Contratos de crédito ao consumo celebrados ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de setembro, alterado pelos Decretos-Leis n.os 101/2000, de 2 de junho, e 82/2006, de 3 de maio, com exceção dos contratos em que uma das partes se obriga, contra retribuição, a conceder à outra o gozo temporário de uma coisa móvel de consumo duradouro e em que se preveja o direito do locatário a adquirir a coisa locada, num prazo convencionado, eventualmente mediante o pagamento de um preço determinado ou determinável nos termos do próprio contrato;
e) Contratos de crédito sob a forma de facilidades de descoberto que estabeleçam a obrigação de reembolso do crédito no prazo de um mês.
2 - O disposto no presente diploma não prejudica o regime aplicável aos sistemas de apoio ao sobre-endividamento, instituído pela Portaria n.º 312/2009, de 30 de março.
Nos art.º. 12º a 21º do mencionado DL, encontra-se regulado o procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento – PERSI – cabendo às instituições de crédito a sua implementação relativamente a clientes bancários que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito.
Nos termos do art.º 2º, n.º 1 da LDC Lei n.º 24/96, de 31/7:
  Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.
Tem vindo a entender-se que a lei no DL 227/2012, de 25.10 visa o  conceito estrito de consumidor, o que exclui a utilização do bem ou serviço para necessidades profissionais.[1]
Ora, no caso em análise, o Recorrente não interveio no contrato celebrado como adquirente dos serviços, mas, como utilizador.
Resulta dos termos do contrato em causa que o mesmo foi subscrito pelo Réu na qualidade de utilizador, constando da Cláusula 10.12.
Os Utilizadores dos respetivos cartões são solidariamente responsáveis perante o Banco 1... por todas as quantias que lhe sejam devidas e, salvo indicação expressa em contrário, o Titular representá-los-á para efeitos de receção de quaisquer comunicações, considerando-se estas feitas ao Titular e a todos os Utilizadores. Estes autorizam o Banco 1... a enviar à empresa Titular, toda a correspondência relativa à celebração, execução ou cessação deste contrato, incluindo extratos reportados às transações efetuadas com o respetivo cartão.
Aplicando-se, o regime do PERSI somente às situações de incumprimento dos contratos exarados no seu art.º 2, n.º 1 celebrados com consumidores, está afastada a sua aplicabilidade aos como aos avalistas e fiadores deste contrato (pessoas singulares) – cfr. Acs. RE de 15/4/2021, relatora, Conceição Ferreira, RL, de 12/10/17, relatora Isoleta Costa, de 9/10/18, relatora Conceição Saavedra, de 6/6/19, relatora Maria de Deus Correia e, de 23/2/21, relatora Ana Rodrigues da Silva, in www.dgsi.pt. . [2]
A este respeito entendeu-se no acórdão do S. T. J. de 31.10.2023:[3]
tal regime já não é aplicável em relação aos clientes bancários que não reúnam cumulativamente essas condições ou às pessoas singulares que tenham garantido o cumprimento da obrigação do mutuário por forma diferente da fiança.
Dos termos do contrato resulta claro que o Recorrente só interveio no contrato como utilizador do cartão de crédito, nada se sabendo quanto às condições em que poderia usar o cartão de crédito, assumindo-se responsável solidário com o titular pelo cumprimento das obrigações emergentes do mesmo contrato, não sendo, deste modo, integrável a sua intervenção no contrato ao conceito legal de consumidor exigido para a aplicação do regime do PERSI,
O contrato de utilização de cartão de crédito celebrado com a Ré e em que o agora recorrente intervém como utilizador e responsável pelo seu cumprimento, não pode ser qualificado como um contrato de crédito ao consumo abrangido pelo disposto no Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 72-A/2010, de 18 de junho, porquanto a Ré contraente é uma pessoa coletiva.
Improcede assim este fundamento do recurso.
Invoca ainda o recorrente com vista à procedência do recurso que não era o único utilizador do cartão de crédito matéria que não foi alegada nem provada.
No entanto, não se revela necessária para o desfecho da ação a prova deste facto, pois além de ser o único utilizador identificado no contrato, o Recorrente assumiu-se como devedor solidário conjuntamente com a Ré – titular do contrato – pelo cumprimento das obrigações emergentes do mesmo, facto suficiente para, face ao incumprimento apurado, justificar a sua condenação.

                                               *
Decisão:
Nos termos expostos, confirmando-se a decisão proferida, julga-se improcedente a apelação.

                                                           *

Custas pelo Recorrente.

                                                           *

                                                                                                          14.1.2025


[1] Na jurisprudência, entre outros, os seguintes acórdãos, ambos acessíveis em www.dgsi.pt :
 do S. T. J. proferido em 29.5.2014 e relatado por João Bernardo,
 do T. R. E. proferido em 24.3.2022 e relatado por Francisco Matos.

[2] Ac. do T. R. L. proferido em 7.6.2023, relatado por Carla Mendes e acessível em www.dgsi.pt.

[3] Relatado por Aguiar Pereira e também acessível em www.dgsi.pt.