Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1042/14.4T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: FALÊNCIA
SALÁRIO
APREENSÃO
Data do Acordão: 04/27/2017
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.128, 150, 175 CPEREF
Sumário: 1. Do preceituado no art.º 150º, n.º 1, do CPEREF não decorre que os rendimentos do trabalho não sejam susceptíveis de apreensão e inexiste norma ou princípio que obste ou limite a apreensão em processo de falência de qualquer bem penhorável por poder prolongar no tempo a pendência do processo.

2. Se, num processo de falência, apenas foi apreendida a parte penhorável do vencimento da falida - procedendo-se, entretanto, a dois rateios parciais - e manifestando-se os credores e o liquidatário judicial contrários ao encerramento do processo, não revelando a falida a sua posição, será de respeitar a declarada vontade de prosseguimento da lide falimentar para “assegurar/garantir” os valores dos créditos reconhecidos ainda em dívida aos credores da Massa Falida.

Decisão Texto Integral:







            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
           
           

            I. Nos presentes autos, pendentes na Comarca de Viseu,[1] M (…) veio requerer a declaração de falência de MF (…)

            Por sentença de 09.4.2003 foi declarada a falência da referida MF (…) e nomeada a comissão de credores, constituída pela requerente, R (…) (Presidente) e J (…).

            Foi deduzido e indeferido pedido de fixação de alimentos, por se considerar que a falida podia prover o seu sustento pelo produto do seu trabalho, na parte impenhorável (fls. 286 e 312).

            Continuou “apreendido” 1/3 do vencimento da falida, inicialmente penhorado à ordem da acção executiva 182/2002 do 4º Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Viseu (cf., v. g., fls. 343); porém, não foram “localizados quaisquer [outros] bens susceptíveis de apreensão no património da falida” (fls. 345).

            Por despacho de 15.01.2004, atento o único bem apreendido e apreensível nos autos (1/3 do vencimento da falida) e por se considerar que a protecção dos interesses dos credores da falida impunha a manutenção do processo, foi determinado o prosseguimento dos termos normais da lide falimentar (fls. 389).

            Na sequência do despacho de 18.01.2006 providenciou-se pelo depósito, à ordem da massa falida, das importâncias depositadas nos autos executivos apensos (fls. 630-1 e fls. 648 e seguintes).

            Foi requerido pela comissão de credores, em 18.6.2007, o rateio parcial do montante depositado à ordem dos autos, tendo-se efectuado, posteriormente, pagamentos parcelares dos créditos.

            Por despacho de 09.6.2016 determinou-se a remessa dos autos à conta (“a fim de declarar findo o presente processo de insolvência”) e a notificação da “entidade processadora dos vencimentos à Falida para cessar os descontos à ordem dos presentes autos” (fls. 1003).

            Na sequência de requerimento do credor Joaquim Jorge, aquele despacho foi declarado nulo por inobservância do contraditório (fls. 1008 verso e 1020).

            Tendo os credores J (…) e R (…) (Presidente da Comissão de Credores), o Liquidatário Judicial e o M.º Público manifestado a sua posição quanto ao eventual encerramento do processo, pugnando, unanimemente, pela sua continuação enquanto a falida auferir vencimento, por forma a assegurar/garantir os valores dos créditos reconhecidos ainda em dívida aos credores da Massa Falida no montante global de € 73 612,45 (fls. 1033, 1034 verso e 1037), o Mm.º Juiz a quo, por decisão de 02.11.2016, determinou a remessa dos autos à conta (“a fim de declarar findo o presente processo de insolvência”), bem como, após trânsito, a notificação da “entidade processadora dos vencimentos à Falida para cessar os descontos à ordem dos presentes autos” (fls. 1038).

                Inconformada, a credora R (…) interpôs a presente apelação formulando as seguintes conclusões:

            1ª - Por sentença proferida em Abril/2003 e transitada em julgado, foi declarada falida MF (…) e decretada a apreensão dos seus bens e 1/3 do seu salário, à data de € 1 800/mensais.

            2ª - A falida não recorreu de tal sentença e ao longo do decurso do processo nada veio requerer até hoje.

            3ª - A decisão de encerramento do processo e da cessação dos descontos, viola a situação de caso julgado anterior.

            4ª - A falida nada requereu e muito menos veio em tempo algum dizer aos autos que a apreensão de 1/3 do seu salário de € 1 800 punha de alguma forma em causa a sua subsistência ou que a impedia ou a dificultava de fazer uma vida absolutamente normal com os restantes € 1 200.

            5ª - Com a decisão proferida, absolutamente infundada e emanada de uma opinião pessoal, o Mº Juiz a quo assumiu de forma manifesta o papel de parte, o que não lhe é permitido.

            6ª - E, nada lhe tendo requerido a parte interessada no processo, não pode o julgador substituir-se a ela, como efectivamente parece ser o caso.

            7ª - Decisão que vai contra a jurisprudência dominante, indicando-se a título exemplificativo os acórdãos da RP de 22.6.2016 e o acórdão do STJ de 30.6.2010-Proc. 191/08.2TBSJM-H.P1.S1 – www.dgsi.pt – ambos a consagrar a admissibilidade da apreensão de 1/3 do salário do insolvente, que no caso dos autos deixa ainda disponível à falida a importância de € 1 200/mensais.

            8ª - A decisão sob censura, absolutamente infundada e injusta premiaria a falida sem que esta nada fizesse para obter tamanho benefício, retirando aos credores de forma arbitrária e injusta o direito de se verem compensados com as importâncias que lhes pertencem e que a falida usou indevidamente em proveito próprio.

            9ª - Violando-se assim e também o princípio da equidade.

            10ª - Aliás, não sendo a questão levantada do conhecimento oficioso, vedado estava ao Mm.º Juiz proferir a decisão de que se recorre, que a torna nula e de nenhum efeito, por não fundamentada de facto e de direito, mas também porque o Juiz conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento, nos termos do disposto no art.º 615º n.º 1, b) e d) do CPC.

            Rematou pugnando pela revogação do despacho recorrido e consequente “prosseguimento dos autos, com todas as legais consequências”.

            Não houve resposta.

            O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo (fls. 1057 e 1059).

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, sobretudo, se há que declarar findo o processo (com a cessação dos descontos no vencimento da falida) ou se o mesmo deverá prosseguir.


*

II. 1. A materialidade a considerar é a que consta do relatório que antecede (ponto I) e ainda a seguinte[2]:

            a) A falida nasceu em 01.02.1963.

            b) No mapa de rateio parcial junto aos autos em 11.02.2013 foi indicado o “saldo conta à ordem” de € 45 365,38 e o montante “disponível para pagamento” aos credores (€ 31 564,04) permitiu satisfazer 26,32 % dos créditos.

            c) No mapa de rateio parcial junto aos autos em 28.4.2016 foi indicado o “saldo conta à ordem” de € 15 980,49 e o montante “disponível para pagamento” aos credores (€ 14 750,49) permitiu satisfazer 16,69 % dos créditos subsistentes.

            d) Com os referidos rateios parciais ficou pago aproximadamente 40 % do valor global dos créditos.

            e) Além do mencionado pedido de fixação de alimentos, a falida não deduziu qualquer outra pretensão relacionada com o montante salarial apreendido ou o eventual prosseguimento/encerramento dos autos.   

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            O presente processo de falência foi instaurado em 30.9.2002, pelo que os seus trâmites regem-se pelo Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência/CPEREF, aprovado pelo DL 132/93, de 23.4, na redacção dada pelo DL 323/2001, de 17.12, e considerada ainda a redacção introduzida ao n.º 1 do art.º 186º pelo DL 38/2003, de 8/3[3], porquanto, o DL 53/2004, de 18.3, que aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas/CIRE, veio estabelecer, no seu art.º 12º, n.º 1, que o CPEREF continua a aplicar-se aos processos pendentes.

            3. O processo de falência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património do devedor falido e a repartição do produto obtido pelos credores, cuja concretização implica a convocação para ele de todos os credores do falido a fim de nele reclamarem os seus créditos, a apreensão à ordem dele de todo o património do falido susceptível de penhora e a proibição legal do prosseguimento de acções executivas em curso contra o falido e da sua instauração (cf., designadamente, os art.ºs 175º, 188º, 200º e 209º a 215º do CPREF).

            Na sentença que declarar a falência deve o tribunal decretar a apreensão, para imediata entrega ao liquidatário judicial, de todos os bens do falido, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for, com ressalva apenas dos que hajam sido apreendidos por virtude de infracção criminal ou de mera ordenação social, podendo os bens isentos de penhora ser integrados na massa falida se o falido voluntariamente os apresentar e devendo ser requisitados, para apensação aos autos de falência, todos os processos nos quais se tenha efectuado qualquer acto de apreensão ou detenção de bens do falido (cf. os art.ºs 128º, n.º 1, c) e 175º, do CPEREF).

            4. Assim, no presente caso, o decretamento da falência implicou a suspensão da acção executiva pendente contra a falida e a sua apensação ao processo de falência, sem levantamento da penhora de 1/3 do seu salário nela efectuada, nem restituição das quantias entretanto descontados e depositadas à ordem da acção executiva, “penhora”/apreensão que se manteve e passou a ficar exclusivamente à ordem do processo de falência[4], através do liquidatário judicial, sob a fiscalização da comissão de credores e a direcção do juiz da falência, por o processo de falência ser uma execução universal destinada a apreender todo o património da falida susceptível de penhora, a liquidá-lo, e a repartir o produto obtido pelos seus credores (cf., designadamente, os art.ºs 128º, n.º 1, b), 141º, 145º, 176º, n.ºs 1 a 4, a), 180º e 185º, do CPEREF e o art.º 824º do Código de Processo Civil/CPC de 1961).

            Ademais, inexiste norma específica ou princípio genérico impeditivos da apreensão em processo de falência de qualquer bem penhorável, por a sua apreensão poder prolongar no tempo a pendência do processo.[5]

            5. Do preceituado no art.º 150º, n.º 1 do CPEREF[6] não decorre que os rendimentos do trabalho não sejam susceptíveis de apreensão.

            No âmbito do processo de falência vigora o princípio de que todos os bens que o falido for adquirindo após a declaração de falência, isto é, os bens futuros, revertem para a massa falida, de forma automática, sem necessidade de qualquer iniciativa do liquidatário judicial, dado o carácter universal do processo falimentar.

            E se é certo que, em princípio, os rendimentos auferidos pelo falido não devem estar sujeitos às regras gerais da penhora - maxime, a penhorabilidade de apenas 1/3 dessa quantia e a livre disponibilidade dos restantes 2/3 -, sempre haverá que conciliar a satisfação dos interesses dos credores com as necessidades básicas do falido e, assim, a parte dos rendimentos que se revele indispensável à subsistência do falido permanece intocável; a parte que exceda integrará a massa falida, competindo ao juiz, em cada caso concreto, determinar de acordo com o critério de equidade o quantum que ficará sujeito à penhora.[7]

            6. No caso em análise, a penhora de 1/3 do salário da falida efectuada no âmbito de uma acção executiva movida por um dos credores foi pacificamente transmutada/transformada em apreensão desse rendimento do trabalho, à ordem dos autos de falência, naturalmente, para pagamento dos créditos aí reclamados e verificados, tanto mais que não foi possível proceder à apreensão de quaisquer outros bens.

            Inexistindo bens móveis e/ou imóveis apreendidos, é evidente que não teve lugar procedimento visando a “liquidação do activo” mediante a venda dos bens da falida[8], nem, por conseguinte, importava atender a qualquer “prazo da liquidação” (cf., sobretudo, os art.ºs 179º e 180º do CPEREF).

            Porém, o caso dos autos não configura situação de “inexistência de bens” ou de “insuficiência do activo” à luz do enquadramento traçado nos art.ºs 186º e 187º do CPEREF.[9]

            Daí terem sido realizados dois “rateios parciais”, dadas as quantias que foram sendo depositadas em consequência da apreensão de 1/3 do salário da falida [cf. o art.º 210º do CPEREF e II. 1. b) e c), supra].

            7. No âmbito do processo de insolvência, face ao estatuído nos art.ºs 169º e 182º do CIRE, onde se estabelece “prazo para a liquidação” e que “o encerramento da liquidação não é prejudicado pela circunstância de a actividade do devedor gerar rendimentos que acresceriam à massa” (2ª parte do n.º 1 do cit. art.º 182º), tem-se defendido estarmos perante “uma medida que visa obstar à eternização dos processos de insolvência, numa altura em que o património do devedor (apreendido para a massa insolvente) se encontra já totalmente liquidado[10] e, ainda, que “o encerramento do processo, que se segue ao termo da liquidação e consequente rateio final [cf. art.º 230º, n.º 1, alínea a)], não obsta a que os credores que não tenham obtido o ressarcimento integral nos autos da insolvência, venham posteriormente a atacar o ´novo` património adquirido pelo devedor, susceptível de penhora, seja qual for a fonte da aquisição”, possibilidade que apenas não ocorrerá “quando o devedor tenha obtido o benefício da exoneração do passivo restante, em conformidade com o que se dispõe nos art.ºs 235º e seguintes”.[11]

            Não se podendo olvidar que estamos perante um processo de falência, com vicissitudes próprias (desde logo, ao nível do concreto património passível de apreensão) e um regime jurídico distinto do actual processo de insolvência (por exemplo, em razão da figura da “exoneração do passivo restante”), antolha-se evidente a impossibilidade de vir a ser adoptada, in casu, uma solução directamente explicada ou justificada pelo actual CIRE.

            Por outro lado, pese embora o longo tempo da tramitação (que já ultrapassou os 14 anos), resulta também dos autos que a falida não demonstrou interesse na cessação dos efeitos da falência (cf. o art.º 238º do CPEREF)[12]; e não se vê qual seria, na situação em análise, o tempo legalmente imposto ou, sequer, o tempo/prazo razoável para o encerramento dos autos.

            8. Assim, sem quebra do respeito sempre devido por diferente entendimento, tratando-se de matéria em que domina o interesse particular[13], não vemos como seja possível determinar o encerramento do processo ao arrepio da posição dos credores (comissão de credores), do liquidatário judicial e do M.º Público e sem que a falida tenha demonstrado pretender esse desfecho…

            Ademais, decretado o encerramento dos autos, a falida não ficaria exonerada de pagar a quem deve e os credores poderiam “atacar”, novamente, o mesmo bem (a parte penhorável do salário da falida - em princípio, 1/3) para pagamento dos seus créditos, situação que, muito provavelmente e a breve trecho, conduziria à declaração de insolvência da devedora.

            9. Ainda que se trate de problemática não isenta de dificuldades e se admita que o encerramento dos presentes autos e a eventual futura existência de um processo de insolvência poderiam originar uma situação mais favorável para a posição da falida (admitindo-se, sobretudo, a formulação, e o deferimento, nesses novos autos, de um pedido de exoneração do passivo restante/art.ºs 235º e seguintes do CIRE), afigura-se, contudo, salvo o devido respeito por opinião em contrário, que o Mm.º Juiz a quo, ante as particularidades dos autos - nomeadamente, o silêncio da falida e a forma como os credores foram parcialmente pagos -, não podia/devia proferir a decisão sob censura, devendo os autos prosseguir os seus termos, desde logo, em obediência à vontade de todos quantos se pronunciaram (no sentido de que os autos deveriam prosseguir, não devendo declarar-se o encerramento do processo). 

            10. De resto, ressalvado o respeito sempre devido, à argumentação apresentada e ao decidido pelo Mm.º Juiz a quo sempre seria indiferente o tempo e o grau de satisfação dos créditos, “ajustando-se”, assim, não apenas ao tempo presente, mas também à data da realização do primeiro “rateio parcial” ou, até, a uma data muito anterior[14], porquanto desnecessária ou inexigível a verificação de quaisquer especiais requisitos atinentes, por exemplo, à percentagem dos créditos satisfeitos ou à situação da massa falida.[15]

            11. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


*

            III. Pelo exposto, procedendo a apelação, revoga-se a decisão recorrida, prosseguindo os autos conforme se refere em II. 9., supra.

            Sem custas.

                                                                   *


27.4.2017

Fonte Ramos ( Relator )

( Assim se clarifica e revê a posição expressa no acórdão desta Relação de 18-10-2016 -apelação nº 1769/11.2 TJCBR-F.C1, ponto II.9. – quando reportada ao processo de falência )

Vítor Amaral

Maria João Areias ( com voto de vencido anexo )

Voto de vencido:

Suscitando-se duas questões distintas no recurso em apreço – i) apreensibilidade do vencimento do insolvente para a massa; ii) prolongamento do processo de insolvência unicamente para efeitos de apreensão daquele salário – a ambas daria resposta diversa da assumida no acórdão.

 Como já tive ocasião de me pronunciar no Acórdão do TRL de 10.11.2014 (disponível na dgsi), de que fui relatora, entendo que no processo de insolvência não podem ser apreendidos a favor da massa insolvente os rendimentos auferidos pelo insolvente no exercício da sua atividade laboral e após a declaração de insolvência, designadamente os salários, as prestações periódicas a título de aposentação ou de regalia social, ou pensão de natureza semelhante.

A favor de tal entendimento socorremo-nos a posição assumida por Oliveira Ascensão, in “Efeitos da Falência Sobre a Pessoa e Negócios do Falido[16]”, de onde se extrai a ilação da impenhorabilidade total da remuneração recebida pelo falido: partindo da existência de um património do falido, um património remanescente e geral, que se contrapõe à massa falida como património autónomo e separado, tal autor defende que o património do falido será composto “pelos bens impenhoráveis, pelos proventos que angariar, a remuneração que lhe for arbitrada em consequência do auxílio que preste ao liquidatário judicial (art. 143º,n3, C.F.), os alimentos que lhe forem atribuídos; os rendimentos dos cargos sociais que lhe seja autorizado a exercer (art. 148º/2), e o que angariar se os efeitos patrimoniais da falência forem levantados nos termos do art. 238º/1, C.F..”

Também José Gabriel Pinto Coelho, numa tentativa de interpretação do disposto nº2 do artigo 1159º do CPC, que preceituava que “Ao falido é lícito, em qualquer caso, adquirir pelo seu trabalho meios de subsistência”, afirmava que “o preceito só pode justificar-se, se se entender que o legislador falando em aquisição dos meios de subsistência, teve particularmente em vista acentuar neste preceito que os proventos obtidos pelo trabalho pessoal do falido são destinados à sustentação e mantença, e que portanto deles tem o falido a livre disposição, não devendo acrescer à massa falida[17]”.

Já quanto à jurisprudência que advoga esta posição (embora minoritária), baseia tal impenhorabilidade na consideração de que, enquanto no processo executivo, o executado tem uma mera indisponibilidade relativa dos bens ou direitos penhorados, não ficando inibido de auferir os proventos ou rendimentos dos restantes bens ou mesmo de os alienar na sua plenitude, na falência o falido deixa de poder alienar quaisquer dos seus bens ou de fruir a respetiva rentabilização, “não se compreendendo que os credores ainda pudessem pagar-se, a partir da declaração de falência, do produto do trabalho que permite ao falido, não apenas fazer face aos efeitos negativos desta, como conduzir a regularização da sua vida pessoal, para poder encetar novas iniciativas económicas após a respetiva reabilitação [18]”.

Quanto à 2ª questão – prolongamento do processo de insolvência única e exclusivamente para apreensão para a massa da parte “penhorável” do salário do insolvente –, entende-se não ser o mesmo admissível face ao atual CIRE, assim como o não era na vigência do CPEREF.

Com efeito, segundo o disposto nos artigos 186º, nº1, e 187º do CPEREF, se não houver bens suscetíveis de apreensão no património do falido ou quando verificar que os bens apreendidos ou que o possam ser, se mostram insuficientes para satisfação das custas e mais despesas do processo, dará conhecimento do facto ao juiz a fim de, na primeira hipótese, julgar o processo “extinto por inutilidade da lide” e, no segundo caso, para “imediata liquidação dos bens apreendidos, com dispensa das reclamações de créditos, para que o processo seja depois declarado findo”.

No caso em apreço, não foram localizados quaisquer outros bens suscetíveis de apreensão no património da falida para além do 1/3 do seu vencimento que estava a ser objeto de penhora em anterior execução.

Entende-se, assim, que, apreendido o saldo existente na referida ação executiva o processo deveria ser remetido o processo à conta para rateio ou distribuição desse valor, a fim de declarar findo o processo, tal como foi ordenado na decisão recorrida.

Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda[19], defendem, face ao atual regime, que o nº2 do artigo 182º do CIRE exclui a possibilidade de a liquidação se manter aberta apenas e só pela expectativa dos rendimentos gerados pela atividade do insolvente.

A não ser assim, os processos de insolvência perdurariam “ad eternum”, tendo em conta que normalmente o valor dos créditos é elevado e os montantes dos descontos realizados é relativamente reduzido – a não ser que o falido falecesse ou ficasse desempregado –, o que contraria frontalmente os princípios da celeridade subjacente a este tipo de processos e, por outro, dificultaria a reabilitação do falido[20].

Como salienta Alexandre de Soveral Martins[21], um processo de insolvência não está destinado a permanecer pendente para sempre, mesmo que não seja possível pagar nesse processo dívidas do insolvente.

A admissibilidade da permanência em aberto do processo de insolvência, após o termo da liquidação dos demais bens apreendidos, com o único objetivo de se continuar a proceder à apreensão mensal de parte de tal salário, até à liquidação integral dos créditos, além do mais, é de difícil compatibilização com o nº2 do artigo 180º do CPEREF, que prevê um prazo máximo de seis meses para a conclusão da liquidação, embora prorrogável se necessário, refletindo a preocupação de acelerar a liquidação dos bens do falido.

Confirmaria, assim, a decisão recorrida.

Maria João Areias


[1] Processo instaurado em 30.9.2002.
[2] Atendendo aos documentos de fls. 484, 847, 879 e 998.
[3] Diploma em vigor desde 15.9.2003 e aplicável aos processos pendentes a partir de 15.9.2003.

[4] Vide, a propósito, Pedro de Sousa Macedo, Manual de Direito das Falências, vol. II, Almedina, 1968, págs. 61 e seguinte [pronunciando-se sobre idêntica disposição do CPC de 1961, refere, designadamente: “o direito (do falido) de arrecadar o produto do seu trabalho enquanto necessário para a sua subsistência, libertando-o da apreensão”; “A parte não coberta pela isenção (de penhora) pode ser apreendida nos termos gerais em que pode ser penhorada.”] e, entre outros, o acórdão do STJ de 15.3.2007-processo 07B436, publicado no “site” da dgsi.

   Na mesma linha de entendimento mas no domínio de aplicação do CIRE, cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 30.6.2011-processo 191/08.2TBSJM-H.P1.S1 [admitindo a apreensão para a massa insolvente até 1/3 do vencimento do insolvente (por ser um bem penhorável), conforme o n.º 1 do art.º 46º do CIRE, em termos semelhantes àqueles que o art.º 824º do CPC de 1961 previa para o executado], RP de 05.12.2011-processo 5248/07.4TBVLG-F.P1, RC de 24.02.2015-processo 3261/14.4TBLRA-C.C1, RL de 18.10.2012-processo 12589/12.7T2SNT-A.L12 e 22.11.2012-processo 1318/12.5TBBRR-E.L1-6 e RG de 15.3.2016-processo 4248/15.5T8GMR-D.G1, publicados no “site” da dgsi.

   Em sentido contrário, no domínio de aplicação do CPEREF, cf., entre outros, o acórdão da RC de 24.10.2006-processo 1017/03.9TBGRD-F.C1 [assim sumariado: “O produto do trabalho (vencimento/salário) do falido, após a declaração da falência respectiva, está, em absoluto, fora do conjunto de bens ou direitos susceptíveis de apreensão em benefício da massa falida e, através dela, dos credores, não podendo ser apreendido, distinguindo-se, portanto, da penhora do salário do executado no processo executivo.”] e, no domínio de aplicação do CIRE, e considerando, nalguns casos, a relevância e implicações decorrentes do instituto da exoneração do passivo restante, cf., de entre vários, os acórdãos da RP de 23.3.2009-processo 2384/06.8TJVNF-D.P1, 25.01.2011-processo 191/08.2TBSJM-H.P1 e 16.12.2015-processo 133/13.3TBVFR.P1 [mormente, quando se refere: “não devem ser penhorados ou apreendidos a favor da massa insolvente, os rendimentos auferidos pelo insolvente (enquanto pessoa singular) no exercício da sua actividade laboral e após a declaração de insolvência, donde que devem ser restituídos os efectuados após trânsito da decisão que decretou a insolvência”] e da RL de 17.4.2012-processo 5329/11.0TCRLR-C.L1-7, publicados no “site” da dgsi.

[5] Cf. o acórdão da RG de 14.9.2006-processo 1421/06-1, publicado no “site” da dgsi.
[6] Que reza o seguinte: “Se o falido ou, no caso de sociedades ou pessoas colectivas, os seus administradores carecerem absolutamente de meios de subsistência, e os não puderem angariar pelo seu trabalho, pode o liquidatário, com o acordo da comissão de credores, arbitrar-lhes um subsídio, a título de alimentos à custa dos rendimentos da massa falida.”

[7] Vide Pedro de Sousa Macedo, Manual de Direito das Falências, vol. II, cit., págs. 61 e seguinte e, entre outros, os citados acórdãos do STJ de 15.3.2007-processo 07B436 e de 30.6.2011-processo 191/08.2TBSJM – H.P1.S1.
[8] Vide Carvalho Fernandes e João Labareda, CPEREF Anotado, 3ª edição (2ª reimpressão), Quid Juris-Sociedade Editora, 2000, págs. 454 e seguinte.

[9] Preceitua o art.º 186º (na redacção conferida pelo DL n.º 38/2003, de 08.3): Se não houver bens susceptíveis de apreensão no património do falido, o liquidatário judicial, ouvida a comissão de credores, levará a informação do facto aos autos, sendo o processo imediatamente concluso ao juiz, para que o julgue extinto por inutilidade da lide e ordene a menção desse facto no registo informático de execuções estabelecido pelo Código de Processo Civil, sem prejuízo da entrega ao Ministério Público, para os devidos efeitos, dos elementos que indiciem a prática de qualquer infracção criminal (n.º 1). A decisão de extinção a que se refere o número anterior pode ser revogada a todo o tempo, se forem encontrados bens susceptíveis de apreensão (n.º 2).

   E prevê o art.º 187º: Quando o liquidatário verificar que os bens apreendidos, ou que o possam ser, se mostram insuficientes para a satisfação das custas e mais despesas do processo, dará de igual modo conhecimento do facto ao juiz (n.º 1). Se a comissão de credores não se opuser, é determinada a imediata liquidação dos bens apreendidos, com dispensa das reclamações de créditos, para que o processo seja depois declarado findo e seja ordenada a menção desse facto no registo informático de execuções estabelecido pelo Código de Processo Civil, sem deixar de se entregar ao Ministério Público os elementos que interessem ao procedimento criminal (n.º 2). O produto da liquidação é destinado ao pagamento das custas e despesas de administração (n.º 3).
[10] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[11] Vide Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, Quid Juris-Sociedade Editora, 2009, pág. 602.

   Cf. entre outros, os citados acórdãos da RC de 24.02.2015-processo 3261/14.4TBLRA-C.C1 [defendendo-se que,  “por regra, o processo está pendente até ao momento da liquidação e rateio final, ou seja, quando se opera a liquidação do património e se distribui o produto pelos credores: art.º 230º, n.º 1, al. a) e art.º 182º do CIRE, existindo, assim, um ´termo final`”, pelo que não colhe “o argumento de que a apreensão do vencimento importaria uma pendência do processo ´ad eternum`, consignando-se expressamente no art.º 182º,  n.º 1 do CIRE que ´o encerramento da liquidação não é prejudicado pela circunstância de a actividade do devedor gerar rendimentos que acresceriam à massa`”] e da RL de 17.4.2012-processo 5329/11.0TCRLR-C.L1-7 [no qual, considerada a figura da exoneração do passivo restante, se questiona, designadamente: “Se o administrador pode proceder ele próprio, e mesmo contra a vontade do insolvente, à apreensão de parte do salário, enquanto perdurar o processo de insolvência (e poderá, eventualmente, perdurar enquanto houver salário e dívidas da insolvência) qual o sentido de premiar o insolvente com a concessão deste benefício – de extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que tal benefício é concedido – caso ele, voluntariamente, ceda o seu rendimento disponível durante os cinco anos seguintes ao encerramento?”].
[12] Que reza o seguinte: Os efeitos decorrentes da declaração de falência, relativos ao falido, podem ser levantados pelo juiz, a pedido do interessado, nos seguintes casos: a) Havendo acordo extraordinário entre os credores reconhecidos e o falido, homologado nos termos do artigo 237º; b) Depois do pagamento integral ou da remissão de todos os créditos que tenham sido reconhecidos; c) Pelo decurso de cinco anos sobre o trânsito em julgado da decisão que tiver apreciado as contas finais do liquidatário; d) Decorridos os prazos referidos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 225º, quando não tenha havido instauração de procedimento criminal e o juiz reconheça que o devedor, ou, tratando-se de sociedade ou pessoa colectiva, o respectivo administrador, agiu no exercício da sua actividade com lisura e diligência normal (n.º 1). A decisão é proferida no processo de falência, juntos os documentos comprovativos necessários e produzidas as provas oferecidas e depois de ouvido o liquidatário judicial, e será averbada à inscrição do registo da falência, a instância do interessado (n.º 2).
[13] Vide Carvalho Fernandes e João Labareda, CPEREF Anotado, cit., pág. 465, em anotação ao art.º 186º.

[14] Mormente quando se diz que “a apreensão da parte disponível do salário do Insolvente só pode subsistir até ao encerramento da liquidação do activo” e que “este termo final já ocorreu, dado que a liquidação do activo já terminou”.
[15] Vide, com interesse, Carvalho Fernandes e João Labareda, CPEREF Anotado, cit., pág. 536 e Pedro de Sousa Macedo, Manual de Direito das Falências, vol. II, cit., págs. 124 e seguinte.
[16] Estudo publicado na “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 55, Dezembro de 1995, p. 653, e ainda in Revista da FDUL, Vol. XXXVI, p. 328.
[17] “Efeitos da falência sobre a capacidade do falido, segundo o Código de Processo Civil”, in Estudos de Direito Comercial”, Vol. I Das Falências, Almedina, 1989, p. 16.
[18] Cfr., Acórdão do TRC de 24.10.2006, relatado por Freitas Neto, disponível in www.dgsi.pt., com o seguinte sumário: “O produto do trabalho (vencimento/salário) do falido, após a declaração da falência respetiva, está, em absoluto, fora do conjunto de bens ou direitos suscetíveis de apreensão em benefício da massa falida e, através dela, dos credores, não podendo ser apreendido, distinguindo-se, portanto, da penhora do salário do executado”. Em igual sentido se pronunciam os Acórdãos do TRC de 06-03-2007, relatado por Isaías Pádua, do TRP de 23-03-2009, relatado por Maria José Simões, também disponíveis na dgsi.
[19] “Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Juris, Lisboa 2008, pag. 340
[20] Cfr., neste sentido, Acórdão TRP de 23-03-2009, relatado por Maria José Simões, disponível na dgsi.
[21] “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2016 2ª ed. Almedina, p. 385.