Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ELISA SALES | ||
Descritores: | CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO SISTEMA DE PONTOS CONSTITUCIONALIDADE | ||
Data do Acordão: | 11/10/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – J1) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 148.º, N.ºS 1, 2, 3 E 4.º, AL. C), DO CÓDIGO DA ESTRADA (REDACÇÃO DA LEI N.º 116/2015, DE 28-08; ARTS. 18.º, N.º 2, E 29.º, N.º 5, DA CRP | ||
Sumário: | I – A decisão administrativa da cassação do título de condução, proferida em processo autónomo, relativa à perda total dos pontos atribuídos ao condutor, sendo a consequência legalmente prevista das condenações anteriormente sofridas por aquele, e não uma punição pelos mesmos factos, não viola o princípio ne bis in idem. II – O artigo 148.º do CE respeita os princípios constitucionais vigentes. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
I - RELATÓRIO P. veio interpor recurso da sentença que manteve a decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária que determinou a cassação do título de condução n.º C- ... de que é titular. * E, da motivação extraiu as seguintes conclusões: I. O Arguido foi julgado e condenado nos autos em epígrafe na cassação do título de condução n.º (…), por preenchimento dos pressupostos previstos no artigo 148.º, n.ºs 4, 10 a 12 do Código da Estrada. II. Viola o ne bis in idem (previsto no art. 29.º, n.º 5, da CRP e consagrado no art. 54.º da CAAS como princípio de preclusão e verdadeira proibição de cúmulo de ações penais) a presente sentença. III. O arguido cumpriu as penas aplicadas no âmbito dos processos citados na sentença a quo. IV. Ora, o Tribunal a quo ao aplicar a norma 148.º do Código da Estrada, viola a Constituição da República Portuguesa. V. Nos termos do artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), deveria antes tê-la desaplicado, revogando o despacho da Autoridade Administrativa, por a sua aplicação determinar a violação da CRP e, portanto, há uma irregularidade prevista no 123.º n.º 1 do Código Processo Penal, não podendo por isso manter-se a decisão recorrida. VI. Quer assim dizer-se que caso se entendesse que a lei processual estaria cumprida, a norma que determina a cassação do título de condução deverá ser considerada inconstitucional designadamente por violação de caso julgado e por inconstitucionalidade das normas 148.º e 149.º do Código da Estrada. VII. E, assim teria de julgar, de acordo com o artigo 204.º da CRP que refere “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.”. Devemos entender que nesta norma da CRP se prevê a competência exclusiva dos Tribunais para o conhecimento de questões de constitucionalidade colocadas nos processos judiciais. VIII. O Tribunal Constitucional apenas conhecerá da inconstitucionalidade das normas em segunda instância, isto é, depois de devidamente suscitadas no Tribunal Recorrido. IX. Como tem referido o Tribunal Constitucional, a esta aplicação subjaz a ideia segundo a qual a cada infração corresponde uma só punição, não devendo o agente ser sujeito a uma repetição do exercício do poder punitivo do Estado. X. Materialmente, à sua conduta já se fizera corresponder uma “punição” (em sentido amplo). XI. No caso sub judice, o arguido não incumpriu as injunções aplicadas. XII. O art. 29º, n.º 5 da CRP preceitua que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, assim se impedindo que uma mesma questão seja de novo apreciada. XIII. Do ne bis in idem resulta que o mesmo facto não pode ser valorado por duas vezes, isto é, a mesma conduta ilícita não pode ser apreciada com vista à aplicação de sanção por mais do que uma vez. XIV. Se se entender que a perda de pontos poderá preencher o elemento formal da pena acessória ou efeito da pena, já não preenche qualquer elemento ou pressuposto material. XV. Com efeito como pressuposto material da aplicação da pena acessória deveria averiguar-se da especial censurabilidade do condutor no caso concreto. XVI. Contudo, na verdade, tal instituto de subtração de pontos aplica-se de forma automática, não se ponderando a necessidade prática de aplicação ao arguido, ou seja, não há valoração de qualquer elemento ligado à prevenção especial, nem tão pouco uma graduação da culpa. XVII. O princípio da necessidade, subprincípio do princípio da proibição do excesso que “proíbe que a restrição [de direitos, liberdades e garantias] vá além do que o estritamente necessário ou adequado para atingir um fim constitucionalmente legítimo”, “impõe que se recorra, para atingir esse fim, ao meio necessário, exigível ou indispensável, no sentido do meio mais suave ou menos restritivo que precise de ser utilizado para atingir o fim em vista” (Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Ed. 2004, p. 167). XVIII. Nestas situações, qualquer condenação posterior numa pena representaria uma violação do princípio da necessidade, consagrado no art. 18º, n.º 2, da CRP, Constituição que o juiz de julgamento não pode deixar de aplicar. A sentença recorrida, ao condenar o arguido numa pena, não só manteve a violação do ne bis in idem, como afrontou o princípio constitucional da necessidade (da pena). XIX. O despacho de recebimento da acusação, o julgamento e a sentença são, por tudo, nulos. XX. Apresentam-se como constitucionalmente insustentáveis e o primeiro (o despacho de recebimento da acusação) deverá ser substituído por outro que, fazendo aplicação do ne bis in idem, rejeite a acusação do Ministério Público. XXI. Sem conceder, sempre se defende que se deve ter por excessiva a pena de aplicada, uma vez que o Arguido não tem antecedentes criminais, é pessoa bem-educada, bem considerada e com estima dos familiares, amigos e colegas, pacífica e completamente cumpridora dos seus deveres em sociedade, pelo que atendendo à factualidade resultante da produção de prova, às circunstâncias e ao facto de ser trabalhador e precisar do veículo para exercer a sua atividade profissional. XXII. Por todo o exposto deve o presente recurso vir a ser julgado procedente por provado e a douta sentença revogada, decidindo-se que pela não aplicação da sanção de cassação da carta de condução. XXIII. Sempre teremos que reconhecer que, em nenhuma das duas vezes o agente atuou com intenção de violar normas jurídicas, resultando em ambas as situações o não preenchimento de um pressuposto, absolutamente essencial, para toda e qualquer responsabilidade, o elemento subjectivo. XXIV. Ora, em ambos os acontecimentos, verifica-se a omissão do elemento subjetivo, isto é, inexistiu qualquer intenção do respondente de agir dolosamente, em violação das disposições penais. XXV. Pelo que se considera como proporcional e adequado a imposição de obrigação de frequência de ações de formação ou tão somente a obtenção de novo título de condução, mas de forma imediata, pressupondo sempre que o respondente é um excelente condutor, tanto mais que o faz profissionalmente, e do seu título de condução tem necessidade para o exercício da sua atividade profissional. NORMAS VIOLADAS XXVI. O Tribunal fez incorreta interpretação e aplicação do que vem disposto nos artigos 18.º, 29º, 204.ºda CRP e 123.º do CPP. PEDIDO XXVII. Nestes termos e nos melhores de Direito deve o presente recurso vir a ser julgado procedente por provado e a douta sentença revogada, decidindo-se que: O ora arguido/recorrente cumpriu as injunções que lhe foram cometidas, sendo que o processo deveria existindo uma clara violação do princípio ne bis in idem, artigo 29.º, n.º 5 e 18.º, n.º 2 da CRP, anulando-se o despacho de recebimento da acusação e, consequentemente, o julgamento e a sentença, devendo aquele despacho ser substituído por outro que, aplicando o ne bis in idem, rejeite a acusação do Ministério Público. Se assim não se considerar, sempre se deverá considerar que: XXIX. Deverá ao Arguido, aqui Recorrente, ser aplicada a oportunidade de frequência de formação sobre as regras estradais, ou ainda a retirada de título de condução com possibilidade imediata de obter novo título de condução. NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão exposta. * A Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância ofereceu resposta pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida. Nesta instância, o Exmº Procurador da República emitiu parecer no mesmo sentido. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, o arguido não respondeu. Os autos tiveram os vistos legais.
*** II- FUNDAMENTAÇÃO Consta da sentença recorrida: “A- Factos Provados 1- O recorrente é titular do título de condução n.º (…), habilitante à condução de veículo automóvel ligeiro (categoria B) e triciclo ou quadriciclo (categoria B1). 2- No processo sumário n.º (…) que correu termos no Juízo Local Criminal de Pombal, Juiz 2, o aqui recorrente foi condenado, por sentença judicial proferida a (…) e transitada a (…), pela prática, a (…), de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p.p. pelos arts. 292.º n.º 1 e 69.º n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 100 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizados pelo período de 9 meses. 3- No processo sumário n.º (…) que correu termos no Juízo Local Criminal de Pombal, Juiz 1, o aqui recorrente foi condenado, por sentença judicial proferida a (…) e transitada a (…), pela prática, a (…), de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p.p. pelos arts. 292.º n.º 1 e 69.º n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 85 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizados pelo período de 7 meses. 4- No procedimento administrativo que deu origem aos presentes autos, foi proferida a decisão administrativa ora impugnada, a qual, com fundamento nas condenações acima referenciadas, determinou a cassação do título de condução n.º (…), titulado pelo recorrente. * 5- A pena acessória referenciada em 3) foi declarada extinta pelo cumprimento a 23.12.2018. 6- A pena acessória referenciada em 4) foi declarada extinta pelo cumprimento a 06.10.2019. 7- O arguido declarou, em audiência de julgamento, que aceita frequentar acções de prevenção e segurança rodoviária em substituição da cassação do seu título de condução. * 8- O arguido foi, ainda, condenado: i. por sentença proferida a (…), transitada a (…), pela prática, a (…), de um crime de desobediência, na pena de 120 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses (processo … deste Juízo Local Criminal de Leiria, Juiz 1); ii. por sentença proferida a (…), transitada a (…), pela prática, a (…), de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, na pena de 180 dias de multa (processo …. deste Juízo Local Criminal de Leiria, Juiz 3); iii. por sentença proferida a (…), transitada a (…), pela prática, a (…), de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, na pena de 180 dias de multa (processo … do Juízo Local Criminal de Pombal, Juiz 2). * Da factualidade vertida na decisão administrativa e nas alegações de recurso, não ficaram por provar quaisquer factos com relevância para a decisão. * B - Motivação O tribunal baseou-se, para dar como provados os factos acima descritos, nos elementos documentais constantes dos autos e nas declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento. Assim, para prova do facto vertido em 1), relevou a consulta às bases de dados do IMT documentada a fls. 6. Para prova dos factos vertidos em 2), 3), 5) e 6) relevaram as cópias dos actos processuais praticados nos processos judiciais ali referenciados, documentadas a fls. 7-10 e 11-13vs, conjugadas com o teor do certificado do registo criminal de fls. 125-130vs, emitido a 30.12.2019. Para prova do facto descrito em 4), relevou o teor da decisão administrativa impugnada. Para prova do facto vertido em 7), relevaram as declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento. Para prova dos antecedentes criminais descritos em 8), relevou o teor do certificado do registo criminal de fls. 125-130vs, emitido a 30.12.2019, conjugado com o RIC emitido e junto aos autos a 08.01.2020, sendo certo que, quanto a este, não resulta do mesmo a prática de quaisquer contraordenações.” *** APRECIANDO Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, as questões suscitadas pelo recorrente são: -- a sentença recorrida violou o princípio ne bis in idem; …… e, em consequência, …… padece de nulidade o despacho de recebimento da acusação, o julgamento e a sentença, devendo o arguido ser absolvido; -- a inconstitucionalidade das normas dos artigos 148º e 149º do CE; e, -- a substituição da cassação do título de condução pela obrigação de frequência de acções de formação ou, seja determinada a obtenção de novo título de condução “de forma imediata”. * Questão prévia – Correcção da sentença: Foi dado como provado no ponto 3 da sentença recorrida que o aqui recorrente foi condenado no processo sumário n.º … (…) pela prática, a (…), de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (…). Todavia, como resulta de fls. 11/13 (respectiva acta de audiência de discussão e julgamento e dispositivo da sentença), de fls. 126 (CRC) e fls. 136 (RIC - Registo individual do condutor), o arguido foi condenado pela prática de um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, al. a) do CP, por referência aos artigos 152º, n.ºs 1, al. a) e 3 e 153º, ambos do CE. Ora, teremos de concluir que tal menção se deveu a mero lapso do tribunal, cuja rectificação não importa modificação essencial, cabendo a este tribunal de recurso, proceder à correcção da sentença, nos termos do que dispõe o artigo 380º, n.ºs 1, al. b) e 2 do CPP. Assim, no ponto 3 dos factos provados da sentença recorrida deverá constar a aludida rectificação do tipo de crime. * A- Sustenta o recorrente que a sentença recorrida violou o princípio ne bis in idem, previsto no artigo 29º, n.º 5, da CRP, por considerar que tendo cumprido as penas e sanções em que foi condenado, qualquer condenação posterior numa pena representaria uma violação do princípio da necessidade, consagrado no art. 18º, n.º 2, da CRP. Constituição que o juiz de julgamento não pode deixar de aplicar.
Não assiste razão ao recorrente. Vejamos: Segundo o princípio ne bis in idem, consagrado no n.º 5 do artigo 29º, da CRP, «Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime». Por “mesmo crime” deve considerar-se a mesma factualidade jurídica e o seu aspecto substancial; o crime deve considerar-se o mesmo quando exista uma parte comum entre o facto histórico julgado e o facto histórico a julgar e, que ambos tenham como objecto o mesmo bem jurídico ou formem, como acção que se integra na outra, um todo do ponto de vista jurídico. Ora, tal como foi dado como provado: No âmbito do processo sumário n.º (…), por sentença transitada em julgado, o arguido foi condenado pela prática, em (…), de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em pena de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizados pelo período de 9 meses. …… e, No processo sumário n.º (…), por sentença transitada em julgado, o arguido foi condenado pela prática, em (…), de um crime de desobediência, em pena de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizados pelo período de 7 meses. Portanto, tendo as duas sentenças transitado em julgado, não se compreende e não pode o recorrente argumentar, em sede do presente recurso, que “em nenhuma das duas vezes o agente atuou com intenção de violar normas jurídicas, resultando em ambas as situações o não preenchimento de um pressuposto, absolutamente essencial, para toda e qualquer responsabilidade, o elemento subjectivo”. Aliás, sublinha-se que no proc. n.º (…), como se verifica a fls. 8, consta da acta de audiência de discussão e julgamento que o arguido confessou integralmente os factos. No proc. n.º (…) a pena acessória foi declarada extinta pelo cumprimento em 23-12-2018, e no proc. n.º (…) a pena acessória foi declarada extinta pelo cumprimento em 6-10-2019.
A Lei n.º 116/2015, de 28 de Agosto, que entrou em vigor em 1-6-2016 (art. 6º), alterou o Código da Estrada e aditou o artigo 121º-A, sob a epígrafe “Atribuição de pontos”, nos termos do qual: «1- A cada condutor são atribuídos doze pontos. 2- Aos pontos atribuídos nos termos do número anterior podem ser acrescidos três pontos, até ao limite máximo de quinze pontos, nas situações previstas no n.º 5 do artigo 148.º 3- Aos pontos atribuídos nos termos dos números anteriores pode ser acrescido um ponto, até ao limite máximo de dezasseis pontos, nas situações previstas no n.º 7 do artigo 148.º»
Consta na exposição de motivos da proposta de Lei que esteve na origem da citada Lei n.º 116/2015 ([1]): «A presente proposta de lei destina-se a alterar o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio, implementando o regime da carta por pontos. O atual regime contempla já um sistema aproximado da carta por pontos, embora bastante mitigado. Trata-se, assim, de promover uma atualização do regime vigente, acompanhando a maioria dos países europeus, onde o regime da carta por pontos se encontra plenamente consagrado e estabilizado. A carta por pontos constitui uma das ações chave da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 54/2009, de 14 de maio. Pretende-se, com a sua implementação, aumentar o grau de percepção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adoptando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão. A análise comparada com outros países europeus demonstra que é expetável que a introdução do regime da carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública. O regime da carta por pontos é aplicável às infrações cometidas após a sua entrada em vigor, mantendo-se o atual regime inalterado para as infrações anteriormente praticadas.» é nosso o sublinhado
Sublinhámos o que entendemos ser o objectivo do legislador com o sistema da “carta por pontos”. Donde, na sequência da alteração operada no CE por esta Lei, o artigo 148.º do CE, sob a epígrafe “Sistema de pontos e cassação do título de condução”, com interesse para a presente decisão, passou a dispôr: «2- A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor. 4- A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos: a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes; b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos; c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor. 5- No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º-A. 10- A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução. 11- A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação. 12- A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação. 13- A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações.».
Resulta, assim, das disposições legais transcritas que com o artigo 121º-A do CE foram atribuídos ao condutor, ora recorrente, doze pontos. Todavia, por que após a entrada em vigor (em 1-6-2016) da Lei n.º 116/2015 o arguido foi condenado, por duas vezes (em menos de 1 ano), na pena acessória de proibição de conduzir, perdeu a totalidade dos pontos – 6 pontos por cada condenação. Pelo que, verificados os pressupostos previstos no artigo 148º, n.ºs 2 e 4, al. c), do CE, a Autoridade Nacional Segurança Rodoviária (ANSR), nos termos do n.º 10 do preceito, organizou o competente processo autónomo e proferiu a referida decisão de cassação do título de condução, decisão que foi impugnada pelo arguido, mas foi confirmada pela sentença recorrida. “A subtracção de pontos ao condutor habilitado com carta de condução é efeito automático da infracção cometida e não assume em si mesma qualquer natureza sancionatória.” – Ac. RP de 9-5-2018, proc. n.º 644/16.9PTPRT-A.P1 in www.dgsi.pt Decorre do exposto que a decisão administrativa da cassação do título de condução, proferida em processo autónomo e relativa à perda total dos pontos atribuídos ao condutor/arguido, mais não é do que a consequência legalmente prevista das condenações anteriormente sofridas pelo arguido/recorrente (no caso, concretamente, as penas acessórias de proibição de conduzir impostas pela prática dos crimes de condução em estado de embriaguez e de desobediência), e não, julgamento e punição dos mesmos factos, não ocorrendo, assim, a invocada violação do princípio ne bis in idem. Por conseguinte, contrariamente ao que afirma o recorrente, “não foi o arguido julgado numa segunda pena, apesar de não ter incumprido as injunções que lhe foram aplicadas”. Logo, Também carece de razão o recorrente ao considerar que o despacho de recebimento da acusação, o julgamento e a sentença são nulos, devendo ser rejeitada a acusação do Ministério Público por aplicação do ne bis in idem. Acrescendo que, a sentença recorrida ao manter a decisão da autoridade administrativa, para além de não violar o princípio do ne bis in idem, também não afrontou os princípios da proporcionalidade e da necessidade previstos no n.º 2 do artigo 18º da CRP, contrariamente ao que afirma o recorrente. Como sublinha o TC no Ac. n.º 260/2020, de 13-5-2020: “O princípio da proporcionalidade ocupa um lugar central no nosso ordenamento jurídico-constitucional, no que diz respeito ao controlo dos atos do poder público, nomeadamente na avaliação da conformidade constitucional das restrições de direitos fundamentais. De acordo com o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, tais restrições devem «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos». É à luz deste preceito que terá lugar a aplicação dos três subprincípios em que se desdobra o princípio da proporcionalidade: idoneidade (ou adequação), necessidade (ou indispensabilidade) e justa medida (ou proporcionalidade em sentido estrito). O ponto de partida da análise é, portanto, a identificação do bem jurídico afetado pela restrição, para aferir se este se encontra protegido por um direito fundamental. Todavia, no caso da norma em análise (art. 148º CE), não se identifica nenhum direito fundamental que seja restringido. Não existe, com efeito, um direito fundamental absoluto a conduzir veículos a motor, designadamente na via pública, independentemente da verificação da aptidão da pessoa para a condução. Trata-se de uma atividade dependente da atribuição de licença ou carta de condução e está depende da verificação de requisitos positivos e negativos estabelecidos pelo legislador. Não existindo uma restrição de um direito fundamental, não existe razão para mobilizar o princípio da proporcionalidade com este fundamento.”. * B- Alega o recorrente que “caso se entendesse que a lei processual estaria cumprida, a norma que determina a cassação do título de condução deverá ser considerada inconstitucional designadamente por violação de caso julgado e por inconstitucionalidade das normas 148.º e 149.º do Código da Estrada.”. Ou seja, com o fundamento da violação dos princípios do ne bis in idem, da proporcionalidade e da necessidade, considera o recorrente que o tribunal a quo ao aplicar a norma 148º do Código da Estrada, viola a Constituição da República Portuguesa.
No que respeita ao artigo 149º do CE, que versa sobre o registo de infracções relativas ao exercício da condução, não há qualquer alusão a este preceito na sentença recorrida, nem o recorrente concretiza qualquer segmento normativo desse artigo que infrinja a Constituição, pelo que se entenderá que o recorrente apenas pretende suscitar a inconstitucionalidade da norma do artigo 148º do CE. “A suscitação da questão de inconstitucionalidade tem de traduzir-se numa alegação na qual se indique a norma ou dimensão normativa que se tem por inconstitucional e se problematize a questão de validade constitucional da norma (dimensão normativa) através da alegação de um juízo de antítese entre a norma/dimensão normativa e o(s) parâmetro(s) constitucional(ais), indicando-se, pelo menos, as normas ou princípios constitucionais que a norma sindicanda viola ou afronta.” – Ac. do TC n.º 146/2010, de 14-4-2010. Ora, contrariamente ao entendimento do recorrente, e como deixámos exarado supra, não se verifica um duplo sancionamento entre, por um lado, a aplicação das penas acessórias aplicadas pelos dois crimes, de condução em estado de embriaguez e de desobediência, pelos quais foi condenado nos referidos processos criminais e, por outro lado, a subsequente decisão administrativa de cassação do seu título de condução determinada ao abrigo do disposto no artigo 148º do Código da Estrada. Com efeito, o que está em causa na cassação é a inidoneidade para a condução de veículos com motor, decorrente das anteriores condenações por crimes rodoviários, e não um novo sancionamento pela prática daqueles crimes. – Ac. RG de 17-12-2020, proc. n.º 1732/20.2T8BCL.G1 in www.dgsi.pt. Por outro lado, como sublinha o citado Ac. do TC n.º 260/2020, não existe uma restrição de um direito fundamental, porquanto, não existe um direito fundamental absoluto a conduzir veículos a motor, designadamente na via pública, independentemente da verificação da aptidão da pessoa para a condução. Trata-se de uma atividade dependente da atribuição de licença ou carta de condução e está depende da verificação de requisitos positivos e negativos estabelecidos pelo legislador. Conclui-se, assim, pela conformidade da norma constante do artigo 148º do Código da Estrada, com os princípios constitucionais vigentes. * C- Defende o recorrente que não lhe deve ser aplicada a cassação da carta de condução, o que considera excessivo, uma vez que não tem antecedentes criminais, é pessoa bem-educada, bem considerada e com estima dos familiares, amigos e colegas, pacífica e completamente cumpridora dos seus deveres em sociedade, pelo que atendendo à factualidade resultante da produção de prova, às circunstâncias e ao facto de ser trabalhador e precisar do veículo para exercer a sua atividade profissional. Pugna, assim, pela imposição da obrigação de frequência de ações de formação ou tão somente a obtenção de novo título de condução mas de forma imediata. Sucede que as pretensões do recorrente mostram-se inviabilizadas pelo disposto nos n.ºs 4 e 11 do artigo 148º, do CE, os quais passamos a transcrever para melhor percepção: «4- A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos: a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes; b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos; c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor. 11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.»
O processo de cassação do título de condução, de natureza administrativa e da competência da ANSR, depende da verificação de concretos pressupostos: sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor, não sendo de considerar as condições pessoais do condutor, designadamente ser pessoa bem considerada e de precisar do veículo para exercer a sua atividade profissional. Por consequência, não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação. E, quanto à frequência de acções de formação de segurança rodoviária, tal só seria possível se o condutor tivesse cinco ou menos pontos; o que não é o caso, dado o recorrente ter perdido todos os pontos, como consequência necessária e automática do trânsito em julgado das sentenças condenatórias que lhe aplicou as penas acessórias de proibição de conduzir. * Improcede, pois, na totalidade, a argumentação do recorrente. ***** III- DECISÃO Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em: a) - Corrigir a sentença recorrida, nos seguintes termos: O ponto 3 dado como provado na sentença recorrida passa a ter a seguinte redacção: « 3- No processo sumário n.º 399/18.2GCPBL que correu termos no Juízo Local Criminal de Pombal, Juiz 1, o aqui recorrente foi condenado, por sentença judicial proferida a 07.01.1019 e transitada a 06.02.2019, pela prática, a 22.12.2018, de um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, al. a) do CP, por referência aos artigos 152º, n.ºs 1, al. a) e 3 e 153º, ambos do CE e, 69.º n.º 1, alínea c), do CP, na pena de 85 dias de multa e, na pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizados pelo período de 7 meses.» Proceda à rectificação na própria sentença, a fls. 141
b) - Negar provimento ao recurso.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 3UCs a taxa de justiça.
***** Coimbra, 10 de Novembro de 2011 Texto processado em computador e integralmente revisto pela relatora e assinado electronicamente - artigo 94º, n.º 2 do CPP
Elisa Sales (relatora)
Jorge Jacob (adjunto)
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