Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3540/19.4T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: ARRENDAMENTO RURAL
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTº 1732º, 1733º E 1068.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: No domínio do arrendamento rural, a posição de arrendatário não se comunica ao seu cônjuge.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

AA instaurou ação contra BB, CC e mulher, DD, pedindo:

1. Seja declarada a existência e vigência actual de um contrato de arrendamento rural celebrado, há mais de 20 anos, entre o falecido marido da A., EE, e o primeiro réu (ou seus antecessores), sobre os respectivos prédios rústicos, compostos de terra de semeadura e arroz, sitos em (extinta) freguesia do concelho ..., os quais, por força do emparcelamento da margem esquerda do Baixo Mondego, ocorrido no ano de 2015, correspondem ao actual prédio rústico/lote nº ...80, situado na (actual) União das Freguesias ..., ... e ..., daquele concelho;

2. Seja declarado que a Autora é a actual arrendatária do referido lote e titular do contrato de arrendamento;

3. Seja o contrato de arrendamento celebrado entre os RR., sobre o lote ...80, declarado nulo e de nenhum efeito e ineficaz em relação à A., sendo legalmente inválido;

4. Sejam os RR. condenados a reconhecer os três anteriores pedidos, e a restituírem à A., livre de quaisquer bens ou culturas que lhes pertençam, o lote ...80, bem como a não impedirem ou absterem-se de perturbar a Autora, por si ou por outrem a seu mando ou em sua representação, seja por que meio ou modo for, de cultivar o referido lote;

5. Sejam os RR. condenados a pagar à A., solidariamente, a quantia de € 1.341,05, por não ter podido exercer, sobre o lote em causa, nos anos de 2016, 2017 e 2018, os direitos de que é titular;

6. Sejam os RR. condenados solidariamente a indemnizar a Autora dos prejuízos decorrentes da falta de rendimentos pelo não cultivo do lote ...80 nos anos de 2016 e 2018, no total de € 3.609,62;

7. Sejam os RR. condenados solidariamente a indemnizar a Autora pelos prejuízos, seja qual for a sua proveniência, a partir do ano de 2019 (inclusive), até que o lote ...80 lhe seja restituído ou entregue para cultivo, a liquidar em execução de sentença;

8. Sejam os RR. condenados a pagar juros em relação aos valores de sua responsabilidade, à taxa legal, contados desde a citação, até efetivo ou integral pagamento.

Alega, para tanto, em síntese:

Foi casada com EE, no regime da comunhão geral de bens, tendo o marido falecido no dia .../yy/2016, no estado de casado com ela, sem testamento ou qualquer disposição de última vontade, tendo deixado, como únicos e universais herdeiros, a autora, sua viúva, e um filho do casal, FF.

Há mais de 20 anos, antecessores do 1º réu, por este continuado, deram de arrendamento ao marido da autora, por contrato verbal, vários prédios rústicos de que eram proprietários, mediante o pagamento de uma renda anual, a pagar no final de cada ano.

O falecido marido da autora era agricultor e desde a celebração do contrato até ao final do ano de 2014 explorou os arrendados.

No ano de 2015, decorreu uma operação de emparcelamento que abrangeu os terrenos; para permitir essa operação de emparcelamento, os prédios explorados pelo falecido marido da A., ficaram em pousio em 2015, tendo sido acordado com a Direcção Geral da Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR) receber uma indemnização no valor de € 62.327,01.

Após a operação de emparcelamento, o objeto locatício passou a ser o lote ...80.

Entretanto, o marido da A. adoeceu, tendo entregue ao filho, FF, a gestão ou administração da sua vida, tendo outorgado procuração na qual conferiu amplos poderes de administração.

As rendas dos anos de 2015 e 2016, relativas ao lote ...80, foram pagas em dezembro do respetivo ano.

No início de 2016, quando o filho da A. se aprestava para cultivar o lote, verificou que o mesmo se encontrava cultivado. Em 29 de agosto de 2016, foi enviada ao R./proprietário uma carta registada, dada a conhecer aos 2ºs RR., onde se deu nota da ocupação indevida do terreno por estes RR e de que, no ano seguinte, o filho da A. tencionava cultivá-lo.

Na carta enviada foi também solicitada a redução a escrito do contrato.

Até hoje nenhuma resposta houve às cartas e o contrato não foi reduzido a escrito.

Entretanto, o marido da A. faleceu no dia .../yy/2016, tendo deixado como seus únicos e universais herdeiros a Autora e o filho do casal, FF.

Após o óbito, foi o filho quem, em nome da A., e com o seu conhecimento, continuou a gerir e a administrar todo o património existente.

Em .../kk/2016, o filho da A., em nome e com o conhecimento desta, enviou ao proprietário/1º R. uma carta registada, com aviso de recepção, por ele recebida, em que lhe deu conhecimento do óbito do pai e o notificou da pretensão da A. de assumir a titularidade no contrato.

No ano de 2017, a Autora, por intermédio do filho, cultivou o lote em apreço.

No ano de 2018, após o filho da A. preparar o terreno para o semear, foi confrontado com uma decisão proferida em providência cautelar requerida pelo 2º R. marido; por força desta, a Autora, a partir do ano de 2018, ficou impedida de cultivar o lote ...80.

A partir de 2018, são os 2ºs RR quem está na posse do lote, quem cultiva e retira dele todos os rendimentos, com a cumplicidade do 1º R.

Entretanto, a Autora teve conhecimento que o 1º R. terá dado de arrendamento aos 2ºs RR. o referido lote.

A situação gerada pelos RR. causou prejuízos à Autora, que enumera.

Os réus contestaram, em síntese:

Em .../12/2014, o falecido marido da Autora procedeu de livre e espontânea vontade à entrega das terras de que tinha sido arrendatário rural ao proprietário, 1º réu, assim pondo termo ao respectivo contrato, verbalmente, tendo o senhorio recebido as terras que assim lhe foram entregues, aceitando o termo do contrato de arrendamento.

O marido da autora pôs termo ao contrato de arrendamento antes de ter constituído o seu filho como procurador, pelo que, ainda que este tivesse poderes de representação do seu pai, já não podia desfazer o que pelo representado estava feito.

Relativamente à renda de 2015, o que sucedeu foi que o 1º réu não conhecia o filho da autora, pelo que não o reconheceu quando este lhe apareceu, no final desse ano, e aquele também não se identificou, dizendo apenas que vinha pagar as rendas das antigas terras, ficando o 1º réu erroneamente convencido que se tratava do pagamento da renda devida pelos arrendatários de um outro lote de que também é proprietário.

Quando se apercebeu do erro, quis devolver a quantia indevidamente recebida a título de renda ao filho da autora, mas não sabia sequer quem este era ou onde morava e, tendo pedido ajuda a terceiros, foi informado de que era escusado devolver-lhe o dinheiro que ele não o aceitaria senão em tribunal.

No que concerne ao suposto pagamento da renda de 2016, o cheque foi devolvido.

Relativamente às cartas de .../xx/2016, as mesmas não obtiveram resposta, porquanto os seus destinatários estavam cientes e convictos que o falecido marido da autora não era já arrendatário, pelo que tal comunicação era absurda.

No ano de 2016, o lote ...80 começou a ser cultivado pelo 2º Réu, com autorização para tal do 1º Réu.

A autora não é arrendatária de tal lote, uma vez que o seu marido havia posto termo ao contrato de arrendamento anteriormente existente que não se transmitiu, por sua morte, à sua mulher. Não sendo arrendatária, a autora não podia cultivar o lote ...80, pelo que não sofreu quaisquer danos por ter sido impedida, através do seu filho, de continuar a cultivá-lo.

Entretanto, foram proferidas decisões que julgaram habilitados FF, como sucessor da autora AA, e GG, HH, II e JJ como sucessores do réu BB.

Realizado o julgamento, foi proferida decisão que julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo os Réus do pedido.


*

Inconformado, o habilitado Autor recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1ª. Vem o presente recurso, versando tanto sobre a matéria de facto, como de direito, interposto da prolatada sentença que julgou a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os réus do pedido.

2ª. a) Para tanto, considerando o objecto do litígio e os temas da prova, foram, entre outros, provados os seguintes factos (numeração da sentença): (…)

b) Por outro lado, foram considerados não provados os seguintes factos: (…)

3ª. A sentença deve ser revogada, com as legais consequências, por erro de julgamento na aplicação ou determinação do direito.

4ª. Sem embargo, o Autor/Recorrente considera incorrectamente julgados os seguintes factos: a) Quanto aos factos considerados provados: 29. 30. 31. 32. 33. 34. 35. 36. 38. 39. 40. 41. 45. 46. 47. 48. b) Quanto aos factos considerados não provados: 2. 4. 7. 14. 15.

5ª. Dos documentos junto aos autos conjugados com os depoimentos de testemunhas e declarações de parte concretamente analisados e resumidos, e conjugados também com as regras da experiência e do normal acontecer, e ainda com o disposto nos artºs 12º, nºs 1 e 2 e 15º do Dec. Lei nº 384/88, bem como na al. a) do nº 1 do artº 18º do Dec. Lei nº 385/88, ambos de 25 de Outubro, devidamente interpretados e aplicados, impõe-se alterar as decisões dos seguintes factos, no sentido indicado: 1 – Os factos considerados “provados” sob 29 a 36 e 38 a 48, devem ser alterados e integrados nos factos “não provados”. 2 – Os factos considerados “não provados” sob 2, 4, 7, 14 e 15, devem ser alterados e integrados nos factos “provados”.

6ª. A sentença ora em recurso, violou, neste caso, nomeadamente, o disposto nos artºs 12º, nºs 1 e 2 e 15º do Dec. Lei nº 384/88, bem como na al. a) do nº 1 do artº 18º do Dec. Lei nº 385/88, ambos de 25 de Outubro, por não aplicação.

7ª. Uma vez alterados os factos referidos no sentido indicado, deve ser proferido acórdão que julgue a acção procedente por provada, nos precisos termos da PI, exceto quanto às indemnizações peticionadas, cuja liquidação deve ser relegada para execução de sentença. Sem embargo,

8ª. O Tribunal a quo, com fundamento exclusivo em que o pai do A., enquanto arrendatário, em fins de 2014 entregou ao 1º Réu os terrenos que dele cultivava a tal título, pondo, deste modo, naquela data, termo aos respectivos contratos, julgou a acção improcedente por considerar a incomunicabilidade entre cônjuges, casados entre si no regime da comunhão geral de bens, de tais contratos.

9ª. Os pais do A. eram, de facto, casados um com o outro, em primeiras e únicas núpcias de ambos, naquele regime de bens, como comprovado.

10ª. O direito ao arrendamento rural constitui um bem ou valor patrimonial que se insere no domínio dos bens do casal, com evidentes reflexos na economia do lar conjugal, senão mesmo na subsistência do agregado familiar, sendo que, como também comprovado, os pais do Autor sempre viveram, exclusivamente, dos rendimentos obtidos na exploração de terrenos próprios e arrendados.

11ª. Trata-se, portanto, de um valor ou direito que, no regime da comunhão geral de bens, integra a comunhão de bens do casal, constituindo um valor acentuadamente patrimonial que seria injusto, nesse regime de bens, subtrair à regra da simultânea titularidade dos cônjuges, não estando excluído dessa comunhão, conforme resulta do disposto nos artºs 1732º e 1733º do CCivil.

12ª. Nestas circunstâncias, não constituindo a denúncia de um contrato de arrendamento rural a prática de acto de administração ordinária, a denúncia do contrato (ou contratos) pelo pai do A., sem a intervenção ou consentimento do seu cônjuge, não pode ser considerada validamente efectuada, sendo nula e de nenhum efeito, se feita, com as legais consequências (artº 199º, nº 1 do CPC).

13ª. Assim considerando, e sem embargo quer da revogação da sentença, quer da procedência da acção, por força da alteração da matéria de facto no sentido indicado, deve, ser proferido Acórdão que julgue a acção procedente por provada nos termos referidos na cláusula 7ª, que aqui se dá por reproduzida, para os devidos e legais efeitos.

14ª. A sentença ora em recurso, violou, neste caso, nomeadamente, o artº 18º, nº 1, al. a) do Dec. Lei nº 385/88, de 25 de Outubro, bem como os artºs 1732º e 1733º, ambos do CCivil, por não aplicação.


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            Os Réus contra-alegaram, defendendo a correção do decidido.

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As questões a decidir são as seguintes:

A reapreciação da matéria de facto impugnada;

As consequências da referida reapreciação;

A comunicabilidade do arrendamento ao cônjuge.


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A reapreciação da matéria de facto impugnada.

Sem prejuízo dos demais factos, está essencialmente em causa a entrega voluntária das terras pelo pai do (habilitado) Autor ao senhorio.

Na reapreciação dos factos, o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.662, nº1, do CPC).

Este tribunal forma a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos impugnados.

Os elementos probatórios apresentados para a concreta reapreciação estão sujeitos à livre apreciação do julgador.

Lembremos também que a aplicação do regime processual em sede de modificação da decisão da matéria de facto conta necessariamente com a circunstância de que existem fatores ligados aos depoimentos que, sendo passíveis de influir na formação da convicção, não passam nem para a gravação nem para a respectiva transcrição. É a imediação da prova que permite detetar diferenças entre os depoimentos, tornando possível perceber a sua maior ou menor credibilidade.

O Recorrente indica certa prova documental e excertos dos depoimentos de CC, GG, as suas próprias declarações, KK, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, RR, SS, ... e ....

Ora, reapreciada a prova documental e a pessoal indicada, a nossa convicção vai em sentido essencialmente idêntico ao formado pelo tribunal recorrido, ou seja, o falecido arrendatário, por razões de saúde, entregou o locado ao senhorio em dezembro de 2014, o que foi aceite por este, para extinção do contrato.

Vejamos:

As declarações indicadas pelo Recorrente apresentam-se limitadas, sendo uma parcela de tudo o que disseram, procurando aquele infirmar com isso, insuficientemente, o que resulta do conjunto declarativo abaixo indicado.

Devemos ainda notar, previamente, que depoimentos interessados não são necessariamente depoimentos sem credibilidade.

Também não é desconsiderável o que já foi decidido no processo 3243/18, com acórdão da 3ª secção desta Relação, já transitado.

CC explica, de forma verosímil, o contexto do seu arrendamento, referindo que teve conhecimento, através do engenheiro responsável pelo emparcelamento, que o falecido BB tinha lotes para arrendar porque o falecido FF entregou àquele as terras que antes tinha arrendado; disse que o pai do Autor lhe transmitiu a vontade de deixar aquela terra por diversas vezes; percebeu a sua doença; disse que o falecido BB lhe contou a entrega; esclareceu que o habilitado Autor não ajudava o pai nas terras (tinham divergências) e que este lhe disse que o filho não queria saber das terras para nada, tendo uma empresa de caleiras.

GG referiu que o falecido BB lhe disse que o pai do autor, antes do emparcelamento, entregou as terras que tinha arrendadas ao identificado falecido; encontrou na casa que lhe foi legada um escrito (junto), pertencente ao BB, que diz: “entregou terra no dia 3/12/2014”; referiu que o BB lhe contou que ainda tentou convencer o pai do Autor a continuar a cultivar, o que aquele recusou por causa da sua idade.

NN, de forma relativamente vaga, ouviu dizer que na altura do emparcelamento o pai do Autor entregou as terras arrendadas aos senhorios; depois do emparcelamento, foi sempre o CC quem agricultou o lote ...80, o que constatou; depõe ainda sobre a sua situação singular.

QQ esclarece que foi senhorio do pai do Autor e que, no final do ano de 2014, quando ele lhe foi pagar a renda, entregou-lhe o envelope (junto) onde escreveu “a terra fica entregue”, esclarecendo ainda que o pai do Autor entregou pessoalmente a renda do ano de 2014 e a terra que tinha arrendada; diz que o pai do Autor lhe referiu que entregava a terra porque já não tinha condições para as amanhar; uma semana depois do pai do Autor lhe ter entregue a terra, ouviu outras pessoas dizerem o mesmo.

RR diz que o falecido pai do Autor lhe disse “vou entregar as terras todas de que sou rendeiro”, o que veio a confirmar no final de 2014, depois da colheita; fê-lo porque estava doente, saturado, não se sentia capaz de continuar a trabalhar e não tinha ninguém que o ajudasse; confrontado com os documentos, referiu que eram estes envelopes que o falecido pai do Autor entregou aos senhorios quando foi entregar as terras; confirmou que o Autor pagou uma renda ao falecido BB, uma vez que este não sabia quem era o autor; quando o falecido tentou devolver a renda ao habilitado Autor, este não a aceitou.

KK assistiu à entrega de terras feita pelo falecido pai do Autor à sua tia TT, que era também senhoria daquele, esclarecendo que ele levava um envelope com um papel lá dentro, pagou a renda e disse que entregava as terras todas que tinha arrendadas; justificou a sua atitude referindo que já não podia tratar das terras e o filho não o ajudava; depois do emparcelamento, o 2º réu começou a cultivar o lote; confirmou que o falecido BB lhe disse que o pai do autor lhe tinha entregue as terras.

UU referiu ter ouvido dizer da vontade do falecido em entregar as terras que tinha arrendadas, por estar doente; também o BB, para si uma pessoa muito séria, lhe disse que o pai do Autor lhe entregou as terras; chegou a ver os envelopes que o pai do Autor entregou ao seu sobrinho e a VV.

... disse que o pai do Autor, em 2014, por motivos de saúde, entendeu cessar a actividade agrícola; a sua vontade foi expressa relativamente aos lotes ...9 e ...9-A, propriedade da sua esposa e da sua cunhada (já falecida); o pai do Autor escreveu num envelope que entregava a terra, papel que a testemunha tem na sua posse; confrontado com o documento junto, esclareceu que WW era a sua sogra e que foi este envelope que foi entregue pelo pai do Autor à sua cunhada; referiu ainda, quando se dirigiu aos serviços da agricultura para fazer a inscrição para receber o subsídio relativo ao emparcelamento, informaram-no que o habilitado Autor já se tinha inscrito para esse efeito; ligou ao Autor que resolveu desistir da inscrição.

SS, engenheiro, funcionário do Ministério da Agricultura, conhece os envolvidos e foi o obreiro do emparcelamento das terras do Baixo Mondego. O mesmo disse que apareceram várias pessoas no seu serviço a quem o pai do Autor tinha entregue as terras; disse que o habilitado Autor tem uma empresa de caleiras e que tinha uma visão diferente do seu pai quanto à técnica agrícola, não se entendendo com este; explicou que o pai do Autor, por já não ter saúde, começou a entregar as terras arrendadas aos senhorios em 2013/2014.

... disse que o pai do Autor entregou as terras arrendadas aos senhorios em 2014, por motivos de saúde; quando entregava as terras aos senhorios escrevia nos envelopes onde levava o dinheiro das rendas “as terras estão entregues”; referiu que uma vez foi, juntamente com o seu pai, visitar o pai do Autor a casa deste, tendo o falecido dito, à frente do filho, que tinha entregue as terras aos senhorios; confirmou que o falecido BB lhe contou que o pai do Autor lhe entregou a terra; disse que toda a gente sabe que o pai do Autor entregou as terras.

É certo que LL, MM e OO referiram que o pai do Autor nunca lhes falou que ia entregar as terras, o que não tem necessariamente, só por si, efeito infirmatório.

O referido testemunho de MM é limitado e padece do facto de vir de alguém que foi condenado no processo crime nº 98/16...., tendo confessado que foi o habilitado Autor quem pagou a indemnização em que todos foram condenados naquele processo. Pelo mesmo motivo, o referido depoimento de OO.

PP não sabe esclarecer o conteúdo da conversa que viu decorrer entre o habilitado Autor e BB.

Importa ainda referir a ata da reunião da Confraria do ... da freguesia ..., onde se relata a entrega das terras pertencentes a esta, em contexto idêntico ao referido para os outros proprietários.

Assim, as declarações do habilitado Autor não são confirmadas seguramente por outra prova, estando isoladas, nomeadamente quando diz que, em março de 2015, foi o pai quem se dirigiu ao Ministério da Agricultura para informar que terrenos cultivava para efeitos de atribuição da indemnização pelo emparcelamento.

Finalmente, existe explicação verosímil para o pretenso recebimento da renda de 2015.

Neste contexto, podemos afirmar que, apesar de algumas referências ao facto serem indiretas, são abundantes as ligações entre elas e às referências diretas, dando-nos coerência e segurança a respeito da referida entrega do locado.

Assim, os factos assentes em 29 a 36, 38, 40, 41 e 46 devem manter-se, assim como os não provados em 14 e 15.

Sobre as procurações (factos 39, 45, 47 e 48):

Verdadeiramente, estes pontos não são factos, mas sim interpretação das procurações, o que constitui matéria de direito.

Sendo assim, o correto é retirá-los da matéria de facto e inserir o próprio conteúdo das procurações.

Considerando estas (solução para as incapacidades dos pais) e o facto do habilitado Autor ser filho único, admite-se que este, após o óbito do seu pai, foi quem continuou a gerir e a administrar todo o património existente.

Ainda especificamente sobre os indicados factos não provados:

O documento nº 4 junto com a petição não contém qualquer acordo de pagamento celebrado entre o pai do Autor e a Direcção Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural, não estando assinado.

Os demais documentos (16 e 17 juntos com a petição, declaração de indemnização, assinada pretensamente pelo habilitado Autor, e documento nº 2 junto na audiência), também por serem relativos a relação com entidade terceira, estranha à relação locatícia, mereciam apoio probatório externo, devendo ainda ser entendidos como meros indícios rejeitados pela prova declarada aceite e considerada, não infirmando seguramente o raciocínio supra expresso.

Pelo exposto, julgamos a impugnação improcedente, mantendo a matéria de facto como já decidido, com a modificação relativa às procurações, do seguinte modo:

Factos provados:

1. A falecida autora, AA, foi casada com EE, em primeiras e únicas núpcias de ambos e no regime da comunhão geral de bens;

2. EE faleceu em .../yy/2016, no estado de casado com AA, sem ter feito testamento ou qualquer disposição de última vontade, tendo deixado, como únicos e universais herdeiros, a identificada cônjuge e um filho do casal, FF, ora autor;

3. Há mais de 20 anos, antecessores do 1º réu, por este continuado, deram de arrendamento ao pai do ora autor, por contratos verbais, vários prédios rústicos de que eram proprietários, compostos de terra de semeadura e arroz, sitos em (extinta) freguesia do concelho ..., mediante o pagamento de rendas anuais, a pagar no final de cada ano;

4. O falecido pai do autor era agricultor e, desde a celebração dos contratos, até ao final do ano de 2014, explorou os arrendados, lavrando-os, semeando-os, vigiando-os, tratando das sementeiras, colhendo e vendendo as produções;

5. O que sucedeu com o conhecimento dos proprietários, sem qualquer oposição, à vista dos vizinhos e das pessoas que passavam junto dos prédios objecto dos contratos, pagando todos os anos as rendas;

6. Era o pai do autor quem negociava ou celebrava os contratos e pagava as rendas e era ele quem cuidava dos terrenos (próprios e arrendados) de cujos rendimentos o agregado familiar vivia, e sempre viveu, exclusivamente, sendo ele o agricultor;

7. Desde a celebração dos contratos até ao final de 2014, para além de cuidar dos terrenos, o pai do autor pagou anualmente as rendas, no final de cada ano e em dinheiro;

8. No ano de 2015, decorreu a operação de emparcelamento do perímetro da margem esquerda do Rio Mondego (Baixo Mondego), denominado Bloco ...6, que abrangeu os terrenos situados nas referidas (extintas) freguesias do concelho ...;

9. Para permitir essa operação de emparcelamento, os prédios cultivados pelo pai do autor, próprios e arrendados, como os demais ali situados, ficaram em pousio em 2015;

10. Após a operação de emparcelamento resultaram para o proprietário (1º Réu) os prédios rústicos/lotes nºs ...8 e ...80, sitos na União das Freguesias ..., ... e ...;

11. O lote ...80 tem a área de 1,2303 ha;

12. Entretanto, o pai do autor adoeceu, tendo outorgado ao filho procuração com poderes de administração;

13. A renda relativa ao lote ...80, do ano de 2015, foi paga em mão;

14. Relativamente ao ano de 2016, foi passado um cheque, que foi devolvido;

15. No início de 2016, o autor verificou que o lote ...80 estava cultivado;

16. Em 29 de Agosto de 2016, foi enviada ao réu/proprietário uma carta registada, dada a conhecer por igual meio, e na mesma data, aos 2ºs e 3ºs réus, onde se deu conta da ocupação do terreno por estes réus e de que no ano seguinte o ora autor tencionava, pelo pai, cultivá-lo;

17. Na carta enviada ao proprietário, foi solicitada a redução a escrito do contrato verbal;

18. As cartas não obtiveram resposta e o contrato não foi reduzido a escrito;

19. Em .../.../2015, a falecida mãe do autor outorgou procuração ao seu filho, ora autor, para que este gerisse e administrasse os seus bens;

20. Com data de .../kk/2016, o ora autor enviou ao 1º réu uma carta registada com aviso de recepção, por ele recebida, em que lhe deu conhecimento do óbito do pai;

21. Na mesma carta foi o 1º réu notificado da pretensão da mãe do autor de assumir a titularidade no contrato (ou contratos) de arrendamento celebrados entre ele e o seu falecido marido, tendo sido reiteradas as anteriores missivas;

22. No ano de 2018, o 2º réu marido instaurou contra o ora autor providência cautelar, que correu termos sob o nº 3243/18....-A, no J... deste Juízo Local Cível, cuja decisão, decretada em maio de 2018, determinou a restituição provisória ao requerente da posse do lote ...80;

23. O 1º réu deu de arrendamento ao 2º réu o referido lote ...80;

24. O falecido pai do autor foi, durante vários anos, arrendatário rural de prédios rústicos sitos em ..., ao abrigo de contratos de arrendamento não reduzidos a escrito, sendo a renda a pagar ao final de cada ano;

25. Prédios esses alguns dos quais vieram a dar origem, depois do emparcelamento, ao lote ...80, pertencente ao falecido réu BB e, antes dele, a sua mãe, a quem aquele sucedeu na titularidade do direito de propriedade;

26. O pai do autor desenvolveu nos prédios do 1º réu e seus antecessores as atividades próprias de um arrendatário rural, sendo ele quem celebrou o contrato de arrendamento e quem pagava as rendas;

27. Desde a celebração do contrato até .../12/2014, o falecido EE pagou as rendas, no final de cada ano, em dinheiro;

28. Por causa das operações de emparcelamento ocorridas na margem esquerda do Mondego, os terrenos que tinham estado arrendados ao pai do autor e que estavam por ele abrangidos não podiam ser cultivados em 2015;

29. No dia .../12/2014, o falecido pai do autor procedeu de livre e espontânea vontade à entrega das terras de que tinha sido arrendatário rural ao 1º réu, assim pondo termo ao respectivo contrato, verbalmente;

30. Tendo o senhorio, o falecido BB recebido a renda e as terras que assim lhe foram entregues, aceitando o termo do contrato de arrendamento;

31. O falecido pai do autor invocou a sua avançada idade, o facto de não ter ninguém que o ajudasse e a falta de saúde como circunstâncias impeditivas de continuar a cultivar as terras, razões pelas quais desistia de agricultá-las;

32. O pai do autor procedeu de maneira idêntica, na mesma época, entregando várias outras terras de que era arrendatário, aos respectivos proprietários, designadamente os lotes ...3, X9, ...9 e ...9-A, invocando as mesmas razões;

33. Relativamente aos proprietários dos atuais lotes ...3, X9, ...9 e ...9-A, o falecido pai do autor escreveu nos envelopes contendo dinheiro no valor das respectivas rendas, os dizeres “a terra fica entregue” ou “as terras ficam entregues”, escrevendo o seu nome FF;

34. EE procedeu à entrega de todos os terrenos de que era arrendatário aos respectivos proprietários, ou seus antecessores, fosse com ou sem – no caso do falecido réu BB – entrega de documento escrito com tais dizeres;

35. O mesmo tendo feito com os terrenos pertencentes à Confraria do ... da freguesia ..., relatando a acta nº ...4 da reunião da sua Mesa Diretiva de .../.../2014, que “o senhor EE fez a entrega dos terrenos que amanhava, propriedade desta Confraria”;

36. Essa intenção de entrega definitiva das terras, em virtude da cessação, por vontade do arrendatário, da vigência dos contratos de arrendamento, foi entendida como tal pelos vários senhorios, designadamente pelo falecido réu BB, e por estes aceite;

37. A mãe do autor não participava nas decisões do marido, não sendo um casal com um bom relacionamento;

38. O autor não ajudava o pai no cultivo dos terrenos e pai e filho não se davam bem;

39. (Retirado: “Da cópia certificada da procuração datada de 26.02.2015, junta como documento nº 6 da petição inicial, não resulta…).

O teor da procuração é o seguinte:

40. Quando o autor foi entregar a renda relativa ao ano de 2015 ao falecido réu BB, este não o reconheceu;

41. Quando se apercebeu que aquela renda tinha sido paga pelo autor, o falecido réu BB quis devolver a quantia recebida a título de renda ao autor e este não aceitou;

42. Quanto à renda de 2016, o cheque que constitui o documento nº 7 junto com a petição inicial foi devolvido;

43. O referido cheque foi remetido ao falecido réu BB, acompanhado da carta junta na contestação como documento nº 5, datada de .../.../2016, através da qual o autor, invocando a sua qualidade de procurador da mesma, comunicou o falecimento do seu pai e declarou que a sua mãe pretendia assumir em substituição daquele a posição de arrendatário e que o contrato de arrendamento lhe fosse transmitido;

44. O falecido réu BB devolveu tal cheque ao autor, acompanhado de carta registada com aviso de recepção, que foi recebida pelo destinatário, através da qual comunicou designadamente o seguinte: “Respondo à sua carta de trinta de dezembro de dois mil e dezasseis que com o cheque que enviou vou devolver, aproveitando, no entanto, a ocasião para esclarecer dois pontos. Não tinha com o seu falecido Pai senão uma combinação oral sobre o arrendamento da terra que ele fazia, e essa combinação foi por ele anulada quando a três de dezembro de dois mil e catorze me veio entregar as terras com a justificação de falta de saúde para as poder agricultar”;

45. (Retirado: “A procuração outorgada pelo pai do autor não lhe dava poderes de representação para proceder em nome daquele ao pagamento de rendas.);

46. As cartas aludidas em 16 e 17 não obtiveram resposta porque os seus destinatários estavam convictos que o pai do autor não era já arrendatário;

47. (Retirado: “A procuração outorgada pelo pai do autor não confere a este poderes que lhe permitam, em nome do seu pai, comunicar com os proprietários das terras, ou com os seus ocupantes, fosse para pedir a entrega das terras ou a redução a escrito de contratos de arrendamento”.);

48. (Retirado: “Da procuração de .../09/2015 não constam poderes para gerir contratos de arrendamento, nem poderes de atuar fisicamente sobre os terrenos, procedendo aculturas e a colheitas, nem poderes de representação da mãe do autor junto de senhorios”.)

O teor da referida procuração é o seguinte:

49. No ano de 2016, o lote ...80 começou a ser cultivado pelo 2º réu, com autorização do falecido réu BB;

50. Em 2017, o 2º réu cultivou o lote ...80 com milho;

51. Nesse ano, o autor entrou na posse do referido lote, pela força, contra a vontade do proprietário, e destruiu a cultura que nele já havia sido realizada pelo 2º réu;

52. Levando o 2º réu a interpor contra o autor o procedimento cautelar de restituição de posse, onde foi proferida decisão, em 09.05.2018, que ordenou a providência requerida;

53. O autor, em audiência, desistiu da oposição por si deduzida;

54. O 2º réu intentou a competente acção que correu termos sob o nº 3243/18.... no Juízo Local Cível ... – J...;

55. Pela destruição de culturas que tinham sido feitas pelo 2º réu, o autor foi acusado, a 08.03.2019 e pronunciado a 29.05.2019 pela prática de um crime de dano, no processo nº 98/16...., do Juízo de Instrução Criminal ... – J...;

56. O falecido réu BB deu de arrendamento rural ao 2º réu, e não também à 3ª ré, o lote ...80, por contrato datado de 04.04.2017, pela renda anual de € 440,00;

57. No ano anterior à formalização desse contrato, o 2º réu já tinha começado a cultivar tais terras;

58. A partir de 2016, com autorização do falecido réu BB, e a partir de 2017, ao abrigo do referido contrato de arrendamento rural, o 2º réu passou a explorar os terrenos que constituem, na sequência das operações de emparcelamento realizado na margem esquerda do Mondego, o lote ...80;

59. A mãe do autor não era agricultora.


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Primeiramente, o Recorrente defende a alteração da decisão no pressuposto da alteração da matéria de facto, o que não conseguiu. Ele pretendia demonstrar que o seu pai apenas pretendeu a suspensão do contrato enquanto decorresse o emparcelamento.

Mantendo-se a matéria de facto como fixada, os factos são demonstrativos de que o locatário declarou o fim do arrendamento e entregou as terras aos senhorios. Sendo certo que a denúncia não respeitou o prazo legal, a lei do arrendamento rural (DL n.º 385/88 e subsequente DL 294/2009) não comina qualquer sanção para o incumprimento daquele, sendo certo ainda que o senhorio aceitou a extinção e a entrega, sem qualquer reserva.

O Recorrente invoca também a comunicabilidade do arrendamento ao cônjuge.

Neste particular, as partes assinalam a aparente divergência jurisprudencial.

Entendemos nós, juntamente com os Juízes desta Secção (no acórdão de 14.12.2020, no proc. 5739/17, em www.dgsi.pt) e da 3ª secção desta Relação (no assinalado processo paralelo nº 3243/18 – certidão junta), que a referida lei do arrendamento rural não impõe que o contrato apenas possa ser validamente denunciado caso nele intervenha o titular do direito de arrendamento acompanhado do seu cônjuge, ainda que casado sob o regime da comunhão geral de bens.

Aquela lei apenas prevê a possibilidade de transmissão do direito de arrendamento, em caso de morte do titular, contrariamente ao estabelecido no art.º 1682º-B do Código Civil, por estar aqui em causa o arrendamento da casa de morada de família.

Se o contrato de arrendamento rural se comunicasse ope legis ao cônjuge, não fazia qualquer sentido que a lei venha expressar a sua sucessão no direito ao arrendamento rural por morte do arrendatário. A proteção do cônjuge do arrendatário foi assegurada pelo legislador através da consagração da transmissão do arrendamento, em caso de falecimento.

A atual regra de comunicabilidade ao cônjuge, estabelecida no artigo 1068.º do Código Civil, para o arrendamento de prédios urbanos, é motivada por razões específicas, o que não permitirá alargar o seu âmbito aos arrendamentos não urbanos.

A legislação relativa ao arrendamento rural nunca previu qualquer norma a respeito da comunicabilidade, o que seria suposto acontecer, sendo vontade do legislador, quando a discussão se fez no âmbito da casa de morada de família e dos arrendamentos urbanos.

Improcede o recurso.


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Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pelo Recorrente.

Coimbra, 2022-09-13


(Fernando Monteiro)

(Carlos Moreira)

(Moreira do Carmo)