Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
55/15.3GBALD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: PESQUISA DE ÁLCOOL NO SANGUE
RECUSA DE SUBMISSÃO AO TESTE
ACTUALIDADE DO EXAME
DESOBEDIÊNCIA
Data do Acordão: 12/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (INSTÂNCIA LOCAL DA GUARDA, SECÇÃO CRIMINAL, J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 152.º, N.ºS 1, AL. A), E 3 DO CE; ART. 348.º, N.º 1, AL. A), DO CP
Sumário: I - A condução de veículo motorizado não é actual, nos termos e para os efeitos de verificação do crime de desobediência decorrente da recusa de o respectivo condutor se submeter ao exame de detecção de álcool no sangue, sempre que a fiscalização seja efectuada em circunstâncias que não permitam concluir que a eventual ingestão de álcool foi anterior ou contemporânea da condução e que a pessoa objecto de fiscalização conduziu efectivamente sob o efeito do álcool.
II - Consequente, não se verifica aquele ilícito criminal quando apenas está provado que o arguido conduziu um veículo na via pública e que, mais tarde, quando saía de um bar, lhe foi solicitada a realização de teste de pesquisa de álcool.
Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo sumário 55/15.3GBALD.C1 da Comarca da Guarda, Instância Local da Guarda, Secção Criminal, J1, após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Por todo o exposto, julga-se a acusação procedente, por provada, termos em que se decide:

CONDENAR o arguido A... pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para detecção de condução de veículo sob o efeito do álcool, estupefacientes, substâncias ou produtos com efeito análogo, p. e p. pelos artigos 348º, n.º 1, al. a), e 69º, n.º 1, al. c), ambos do Cód. Penal, e pelo artigo 152º, n.º 1, al. a) e n.º 3, do Cód. da Estrada, na pena de 7 (sete) meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 10 (dez) meses.

Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 2UC’s.

Inconformado com essa decisão dela recorreu o arguido, rematando a correspondente motivação com as seguintes conclusões:

A.  O  arguido  não  concorda  com  a  decisão  prolatada  pelo  douto  Tribunal  a  quo.

B.  Tendo  sido  dado  como  provado  que:

a.  O  arguido  cessou  a  sua  condução,

b.  Entrou  num  estabelecimento  de  bar,

c.  Aí  permaneceu  alguns  minutos  (cerca  de  20m  conforme  depoimento  devidamente  identificado  em  13./b.  das  alegações  -  para  o  qual  se  remete  e  dá  aqui  por  reproduzido  -  ,  facto  que  deve,  por  isso,  ser  dado  como  provado), 

d.  E  já  só  no  exterior  do  estabelecimento  lhe  foi  dirigida  a  ordem  de  sujeição  a  teste  de  pesquisa  de  álcool  no  sangue,

C. Não  pode  o  arguido  ser  tido,  ainda,  como  condutor,

O. Nem,  também  por  isso,  pode  a  ordem  que  lhe  foi  dirigida  ser  entendida  como  actual,  pressuposto  sine  qua  non  para  que  a  mesma  fosse  legítima.

E.  O  que  se  deve  discutir  não  são  as  circunstâncias  da  realização  dos  testes  de  pesquisa  de  álcool  no  sangue,  mas  antes  as  circunstâncias  da  emanação  da  ordem  dirigida  ao  arguido,  nomeadamente  a  sua  actualidade  e,  por  isso  também,  a  sua  legitimidade.

F.  A  presunção  de  inocência  há-de  determinar  que  a  dúvida  beneficie  o  arguido,  motivo  pelo  qual  este  não  carecia  de  ter  provado  que  de  facto  consumiu  bebidas  alcoólicas  naquele  hiato  considerável  de  tempo  em  que  permaneceu  no  estabelecimento  de  bar.

G.  Mesmo  no  caso  extremo  de  alguém  se  furtar  à  devida  fiscalização  rodoviária,  e  nesse  hiato  temporal  consumir  álcool,  sem  prejuízo  de  praticar,  eventualmente,  outras  infracções,  não  pode  já  ser  obrigado  a  sujeitar-se  aos  testes  de  pesquisa  de  álcool,  porquanto  os  mesmos  serão  inidóneos  a  provar  o  facto  de  condução  com  álcool  no sangue.

H.  Assim,  na  decisão  prolatada  pelo  douto  Tribunal  a  quo  encontram-se  violadas  as  normas  contidas  nos  artigos  152.º,  n.º 1-a)  e  3  do  Código  da  Estrada  e  348.º,  n.º  1-a)  do  Cód.  Penal;

I.  Apesar  dos  factos  que  deu  como  provados,  entendeu  aquele  douto  Tribunal  que  o  arguido  mantinha  a  qualidade  de  condutor  e  entendeu,  ainda,  que  a  ordem  que  lhe  foi  dirigida  foi  legítima  e  regularmente  comunicada;

J.  Discorda  profundamente  o  arguido,  como  melhor  refere  em  B.  destas  conclusões,  que  entende  que:

a.  atentos  os  factos  dados  como  provados,  no  momento  da  ordem  a  si  dirigida  já  não  gozava  da  qualidade  de  condutor  (o  próprio  Tribunal  a  quo  dá  isso  como  provado),

b.  Para  além  de,  atento  o  hiato  temporal  considerável  ocorrido  entre  a  actividade  de  condução  e  a  emanação  da  ordem  a  si  dirigida,  esta  já  não  gozava  da  qualidade  da  actualidade,  carecendo,  assim,  de  ser  legítima,

c.  Motivo  porque  se  não  preencheram  os  elementos  objectivos  do  tipo  legal  de  crime  a  que  o  arguido  foi  condenado.

K.  Motivo,  finalmente,  porque  deve  a  decisão  prolatada  pelo  douto  Tribunal  a  quo,  com  os  presentes  argumentos,  ou  outros  de  conhecimento  oficioso,  ser  substituída  por  outra  que  determina  a  absolvição  do  arguido.

O recurso foi objecto de despacho de admissão.

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo que não merece provimento.

Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso deve improceder.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos teve lugar conferência.

Cumpre apreciar e decidir.


***

II. Fundamentos da Decisão Recorrida

Na sentença recorrida foi consignada a seguinte fundamentação factual:

A) DOS FACTOS

1. FACTUALIDADE PROVADA

Discutida a causa, resultaram como provados, com relevância para a decisão final, os seguintes factos:

A) No dia 6 de Maio de 2015, antes das 21:17, o arguido A... conduziu o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (...) LQ na Estrada Nacional 233-3, na localidade de Alfaiates, concelho do Sabugal.

B) Após essa condução e de se ter introduzido e permanecido durante alguns minutos no interior de um estabelecimento comercial de café, já no exterior, o arguido foi instado por militares da GNR a submeter-se a prova para a detecção do estado de influenciado pelo álcool, através de ar expirado, e recusou-se a efectuar tal teste.

C) O arguido, enquanto tendo sido condutor de veículo automóvel na via pública, não obstante estar ciente da obrigatoriedade de proceder à prova para detecção de condução de veículo na via pública sob efeito de álcool, não o fez deliberada, livre e conscientemente, nem apresentou qualquer justificação juridicamente relevante para aquela recusa, apesar de advertido sobre as consequências de uma eventual recusa.

D) Bem sabia o arguido ser a conduta que assumiu proibida e punível por lei penal.

E) O arguido encontra-se divorciado, trabalha como agricultor ao serviço de um seu irmão, contribuindo este assim para as respectivas despesas. Vive com os pais e não contribui para as despesas do respectivo agregado. Tem uma filha com 12 anos de idade, que se encontra a estudar, e tem como habilitações literárias o 6º ano de escolaridade.

F) O arguido foi já condenado no âmbito do processo n.º 57/99.5GBSBG, do Tribunal Judicial de Sabugal, pela prática antes de Janeiro de 2001 de um crime de dano, um crime de ofensa à integridade física simples e um crime de injúria, na pena única de 270 dias de multa à taxa diária de 600$00, num total de 162.000$00. Tal condenação transitou em julgado a 30 de Janeiro de 2001 e a respectiva pena foi já declarada extinta.

Foi também condenado no âmbito do processo n.º 114/05.0GFCVL, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, pela prática a 4 de Setembro de 2005 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena principal de 90 dias de multa à taxa diária de €4,00, num total de €360,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 meses. Tal condenação transitou em julgado a 23 de Março de 2006.

Foi também condenado no âmbito do processo n.º 1310/05.6TAGRD, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda, pela prática a 24 de Outubro de 1997 de um crime de falsificação de documento, na pena de 1 ano de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 anos.

Tal condenação transitou em julgado a 17 de Novembro de 2006 e a respectiva pena foi já declarada extinta.

Foi também condenado no âmbito do processo n.º 17/2010 do Juzgado de Ciudad Rodrigo (Espanha), pela prática a 21 de Abril de 2010 de uma infracção decorrente de recusa a realizar provas de detecção de álcool, drogas e produtos estupefacientes ou psicotrópicos, e uma infracção decorrente de condução de veículo em estado de embriaguez, nas sanções de 8 meses de proibição de conduzir e de 4 e de 2 meses de prisão suspensa na execução.

Foi também condenado no âmbito do processo n.º 47/10.9GTGRD, do Tribunal Judicial do Sabugal, pela prática em Julho de 2010 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena principal de 3 meses de prisão substituída por 120 dias de multa, à taxa diária de €5,00, num total de €600,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 meses. Tal condenação transitou em julgado a 19 de Janeiro de 2011 e as respectivas penas foram já declaradas extintas.

2. FACTUALIDADE NÃO PROVADA

Da audiência de discussão e julgamento não resultaram como não provados quaisquer factos relevantes para a decisão da causa.

3. MOTIVAÇÃO

A convicção do tribunal baseou-se antes do mais nas declarações prestadas pelo arguido, o qual confessou ter conduzido o veículo automóvel que se refere na matéria provada no dia, hora e local que igualmente se deram como provados, não tendo existido portanto qualquer dúvida em momento algum a este respeito. Apenas não confirmou o arguido qual fosse a matrícula exacta do veículo que conduziu (porque afirmou não se recordar), sendo certo que, de qualquer forma, tal matrícula consta do auto de notícia e o arguido não a colocou em causa.

Questão que se colocou e discutiu em sede de audiência foi a de saber se o arguido foi ou não efectivamente instado a efectuar teste de pesquisa de álcool no sangue, na medida em que o arguido o negou.

Na verdade, o arguido declarou, em resumo, que após ter visto passar por si viatura da GNR no local que se dá como provado, de imediato se dirigiu às instalações de uma associação local, onde existe um estabelecimento comercial de café, e aí entrou, local onde foi abordado pela autoridade a fim de se identificar. Decorridos alguns minutos, acabou por ser levado para o exterior do estabelecimento, onde foi algemado e levado para o posto da GNR, supostamente apenas porque não tinha os seus documentos de identificação consigo, e onde meramente se recusou a assinar alguns papéis. Afirmou o arguido que em momento algum foi instado por qualquer agente da autoridade a efectuar qualquer teste de pesquisa de álcool no sangue.

Da nossa parte, entendemos que a negação acabada de referir por parte do arguido, para além de já por si não se revelar particularmente verosímil, não merece qualquer espécie de credibilidade, na medida em que foi sobejamente afirmado de forma clara e peremptória em sede de audiência pelos militares da GNR E... e F... que, já após terem abordado o arguido no interior do estabelecimento comercial de café acima referido e após terem acabado por convencê-lo a deslocar-se para o exterior, aqui insistiram com o arguido que teria de efectuar teste de pesquisa de álcool no sangue, ao que o arguido se recusou sempre peremptoriamente, mesmo apesar de ter sido sobejamente advertido de que incorreria na prática de um crime de desobediência ao fazê-lo. E mais pormenorizaram no sentido de que, ao mesmo tempo que se recusava, o arguido manifestava toda uma postura no sentido de que não se importava de todo com as consequências que lhe pudessem advir de tal recusa, tendo mais que se encontrava perfeitamente familiarizado com os correspondentes procedimentos.

Ora, nestes termos, no confronto entre as declarações prestadas pelo arguido e as declarações prestadas de forma perfeitamente unânime por ambos os agentes da autoridade que o abordaram, é óbvio que teremos de conceder muito maior credibilidade às declarações prestadas pelos Srs. agentes da autoridade, os quais apenas intervieram nos factos e depuseram de forma totalmente desinteressada e no simples exercício das suas funções profissionais, sem que nada os movesse contra o aqui arguido.

É claro que neste ponto caberá ainda referir os depoimentos que foram prestados pelas testemunhas B... , C... e D... , as quais foram arroladas pelo arguido. Todas estas três testemunhas afirmaram ser conhecidos e amigos de longa data do aqui arguido, bem como que se encontravam ou no interior ou nas redondezas do estabelecimento comercial de café onde o arguido entrou antes de ser abordado presencialmente pela GNR.

Tais depoimentos centraram-se, perderam-se e enredaram-se nas questões de saber em que momento é que o veículo da GNR ligou as respectivas luzes de emergência (se teria sido apenas ao avistar o arguido, ou se já antes as teria ligadas), saber qual teria sido a manobra efectuada pelo arguido que motivou que a GNR seguisse no seu encalço, saber quanto tempo teria demorado a GNR a chegar ao estabelecimento comercial de café onde o arguido se introduziu, saber quanto tempo a GNR teria demorado na abordagem ao arguido no interior do aludido estabelecimento, e saber qual teria sido o teor da conversa entre os militares da GNR e o arguido no interior desse estabelecimento.

Ou seja, perguntar-se-á: qual terá sido a real relevância de tais depoimentos? E a resposta terá de ser: nenhuma. Com efeito, as questões de facto relevantes nestes autos eram tão singelamente as de saber se o arguido foi condutor de um veículo em via pública, se em seguida foi instado pela autoridade a efectuar teste de pesquisa de álcool no sangue, e se se recusou a efectuar tal teste mesmo sabendo das consequências da sua conduta.

No caso, tendo o arguido confessado ter sido condutor de veículo automóvel em via pública, resultou como já se disse de forma perfeitamente clara dos depoimentos prestados pelos militares da GNR intervenientes que o arguido apenas foi instado (e se recusou) a efectuar teste de pesquisa de álcool no sangue já após ter saído para o exterior do estabelecimento comercial de café onde antes se encontrava. Quanto a este preciso momento já no exterior (que era o realmente relevante) nenhuma das testemunhas arroladas pelo arguido demonstrou qualquer espécie de conhecimento, na medida em que todas declararam claramente que aí não se encontravam presentes.

Isto posto, e aqui chegados, em face do que já foi sendo dito, e não obstante a negação do arguido nesta parte, não ficámos com qualquer espécie de dúvida de que o arguido (após ter sido condutor de veículo automóvel em via pública, como confessou) foi efectivamente instado pela GNR a efectuar teste de pesquisa de álcool no sangue através de ar expirado, e para tanto peremptoriamente se recusou, não obstante ter sido sobejamente esclarecido e informado das consequências penais da sua conduta.

Prosseguindo, já em jeito de conclusão, quanto aos factos que demos como provados a respeito do conhecimento e intencionalidade atinentes à conduta do arguido, diremos que tais factos são aqueles que resultam da observação dos factos objectivos provados e exteriormente verificáveis à luz das mais elementares regras da experiência comum, nada nos levando a concluir que o conhecimento e intencionalidade do arguido fossem quaisquer outros diversos daqueles que foram julgados provados.

Finalmente, quanto às condições pessoais e económico-financeiras do arguido que foram dadas como provadas, foram relevantes as respectivas declarações, não existindo elementos suficientes para delas duvidar nesta parte, e quanto aos antecedentes criminais do arguido foi relevante o respectivo CRC que consta dos autos.

***

III. Apreciação do Recurso

A documentação dos actos da audiência determina que este Tribunal possa conhecer de facto e de direito como resulta do disposto nos artigos 363º e 427º do Código de Processo Penal. Mas, o objecto do recurso delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1 e nº 2 do Código de Processo Penal) sempre sem embargo dos poderes de conhecimento oficioso. 

Vistas as conclusões do recurso interposto, as questões que reclamam solução são as seguintes:

- Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto, devendo considerar-se como provado que o arguido permaneceu cerca de 20 minutos no estabelecimento de bar mencionado na factualidade provada, antes da intervenção da GNR;

- Se os factos provados não são susceptíveis de integrar a prática pelo arguido do crime de desobediência que lhe foi imputado, devendo ser absolvido.

Apreciando:

Ao contrário do que normalmente ocorre, importa em primeiro lugar equacionar a questão de direito proposta que, a merecer resposta positiva, torna despicienda a alteração factual pretendida.

Na tese do recorrente, que muito sumariamente expomos, a ordem de sujeição a teste de pesquisa de álcool no sangue não foi legítima porque quando lhe foi dada não tinha a qualidade de condutor e, por consequência, a factualidade provada não integra a prática do crime de desobediência que lhe foi imputado.

A factualidade provada com relevância para a questão proposta é a seguinte que novamente transcrevemos por facilidade de análise:

A) No dia 6 de Maio de 2015, antes das 21:17, o arguido A... conduziu o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (...) LQ na Estrada Nacional 233-3, na localidade de Alfaiates, concelho do Sabugal.

B) Após essa condução e de se ter introduzido e permanecido durante alguns minutos no interior de um estabelecimento comercial de café, já no exterior, o arguido foi instado por militares da GNR a submeter-se a prova para a detecção do estado de influenciado pelo álcool, através de ar expirado, e recusou-se a efectuar tal teste.

O artigo 348º, nº 1 alínea a) do Código Penal preceitua que “quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar no caso, a punição de desobediência simples, ou
(…)
”.

Por seu turno preceitua o artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 3 do Código da Estrada que:

devem submeter-se às provas estabelecidas para detecção dos estados de influenciado pelo álcool, ou por substâncias psicotrópicas:

a) Os condutores;

b) Os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito;

c) As pessoas que se propuserem iniciar a condução.

2.(…)

3. As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do nº1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.”

(…)”
            O tipo de crime em causa é composto pelos seguintes elementos objectivos (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Cristina Líbano Monteiro em anotação ao artigo 348º):

- ordem ou mandado, substancial e formalmente legítima;

- proveniente da autoridade ou funcionário competente;

- regularmente comunicada ao destinatário;

- recusa de cumprimento pelo destinatário;

- cominação legal de desobediência para a recusa de cumprimento.

No que respeita à específica desobediência a ordem de sujeição a teste de pesquisa de álcool no sangue, o artigo 158º do Código da Estrada define que os agentes desse crime de desobediência (obrigados ao acatamento da ordem) são (a) os condutores e (b) os peões, sempre que sejam intervenientes em acidente de trânsito.

A legitimidade da ordem de sujeição a teste depende, pois, da circunstância de se dirigir a pessoa obrigada a realizar o teste de pesquisa de álcool.

 Como menciona Tolda Pinto em Comentário das Leis Penais Extravagantes, Vol. I, pág. 395 (também citado no Acórdão do TRP proferido no proc. 109/13.0GTAVR.P1, publicado em www.dgsi.pt)  “É indispensável ao preenchimento do tipo legal de crime de recusa a provas para detecção de álcool a actualidade da condução no momento da convocação do condutor para fazer o exame de alcoolemia.”

E como se refere no citado Acórdão “este juízo de actualidade compreende-se na medida em que a punição da conduta de recusa a submissão de provas de detecção de álcool, pelas entidades fiscalizadoras competentes, radica nas mesmas razões que determinaram o legislador a criminalizar a conduta dos condutores que exercem a condução em estado de embriaguez, porquanto e mais uma vez citando Tolda Pinto “O exercício da condução automóvel, como actividade perigosa que é, postula o acatamento e observância de um conjunto de regras, algumas das quais, para além de meras finalidades de ordenamento do trânsito automóvel e da circulação rodoviária, visam garantir a segurança da vida, da integridade física e Universidade Católica Editora do património do condutor e de terceiros, utentes das vias de circulação rodoviária. Avultam entre estas, as normas relativas ao exercício da condução sob o efeito do álcool. A obrigatoriedade de submissão dos condutores ao teste de pesquisa de álcool no ar expirado, quando interpelados para o efeito pelas autoridades competentes é plenamente justificada pelo fenómeno da sinistralidade estradal associado ao consumo de bebidas alcoólicas, atingindo proporções tais e consequências sociais de tal modo graves que de há muito vem reclamando uma intervenção eficaz tanto no âmbito da fiscalização como no da repressão. Daí que o legislador tenha entendido como censurável e punível não só a condução na via pública das pessoas que apresentem taxas de álcool no sangue superiores a determinado limite mínimo, mas também a conduta daqueles que, tripulando um veículo, se recusem a submeter-se à acção fiscalizadora das entidades competentes, através da submissão a provas de detecção de álcool ou de substâncias psicotrópicas.”

No caso apreciado no citado Acórdão considerou-se que não pode ser considerado agente do crime, uma pessoa que foi vista a conduzir, cerca de 20 minutos antes da abordagem das entidades fiscalizadoras para fazer o teste, não se sabendo onde esteve ou o que fez durante esse período de tempo e que quando foi abordada pelas forças policiais era passageira do veículo, que na ocasião era conduzido por outra pessoa.

O referido critério da actualidade da condução visa determinar em que circunstâncias se pode afirmar que a pessoa a quem é ordenada a realização do teste de pesquisa de álcool pode ser considerada condutora e, portanto, obrigada a submeter-se a tal fiscalização, sendo a respectiva ordem legítima.

Como decorre do exposto a resposta sobre a actualidade da condução deverá encontrar-se através da finalidade visada pela norma que é a de determinar se a condução foi exercida sob o efeito do álcool. A condução não será actual sempre que a fiscalização tenha sido efectuada em circunstâncias que não permitam concluir que a eventual ingestão de álcool foi anterior ou contemporânea da condução; que a pessoa objecto de fiscalização conduziu efectivamente sob o efeito do álcool.

Será pois condutor toda a pessoa que estando a conduzir foi mandada parar por agente da autoridade, a pessoa que não obedecendo à ordem de paragem foi perseguida e veio a ser interceptada em momento posterior ou ainda a pessoa que como condutor tenha sido interveniente em acidente de viação e ainda no local do acidente tenha sido fiscalizada por agente da autoridade.

De comum nestes casos temos a circunstância da existência de um preciso nexo que se expressa e se mantém entre o acto da condução e a fiscalização efectuada pelo agente da autoridade, sem que outras actividades da vida comum se interponham, posto que o que está em causa é verificar se o condutor estava ou não sob o efeito do álcool.

Ora, no caso, apenas vem provado que o arguido conduziu um veículo na via pública e que mais tarde, quando saía de um bar, lhe foi solicitada a realização de teste de pesquisa de álcool.

Cremos ser evidente que este factualidade não reflecte a existência do referido nexo entre a intervenção policial e o acto da condução, interpondo-se não só a cessação da condução como também a permanência num bar, não reflectindo sequer a matéria de facto que em momento anterior os agentes da autoridade tenham presenciado o acto de condução e tenha sido por essa circunstância que hajam actuado como descrito.

Ou seja, a matéria de facto não reflecte que o arguido estivesse obrigado a sujeitar-se a teste de pesquisa de álcool no sangue (a manutenção da actualidade do acto de condução) e consequentemente a legitimidade da ordem que lhe foi dada nesse sentido.

Em suma, porque o arguido não se encontrava a conduzir, não tinha acabado de conduzir, não impendia sobre ele a obrigação legal de se submeter às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool, não se demonstrando a legitimidade da ordem que lhe foi dada nesse sentido.

E porque a factualidade provada não integra a tipicidade objectiva do crime imputado deve o arguido ser absolvido, procedendo o recurso.


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IV. Decisão

Nestes termos e com tais fundamentos, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido A... e, em consequência, revogar a decisão recorrida e absolvê-lo da imputada comissão de um crime de desobediência p. e p. pelos artigos 152º, nº 1, alínea a) e nº 3 do Código da Estrada e 348º, nº 1, alínea a) do Código Penal.

Não há lugar a tributação em razão do recurso.


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Coimbra, 2 de Dezembro de 2015

(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora).

(Maria Pilar Pereira de Oliveira - relatora)

(José Eduardo Fernandes Martins - adjunto)