Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1601/22.1T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: TESTAMENTO
EXIGÊNCIAS DE FORMA
CAPACIDADE DO TESTADOR
DOENÇA
ÓNUS DA PROVA
INVALIDADE
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 342.º, N.º 1, 2180.º, 2182.º, N.º 2, 2183.º E 2199.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
I – O testamento caracteriza-se por ser um negócio jurídico unilateral, mortis causa, não receptício, pessoal, individual, livremente revogável e formal. Por esse motivo deve ser o testador a expressar a sua vontade e “a expressão da vontade da pessoa tem de ser integral” sem prejuízo, naturalmente, das excepções expressamente consagradas nos artigos 2182º, n.º 2, e 2183º, do Código Civil.

II – A exigência de forma para a celebração do testamento visa o reforço das condições para que a declaração corresponda à vontade real do testador, surgindo o formalismo “como garante de expressão livre e última do testador”. A intenção fundamental da lei é a de garantir o carácter pessoal do testamento, não a de reforçar a exigência de clareza ou inequivocidade da declaração - o modo como o testador manifesta ou expressa a sua vontade.

III – Para a validade do testamento é necessário que o testador tenha expressado a sua vontade por palavras suas, exigindo, ainda, que a vontade seja claramente manifestada, ou seja, que não fiquem dúvidas sobre aquilo que o testador manifestou querer - o que não se confunde com dúvidas sobre o teor da vontade manifestada, as quais são resolvidas por via de interpretação do testamento mas, em regra, não afectam a sua validade.

IV – É indispensável que o testador tenha a “consciência do seu acto e dos efeitos deste; que tenha uma ideia justa da extensão do bem de que dispõe; que esteja em estado de compreender e de apreciar os direitos que vão nascer da sua disposição de ultima vontade, e, especialmente, com relação a este ultimo objecto, que nenhuma perturbação de espírito envenene as suas afeições, ou perverta o seu sentimento do justo, ou ponha obstáculo ao exercício das suas faculdades naturais; que nenhum delírio influencie a sua vontade, quando dispõe da sua fortuna, ou o arraste a fazer um uso dela que não faria, se estivesse em plena integridade do seu espírito” – ler o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 2013, acessível em  www.dgsi.pt.

V – O ónus da prova dos factos reveladores de uma situação de incapacidade de facto do testador, no momento da feitura do testamento, para efeitos do artigo 2199.º, recai sobre o interessado na anulação do testamento em virtude do estatuído no artigo 342.º, n.º 1, ambos do Código Civil. A capacidade testamentária activa não é afectada por qualquer deficiência cerebral ou mental do testador, ao tempo da feitura do testamento, mas tão-somente por anomalias daquela natureza que eliminem a vontade e o entendimento  - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-1971, in Boletim do Ministério da Justiça nº 212, Ano 1972, pág. 257.

VI – Não é qualquer psicopatia que tira ao indivíduo a possibilidade de dispor dos seus bens: a doença mental há-de obnubilar-lhe a inteligência ou enfraquecer-lhe de tal jeito a vontade, que possa afirmar-se que não entendeu o que disse ou, em condições normais, não quereria o que declarou - Acórdão da Relação do Porto de 14-3-73, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 226, pág. 279.

VII – O testamento só pode ser anulado quando o testador não estiver em condições de entender o sentido daquilo que declare no testamento ou não tenha o livre exercício da sua vontade. A existência de doenças, tais como a senilidade e a arteriosclerose não é, por si só, suficiente para afastar a capacidade testamentária activa, tornando-se necessário, para tal, que, ao tempo da feitura do testamento, o testador não tenha podido entender a sua declaração constante do mesmo testamento – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-01-1991, in www.dgsi.pt.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 1601.22.1T8CVL.C1

(Juízo Central Cível de Castelo Branco - Juiz 1)

 

1 – Relatório

A Autora AA, residente na Avenida ..., ..., instaurou a presente ação declarativa, que corre termos sob a forma de processo comum, contra a Ré BB, residente na Rua ..., ..., pedindo a anulação do Testamento outorgado por CC no dia 13 de maio de 2015, nos termos do qual a Ré foi instituída como sua única e universal herdeira.

Para tanto, alega, em síntese, que o Testamento outorgado pela sua tia CC não faz “qualquer referência àquela ser a vontade da testadora e/ou à sua capacidade de entender e querer o sentido daquela declaração”.

Para além disso, acrescenta ainda a Autora que, na data em que o referido Testamento foi outorgado, a sua tia “estava incapaz, sem qualquer aptidão ou faculdade de entender o sentido daquela declaração, bem como não tinha o livre exercício da sua vontade”.

Assim, em conformidade com o disposto no artigo 2199º do Código Civil, conclui a Autora que o Testamento por si identificado é anulável.

Devidamente citada para os termos da presente ação declarativa, a Ré veio aos autos apresentar a sua contestação, impugnando parte dos factos alegados pela Autora.

Na verdade, alega a Ré que “foi, desde sempre, a sobrinha que mais privou com a Tia e a única que a acompanhava nas mais diversas facetas da vida, prestando todo o auxílio e acompanhamento de que esta necessitava”.

Acresce ainda que, “até meados de 2016, CC esteve em pleno gozo das suas faculdades intelectuais, perfeitamente consciente, lúcida e orientada e, por esse motivo, totalmente capaz de exprimir a sua vontade e manifestar os seus intentos”.

Em consequência, o Testamento pela mesma outorgado no dia 13 de maio de 2015 é plenamente válido.

Por fim, alega a Ré que “a Autora deduziu uma pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, alterou a verdade dos factos e omitiu factos relevantes para a decisão da causa, fazendo do presente meio processual um uso manifestamente reprovável com o objetivo de conseguir um objetivo ilegal”.

Assim, deverá a Autora ser condenada, como litigante de má fé, no pagamento de multa e de indemnização no valor de € 2.000,00.

Mediante despacho a que corresponde a referência n.º 36282794, foi determinada a notificação da Autora para vir aos autos “impulsionar a intervenção da sua irmã DD e dos demais herdeiros da testadora CC, caso existam, tendo em vista o suprimento da exceção dilatória de ilegitimidade processual ativa (…), por preterição de litisconsórcio necessário”.

Suscitado, pela Autora, o referido incidente de intervenção principal provocada, foi o mesmo julgado procedente por sentença proferida com a referência n.º 36433273, tendo sido admitida a intervenção da irmã da Autora, DD, nos presentes autos, como associada da Autora.

A audiência prévia foi dispensada, tendo sido proferido despacho saneador, bem como despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova (cfr. referência n.º 36631116).

Mediante requerimento a que corresponde a referência n.º 3466367, a Autora AA veio aos autos pronunciar-se acerca do pedido de condenação como litigante de má fé formulado pela Ré, sustentando que o mesmo carece de fundamento.

Para além disso, alega a Autora que “é a R. quem litiga de má-fé, altera e invoca factualidade que bem sabe não ser verdade, ofensiva na pessoa da A., com o único intuito de conseguir a improcedência da presente ação”, razão pela qual deve ser “condenada no pagamento de uma multa e indemnização às AA., nos termos e de acordo com os artigos 542º e 543º do CPC”.

Pelo Juízo Central Cível de Castelo Branco - Juiz 1 foi proferida a seguinte decisão final:

“Em face do exposto, nos termos e com os fundamentos já indicados, decido julgar a presente ação improcedente e, em consequência, absolver a Ré do pedido formulado pelas Autoras.

Mais decido absolver as Autoras e a Ré dos pedidos de condenação a título de litigância de má fé formulados, respetivamente, pela Ré e pelas Autoras.

As custas da ação ficam a cargo das Autoras (cfr. artigo 527º, n.º 1 e 2, do CPC).

As custas do incidente de litigância de má fé suscitado por ambas as partes ficam a cargo das Autoras e da Ré, na proporção de metade, fixando-se a taxa de justiça devida em uma unidade de conta (cfr. artigo 7º, n.º 4, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela II anexa ao mesmo diploma).

Registe (como “decisão de mérito – com julgamento”) e notifique.

*

Requerimentos com as referências n.º 3493055 e n.º 3493071:

Nada a determinar, por se verificar que o envio do primeiro dos requerimentos mencionados resultou de mero lapso.

..., 02/02/2024”.


*

AA e DD, na qualidade de Autoras , notificadas de tal decisão e com a qual não se conformam, dela interpõem recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

(…).

BB, Ré nos autos à margem identificados em que são Autoras AA e DD, notificada da interposição de Recurso por parte das mesmas, apresenta as suas contra-alegações:

(…).


*


2. Do objecto do recurso

2.1 – Da alegada nulidade;

Na conclusão IX. das alegações de recurso apresentadas pelas Autoras é referido que “é objeto do presente recurso a impugnação da matéria de facto provada e não provada, por as provas imporem decisão diversa, bem como constarem do processo documentos e outros meios de prova que tornam esta decisão ininteligível e nula, nos termos e de acordo com os artigos 662º, 616º n.º 2 al. b) e 615 als. c) e d) do CPC”.

Consta da norma do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil- será o diploma a citar sem menção de origem:

“É nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c)Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido”.

Avaliando.

Como é sabido, esta norma contém uma enumeração taxativa das causas de nulidade da sentença, nelas não se inserindo o designado erro de julgamento, que apenas pode ser atacado por via de recurso, quando o mesmo for legalmente admissível. Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se na fundamentação da sentença o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença.

Porém, esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já se o raciocínio expresso na fundamentação apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se - LEBRE DE FREITAS, A Ação declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4ª ed., pp. 381/2.

Apenas ocorre tal nulidade quando os fundamentos invocados pelo juiz deveriam logicamente conduzir ao resultado oposto ao que vier expresso na sentença, pelo que, a inexatidão dos fundamentos de uma decisão configura um erro de julgamento e não uma contradição entre os fundamentos e a decisão. Se a decisão em referência está certa ou não, é questão de mérito, que não de nulidade da mesma.

O vício tipificado na primeira parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º ocorre quando haja falta de apreciação de questão que o tribunal devesse conhecer, cuja resolução não tenha ficado prejudicada por solução dada a outras, exigindo-se   uma correspondência entre a pronúncia e a pretensão deduzida. O sempre actual Alberto dos Reis - Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, 1981, pág. 143 -, já alertava que não se pode confundir questões suscitadas pelas partes com motivos ou argumentos por elas invocados para fazerem valer as suas pretensões - o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.

Ora, lida e relida a decisão em crise, não encontramos qualquer erro ou vicio que torne nula a sentença, pelo que, improcede tal conclusão.


*

2.2- Da junção do documento;

As apelantes, em sede de recurso, juntam um documento – com data de 3 de Fevereiro de 2021 e dirigido ao processo 1117/20 – para prova do FACTO NÃO PROVADO 12, alegando: “Também ficou provado, em nosso modesto entender, sendo que se o Venerando Tribunal decidir dever considerar os factos da decisão da ação de Maior Acompanhado também nesse processo foi feito um ofício aos referidos autos a esclarecer se a A. AA contactava a instituição para requerer informações sobre o estado de saúde da utente, e que aqui se junta, nos termos e para os efeitos do artigo 425º do CPC, junção que se justifica essencial e necessária em virtude da sentença aqui proferida, pelo que requeremos a sua admissão - Doc. 1 - que aqui se junta”

Ora, como alega a Apelada na sua resposta:

“XXX- Vêm as Recorrentes, em desespero de causa, ao arrepio das regras processuais juntar um documento em sede de recurso.

XXXI- Ora sobre esta matéria importa chamar à colação os artigos 425.º e 651.º ambos do CPC dos quais resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excecional, depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações:

a) a impossibilidade de apresentação do documento até ao encerramento da discussão em 1ª instância;

b) por se ter tornada necessária a junção em virtude do julgamento proferido na 1ª instância, face à “novidade” ou “surpresa” da decisão proferida.

XXXII- Sucede que o documento ora junto pelas Recorrentes é datado de 2021 e por esse motivo as Recorrentes tiveram oportunidade de o carrear para os Autos em momento anterior.”

Como é sabido, na fase de recurso, a junção de documentos reveste natureza excepcional, só sendo admissível no caso de impossibilidade de apresentação até ao encerramento da discussão em 1ª instância ou de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.

Em sede de recurso, só é consentido às partes juntar documentos com as alegações quando a sua apresentação não tenha sido possível até esse momento -superveniência objectiva ou subjectiva -, quando se destinem a provar factos posteriores ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior ao julgamento em 1ª instância - actos cuja relevância a parte, razoavelmente, não podia ter em consideração antes de proferida a decisão.

Não alegam as Apelantes qualquer uma das referidas situações excepcionais que lhe permitiriam a junção aos autos da declaração. Acresce, que tal documento junto pelas Apelantes é datado de 2021 e por esse motivo, esta teve oportunidade de o carrear para os autos em momento anterior, ou, fazendo parte de outro procedimento judicial - Processo de Maior Acompanhado da testadora (cfr. Docs. 3.2 e 3.3 junto com a contestação -, chamar a atenção ao julgador da 1.ª instância da sua importância, indicando-o para prova do que peticionou.

Não o fazendo, indefere-se tal junção.


*

2.3-Da impugnação da matéria de facto;

Alegam as Apelantes:

“X. Assim, nas alegações supra foram indicadas as provas e transcrita a parte dos depoimentos que em nosso entender implicam decisão diversa, designadamente, os factos provados em factos 6, 13, 14,15, 31 a 33, 35, 36,37,38,40,42,41 e 43. e os factos não provados 1, 2, 4, 5, 7, 8, 10 a 12, 15 a 26. cuja impugnação da matéria de facto aqui se deduz, nos termos e de acordo com o disposto no artigo 662º do CPC.

XI. Os supra referidos e indicados factos padecem de erro de julgamento, por contradição, insuficiência, contradição na fundamentação e convicção do tribunal e, mais relevante contrariam as provas testemunhais ora produzidas e os documentos que constam deste processo, pelo que se pretende a V. Exªs que a decisão proferida seja alterada nos termos supra descritos e indicadas nestas alegações, por se impor assim decisão diversa”.

Antes do mais, fixemo-nos nestes princípios:

Em direito processual, sendo a prova o acto ou série de actos processuais através dos quais há que convencer o juiz da existência ou inexistência dos dados lógicos que tem que se ter em conta na causa, o ónus da prova - artigo 342º do Código Civil - é a obrigação que recai sobre os sujeitos processuais da realidade de tais actos - traduz-se para a parte a quem compete no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova.

O juiz aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido - art.º 607º, nº 5. Por isso, exige-se ao magistrado que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação – cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada - a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes - em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente, mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – neste preciso sentido, Alberto dos Reis, CPC Anotado, 3ª ed.  Vol. III, pág.245.

Acresce, que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas, pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas – “a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico”/no Acórdão do STJ de 11.12.2003, pesquisável em dgsi.pt.

Como é sabido, a Relação pode alterar a matéria de facto se a prova produzida impuser decisão diversa - art.º 662º, nº 1.

O Tribunal da Relação goza assim de autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação, sem exclusão do uso de presunções judiciais.

Por conseguinte, a livre convicção -  a livre convicção probatória nada tem de discricionário, constituindo uma atividade profundamente vinculada ao cumprimento dos princípios e regras do direito probatório, às normas da experiência comum pertinentes e da lógica, sendo alvo de um denso escrutínio pelos intervenientes processuais - da Relação deve ser assumida em face dos meios de prova que estão disponíveis, impondo-se que o tribunal de recurso sustente a sua decisão nesses mesmos meios de prova, descrevendo os motivos que o levam a confirmar ou infirmar o resultado fixado em 1ª instância. Isto, sem prejuízo de que a imediação e a oralidade fornecem ao juiz da 1ª instância um “plus” na apreciação da prova, pelo que, a censura da sua convicção, máxime quando está em causa prova pessoal, apenas pode ser censurada, se os elementos probatórios ou a exegese operada pelo recorrente, não apenas sugerirem, mas antes impuserem - vg. por erro lógico ou crasso do juiz a quo -, tal censura.

Nas palavras do Acórdão desta Relação de Coimbra, de 13.06.2023, pesquisável em www.dgsi.pt:

“I- Para efeitos do disposto no artigo 607.º, n.º 4 e 5, do Código de Processo Civil, quando o juiz se confronta com duas hipóteses factuais que se excluem mutuamente, isso implica, logicamente, que não possam ter existido ambas no mesmo lapso de tempo; II - Salvo se os elementos probatórios a favor de cada uma das hipóteses forem sensivelmente iguais, a convicção do julgador formar-se-á de acordo com a hipótese factual que apresentar mais indícios, mais variados e que permita ter uma compreensão global e coerente de todos os factos; III – Do mesmo modo, quando a prova testemunhal e por declarações de parte forma blocos com versões factuais opostas, não podendo ambas ser verdadeiras, a convicção acerca da correspondência ou não correspondência dos depoimentos com a realidade deve formar-se no sentido de corresponderem à realidade histórica aqueles depoimentos que são corroborados por factos indiciários numerosos e sobretudo variados e que permitem ao juiz ter uma compreensão global e coerente acerca de uma das hipóteses factuais.”

Só assim se poderá satisfazer o critério da prudente convicção do julgador na apreciação da prova livre, em conformidade com o disposto, designadamente no artigo 396.º do Código Civil, em conjugação com o n.º 5 do artigo 607.º com vista a obter uma decisão que se possa ter por justa e legítima - na dúvida acerca da realidade de um facto ou da repartição do ónus da prova, o tribunal decidirá a mesma contra a parte à qual o facto aproveita, tal como decorre do disposto nos artigos 414º e 346º do Código Civil.

A 1.ª instância alinhavou e motivou, assim, a sua matéria de facto:

II. Fundamentação de facto

Factos provados

Tendo-se procedido à realização da audiência final, e após apreciação de toda a prova produzida nos autos, resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 2 de maio de 2022 faleceu, com 95 anos de idade, a testadora CC, residente, desde o mês de abril de 2013, na Lar ....

2. A testadora CC faleceu no estado de solteira, não tendo deixado ascendentes, nem descendentes.

3. As Autoras AA e DD e a Ré BB são sobrinhas da testadora CC e filhas do seu irmão EE, falecido no dia 19 de junho de 2003.

4. Mediante escrito intitulado Testamento de CC foi consignado o seguinte:

“No dia treze de maio de dois mil e quinze, perante mim, FF, Notária, com Cartório sito na Avenida ..., loja ..., ..., no Lar ..., em ..., autorizada a praticar atos neste concelho, compareceu como testadora:

CC, solteira, maior, natural da freguesia ..., concelho ..., residente na morada onde me encontro, nascida a nove de janeiro de mil novecentos e vinte e sete, filha de GG e de HH, pessoa cuja identidade verifiquei por abonação das testemunhas deste ato.

Declarou a testadora que não tem herdeiros legitimários.

Que institui sua única e universal herdeira, sua sobrinha, BB, natural da freguesia ..., filha de seu irmão pré falecido EE.

Dos bens da herança, fazem parte os objetos de ouro infra descritos, guardados num cofre, que se encontra na sua casa que foi a morada de família da testadora, na freguesia ..., concelho ...: Um grilhão em ouro amarelo; uma pulseira em placa de ouro amarelo; um relógio em ouro amarelo; uma pregadeira em ouro amarelo com esmalte; uma medalha de ouro amarelo tipo filigrana; um par de brincos em ouro branco; uma pulseira; um fio de malha de cordão; duas alianças; uma pulseira com berloque.

Foram testemunhas, II, casada, natural da freguesia ..., concelho do mesmo nome, residente na Quinta ..., ..., ... ..., e JJ, casada, natural da freguesia ..., concelho ..., residente no Loteamento ..., quartel da GNR, ..., pessoas cuja identidade verifiquei, a da primeira através da exibição do cartão de cidadão número ... válido até 12/10/2017 emitido pela República Portuguesa, a da segunda por conhecimento pessoal.

Foi feita em voz alta, na presença simultânea de todas, a leitura deste testamento e às mesmas explicado o seu conteúdo, não assinando a testadora por declarar não o poder fazer.”.

5. Do Testamento a que se alude em 4. constam as assinaturas das duas testemunhas e da Ex.ma Senhora Notária nele identificadas e a impressão digital da testadora CC.

6. Na data em que faleceu, a testadora CC era proprietária dos seguintes bens: um apartamento situado em ..., inscrito na matriz sob o artigo ...17º, fração ..., da freguesia e concelho ...; metade da herança indivisa deixada por óbito dos seus pais e constituída por prédios urbanos e rústicos; uma conta bancária.

7. Sempre foi o pai das Autoras e da Ré que apoiou a testadora CC e geriu o património desta, constituído pela herança indivisa aberta por óbito dos seus pais, da qual faziam parte terrenos, casas e quintas de exploração agrícola que geravam frutos, receitas e subsídios agrícolas.

8. Com o falecimento do pai das Autoras e da Ré as três sobrinhas da testadora CC assumiram o encargo de continuar a cuidar da sua tia.

9. Nessa altura a Autora AA ficou encarregue de administrar toda a herança e de apoiar a gestão da vida e do património da sua tia CC, com a qual manteve sempre uma relação de amizade e respeito.

10. A testadora CC e a Autora AA abriram, na Banco 1..., a conta com o número ...00, da qual a Autora era a segunda titular.

11. A conta bancária identificada em 10., na qual a testadora recebia a sua pensão mensal, servia para fazer face às despesas relacionadas com a sua alimentação, vestuário, saúde e pagamento da mensalidade devida ao Lar onde se encontrava institucionalizada.

12. A partir de certa altura, a Ré BB passou a administrar a herança e a tratar dos assuntos relativos à testadora CC.

13. No mês de março de 2013 a testadora CC foi encontrada caída na sua casa situada em ....

14. Nessa altura a testadora CC foi transportada de urgência para o Centro Hospitalar ..., onde ficou internada até ao dia 12 de abril de 2013.

15. Nessa ocasião foi dito que a testadora CC tinha sofrido um traumatismo dorso-lombar e que, durante o período de internamento, não tinha havido quaisquer alterações neurológicas.

16. No dia 12 de abril de 2013 a testadora CC teve alta hospitalar e desde então ficou institucionalizada no Lar ....

17. Desde a data em que sofreu a queda a que se alude em 13. a testadora CC ficou acamada, sendo levantada e sentada num cadeirão.

18. Desde a data em que sofreu a queda a que se alude em 13. a testadora CC ficou dependente de terceiros para a execução das tarefas relacionadas com a sua alimentação, vestuário, hidratação, higiene e marcha, denotando dificuldade na articulação da palavra.

19. Após a data em que sofreu a queda a que se alude em 13. a testadora CC perdeu a força motora, sofrendo de astenia nos membros inferiores.

20. A testadora CC só via do olho direito.

21. A mensalidade devida ao Lar onde a testadora CC se encontrava institucionalizada era paga com o valor da pensão pela mesma auferida e com as quantias provenientes da herança aberta por óbito dos seus pais, a qual era gerida pela Ré.

22. A Autora AA visitou a sua tia no Lar.

23. A testemunha JJ não tinha qualquer relação pessoal com a testadora CC.

24. A Autora AA foi a única sobrinha que, entre o mês de março de 2016 e o mês de fevereiro de 2017 depositou mensalmente, na conta bancária identificada em 10., a quantia de € 150,00.

25. Durante o ano de 2015, quando pagava a mensalidade devida ao Lar onde a sua tia se encontrava institucionalizada, a Ré transferia a quantia em causa da conta bancária identificada em 10. para a sua conta bancária.

26. No dia 4 de maio de 2022 a Autora AA dirigiu à Conservatória dos Registos Centrais um pedido de informação acerca da existência de algum Testamento outorgado pela sua tia CC.

27. No dia 22 de julho de 2022 a Ré BB participou à Autoridade Tributária e Aduaneira o óbito da sua tia CC e apresentou a respetiva relação de bens, declarando-se sua única herdeira testamentária.

28. A Ré colocou à venda, através da colaboração de uma Imobiliária, o apartamento que integra a herança aberta por óbito da sua tia pelo valor de € 94.500,00.

29. A Ré BB era afilhada da testadora CC.

30. Quando teve conhecimento da queda sofrida pela sua tia nas circunstâncias indicadas em 13., a Ré deslocou-se, de imediato, de ... até à unidade hospitalar situada na ... onde a mesma se encontrava, para acompanhar a sua tia e para se inteirar do seu estado de saúde.

31. Nessa ocasião a Ré foi informada, pela equipa médica do Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar ..., de que a sua tia tinha sofrido um traumatismo dorso-lombar na sequência da queda, mas que se encontrava bem e sem quaisquer alterações neurológicas.

32. Durante o período de internamento no Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar ... os médicos informaram a testadora CC e a Ré BB de que a primeira iria necessitar de apoio diário para se movimentar e para realizar todas as tarefas do dia-a-dia, não podendo, por isso, continuar a residir sozinha.

33. Perante isso, a testadora CC manifestou desde logo à Ré a sua intenção de ir para um Lar, onde beneficiaria de acompanhamento permanente.

34. Cumprindo a vontade da sua tia, a Ré contactou várias instituições, tendo obtido uma vaga para a institucionalizar no Lar ....

35. A ficha de admissão da testadora CC no Lar ..., datada de 12 de abril de 2013, contém a indicação de que a mesma deu entrada nessa instituição com uma fratura do corpo de L1 e que se encontrava consciente e orientada no tempo e no espaço.

36. No dia 13 de setembro de 2013 a testadora CC, por sua livre vontade e no pleno gozo das suas faculdades intelectuais, mandatou a Ré, outorgando uma procuração a favor desta, para que a representasse em tudo o que se revelasse necessário à prossecução dos seus interesses.

37. Até ao mês de abril de 2016 a testadora CC manteve o pleno gozo das suas faculdades intelectuais, permanecendo consciente, lúcida, orientada e capaz de exprimir a sua vontade e de manifestar os seus intentos.

38. A partir dessa altura a testadora CC, embora se encontrasse consciente e orientada, começou a evidenciar um decréscimo das suas capacidades intelectuais.

39. A Ex.ma Senhora Notária identificada em 4. tem cerca de trinta anos de experiência profissional.

40. A Ex.ma Senhora Notária identificada em 4. confirmou que, no momento em que foi outorgado o Testamento, a testadora CC gozava das suas faculdades cognitivas e intelectuais e expressou a sua vontade de constituir sua única e universal herdeira a Ré BB.

41. A testemunha JJ, que esteve presente na outorga do Testamento a que se alude em 4., aferiu que a testadora CC se encontrava lúcida e expressou a sua intenção de outorgar disposição testamentária a favor da Ré.

42. A Ex.ma Senhora Notária identificada em 4. conversou com a testadora CC e não detetou que a mesma se encontrasse incapaz de manifestar a sua vontade.

43. Por decisão proferida a 20 de abril de 2022 no âmbito da ação de acompanhamento de maior que correu termos no Juízo Local Cível ... – Juiz 1 sob o número 1117/20...., em que era beneficiária a testadora CC, a qual não transitou em julgado, foi determinada a medida de acompanhamento de representação geral, com a indicação de que a beneficiária é incapaz para testar, tendo sido designada, como acompanhante da testadora CC, a Ré BB e tendo sido fixada no mês de abril de 2016 “a data a partir da qual as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes”.

44. Por decisão proferida a 18 de maio de 2022 no âmbito da ação de acompanhamento de maior identificada em 43. foi declarada a extinção da instância com fundamento no falecimento da beneficiária.

45. Mediante escrito datado de 14 de agosto de 2015, a Ré BB, por si e na qualidade de procuradora da sua tia CC, com base na procuração a que se alude em 36., as Autoras AA e DD e a mãe das três, KK, declararam vender a LL dois prédios rústicos.

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Factos não provados

Após a realização da audiência final não ficaram demonstrados quaisquer outros factos relevantes para a decisão a proferir, não se tendo provado, designadamente:

1. Na data em que foi outorgado o Testamento a que se alude em 4. dos factos considerados provados a testadora CC estava incapaz, sem qualquer aptidão ou faculdade de entender o sentido da declaração dele constante e não tinha o livre exercício da sua vontade.

2. A conta bancária identificada em 10. dos factos considerados provados foi aberta no dia 19 de fevereiro de 2007.

3. O facto indicado em 12. dos factos considerados provados ocorreu no ano de 2010 e ficou a dever-se ao facto de a Autora AA ter sofrido uma eclâmpsia grave.

4. A partir dessa altura a Ré BB passou a movimentar a conta bancária identificada em 10. dos factos considerados provados.

5. A partir dessa altura a Ré BB ficou incumbida de realizar os pagamentos mensais junto do Lar.

6. Para esse efeito a Autora AA concedeu à Ré uma autorização de movimentação da referida conta bancária, confiando-lhe a correspondente caderneta bancária.

7. Na ocasião indicada em 13. dos factos considerados provados a testadora CC foi encontrada sem sentidos.

8. Nessa ocasião foi dito que a testadora CC tinha sofrido um AVC.

9. No ano de 2013 a testadora CC tinha 89 anos de idade.

10. Na data em que outorgou o Testamento a que se alude em 4. dos factos considerados provados a testadora CC estava incapaz de tomar decisões de grande complexidade e de gerir os seus bens.

11. Desde o ano de 2013 que a testadora CC apresentava um diagnóstico de perturbação neuro cognitiva major, decorrente de síndrome cerebral orgânico.

12. A Autora AA passou a contactar o Lar por telefone para saber informações acerca do estado de saúde da sua tia, por residir a 400 Km do mesmo e também devido ao estado de saúde, apatia e incapacidade da sua tia.

13. A Ré foi-se aproveitando dos seus poderes de gestão e diligenciou por forma a obter um Testamento a seu favor, bem sabendo que essa nunca foi a vontade da sua tia.

14. Antes de ter sofrido a queda a que se alude em 13. dos factos considerados provados a testadora CC queixou-se à Autora AA de que a Ré se tentava apropriar dos seus bens, dizendo que preferia que fosse a Autora a tratar das suas coisas.

15. No dia 30 de março de 2016 a Autora AA constatou que a sua tia se encontrava apática, sem falar e sem responder a perguntas.

16. As duas testemunhas identificadas no Testamento a que se alude em 4. dos factos considerados provados não conheciam a testadora CC.

17. Na data em que foi outorgado o Testamento a que se alude em 4. dos factos considerados provados a testadora CC era incapaz de discriminar as peças de ouro que nele foram descritas e indicadas.

18. Na data em que foi outorgado o Testamento a que se alude em 4. dos factos considerados provados a testadora CC era incapaz de telefonar ou contactar a Ex.ma Senhora Notária para lhe transmitir ou declarar a sua vontade de testar.

19. Na data em que foi outorgado o Testamento a que se alude em 4. dos factos considerados provados a testadora CC era incapaz de diligenciar ou mandar fazê-lo e de pagar a outorga do Testamento.

20. Nunca foi vontade da testadora CC deixar a sua herança à Ré BB.

21. A Autora AA foi ao funeral da sua tia CC e a Ré não lhe transmitiu a existência do Testamento, que sempre sonegou.

22. Na data em que foi outorgado o Testamento a que se alude em 4. dos factos considerados provados a testadora CC não tinha capacidade para compreender o sentido do mesmo, nem liberdade para agir de modo diverso ou conformar-se livremente com a sua vontade, nem capacidade para não testar ou testar de forma diversa.

23. Na data em que foi outorgado o Testamento a que se alude em 4. dos factos considerados provados a testadora CC não tinha quaisquer aptidões físicas ou psíquicas que lhe permitissem a perceção do sentido do ato de testar em si e de o fazer como expresso.

24. A testadora CC tinha com a Autora AA uma relação especial de confiança, amizade, carinho e respeito mútuo.

25. Na data em que foi outorgado o Testamento a que se alude em 4. dos factos considerados provados a testadora CC não percebia ou compreendida que, com aquele ato, estava a retirar o direito ao quinhão hereditário às Autoras, atribuindo exclusivamente esse direito à Ré.

26. Foi a Ré, ao dominar toda a gestão de vida pessoal e patrimonial da testadora CC que diligenciou pela outorga do Testamento a que se alude em 4. dos factos considerados provados e tratou e diligenciou das testemunhas.

27. A testadora CC teve, desde sempre, uma relação de grande proximidade e afetuosidade com a Ré BB.

28. A Ré foi, desde sempre, a sobrinha que mais privou com a testadora CC e a única que a acompanhava nas mais diversas facetas da vida, prestando todo o auxílio e acompanhamento de que a mesma necessitava.

29. A Ré deslocava-se com muita frequência a ... para passar vários fins de semana com a sua tia CC.

30. No mês de março de 2013 a Ré foi contactada pelo Centro de Dia da freguesia ..., tendo-lhe sido prestada a informação de que a sua tia CC não tinha comparecido e, por isso, a equipa do Centro de Dia se tinha deslocado à residência da mesma.

31. Mais lhe foi transmitido que a sua tia foi encontrada sentada no chão, perfeitamente consciente e orientada, tendo referido que tinha caído e que não conseguia levantar-se por ter muitas dores na perna.

32. A Autora AA figura como segunda titular da conta bancária identificada em 10. dos factos considerados provados por residir em ... na data em que a mesma foi aberta e ter acompanhado a sua tia ao Banco para esse efeito.


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Como é sabido, a impugnação da matéria de facto não se basta, para a sua alteração, fazer transcrições “interessadas”, excertos de certos depoimentos, que desgarrados de todo o “bolo probatório”, podem servir, na sua alegação/motivação, uma das partes interessadas. A motivação/fundamentação desinteressada do julgador vai além dessas partículas probatórias interessadas – a impugnação só pode proceder quando o recorrente, tendo por base o raciocínio lógico e racional feito pelo tribunal na decisão em crise, indica provas que imponham decisão diversa. Mais, os factos não são meras transcrições de documentos, vão mais além no ajuizamento final do julgador, embrulham-se com outras provas, nomeadamente a testemunhal.

Esmiuçando os autos.

As Apelantes impugnam, desde logo, o ponto 36, não aceitando a menção “por sua livre vontade e no pleno gozo das suas faculdades intelectuais”, pois trata-se de uma conclusão, pelo que este deve constar dado como provado com a seguinte descrição:

-“Em procuração datada de 13 de Setembro de 2013 consta CC na qualidade de representada e BB na qualidade de procuradora, tendo-se ai deixado dito, de entre o mais, que aquela primeira confere a esta segunda:

“ (..) os mais amplos poderes forenses permitidos e os especiais para confessar, desistir e transigir bem como para a representar em quaisquer repartições, públicas (…) podendo em seu nome prestar declarações principais e complementares, requerer quaisquer atos que se mostrem necessários para outorgar seu nome documentos particulares autenticados e escrituras de venda, partilha, doação (…)

(…)

Assim o disseram e outorgaram, não assinando a outorgante CC, por não o poder fazer como declarou, assinando a rogo MM (..)

Ora, além de não se tratar de conclusão, mas sim de facto, este mostra-se provado, desde logo pelo próprio documento, não bastando alegar que “acerca desta procuração a A. sempre alegou a sua falsidade, judicialmente, nos autos de ... e diretamente à R. através da carta ora ajuntas com a petição inicial - Docs. 11 e 12 -, sendo a ação judicial terminado num acordo que está junto - Doc. 13 junto com a p. i. cfr. alegado na petição inicial (factos 46º a 55º), factos que o douto tribunal entendeu não terem relevância para a presente ação”.

A alegação não faz prova do facto.

Por outro lado, não se compreende a alegação das Apelantes no tocante à prova documental que fundou a convicção do tribunal, mormente que “os documentos hospitalares não existiam à data da alta ou seja a 12 de Abril de 2013 conforme se pode aferir pelas datas de criação do mesmos (15-12-2021 e 28-07-2021).” Ora, os documentos hospitalares a que se referem as Apelantes são a nota do episódio de urgência e a nota de alta que foram emitidos a 22 de Março de 2013 e a 12 de Abril de 2013 respectivamente, existindo obviamente desde essa data - as datas referentes ao ano de 2021 são as datas em que o hospital respondeu ao ofício do Tribunal e juntou a nota de episódio de urgência e a nota de alta -, documentos esses que foram analisados pelo Tribunal à luz das regras da experiência comum e da lógica, e entrosados com os depoimentos escutados em sede de audiência de discussão e julgamento.

A certidão junta aos autos pela Ré a fls. 63 a 80 contém uma cópia do relatório completo de episódio de urgência elaborado no dia 22 de março de 2013 e do relatório de alta datado de 12 de abril de 2013.

Como resulta do teor do primeiro dos documentos mencionados, no dia 22 de março de 2013, pelas 12h26, a testadora CC foi admitida no Centro Hospitalar ..., referindo-se nesse documento, a propósito da “queixa inicial”, que a testadora “deu entrada no serviço acompanhada pelos bombeiros, encontrada caída desde o dia de ontem em casa. Refere dor dorsal, lombar e cervical”.

Por outro lado, o relatório de alta junto aos autos a fls. 78-verso contém a informação de que a testadora CC esteve internada no Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar ... desde o dia 22 de março de 2013 até ao dia 12 de abril de 2013, data em que lhe foi concedida alta.

Finalmente, também a ficha de admissão de doentes junta aos autos a fls. 22, que integra a certidão junta com a petição inicial a fls. 20-verso a 27, contém a informação de que a testadora CC foi admitida no Lar ... no dia 12 de abril de 2013.

Acresce ainda que as testemunhas NN e OO confirmaram saber que, em determinada ocasião, a testadora CC deu uma queda no interior da sua residência, após o que foi conduzida ao Hospital, não tendo regressado à localidade de ..., onde residia.

Por seu turno, a testemunha PP, enfermeiro que preencheu a ficha de admissão de doentes junta aos autos a fls. 22, de uma forma desinteressada e coerente confirmou os dados dela constantes. Esta testemunha esclareceu, ainda, que acompanhou a testadora no Lar ... até ao ano de 2021, altura em que a testemunha deixou de trabalhar nesse local.

Consta, ainda, do referido relatório completo de episódio de urgência que a testadora CC apresentava “traumatismo dorso-lombar sem alterações neurológicas”. De igual forma, a nota de alta junta aos autos a fls. 78-verso contém, a propósito da “história clínica” da testadora CC, a informação de que se trata de “doente internada no dia 22.03.13 com o diagnóstico de traumatismo dorso-lombar sem alterações neurológicas”.

Nestes termos, sendo essas as informações existentes no Centro Hospitalar ..., decorre das regras da experiência comum que terão sido essas também as informações facultadas aos familiares da testadora que as solicitaram.

Aconchegando esta manancial probatório, temos, ainda, a testemunha QQ confirmou que, de facto, foram essas as informações que a Ré BB obteve junto da instituição hospitalar onde a sua tia foi internada em consequência da queda que sofreu.

A testemunha QQ revelou ter conhecimento direto dos factos sobre os quais se pronunciou uma vez que, por um lado, residiu praticamente até atingir a idade adulta com o agregado familiar das Autoras e da Ré e, por outro lado, acompanhou regularmente a Ré BB nas deslocações por esta efetuadas para visitar a sua tia CC no Centro Hospitalar ... e no Lar .... Para além disso, o depoimento da citada testemunha foi prestado de forma que se revelou sincera, consistente, convicta, coerente e merecedora de credibilidade.

Ora, a testemunha QQ confirmou ter-se deslocado ao Hospital ... com a Ré logo depois de esta ter tido conhecimento de que a sua tia tinha sofrido uma queda, sendo certo que a informação transmitida nessa altura foi a de que a tia da Ré tinha sofrido um traumatismo numa vértebra.

Para além disso, a mesma testemunha confirmou ainda que, em face das limitações físicas de que ficou a padecer, a testadora CC já não poderia residir sozinha na sua casa de habitação, que tem uma escadaria grande, razão pela qual a Ré BB efetuou vários contactos com vista a localizar um Lar que pudesse acolher a sua tia, acabando por obter uma vaga no Lar ....

É certo, que a prova produzida em julgamento nos leva a concluir que, após a queda que sofreu no ano de 2013, a testadora CC ficou impossibilitada de se movimentar e, portanto, dependente de terceiros para a execução de todas as atividades da vida diária.

Desde logo, essa informação consta da ficha de admissão de doentes junta aos autos a fls. 22, da qual resulta que, de facto, quando foi admitida no Lar ..., a testadora CC estava dependente de terceiros para se alimentar, hidratar, vestir, fazer a sua higiene e andar.

De igual forma, o mesmo documento contém a informação de que a testadora CC só via do olho direito e apresentava astenia nos membros inferiores.

Mais se refere, na citada ficha de admissão de doentes, que a testadora apresentava fratura do corpo de L1 e que se encontrava consciente e orientada no tempo e no espaço quando foi admitida no Lar ....

Como decorre do que foi já mencionado, o teor do documento a que se aludiu foi confirmado pela testemunha PP, que procedeu à recolha das informações que fez constar do mesmo.

Mas, para além disso, tanto a testemunha RR, Diretora Técnica do Lar ..., como a testemunha PP, que desempenhou as funções de enfermeiro nesse Lar, confirmaram que, de facto, em consequência da queda que sofreu, a testadora CC ficou dependente de terceiros para a execução de todas as atividades da vida diária, em virtude de não se conseguir mover, sendo certo que apenas com a ajuda de terceiros era possível efetuar o levante da mesma a fim de a sentar num cadeirão, onde passava os períodos durante os quais não se encontrava deitada.

Por outro lado, embora a testemunha PP não tenha revelado recordar-se desse facto, a testemunha RR confirmou que a testadora CC tinha dificuldade em falar, devido aos tremores que a afetavam.

No entanto, quanto aos factos principais e com interesse para a causa em discussão nestes autos - a) Verificar se o testamento outorgado pela tia das Autoras e da Ré no dia 13 de maio de 2015 é anulável; b) Em caso afirmativo, determinar qual é o efeito da referida anulabilidade -, temos que a senhora notária, a testemunha FF, como aliás é de presunção no aviamento nos actos públicos, garantiu, de forma assertiva e inequívoca, que  nunca aceitaria outorgar um testamento se o testador não falasse, sendo que resulta das suas declarações, além do mais, que conversa sempre com o testador antes de proceder à leitura do testamento, de forma a aferir não só a sua capacidade, mas também a sua vontade, e que posteriormente explica o sentido da disposição testamentária que se encontre em causa. Que aferiu ter verificado a idoneidade das testemunhas abonadoras e que, como o impõe o seu dever de ofício confirmou que à data do testamento a testadora gozava de pelas faculdades cognitivas e intelectuais tendo expressado de forma manifesta a sua vontade e das testemunhas que estiveram presentes nos termos legais.

Mais, esclarece que quando é confrontada com alguma dúvida a esse nível, solicita a intervenção de dois peritos, o que não sucedeu neste caso. Nas suas palavras: -Sem dúvida! se ela não falasse não dissesse o que queria eu não teria feito nada! Ora, incumbia às apeladas trazer à instância o contrário, o que não fizeram.

Mais, a testemunha RR, Directora do Lar ..., que, devido às suas funções, privou diariamente com a utente desde a data em que esta ingressou na referida instituição até ao seu falecimento e ainda o Enfermeiro PP, que foi quem avaliou e preencheu a ficha de admissão da utente e que privou diariamente com mesma até 2021, referem que SS deu entrada no Lar ... de ... em Abril de 2013 com um traumatismo dorso-lombar, sem alterações neurológicas, que conversava com ambos e que se fazia entender exprimindo os eus intentos e que esteve em pleno gozo das suas faculdades cognitivas desde que ingressou no lar até já muito próximo do início da pandemia causada pelo agente Coronavírus.

É certo que a testemunha RR refere que a testadora CC apresentava tremores e alguma dificuldade em falar, não mantendo, portanto, um diálogo fluente, assegurando, no entanto, que a testadora compreendia o que lhe era dito, manifestava a sua própria vontade e conseguia fazer-se entender. Que apenas na altura da pandemia provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, aproximadamente no ano de 2020, a testadora CC sofreu uma perda das suas capacidades intelectuais, tendo ficado apática e deixado de responder ao que lhe era perguntado. De qualquer forma, desde que foi admitida na instituição e até essa altura a testadora tinha-se mantido estável.

Também a testemunha JJ esclareceu, de uma forma convincente e suficiente - ao contrário do alegado pelas apelantes, não vislumbramos que o depoimento desta testemunha, Solicitadora de profissão, possa ser afastada por falta de credibilidade -, que se deslocou ao Lar ... em outras ocasiões tendo confirmado ter conversado com a testadora e constatado que a mesma se encontrava capaz de formar e manifestar a sua vontade, o que é confirmado pelas declarações da testemunha QQ. Esta,  assegura que, até ao ano de 2017, visitou regularmente a testadora CC no Lar ..., constatando que a mesma se encontrava lúcida, respondia corretamente ao que lhe era perguntado e conseguia manter conversas sobre assuntos diversos, indicando a testemunha, a título de exemplo, o facto de a testadora conseguir dizer quais eram os problemas de saúde que afetavam as pessoas que se encontravam no mesmo quarto, de lhe ter transmitido que as autoras a não visitavam e que apenas uma prima chamada TT telefonava para saber qual era o seu estado de saúde e de ter sido a própria testadora que tomou a iniciativa de dizer que poderia emitir uma procuração a favor da Ré, para não ter que sair do Lar de ambulância.

Assentamos, desde já, que FACTO PROVADO 41 - “A testemunha JJ , que esteve presente na outorga do Testamento a que se alude em -4-, aferiu que a testadora CC se encontrava lúcida e expressou a sua intenção de outorgar disposição testamentária a favor da R.” – não é um facto novo, faz parte da alegação e do objecto deste processo, e mostra-se provado.

É certo que mostram os autos que, quer as testemunhas UU e VV, quer a Autora AA, afirmam que logo após a queda que sofreu no ano de 2013, a testadora CC, quando a visitavam no Lar ..., já não falava, não se mexia, não tinha qualquer reação, limitando-se a emitir gemidos e, segundo a primeira das testemunhas citadas, estava num estado quase vegetativo. No entanto, sopesando o declarado pelas anteriores testemunhas RR, PP e QQ, estes depoimentos e declarações de parte foram infirmados. Neste sentido vai também toda a documentação médica junta ao Autos.

Como escreve a julgadora da 1.ª instância, motivação que acompanhamos:

“Sucede, porém, que da nota de alta junta aos presentes autos a fls. 78-verso, referente, precisamente, ao mencionado internamento, não consta qualquer alusão ao acidente vascular cerebral que a testadora teria sofrido, mas apenas ao traumatismo dorso-lombar a que atrás se aludiu, o que indicia que, nessa ocasião, a testadora CC não sofreu nenhum acidente vascular cerebral.

Aliás, as testemunhas RR e PP, que acompanharam a testadora desde o momento em que foi institucionalizada no Lar ..., afirmaram não ter tido qualquer informação de que a mesma pudesse ter sofrido um acidente vascular cerebral.

Afigura-se, assim, que a alusão ao acidente vascular cerebral que a testadora CC teria sofrido no ano de 2013, não documentada nos elementos clínicos facultados à Ex.ma Senhora perita, terá resultado de alguma informação incorreta que lhe possa ter sido prestada verbalmente, mas que não chegou a ser confirmada.

De igual forma, também no âmbito da presente ação declarativa não foi produzida qualquer prova objetiva e credível da qual resultasse que a testadora CC, nessa ocasião ou noutras circunstâncias, pudesse ter sofrido um acidente vascular cerebral.

Por essa razão, foi considerado não provado o facto indicado sob o número 8. do elenco dos factos não provados.

De todo o modo, importa acrescentar ainda que no relatório médico datado de 22 de abril de 2016 cuja cópia foi junta aos autos a fls. 29-verso, relativo à testadora CC, foi consignado o seguinte: “89 anos; consciente e orientada; acamada; dependente para todas as atividades da vida diária; tremor essencial; dificuldade na articulação da palavra; donde: ser incapaz para tomar decisões de grande complexidade”.

Apesar de a informação constante do referido relatório médico se revelar bastante sucinta, verifica-se, por um lado, que na data nele indicada a testadora CC ainda se encontrava consciente e orientada. Por outro lado, de acordo com o mesmo relatório, a incapacidade revelada pela testadora, nessa altura, restringia-se à tomada de “decisões de grande complexidade”, e não à tomada de outras decisões que pudessem ser consideradas simples ou de menor complexidade.

Como resulta das regras da experiência comum e foi consignado no relatório pericial elaborado no âmbito dos autos de acompanhamento de maior a que atrás se aludiu, o processo conducente à perda de faculdades intelectuais é, normalmente, lento e progressivo.

Quer isto dizer que o facto de a testadora CC, a 22 de abril de 2016, apresentar já alguns sinais de deterioração das suas faculdades intelectuais não significa necessariamente que tais sinais já se verificassem, cerca de um ano antes, na data em que foi outorgado o Testamento a que se reportam os presentes autos (13 de maio de 2015).

De facto, a prova produzida em sede de audiência final revela que, nessa data, a testadora CC se encontrava capaz de entender o sentido da declaração constante do Testamento por si outorgado e de exprimir clara e livremente a sua vontade.

Em primeiro lugar, cumpre começar por referir que tanto a testemunha RR, como a testemunha PP asseguraram ao Tribunal que quando deu entrada no Lar ..., no ano de 2013, a testadora CC era capaz de se fazer entender e compreendia o que lhe era dito.

Na verdade, embora ambas as testemunhas tenham afirmado que se limitavam a colocar questões simples à testadora, relacionadas com o seu estado de saúde e com as suas necessidades imediatas, a mesma compreendia as questões que lhe eram dirigidas e respondia de forma adequada.

É certo que a testemunha RR confirmou que a testadora CC apresentava tremores e alguma dificuldade em falar, não mantendo, portanto, um diálogo fluente. Ainda assim, a mesma testemunha não deixou de assegurar ao Tribunal que a testadora compreendia o que lhe era dito, manifestava a sua própria vontade e conseguia fazer-se entender.

Com efeito, segundo a testemunha RR, apenas na altura da pandemia provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, aproximadamente no ano de 2020, a testadora CC sofreu uma perda das suas capacidades intelectuais, tendo ficado apática e deixado de responder ao que lhe era perguntado. De qualquer forma, desde que foi admitida na instituição e até essa altura a testadora tinha-se mantido estável.

De igual forma, também a testemunha PP afirmou claramente que foi já próximo da altura da pandemia que a testadora CC começou a ficar mais debilitada, o que justificou com o facto de a mesma ter começado a sofrer internamentos recorrentes e a ter necessidade de tomar mais medicação.

Ora, os depoimentos prestados pelas duas testemunhas citadas são compatíveis com os elementos documentais a que atrás se aludiu referentes ao ano de 2021, altura em que a situação de incapacidade da testadora CC já era evidente.

Do mesmo modo, a nota de alta cuja cópia foi junta aos autos a fls. 79 e 80 revela que, para além de ter estado internada entre os dias 2 e 9 de abril de 2021, a testadora CC contraiu a doença COVID-19 no mês de dezembro de 2020, o que corrobora o depoimento prestado pela testemunha PP.

Por seu turno, a testemunha QQ assegurou ao Tribunal que, até ao ano de 2017, visitou regularmente a testadora CC no Lar ..., constatando que a mesma se encontrava lúcida, respondia corretamente ao que lhe era perguntado e conseguia manter conversas sobre assuntos diversos, indicando a testemunha, a título de exemplo, o facto de a testador conseguir dizer quais eram os problemas de saúde que afetavam as pessoas que se encontravam no mesmo quarto, de lhe ter transmitido que as Autora não a visitavam e que apenas uma prima chamada TT telefonava para saber qual era o seu estado de saúde e de ter sido a própria testadora que tomou a iniciativa de dizer que poderia emitir uma procuração a favor da Ré, para não ter que sair do Lar de ambulância

Em face da coincidência verificada entre os depoimentos prestados pelas três testemunhas citadas, e considerando a credibilidade dos mesmos, não subsistem quaisquer dúvidas de que a deterioração das faculdades intelectuais da testadora CC teve início em data muito posterior à da outorga do Testamento a que se reportam os presentes autos.

Mas, se dúvidas houvesse a esse respeito, as mesmas sempre seriam afastadas em face dos depoimentos prestados em audiência final pelas testemunhas FF e JJ.

Com efeito, ambas as testemunhas prestaram depoimentos que se afiguraram desinteressados, coerentes, seguros, plausíveis e, portanto, merecedores de credibilidade.

Ora, a testemunha FF, na qualidade de Notária que providenciou pela elaboração do Testamento a que se reportam os presentes autos, admitiu não se recordar, em concreto, do referido Testamento, confirmando, no entanto, o que dele fez constar.

Para além disso, de forma bastante assertiva e inequívoca, a Ex.ma Senhora Notária garantiu ao Tribunal, em primeiro lugar, que nunca aceitaria outorgar um Testamento se o testador não falasse. Por outro lado, a testemunha FF acrescentou ainda que conversa sempre com o testador antes de proceder à leitura do Testamento, de forma a aferir não só a sua capacidade, mas também a sua vontade, e que posteriormente explica o sentido da disposição testamentária que se encontre em causa.

Por último, a Ex.ma Senhora Notária, invocando os trinta anos de experiência profissional que já conta, assegurou ao Tribunal que, no caso em apreço, não teve qualquer dúvida acerca da capacidade da testadora CC para outorgar o Testamento a que se tem vindo a aludir, na medida em que, quando é confrontada com alguma dúvida a esse nível, solicita a intervenção de dois peritos, o que não sucedeu neste caso.

Ora, o depoimento prestado pela testemunha FF foi corroborado pela testemunha JJ que, na qualidade de testemunha, interveio também na outorga do Testamento a que se tem vindo a aludir.

Com efeito, também a testemunha JJ confirmou que, nessa ocasião, a testadora CC conversou com a Ex.ma Senhora Notária e confirmou quais eram os bens e quem era a beneficiária que se encontram indicados no Testamento, não tendo a testemunha qualquer dúvida acerca da capacidade intelectual e volitiva da testadora.

Mas, para além disso, a testemunha JJ esclareceu ter-se deslocado ao Lar ... em duas outras ocasiões: inicialmente para a outorga de uma procuração a favor da Ré BB e, depois disso, para verificar se a testadora CC pretendia revogar essa procuração.

Em ambas as ocasiões a citada testemunha confirmou ter conversado com a testadora CC e constatado que a mesma se encontrava capaz de entender o que lhe era dito e também de formar e manifestar a sua vontade.

Inclusivamente, na segunda das ocasiões mencionadas, a testemunha deslocou-se ao Lar ... munida de um documento destinado a revogar a procuração anteriormente emitida pela testadora, tendo esta declarado que não pretendia revogar a referida procuração e que mantinha a concessão dos poderes a que a mesma se reportava.

De acordo com os elementos documentais constantes dos autos, a procuração a que se aludiu foi outorgada pela testadora CC no dia 13 de setembro de 2013 (cfr. fls. 59 a 62) e utilizada na celebração de um contrato de compra e venda que se encontra datado de 14 agosto de 2015 (cfr. fls. 80-verso a 89).

Assim, tendo a testemunha JJ esclarecido que contactou a testadora CC, com vista a formalizar a revogação da dita procuração, em data posterior à da outorga do contrato de compra e venda a que se aludiu, impõe-se concluir que, após o dia 14 de agosto de 2015, a testadora continuou capaz de entender o sentido das suas declarações e de manifestar livremente a sua vontade.

Deste modo, conjugando os depoimentos testemunhais e os elementos documentais mencionados, não poderia o Tribunal deixar de considerar provados os factos indicados sob os números 23., 36. a 42. e 45..

A este propósito não deixará de se notar, desde já, que, em sede de audiência final, quer as testemunhas UU e VV, quer a Autora AA afirmaram que, logo após a queda que sofreu no ano de 2013, a testadora CC, quando a visitavam no Lar ..., já não falava, não se mexia, não tinha qualquer reação, limitando-se a emitir gemidos e, segundo a primeira das testemunhas citadas, estava num estado quase vegetativo.

Porém, decorre do que foi já mencionado que tais depoimentos e declarações de parte foram categoricamente infirmados pelas testemunhas RR, PP e QQ.

De igual forma, também a prova documental produzida no âmbito dos presentes autos infirmou os depoimentos prestados pelas testemunhas UU e VV e as declarações de parte da Autora AA.

Com efeito, consta do relatório completo de episódio de urgência cuja cópia foi junta a fls. 76 e 77, a propósito da “história da doença”, que, no dia 22 de março de 2013, a testadora CC referiu “queda ontem”, não apresentava alterações neurológicas e referiu também “que nunca teve queixas significativas ao longo da coluna e nunca esteve internada por problemas destes”.

Ou seja, no próprio dia em que foi admitida no Centro Hospitalar ... em consequência da queda que sofreu, a testadora CC encontrava-se consciente e falava, tendo logrado transmitir as informações atrás mencionadas.

Deste modo, dúvidas não restam de que não foi a queda sofrida pela testadora no mês de março de 2013 que provocou o estado de apatia descrito pelas duas testemunhas e pela Autora AA.

Do mesmo modo, o próprio relatório médico, datado de 22 de abril de 2016, que se encontra junto aos autos a fls. 29-verso revela que nessa data a testadora CC ainda se encontrava consciente e orientada e ainda falava, pois, se assim não fosse, não poderia ter sido detetada qualquer dificuldade na articulação da palavra, o que significa que o estado de apatia e inconsciência descrito quer pelas testemunhas UU e VV, quer pela Autora AA só se verificou em data muito posterior à da institucionalização da testadora no Lar ....

Em consequência, por terem sido infirmados pela prova testemunhal e documental a que se aludiu, os dois depoimentos testemunhais mencionados e as declarações de parte da Autora não se revelaram merecedores de credibilidade, razão pela qual não foram considerados pelo Tribunal”.

(…)

 “A prova documental produzida no âmbito dos presentes autos confirma, desde logo, que os bens que integram a herança aberta por óbito da testadora CC correspondem aos que se encontram indicados sob o número 6. do elenco dos factos considerados provados. Na verdade, tais bens estão indicados na relação de bens apresentada para efeito de Imposto do Selo, a qual se encontra incorporada na certidão emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira e junta aos autos a fls. 18 a 20.”

Mais, as peças em ouro constam já na descrição do ponto 4. - Mediante escrito intitulado Testamento de CC foi consignado o seguinte: “No dia treze de maio de dois mil e quinze, perante mim, FF, Notária, com Cartório sito na Avenida ..., loja ..., ..., no Lar ..., em ..., autorizada a praticar atos neste concelho, compareceu como testadora:

CC, solteira, maior, natural da freguesia ..., concelho ..., residente na morada onde me encontro, nascida a nove de janeiro de mil novecentos e vinte e sete, filha de GG e de HH, pessoa cuja identidade verifiquei por abonação das testemunhas deste ato.

Declarou a testadora que não tem herdeiros legitimários.

Que institui sua única e universal herdeira, sua sobrinha, BB, natural da freguesia ..., filha de seu irmão pré falecido EE.

Dos bens da herança, fazem parte os objetos de ouro infra descritos, guardados num cofre, que se encontra na sua casa que foi a morada de família da testadora, na freguesia ..., concelho ...: Um grilhão em ouro amarelo; uma pulseira em placa de ouro amarelo; um relógio em ouro amarelo; uma pregadeira em ouro amarelo com esmalte; uma medalha de ouro amarelo tipo filigrana; um par de brincos em ouro branco; uma pulseira; um fio de malha de cordão; duas alianças; uma pulseira com berloque.

Mais, apesar de, a partir de certa altura, a Ré BB ter passado a tratar dos assuntos relativos à sua tia CC, não foi produzida qualquer prova que permitisse esclarecer as circunstâncias em que a Ré passou a movimentar a conta bancária titulada pela sua tia, nem os concretos termos em que a mesma terá ficado incumbida de providenciar pelo pagamento da mensalidade devida ao Lar ....

Por outro lado, quanto ao facto de a Autora AA ter contactado, por telefone, o Lar onde a sua tia se encontrava institucionalizada foi confirmado somente pela própria Autora, em sede de declarações de parte prestadas em audiência final, e pela testemunha UU.

Assim, não tendo sido produzida qualquer outra prova a esse respeito, e uma vez que as declarações de parte prestadas pela Autora e o depoimento testemunhal a que se aludiu não se revelaram credíveis, fica considerado não provado o facto indicado sob o número 12. do elenco dos factos não provados - A Autora AA passou a contactar o Lar por telefone para saber informações acerca do estado de saúde da sua tia, por residir a 400 Km do mesmo e também devido ao estado de saúde, apatia e incapacidade da sua tia.

Por outro lado, não se vislumbra qualquer contradição entre os FACTOS NÃO PROVADOS 4 - A partir dessa altura a Ré BB passou a movimentar a conta bancária identificada em 10. dos factos considerados provados e 5 - A partir dessa altura a Ré BB ficou incumbida de realizar os pagamentos mensais junto do Lar - e o FACTO PROVADO 25 - Durante o ano de 2015, quando pagava a mensalidade devida ao Lar onde a sua tia se encontrava institucionalizada, a Ré transferia a quantia em causa da conta bancária identificada em 10. para a sua conta bancária -, além de que não é essencial tal matéria para a decisão de direito.

Quanto aos FACTOS NÃO PROVADOS 15, não foi produzida qualquer prova credível que os confirmasse, antes se mostrando incompatíveis com os factos considerados provados. Os documentos referidos pela Apelante  apenas certificam o que deles constam – “Quero ainda expressar que no passado dia 30 de Março, desloquei-me ao Lar e visitei a tia, verificando assim o seu estado de saúde em que se encontra e em que se encontrava, bem como me desloquei ao escritório da Solicitadora JJ trazendo comigo a cópia da procuração a favor de BB que, claramente e após análise considero ter sido obtida por meios pouco ortodoxos, indubitavelmente duvidosos e consequentemente de validade que considero inoperante, fútil, improdutiva, no fundo uma procuração integralmente falsa “- não que tivessem ocorrido.

O facto referido em 16. foi considerado não provado em virtude de ter sido infirmado pela testemunha JJ. Efetivamente, esta testemunha esclareceu as circunstâncias, do foro profissional, em que, tendo em vista a outorga da procuração atrás mencionada, conheceu a testadora CC.Deste modo, não poderia o Tribunal deixar de considerar não provado o facto a que se aludiu.

Já o facto inserido no elenco dos factos considerados não provados sob o número 20., para além de resultar infirmado em face do próprio teor do Testamento outorgado no dia 13 de maio de 2015, foi também negado pela testemunha QQ.

Com efeito, a citada testemunha assegurou ao Tribunal que, no decurso das visitas por si efetuadas ao Lar ..., a testadora CC chegou a confidenciar-lhe que queria deixar todos os seus bens à Ré, em virtude de ser sua afilhada e a única sobrinha que a visitava no Lar.

Nestes termos, não poderia o Tribunal deixar de considerar não provado o facto indicado sob o número 20. do elenco dos factos não provados.

A prova produzida em sede de audiência final não confirmou também os factos descritos sob os números 24. e 27. do elenco dos factos considerados não provados. A testemunha OO, que conviveu com as Autoras e com a Ré desde a infância, afirmou que a testadora CC não teria uma relação especial com nenhuma das sobrinhas. De igual forma, também a testemunha QQ esclareceu que, antes de ter sofrido a queda que esteve na origem da sua institucionalização, a testadora CC era acarinhada pelas três sobrinhas, sendo certo que apenas após essa data as Autoras deixaram de visitá-la.

Como escreve a 1.ª instância:

“Não deixará de se notar que a testemunha QQ afirmou em sede de audiência final, de forma convicta e perentória, que, depois da queda a que se aludiu, apenas a Ré BB continuou a acompanhar regularmente a sua tia CC.

De igual forma, não deixa de ser significativa a circunstância de as testemunhas RR e PP terem afirmado que conhecem apenas a Ré e que não têm memória de ter visto no Lar, nem recebido qualquer contacto telefónico efetuado por nenhuma das Autoras.

De todo o modo, embora se afigure inequívoco que, de facto, a partir da data em que ocorreu a queda a que se aludiu, apenas a Ré continuou a acompanhar, de forma regular, a testadora CC, o certo é que, até essa data, as três sobrinhas privariam e acompanhariam a sua tia.

Nestes termos, não poderia o Tribunal deixar de considerar não provados os factos a que aludem os números 28. e 29. do elenco dos factos não provados.

Embora tenha resultado da prova produzida em sede de audiência final que a única sobrinha que visitou a testadora WW após a queda pela mesma sofrida foi a Ré, não foi produzida qualquer prova concreta e inequívoca que esclarecesse as circunstâncias em que a mesma tomou conhecimento de que a sua tia tinha caído, designadamente se essa informação lhe foi transmitida diretamente por alguma pessoa ligada ao Centro de Dia ou por terceiros.

É certo que a testemunha QQ afirmou que a Ré terá sido contactada por alguém do Centro de Dia que lhe comunicou o sucedido. Porém, não tendo a citada testemunha presenciado o contacto que terá sido estabelecido, afigura-se que o seu depoimento, nessa parte, é insuficiente para a demonstração dos factos em causa.”

Por isso, não obstante as críticas que lhe são dirigidas pelas apelantes, não se vislumbra, à luz dos meios de prova invocados, um qualquer erro ao nível da apreciação ou valoração da prova produzida – sujeita à livre convicção do julgador –, à luz das regras da experiência, da lógica ou da ciência.

Ao invés, a convicção da julgadora colhe, a nosso ver, completo apoio nos ditos meios de prova produzidos, sendo, portanto, de manter a factualidade assente, tal como decidido pelo tribunal recorrido.

Improcede, assim, a impugnação da matéria de facto.


*

2.4 - Do Direito

Como é sabido, o artigo 2180.º do Código Civil exige que o testador tenha expressado a sua vontade por palavras suas, tenha manifestado claramente a sua vontade e que essa expressão revele uma vontade que tenha ultrapassado a fase da ideia, projecto ou mero desígnio. A capacidade testamentária activa não é afectada por qualquer deficiência cerebral ou mental do testador mas apenas por anomalias daquela natureza que no momento da celebração do testamento eliminem a vontade e o entendimento - recai sobre o interessado na anulação do testamento o ónus da prova da situação de incapacidade de facto do testador.

O testamento caracteriza-se por ser um negócio jurídico unilateral, mortis causa, não receptício, pessoal, individual, livremente revogável e formal - é um acto pessoal porque não pode ser feito por meio de representante ou ficar dependente do arbítrio de outrem - artigo 2182.º do Código Civil. Por esse motivo deve ser o testador a expressar a sua vontade e “a expressão da vontade da pessoa tem de ser integral” sem prejuízo, naturalmente, das excepções expressamente consagradas nos artigos 2182º, n.º 2, e 2183º, do Código Civil - ver Guilherme de Oliveira, in O testamento: apontamentos, Coimbra, pág. 10.

A exigência de forma para a celebração do testamento visa o reforço das condições para que a declaração corresponda à vontade real do testador, surgindo o formalismo “como garante de expressão livre e última do testador” – ver Pamplona Corte Real, in Curso de Direito de Sucessões, Vol. I, pág. 150. A intenção fundamental da lei é a de garantir o carácter pessoal do testamento, não a de reforçar a exigência de clareza ou inequivocidade da declaração - o modo como o testador manifesta ou expressa a sua vontade.

Para a validade do testamento é necessário que o testador tenha expressado a sua vontade por palavras suas, exigindo, ainda, que a vontade seja claramente manifestada, ou seja, que não fiquem dúvidas sobre aquilo que o testador manifestou querer - o que não se confunde com dúvidas sobre o teor da vontade manifestada, as quais são resolvidas por via de interpretação do testamento mas, em regra, não afectam a sua validade.

O testamento é um acto jurídico e, como tal, a sua validade depende dos mesmos requisitos de validade de qualquer outro acto jurídico. A disposição de vontade deve ser querida e assumida, o que pressupõe que no momento em que faz a disposição o testador esteja munido de plena consciência desse acto e possua capacidade de perceber, entender e manifestar as consequências, efeitos e alcance do acto que vai realizar.

É indispensável que o testador tenha a “consciência do seu acto e dos efeitos deste; que tenha uma ideia justa da extensão do bem de que dispõe; que esteja em estado de compreender e de apreciar os direitos que vão nascer da sua disposição de ultima vontade, e, especialmente, com relação a este ultimo objecto, que nenhuma perturbação de espírito envenene as suas afeições, ou perverta o seu sentimento do justo, ou ponha obstáculo ao exercício das suas faculdades naturais; que nenhum delírio influencie a sua vontade, quando dispõe da sua fortuna, ou o arraste a fazer um uso dela que não faria, se estivesse em plena integridade do seu espírito” – ler o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 2013, acessível em www.dgsi.pt.

Dispõe o nº 1 do art.º 371º do Código Civil que “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador”. Ou seja , ficam plenamente provados os factos que nele se referem como tendo sido praticados pela entidade documentadora, autora do documento  - que conferiu a identidade das partes, ou que lhes leu o documento…-, ou que nele são atestados com base nas suas percepções - por ex., as declarações que ouviu ou os actos que viu serem praticados; mas os meros juízos pessoais do documentador  - que a parte se encontrava no pleno uso das faculdades mentais ou semelhante -  ficam sujeitos à regra da livre apreciação pelo julgador – ler, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, anotação ao artigo 371º, da autoria de Maria dos Prazeres Pizarro Beleza; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-09-2019, pesquisável em www.dgsi.pt.

A propósito da intervenção do notário, escreveu-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 16-06-09, pesquisável emn www.dgsi.pt:

“Para além de a matéria de facto provada não sustentar a afirmação de uma situação de incapacidade para testar, uma tal conclusão debater-se-ia com a forte presunção em sentido inverso emergente do facto de o testamento ter sido exarado perante Notário. Tratou-se de testamento público, acto jurídico regulado pela lei substantiva de forma extremamente rigorosa, o que, por exemplo, se revela através da sua natureza pessoal, nos termos que constam do art. 2182º do CC, ou da previsão de um conjunto de indisponibilidades relativas decorrentes dos arts. 2192º e segs. Semelhante rigor foi espelhado na solenidade que rodeia a sua outorga. Sendo lavrado pelo próprio Notário, segundo as declarações do testador, o testamento fica exarado no respectivo Livro de Notas. Na ocasião em que recebe a declaração, cumpre ao Notário esclarecer o testador acerca dos seus efeitos, devendo estar atento ainda a qualquer aspecto que faça duvidar das suas faculdades mentais.

Mais do que acontecerá com a generalidade das pessoas, os Notários são profissionais familiarizados tanto com as dificuldades e motivações das pessoas de idade que se apresentam a outorgar testamentos, como com as situações de aproveitamento por parte de terceiros das debilidades físicas ou mentais dos testadores ou dos efeitos que podem projectar-se a partir de situações de dependência em que se encontrem”.

O ónus da prova dos factos reveladores de uma situação de incapacidade de facto do testador, no momento da feitura do testamento, para efeitos do artigo 2199.º, recai sobre o interessado na anulação do testamento em virtude do estatuído no artigo 342.º, n.º 1, ambos do Código Civil. A capacidade testamentária activa não é afectada por qualquer deficiência cerebral ou mental do testador, ao tempo da feitura do testamento, mas tão-somente por anomalias daquela natureza que eliminem a vontade e o entendimento - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-1971, in Boletim do Ministério da Justiça nº 212, Ano 1972, pág. 257.

Não é qualquer psicopatia que tira ao indivíduo a possibilidade de dispor dos seus bens: a doença mental há-de obnubilar-lhe a inteligência ou enfraquecer-lhe de tal jeito a vontade, que possa afirmar-se que não entendeu o que disse ou, em condições normais, não quereria o que declarou - Acórdão da Relação do Porto de 14-3-73, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 226, pág. 279.

O testamento só pode ser anulado quando o testador não estiver em condições de entender o sentido daquilo que declare no testamento ou não tenha o livre exercício da sua vontade. A existência de doenças, tais como a senilidade e a arteriosclerose não é, por si só, suficiente para afastar a capacidade testamentária activa, tornando-se necessário, para tal, que, ao tempo da feitura do testamento, o testador não tenha podido entender a sua declaração constante do mesmo testamento - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-01-1991, in www.dgsi.pt.

Por isso, como escreve a 1.ª instância - decisão que seguimos:

(…) no caso em apreço, decorre da fundamentação de facto que antecede que no dia 2 de maio de 2022 faleceu, com 95 anos de idade, a testadora CC, residente, desde o mês de abril de 2013, na Lar .... Efetivamente, a testadora CC faleceu no estado de solteira, não tendo deixado ascendentes, nem descendentes.

Já as Autoras AA e DD e a Ré BB são sobrinhas da testadora CC e filhas do seu irmão EE, falecido no dia 19 de junho de 2003.

A fundamentação de facto que antecede revela ainda que, mediante escrito intitulado Testamento de CC foi consignado o seguinte:

“No dia treze de maio de dois mil e quinze, perante mim, FF, Notária, com Cartório sito na Avenida ..., loja ..., ..., no Lar ..., em ..., autorizada a praticar atos neste concelho, compareceu como testadora:

CC, solteira, maior, natural da freguesia ..., concelho ..., residente na morada onde me encontro, nascida a nove de janeiro de mil novecentos e vinte e sete, filha de GG e de HH, pessoa cuja identidade verifiquei por abonação das testemunhas deste ato.

Declarou a testadora que não tem herdeiros legitimários.

Que institui sua única e universal herdeira, sua sobrinha, BB, natural da freguesia ..., filha de seu irmão pré falecido EE.

Dos bens da herança, fazem parte os objetos de ouro infra descritos, guardados num cofre, que se encontra na sua casa que foi a morada de família da testadora, na freguesia ..., concelho ...:

Um grilhão em ouro amarelo; uma pulseira em placa de ouro amarelo; um relógio em ouro amarelo; uma pregadeira em ouro amarelo com esmalte; uma medalha de ouro amarelo tipo filigrana; um par de brincos em ouro branco; uma pulseira; um fio de malha de cordão; duas alianças; uma pulseira com berloque.

Foram testemunhas, II, casada, natural da freguesia ..., concelho do mesmo nome, residente na Quinta ..., ..., ... ..., e JJ, casada, natural da freguesia ..., concelho ..., residente no Loteamento ..., quartel da GNR, ..., pessoas cuja identidade verifiquei, a da primeira através da exibição do cartão de cidadão número ... válido até 12/10/2017 emitido pela República Portuguesa, a da segunda por conhecimento pessoal.

Foi feita em voz alta, na presença simultânea de todas, a leitura deste testamento e às mesmas explicado o seu conteúdo, não assinando a testadora por declarar não o poder fazer.”.

Para além disso, constam do testamento a que se aludiu as assinaturas das duas testemunhas e da Ex.ma Senhora Notária nele identificadas, bem como a impressão digital da testadora CC.

(…)  nos termos previstos no artigo 2191º do Código Civil, “a capacidade do testador determina-se pela data do testamento”.

Conforme salienta Capelo de Sousa - In Lições de Direito das Sucessões, Vol. I, 4ª Edição Renovada, Reimpressão, Coimbra Editora, 2012, pág. 173 -, “nos termos do art. 2191º, «a capacidade do testador determina-se pela data do testamento», que não posteriormente pela situação anterior à abertura da sucessão, mesmo que se venha a verificar uma interdição por anomalia psíquica. Tal não oferece dúvidas quanto aos testamentos públicos e especiais não cerrados (arts. 2205º e 2210º e segs.), mas já levanta dificuldades nos testamentos cerrados, que têm uma data de feitura (art. 2206º, n.º 1) e outra de aprovação por notário (art. 2206º, n.º 4). No entanto, a nossa atual lei considerou aqui relevante a data da aprovação do testamento cerrado para todos os efeitos legais (art. 2207º), considerando que só nessa data é que o testador declara para efeitos legais a sua vontade de testar. A sanção para o testamento feito por incapaz é a nulidade (art. 2190º), aplicando-se aqui prioritariamente as regras dos arts. 2308º e segs. e, subsidiariamente, as normas do regime geral da nulidade (arts. 286º e 289º a 293º).”.

No entanto, resulta do disposto no artigo 2199º do Código Civil que “é anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória”.

Facilmente se compreende a estatuição do referido preceito legal, tendo em conta o que foi já mencionado a propósito da primazia concedida à preservação da vontade real e da liberdade de disposição do testador.

Na verdade, em anotação ao preceito legal a que se aludiu referem Pires de Lima e Antunes Varela -In Código Civil Anotado, Volume VI, Coimbra Editora, 1998, pág. 323 -  que o mesmo se refere “à incapacidade (tomada a expressão no sentido rigoroso próprio da falta de aptidão natural para entender o sentido da declaração ou da falta do livre exercício do poder de dispor mortis causa dos próprios bens, por qualquer causa verificada no momento em que a disposição é lavrada. A disposição legal refere-se expressamente ao carácter transitório que pode ter a falta de discernimento ou de livre exercício da vontade de dispor, por parte do testador, para significar que o vício contemplado nesta norma é a deficiência psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a disposição é lavrada. (…). A nulidade do testamento feito pelo interdito baseia-se na presunção do estado ou situação de incapacidade, iuris et de iure, criada pela sentença, desde o momento em que é proferida até ao momento em que a interdição é levantada. A anulação decretada, a requerimento do interessado, com base no artigo 2199º, assenta pelo contrário na falta alegada e comprovada de capacidade do testador, no preciso momento em que lavrou o testamento, fosse para entender o sentido e alcance da sua declaração, fosse para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam.”.

De qualquer forma, para além dos vícios específicos que podem afetar o Testamento nos moldes já mencionados, mostram-se também aplicáveis, ao negócio jurídico unilateral em causa, as regras aplicáveis aos negócios jurídicos em geral - Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume VI, Coimbra Editora, 1998, pág. 323, e Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, Vol. I, 4ª Edição Renovada, Reimpressão, Coimbra Editora, 2012, pág. 175.

Como é sabido, o artigo 246º do Código Civil estatui que “a declaração não produz qualquer efeito, se o declarante não tiver a consciência de fazer uma declaração negocial ou for coagido pela força física a emiti-la; mas, se a falta de consciência da declaração foi devida a culpa, fica o declarante obrigado a indemnizar o declaratário”.

Como sustenta Capelo de Sousa12, “nestes casos não há uma vontade de testar, sendo a declaração testamentária inexistente, nos termos gerais dos arts. 245º e 246º”.

Para além disso, tem vindo a ser equacionada ainda a aplicabilidade, ao negócio jurídico unilateral que é o Testamento, do regime previsto no artigo 282º do Código Civil para a celebração de negócios usurários.

Com efeito, segundo Capelo de Sousa - In Lições de Direito das Sucessões, Vol. I, 4ª Edição Renovada, Reimpressão, Coimbra Editora, 2012, pág. 185 -, “pode, teoricamente pelo menos, o testamento ser efetuado porque alguém explorou a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter do testador, sendo então o testamento anulável (cfr. art. 282º, n.º 1). Não me parece que haja aqui necessidade de verificação da «concessão de benefícios excessivos ou injustificados» no testamento, tal a necessidade de proteger a liberdade e a vontade real de testar em liberalidades de última vontade.”. De todo o modo, como salienta o Supremo Tribunal de Justiça - Cfr. Acórdão de 23/06/2016, proc. n.º 1579/14.5TBVNG.P1.S1, in www.dgsi.pt -, “mesmo que se admita que esta autonomização da usura vale também para o testamento, surge a dificuldade em operar a transposição dos requisitos do instituto tendo em conta as características essenciais do testamento enquanto negócio jurídico unilateral não recetício com efeitos sucessórios. Carvalho Fernandes – escrevendo a respeito do erro-vício, mas em termos válidos para outros institutos – identifica claramente o problema do “risco envolvido na transposição, para o regime geral dos negócios unilaterais não recipiendos, de disposições relativas a um ato que se reveste de particularidades significativas, como acontece com o testamento” (cit., pág. 215).”. De facto, o artigo 282º, n.º 1, do Código Civil, estatui que “é anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados”.

“Identificam-se os três requisitos previstos neste preceito: a) Existência de uma situação de inferioridade do declarante; b) Exploração da situação de inferioridade pelo usurário; c) Lesão, isto é, promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro. A possibilidade de transpor para o testamento o requisito subjetivo relativo ao declarante não oferece especiais dúvidas. Também será de admitir a transposição do requisito subjetivo relativo ao usurário, uma vez que a redação do art. 282º, n.º 1, do CC, é suficientemente ampla para incluir situações em que o usurário não é o declaratário ou em que nem sequer existe declaratário. Maiores dificuldades suscita, porém, a transposição do requisito objetivo da “lesão”, já que, por natureza, o testamento é apto a atribuir benefícios que excedem, total ou parcialmente, os merecimentos de quem os recebe. Rejeita-se a posição (Capelo de Sousa, cit., p. 185) que, pura e simplesmente, dispensa a verificação deste requisito no caso dos testamentos porque tal desvirtuaria a essência do regime dos negócios usurários. Nas palavras de Pedro Eiró (cit., pág. 15), “É no negócio usurário que o ordenamento jurídico português atribui relevância à lesão como causa invalidante do negócio jurídico. Lesão e usura estão hoje indissociavelmente ligadas. Se por um lado não existe usura sem lesão – esta é um dos seus elementos componentes –, por outro lado a lesão, como vício do negócio, só é relevante em sede de negócio usurário.” Se a usura não pode, por definição, existir sem um elemento objetivo, a sua aplicação não poderá verificar-se se o testamento ou testamentos forem valorados de forma isolada. Apenas se poderá afirmar em circunstâncias muito excecionais – (…) – em que esses negócios jurídicos se insiram num contexto mais alargado, no qual a factualidade provada imponha uma diferente valoração. Diferente valoração associada ao recurso à conceção de “sistema móvel”, desenvolvida por Wilburg (na obra Elementen des Schadensrecht de 1941) a respeito do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, aceite pela doutrina nacional e igualmente válida para o instituto da usura (cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I – Parte Geral, I, 2005, pág. 651), permitindo considerar que, se for particularmente intensa a prova de factos que revelam um dos pressupostos do art. 282º, n.º 1, do CC, será aceitável um menor grau de exigência na verificação de um outro pressuposto.”- Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/06/2016, proc. n.º 1579/14.5TBVNG.P1.S1, in www.dgsi.ptjá citado.

Por fim, também o regime da nulidade e da anulabilidade do Testamento apresenta algumas especificidades relativamente ao regime da nulidade e da anulabilidade do negócio jurídico em geral.

Com efeito, resulta do disposto no artigo 2308º, n.º 1, do Código Civil, que “a ação de nulidade do testamento ou de disposição testamentária caduca ao fim de dez anos, a contar da data em que o interessado teve conhecimento do testamento e da causa da nulidade”.

Por seu turno, o n.º 2 do citado artigo 2308º do Código Civil esclarece que, “sendo anulável o testamento ou a disposição, a ação caduca ao fim de dois anos a contar da data em que o interessado teve conhecimento do testamento e da causa da anulabilidade”.

Em todo o caso, nos termos previstos no n.º 3 do mesmo artigo 2308º do Código Civil, “são aplicáveis, nestes casos, as regras da suspensão e interrupção da prescrição”.

Por outro lado, decorre do disposto no artigo 2309º do Código Civil que “não pode prevalecer-se da nulidade ou anulabilidade do testamento ou da disposição testamentária aquele que a tiver confirmado”.

Em síntese, poder-se-á dizer, citando Capelo de Sousa - In Lições de Direito das Sucessões, Vol. I, 4ª Edição Renovada, Reimpressão, Coimbra Editora, 2012, pág. 236 -, que, “ao invés do art. 286º, 1ª parte, esta nulidade não é invocável a todo o tempo, (…). (…). Dado que a nulidade testamentária tem um prazo limitado de invocação e é mais restrita do que na nulidade geral o tipo de pessoas que a pode invocar, parece-nos que aquela nulidade não pode ser declarada oficiosamente pelo Tribunal. (…). Em matéria de anulabilidade testamentária, acabámos já de analisar que a legitimidade para a sua arguição se mantém fiel ao regime geral (art. 287º, n.º 1), que ela é sanável por confirmação (art. 288º, n.º 1), que no caso de o cumprimento do testamento ainda não se ter realizado a anulabilidade é invocável independentemente de prazo e que obviamente não é declarável oficiosamente, características estas que foram estendidas à nulidade testamentária. Tal anulabilidade caracteriza-se, assim, especificamente, apenas por o prazo de arguição da caducidade ser de dois anos (art. 2308º, n.º 2) e por, face à sua menor gravidade, a confirmação ter um âmbito mais vasto. É que o nosso legislador procurou um aproveitamento o mais amplo possível do testamento, uma vez que, este, sendo impugnado após a morte do de cuius, não pode ser repetido.”.

Deste modo, importa agora aferir se os factos considerados provados no âmbito dos presentes autos revelam a existência de algum dos vícios a que se aludiu e que poderão fundamentar a declaração de nulidade ou a anulação do Testamento outorgado pela tia das Autoras e da Ré no dia 13 de maio de 2015.

Em primeiro lugar, decorre da fundamentação de facto que antecede que, no mês de março de 2013, a testadora CC foi encontrada caída na sua casa situada em ....

Nessa altura, a testadora CC foi transportada de urgência para o Centro Hospitalar ..., onde ficou internada até ao dia 12 de abril de 2013.

Mais se demonstrou que, nessa ocasião, foi dito que a testadora CC tinha sofrido um traumatismo dorso-lombar e que, durante o período de internamento, não tinha havido quaisquer alterações neurológicas.

Já no dia 12 de abril de 2013 a testadora CC teve alta hospitalar e desde então ficou institucionalizada no Lar ....

Ora, desde a data em que sofreu a queda a que se aludiu a testadora CC ficou acamada, sendo levantada e sentada num cadeirão.

De igual forma, desde a data em que sofreu tal queda a testadora CC ficou dependente de terceiros para a execução das tarefas relacionadas com a sua alimentação, vestuário, hidratação, higiene e marcha, denotando dificuldade na articulação da palavra.

Por outro lado, após a data em que sofreu a referida queda a testadora CC perdeu a força motora, sofrendo de astenia nos membros inferiores.

Para além disso, decorre ainda da factualidade considerada provada nos presentes autos que a testadora CC só via do olho direito.

Conforme resultou demonstrado nestes autos, a Ré BB era afilhada da testadora CC.

Quando teve conhecimento da queda sofrida pela sua tia nas circunstâncias atrás indicadas, a Ré deslocou-se, de imediato, de ... até à unidade hospitalar situada na ... onde a mesma se encontrava, para acompanhar a sua tia e para se inteirar do seu estado de saúde.

Nessa ocasião a Ré foi informada, pela equipa médica do Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar ..., de que a sua tia tinha sofrido um traumatismo dorso-lombar na sequência da queda, mas que se encontrava bem e sem quaisquer alterações neurológicas.

De todo o modo, durante o período de internamento no Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar ... os médicos informaram a testadora CC e a Ré BB de que a primeira iria necessitar de apoio diário para se movimentar e para realizar todas as tarefas do dia-a-dia, não podendo, por isso, continuar a residir sozinha.

Perante isso, a testadora CC manifestou desde logo à Ré a sua intenção de ir para um Lar, onde beneficiaria de acompanhamento permanente.

Assim, cumprindo a vontade da sua tia, a Ré contactou várias instituições, tendo obtido uma vaga para a institucionalizar no Lar ....

Verifica-se, por outro lado, que a ficha de admissão da testadora CC no Lar ..., datada de 12 de abril de 2013, contém a indicação de que a mesma deu entrada nessa instituição com uma fratura do corpo de L1 e que se encontrava consciente e orientada no tempo e no espaço.

Já no dia 13 de setembro de 2013 a testadora CC, por sua livre vontade e no pleno gozo das suas faculdades intelectuais, mandatou a Ré, outorgando uma procuração a favor desta, para que a representasse em tudo o que se revelasse necessário à prossecução dos seus interesses.

A fundamentação de facto que antecede revela ainda que, pelo menos até ao mês de abril de 2016, a testadora CC manteve o pleno gozo das suas faculdades intelectuais, permanecendo consciente, lúcida, orientada e capaz de exprimir a sua vontade e de manifestar os seus intentos.

Porém, a partir dessa altura a testadora CC, embora se encontrasse consciente e orientada, começou a evidenciar um decréscimo das suas capacidades intelectuais.

Seja como for, a Ex.ma Senhora Notária que providenciou pela elaboração do Testamento a que se reportam os presentes autos, e que tem cerca de trinta anos de experiência profissional, confirmou que, no momento em que foi outorgado o Testamento, a testadora CC gozava das suas faculdades cognitivas e intelectuais e expressou a sua vontade de constituir sua única e universal herdeira a Ré BB.

Por seu turno, também a testemunha JJ, que esteve presente na outorga do mencionado Testamento, aferiu que a testadora CC se encontrava lúcida e expressou a sua intenção de outorgar disposição testamentária a favor da Ré.

De resto, a Ex.ma Senhora Notária conversou com a testadora CC e não detetou que a mesma se encontrasse incapaz de manifestar a sua vontade.

Uma vez que os restantes factos alegados pelas Autoras na sua petição inicial não foram considerados provados, é patente ter ficado por demonstrar que a testadora CC não tivesse logrado manifestar claramente a sua vontade de testar e de instituir a Ré como sua única e universal herdeira.

De igual forma, também não resultaram demonstrados os factos alegados pelas Autoras com vista a fundamentar a invocada incapacidade da testadora CC para entender o alcance da disposição testamentária por si efetuada e para manifestar livremente a sua vontade.

Na verdade, a factualidade considerada provada no âmbito dos presentes autos revela que, contrariamente ao alegado pelas Autoras, a testadora CC tinha consciência do sentido e alcance da declaração por si emitida e quis outorgar o Testamento a que se tem vindo a aludir nos moldes em que o fez.

É certo que, por decisão proferida a 20 de abril de 2022 no âmbito da ação de acompanhamento de maior que correu termos no Juízo Local Cível ... – Juiz 1 sob o número 1117/20...., em que era beneficiária a testadora CC, foi determinada a medida de acompanhamento de representação geral, com a indicação de que a beneficiária é incapaz para testar, tendo sido designada, como acompanhante da testadora CC, a Ré BB, e tendo sido fixada no mês de abril de 2016 “a data a partir da qual as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes”.

De todo o modo, tal decisão não transitou em julgado, tendo em conta, desde logo, que, por decisão proferida a 18 de maio de 2022 no âmbito da mesma ação de acompanhamento de maior, foi declarada a extinção da instância com fundamento no falecimento da beneficiária.

Seja como for, tendo o Testamento da tia das Autoras e da Ré sido outorgado em data anterior à fixada naquela sentença como sendo “a data a partir da qual as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes”, é evidente que a mesma não fundamentaria a nulidade do referido Testamento nos termos previstos nos artigos 2189º, alínea b), e 2190º, ambos do Código Civil.

Para além do mais, ficaram também por demonstrar factos concretos dos quais pudesse resultar que a testadora CC se encontrava numa situação de inferioridade ou dependência que pudesse ter sido aproveitada pela Ré com vista a obter, em seu benefício, a disposição testamentária a que se tem vindo a aludir.

Em face do exposto, por não terem resultado provados quaisquer factos suscetíveis de fundamentar a existência de algum vício que pudesse determinar a nulidade ou a anulabilidade do Testamento outorgado pela tia das Autoras e da Ré, não poderá a presente ação declarativa deixar de ser julgada improcedente.

De todo o modo, não deixará de se acrescentar ainda que, como decorre da fundamentação de facto que antecede, a testemunha JJ não tinha qualquer relação pessoal com a testadora CC.

Para além disso, como foi alegado em sede de petição inicial, o Testamento outorgado pela tia das Autoras e da Ré não contém qualquer referência expressa ao facto de o respetivo conteúdo corresponder à vontade da testadora CC, nem à capacidade desta para entender e querer a declaração efetuada.

Como é sabido, resulta do disposto no artigo 67º, n.º 1, do Código do Notariado, que “a intervenção de testemunhas instrumentárias apenas tem lugar nos casos seguintes: a) nos testamentos públicos, instrumentos de aprovação ou de abertura de testamentos cerrados e internacionais e nas escrituras de revogação de testamentos; (…)”.

Para além disso, nos termos previstos no n.º 3 do mesmo artigo 67º do Código do Notariado, “as testemunhas instrumentárias, quando haja lugar à sua intervenção, são em número de duas e a sua identidade deve ser verificada por uma das formas previstas nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 48º, consignando-se no instrumento o processo de identificação utilizado”.

Ora, os casos de incapacidade ou de inabilidade das testemunhas estão previstos no artigo 68º do Código do Notariado.

Efetivamente, nos termos previstos no n.º 1 do citado artigo 68º do Código do Notariado, “não podem ser abonadores, intérpretes, peritos, tradutores, leitores ou testemunhas: a) os que não estiverem no seu perfeito juízo; b) os que não entenderem a língua portuguesa; c) os menores não emancipados, os surdos, os mudos e os cegos; d) os funcionários e o pessoal contratado em qualquer regime em exercício no cartório notarial; e) o cônjuge, os parentes e afins, na linha reta ou em 2.º grau da linha colateral, tanto do notário que intervier no instrumento como de qualquer dos outorgantes, representantes ou representados; f) o marido e a mulher, conjuntamente; g) os que, por efeito do ato, adquiram qualquer vantagem patrimonial; h) os que não saibam ou não possam assinar”.

Deste modo, impõe-se concluir que o facto de a testemunha JJ não ter qualquer relação pessoal com a testadora CC não impediria a sua intervenção, como testemunha, na outorga do Testamento a que se reportam os presentes autos.

Por fim, não resulta do disposto nos artigos 46º, n.º 1, e 47º, n.º 4, ambos do Código do Notariado, que a alusão expressa à capacidade e à vontade da testadora CC constitua uma das menções comuns ou especiais que devem constar do instrumento notarial correspondente ao Testamento.

Deste modo, ficou por demonstrar que na outorga do Testamento datado de 13 de maio de 2015 tenha sido omitida alguma formalidade relevante.

Como é sabido, nos termos do disposto no artigo 342º, n.º 1, do Código Civil, “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”.

Assim, dúvidas não restam de que era às Autoras que competiria fazer a prova dos pressupostos de que dependeria a anulação do Testamento outorgado pela sua tia.

Como salientam Pires de Lima e Antunes Varela17, “o significado essencial do ónus da prova não está tanto em saber a quem incumbe fazer a prova do facto como em determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de se não fazer prova do facto”.

Nestes termos, não tendo as Autoras logrado demonstrar os factos com base nos quais sustentaram a verificação dos vícios suscetíveis de gerar a anulabilidade do Testamento outorgado pela sua tia, não poderá deixar de se concluir pela improcedência do pedido por si formulado”.

Improcede, pois, a Apelação.


*

Sumariando:

(…).


*

3. Decisão

Assim, na improcedência da instância recursiva, mantemos a decisão proferida pelo Juízo Central Cível de Castelo Branco - Juiz 1.

Custas pelas apelantes.

Coimbra, 18 de Junho de 2024

(José Avelino Gonçalves - relator)

(Arlindo Oliveira – 1.º adjunto)

(Maria João Areias – 2.ª adjunta)