Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2431/22.6T8ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RICARDO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
RISCO
DOENÇA
DECLARAÇÕES INEXATAS
ANULABILIDADE
Data do Acordão: 03/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – ALCOBAÇA – JUÍZO LOCAL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 227.º, N.º 1, 253.º, N.º 1, 254.º, N.º 1, 287.º E 342.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 24.º, N.º 1, 25.º E 26.º DO REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO
Sumário: I – O incumprimento doloso do dever referido no art. 24º, nº1, do RJCS, por parte do tomador do seguro ou do segurado (obrigação de declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador), implica a anulabilidade do contrato de seguro (art. 25º, nº1, do RJCS).

II – Não se mostrando realizada, por parte da seguradora, a prestação que decorre do respectivo contrato (pagamento do capital previsto na correspondente apólice), pode a anulabilidade ser invocada, ainda que tenha decorrido o prazo a que alude o art. 287º, nº1, do Código Civil.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *

      Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO.

AA, divorciada, residente na Rua ..., esquerdo, localidade de ..., freguesia ..., concelho ..., contribuinte fiscal com o n.º ...31 e portadora do cartão de cidadão n.º ...,       

instaurou no Juízo Local Cível de Alcobaça acção comum contra

A... D.A.C. – SUCURSAL EM PORTUGAL, pessoa colectiva n.º ...36, com sede na Avenida ..., ..., ... ...

pedindo que a ré seja condenada a:           

a) Proceder junto do Banco Banco 1..., SA à liquidação total do crédito hipotecário em dívida a que feita referência na petição inicial;    

b) Pagar à aqui autora o valor remanescente ou seja, o valor do capital seguro deduzido do valor a liquidar ao Banco Banco 1..., SA.

B..., SA.

                                                                       **

Para fundamenar a pretensão supra aludida, alegou, em resumo, o seguinte:

- Em 25 de Maio de 2011 - com efeitos a partir de 1 de Junho de 2011 –, a autora celebrou com a ré um contrato de seguro de vida, nos termos do qual a ora demandada se obrigou a pagar o valor de 49.270,43 € em caso de morte ou invalidez da autora, aos seguintes beneficiários:

a) Em caso de morte ou invalidez, ao Banco 2..., S.A., até ao valor em dívida a esta entidade bancária;

b) O remanescente do capital seguro, em caso de invalidez, a pagar à aqui autora;        

c) O remanescente do capital seguro, em caso de morte, a pagar aos herdeiros legais da autora.

- O Banco 2... foi alvo de resolução pelo Banco de Portugal, em 20/12/2015, passando o Banco Banco 1..., S.A., a ser detentor dos respectivos ativos e passivos, sendo que dívida que a autora tinha para com o Banco 2... é presentemente para com o Banco Banco 1..., S.A..

- A partir de 01 de Junho de 2020, o capital seguro passou a ser de 39.518,84 €;

- A autora, a partir do ano de 2016, começou a padecer de problemas de saúde, tendo-lhe sido diagnosticado, no ano de 2018, Panuveíte granulomatosa bilateral, S. Reynaud, sinuvite e espessamento cutâneo;

- Tendo em  28 de Novembro de 2018, na sequência de junta médica realizada pela ARS de Lisboa e Vale do Tejo, ACES Oeste Norte, sido declarado que a autora era portadora de um grau de incapacidade permanente global de 69,3 %;

- A 27 de Junho de 2019, à autora foi comunicado que foi deferido o seu requerimento de pensão por invalidez e que a mesma pensão tinha início a 11 de Dezembro de 2017;

- Perante o quadro de invalidez permanente superior a 60%, a autora reclamou da ré o pagamento do capital seguro, conforme consta na apólice contratada;    

- A ré, em resposta à autora, por carta datada de 23 de Agosto de 2019, declinou assumir aquele pagamento, alegando que aquando da subscrição do contrato de seguro não foi informada sobre o seu verdadeiro estado de saúde e, por essa razão, não teve capacidade de avaliar devidamente o risco correspondente que, com base as informações agora na sua posse, teria recusado;

- Em 31/12./2021, a autora era devedora ao Banco Banco 1..., S.A., da quantia de 28.129,73 €, resultante de crédito hipotecário;

- Pelo que deve a ré liquidar ao referido Banco a totalidade do crédito hipotecário em dívida, sendo o remanescente do capital seguro pago à autora.

                                    ***

A ré contestou, arguindo a anulabilidade do contrato de seguro em virtude da autora, aquando da subscrição da respectiva proposta, ter omitido que sofria de várias patologias, designadamente do foro oncológico.

Paralelamente, sustentou que essa patologia não se encontra coberta pela correspondente apólice e que não estão preenchidos os requisitos de invalidez total e permanente que permitem accionar o contrato em apreço.

                                               ***

Em resposta, a autora pronunciou-se no sentido da improcedência da excepção peremptória arguida pela ré, sustentando que caducou o direito de invocar a referida anulabilidade.

                        ***

Realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho que procedeu à identificação do objecto do litígio e à enunciação dos temas da prova, após o que se efectou perícia médico-legal, na sequência requerimento probatório oportunamente formulado.

                                                           **

Após ser realizada audiência final, com observância do formalismo legalmente prescrito, foi proferida sentença, em 26/11/2024, que julgou a acção improcedente, sendo a ré absolvida do pedido.         

                                                                       ***

Não se conformando com a sentença proferida, a autora interpôs o presente recurso, no qual formula as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos, pela qual o Tribunal a quo julgou a acção totalmente improcedente e em consequência, absolveu a aqui Apelada do peticionado pela Apelante, o qual consistia: a) Ser a Ré condenada a proceder junto do Banco Banco 1..., SA à liquidação total do crédito hipotecário em dívida; b) A Ré condenada a pagar à aqui Autora o valor remanescente ou seja, o valor do capital seguro deduzido do valor a liquidar ao Banco Banco 1...; c) Ser a Ré condenada nas custas processuais.

2. A douta sentença recorrida fundamenta a improcedência da acção, porquanto “constituindo a anulabilidade do contrato de seguro um facto impeditivo da validade do contrato e tendo a Ré provado a invocada matéria de excepção peremptória, a Autora não tem direito ao crédito sobre o capital seguro à data do sinistro, havendo que concluir, que a presente acção tem de improceder.”

3. O Tribunal recorrido, aplicou o disposto no artigo 287.º do Cód. Civil, seu n.º 2, entendendo que enquanto o negócio não estiver cumprido, a anulação pode ser feita independentemente de prazo.     

4. Sucede que a Ré/Apelada, pelo menos desde 23.10.2019 - ao declinar o pagamento à Autora/Apelante alegando para o efeito que esta não informou do seu verdadeiro estado de saúde, em 25.05.2011 – sabia que poderia, querendo, ter procedido à anulação do seguro, não o tendo feito no prazo de um ano.

5. O Tribunal recorrido deveria ter aplicado o disposto no n.º 1, do artigo 287.º do Código Civil, contando o prazo de um ano para a arguição da anulabilidade, desde, quando muito, 23.10.2019, quando a Ré declinou o pagamento à Autora/Apelante alegando não ter esta não informado do seu verdadeiro estado de saúde, em 25.05.2011.

6. Na verdade, o vício que está em causa é aquele que fez com que a seguradora aceitasse a proposta de contrato de seguro no convencimento de que a declaração de saúde omissiva das patologias existentes correspondia à verdade, mas que não teria aceite se estas lhe tivessem sido dadas a conhecer pela Apelante.

7. Tal vício cessou na data em que a Ré recebeu da Autora, os documentos clínicos e a solicitação do pagamento passando a Ré a ter conhecimento da situação verdadeiramente existente á data da celebração do contrato.   

8. Mostra-se provado na sentença recorrida que: “Na sequência da participação de sinistro pela Autora à Ré, em dia não concretamente apurado, mas anterior a 15.01.2019, a Ré não procedeu a qualquer pagamento à Autora por conta do acordo identificado em 1), por não ter sido informada do verdadeiro estado de saúde da Autora em 25.05.2011 e perante o artigo 6.º.1 das condições gerais aplicáveis à apólice vigente, tendo comunicado tal posição à Autora através de missivas datadas de 23.08.2019 e de 23.10.2019;” (ponto 20) dos factos dados como provados).

9. Donde, desde a data de 23.10.2019 que corria o prazo para a Ré anular o contrato.   

10. Tendo a Ré/Apelada arguido a 07.12.2022 e em contestação à acção, a excepção peremptória de anulabilidade do contrato de seguro, fê-lo para lá do prazo de um ano, atento o disposto no n.º 1, do artigo 287.º, do Cód. Civil.

11. Aquando da entrada da acção – 07.11.2022 – o contrato de seguro encontrava-se em vigor (ponto 6 dos factos dados como provados). Além da Ré/Apelada de não ter invocado a anulabilidade do contrato, tempestivamente, continuou a receber o prémio de seguro pago pela Autora/Apelante.

12. O Tribunal recorrido ao julgar improcedente a acção por julgar procedente a invocada, pela Apelada, anulabilidade do contrato aplicou erradamente o n.º 2 do artigo 287.º, do Código Civil.

13. O Tribunal recorrido deveria ter aplicado o disposto no n.º 1, do artigo 287.º do Cód. Civil e julgado improcedente a arguição de anulabilidade do contrato de seguro.

14. Pelo que deve o presente recurso ser procedente e a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue a acção procedente, condenando-se a Ré/Apelada nos exactos termos peticionados pela Autora/Apelante, ou seja: condenada a proceder junto do Banco Banco 1..., SA à liquidação total do crédito hipotecário em dívida; condenada a pagar à aqui Autora o valor remanescente ou seja, o valor do capital seguro deduzido do valor a liquidar ao Banco Banco 1... e nas custas processuais, assim se fazendo JUSTIÇA.”.

                                                                       ***

A ré contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:

1. Aos presentes autos não se aplica o disposto no nº 1 do art. 287º do CC.

2. Com efeito, e ao contrário do que apelante sustenta, o negócio não se encontra cumprido já que, é precisamente o cumprimento da obrigação de maior relevância – entende-se – que dele emerge que a autora vem peticionar: o pagamento do capital seguro!

3. Assim, aplica-se o disposto no nº 2 daquele preceito legal, o que determina que a apelada possa peticionar a anulabilidade por via de excepção.

4. Consequentemente, o direito da apelada não caducou.

5. Caso assim não se entenda, no que não se concede, e na eventualidade de ser julgado procedente o pedido da apelante e que, consequentemente, se decida que a situação da apelante está coberta pela apólice, a ora apelada requer, nos termos do disposto no art. 636º do CPC, a ampliação do objecto do recurso, nos seguintes termos:

i. O sinistro está excluído da apólice de seguro porque decorre de uma patologia pré-existente;

ii. Ainda que assim não se entenda, no que não se concede, sempre se dirá que a situação clínica da autora não se enquadra na cobertura de invalidez permanente da presente apólice.

6. A autora arroga-se portadora de uma incapacidade permanente global de 69,3%.

7. Contudo, conforme resulta da matéria de facto provada, 45% da desvalorização que lhe foi atribuída decorre de patologias anteriores ao contrato de seguro, pelo que sempre se dirá que a invalidez da pessoa segura está excluída da cobertura do contrato de seguro, nos termos do artigo 3.º, alínea e) das condições gerais da apólice.

8. Ainda que assim não se entenda, no que não se concede, nos termos do artigo 2º das condições gerias da apólice, esta cobre situações de incapacidade para o trabalho, em concreto, uma incapacidade para o exercício de actividade compatível com os conhecimentos e aptidões do sinistrado.

9. Ora, a autora não provou, nem sequer alegou, que a invocada incapacidade não lhe permita exercer outras funções – quaisquer outras funções, note-se – compatíveis com os seus conhecimentos e aptidões.

10. Pelo que, não assiste à ré a obrigação de indemnizar, devendo a mesma ser absolvida dos pedidos.

11. Ainda que assim não se entenda, no que não se concede, sempre se dirá que o sinistro em causa nos autos não está coberto pela presente apólice porque não se verificam os requisitos da invalidez total e permanente previstos na cláusula 3.3. do complementar de invalidez total e permanente.

12. Em concreto, a autora não é portadora de uma incapacidade igual ou superior a 60%, uma vez que os 45% de incapacidade que decorrem de patologia anterior ao contrato não podem ser tidos em consideração nos termos do disposto no artigo 3º, nº 4 do complementar de invalidez.

13. Acresce que, do documento nº 8 da petição inicial decorre ainda que a incapacidade que a autora invoca como causa de pedir não é definitiva.

14. Ora, não estando verificados os requisitos cumulativos da cláusula 3.3., também por esta via deve a ré ser absolvida de todos os pedidos.”.

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A autora apresentou resposta à ampliação do recurso, concluindo da seguinte forma:

1. Vem a Recorrida ampliar o objecto do recurso interposto, alegando que o sinistro está excluído da apólice de seguro porque decorre de uma patologia pré existente e, não concedendo, que a situação clínica da autora não se enquadra na cobertura da invalidez permanente da presente apólice.

2. A Recorrida alega que a invalidez da Apelante está excluída da cobertura do contrato de seguro porquanto, nos termos da alínea e), da cláusula 3.1 das condições gerais, a Autora padecia de patologia, lesão ou deficiência preexistente, à data de entrada em vigor da apólice.

3. Porém, o disposto no n.º 3.4 do artigo 3.º das Condições Especiais da Apólice refere que: “Ao fixar-se o grau de desvalorização proveniente de acidente (sublinhado nosso), serão tomadas em consideração as deficiências de que a Pessoa Segura já era portadora, correspondendo aquele à diferença entre a invalidez já existente e a que passou a existir.”

4. No caso sub judice não estamos perante uma situação de acidente mas sim de doença; donde, à situação de doença não lhe é aplicável tal limitação.

5. A Recorrida alega, ainda, que é necessário, em primeiro lugar, qualificar o estado da Autora em si mesmo como de invalidez à luz do conceito previsto na Cláusula 2ª e, só em afirmativo, verificar então se essa invalidez preenche os requisitos previstos na Cláusula 3.3. para que esteja coberta pelo contrato de seguro.

6. No que respeita aos requisitos elencados na cláusula 3.3 das Condições Gerais da Apólice, elas mostram-se preenchidas.

7. Quanto à alínea a) da Cláusula 3.3, importa referir que a Ré/Apelada nunca a colocou em causa e apenas não assumiu o pagamento à Autora/Apelante porquanto, como se constata no ponto 20) dos factos dados como provados “… por não ter sido informada do verdadeiro estado de saúde da Autora em 25.05.2011 e perante o artigo 6.1 das condições gerais aplicáveis à apólice vigente, tendo comunicado tal posição à Autora através de missivas datadas de 23.08.2019 e 23.10.2019.”.

8. Os requisitos constantes das alínas b) e c) daquela Cláusula 3.3, conforme ficou provado – ponto 8) dos factos dados como provados – a Autora foi avaliada por Junta Médica, para atestado de Incapacidade Multiuso que lhe atribuiu uma incapacidade permanente global de 69,3%, conforme documento n.º 8 junto com a petição inicial.

9. A Autora também foi submetida a perícia médico legal no Instituto de Medicina Legal – Gabinete Médico Legal e Forense do Pinhal Litoral (Leiria) - no âmbito dos presentes autos, tendo sido confirmada a incapacidade permanente global de 69,3%.

10. Os requisitos das alíneas b) e c) , da Cláusula 3.3 das Condições Gerais da Apólice se mostram preenchidos.

11. A situação de incapacidade da Autora, à data da instauração da acção, durava já há mais de 180 dias consecutivos, encontrando-se reformada por invalidez, desde 11.12.2017, conforme ponto 19) dos factos dados provados.

12. Mostram-se verificados os requisitos da cláusula 3.3 das Condições Gerais da Apólice, pelo que não devem proceder as conclusões da Apelada quanto à sua Ampliação do Objecto do Recurso.”.

                                                           ***

Questões objecto do recurso:         

- Invalidade do contrato de seguro a que os autos se reportam e caducidade do direito de invocar a correspondente anulabilidade;

- Cobertura, no âmbito da respectiva apólice, da situação de invalidez que determinou o acionamento do contrato de seguro (matéria suscitada em sede de ampliação, cujo conhecimento apenas terá lugar caso se entenda que procede a caducidade invocada pela recorrente).

                                               ***

II – FUNDAMENTOS.

2.1. Factos provados.

A 1ª instância considerou provados os seguintes factos [1]

1) No dia 25.05.2011, a ré, na qualidade de seguradora, firmou com a autora, na qualidade de tomadora de seguro e de 1ª pessoa segura, um acordo designado Crédito Seguro, titulado pela apólice n.º ...92, com efeitos a partir de 01.01.2011;

2) Das condições particulares da referida apólice, conforme documento junto com a contestação sob o n.º 1 e que se considera como integralmente reproduzida para todos os efeitos, consta o seguinte:

PRODUTO-CREDITO SEGURO

Pessoa(s) Segura(s): AA

Cláusula Beneficiária:

Em caso de Morte/Invalidez

Beneficiário Irrevogável - Banco 2... SA

Será pago o Capital em Dívida, até ao limite do Capital Seguro à data do sinistro.

Caso o Capital Seguro seja superior ao Capital em Dívida o diferencial será pago a: OS HERDEIROS LEGAIS DA PESSOA SEGURA

Coberturas Capital Seguro Prémio Anual

1ª PESSOA

MORTE ...9

INVALIDEZ TOTAL E PERMANENTE ...2;

3) A partir de 01.06.2020, o capital seguro passou a ser de € 39.518,84, tanto por morte como por invalidez total e permanente;

4) Das condições especiais da referida apólice, por complemento de invalidez total e permanente, conforme documento junto com a contestação sob o n.º 4 e que se considera como integralmente reproduzida para todos os efeitos, consta o seguinte:

Artigo 2º: DEFINIÇÕES

Para efeito desta cobertura complementar, entende-se por:

INVALIDEZ TOTAL E PERMANENTE - Situação em que, em consequência de doença ou acidente, a Pessoa Segura fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com as suas capacidades, conhecimentos e aptidões.

Artigo 3º: GARANTIAS

3.1-Através desta cobertura complementar o Segurador garante o pagamento, por antecipação, do capital seguro em caso de Morte expresso nas Condições Particulares, se a Pessoa Segura ficar em situação de Invalidez Total e Permanente por motivo de doença ou acidente, conforme definida no Artigo anterior.

3.2 A presente cobertura, quando complementar do Produto Patrimonial Vida, garante também a liberação do pagamento dos prémios vincendos.

3.3-É condição necessária e suficiente para o reconhecimento da invalidez Total e Permanente a verificação simultânea dos seguintes requisitos:

a) ser clinicamente constatada, com fundamento em elementos objectivos, por um médico mandatado pelo Segurador, não sendo possível esperar qualquer melhoria do estado de saúde da Pessoa Segura;

b) corresponder a um grau de desvalorização igual ou superior a 60%, de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil;

c) ser reconhecida previamente pela instituição de Segurança Social pela qual a Pessoa Segura se encontra abrangida;

d) ser precedida de uma incapacidade absoluta (completa impossibilidade física, clinicamente comprovada, de exercer a sua profissão ou ocupação principal) e durar mais de 180 dias consecutivos, sendo esse período alargado para dois anos, nos casos de doença mental ou perturbações psíquicas.

3.4 - Ao fixar-se o grau de desvalorização proveniente de acidente, serão tomadas em consideração as deficiências de que a Pessoa Segura já era portadora, correspondendo aquele a diferença entre a invalidez já existente e a que passou a existir

Artigo 4º: RISCOS COBERTOS E EXCLUÍDOS

O Segurador garante a cobertura de Invalidez Total e Permanente por doença ou acidente, excepto em caso de riscos excluídos nos termos do Artigo 3º das Condições Gerais, ou ainda quando a mesma resulte, directa ou indirectamente, de:

a) Tentativa de suicídio, ou quaisquer actos intencionais da Pessoa Segura, incluindo actos temerários, apostas e desafios, que lhe causem a Invalidez Total e Permanente.

b) Agravamento de uma invalidez parcial já existente à data de início do contrato.;

5) Das condições gerais da referida apólice, por complemento de invalidez total e permanente, conforme documento junto com a contestação sob o n.º 3 e que se considera como integralmente reproduzida para todos os efeitos, consta o seguinte:

ARTIGO 3º: RISCOS EXCLUÍDOS

3.1-O Segurador cobre o(s) risco(s) identificado(s) no Artigo 2º, com exclusão dos seguintes casos:

(…)

e) Patologia, lesão ou deficiência preexistente, de que a Pessoa Segura seja portadora a data de entrada em vigar da Apólice. O risco só poderá estar coberto se expressamente solicitada pelo Tomador do Seguro e aceite pelo Segurador, nos termos das Condições Particulares;

(…)

ARTIGO 6°: DECLARAÇÃO INICIAL DO RISCO

6.1 O Tomador do Seguro e a Pessoa Segura estão obrigados, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheçam e razoavelmente devam ter por significativas para a apreciação do risco pelo Segurador. (…);

6) Aquando da entrada em juízo da presente acção, o acordo identificado em 1) estava em vigor;

7) O actual beneficiário do seguro é Banco Banco 1..., S.A. (em substituição do então Banco 2..., S.A.);

8) A Autora foi avaliada em Junta Médica, para Atestado Médico de Incapacidade Multiuso (datado de 28.11.2018), que lhe atribuiu uma incapacidade permanente global de 69,3%, devendo ser avaliada em 2023, com os fundamentos vertidos no Atestado Médico de Incapacidade Multiuso junto aos autos com a petição inicial sob o n.º 8 e cujo teor se considera, para todos os efeitos, integralmente reproduzido;

9) Para a subscrição do acordo referido em 1), a Autora, através de documento, e sob a epígrafe “Declaração Final”, na qualidade de segurada, declarou que:

1) O Tomador do Seguro e o candidato a Pessoa Segura declaram que são residentes em Portugal, estão conscientes de que as informações prestadas servem de base ao contrato de seguro e que todas as respostas e dados fornecidos estão completos e são verdadeiros. Reconhecem e aceitam que eventuais omissões, inexactidões e falsidades no que respeita a dados de fornecimento quer obrigatório, quer facultativo, são da sua responsabilidade e poderão ter as consequências previstas na lei e contempladas no artigo 6º das Condições Gerais do Seguro de vida individual entregues com a assinatura desta proposta;

10) No mesmo documento referido em 9), sob a epígrafe “Declaração de Saúde”, a Autora, na qualidade de segurada, declarou que:

A(s) pessoa(s) segura(s) declara(m):

− Encontrar-se em bom estado de saúde e não se encontrar de baixa clínica por doença ou acidente nem ter interrompido a sua actividade laboral durante mais de 1 mês nos últimos 3 anos, por doença ou acidente.

− Nunca lhe ter sido diagnosticada ou tratada nenhuma das seguintes situações:

a) Tumores malignos ou benignos;

b) Doenças de sangue, anemia, linfomas, etc;

c) Doenças cardíacas ou circulatórias, hipertensão arterial, angina de peito, etc;

d) Diabetes, colesterol elevado ou outras doenças endócrinas: tiroideia, etc;

e) Doenças do tubo digestivo, fígado, pâncreas, etc;

f) Doenças do foro respiratório, asma, bronquite, etc;

g) Doenças do foro urológico, rins, bexiga, próstata, etc;

h) Acidente vascular cerebral, epilepsia ou qualquer outra doença ou perturbação do sistema nervoso;

i) Sida ou teste positivo para o HIV I ou II;

j) Doenças reumatismais ou osteoartoculares.

− Não apresentar sequelas de doenças ou acidentes.

− Não ter sido submetido, nem ter expectativa de vir a ser submetido, no prazo de 6 meses, a alguma intervenção cirúrgica;

11) Por baixo das declarações identificadas em 9) e 10), a Autora apôs a sua assinatura;

12) No mesmo documento referido em 9), a Autora preencheu um questionário de informações de saúde do qual constam as seguintes questões:

2 - Fuma ou fumou nos últimos 12 meses? Em caso afirmativo, indique o consumo diário.

(…)

5 - Sofre ou sofreu de alguma(s) doença(s) relacionadas com:

a) Cancro ou tumores de qualquer tipo?

(…)

e) Aparelho digestivo, fígado, vesícula e pâncreas?

(…)

l) Doenças genitais, problemas de órgãos reprodutores e/ou urinários e/ou mama, renais, próstata?

n) Outras doenças não especificadas atrás? Especifique.

(…)

6 - Já se submeteu ou espera vir a submeter-se nos próximos 6 meses a alguma intervenção cirúrgica/biopsia?

13) A todas as questões enunciadas em 12) foi assinalada a resposta “Não”, tendo a Autora assinado o documento;

14) Na sequência do teor do documento identificado em 9) a 13), a Ré não solicitou exames médicos adicionais;

15) Em 2009, a Autora apresentava os seguintes quadros sequelares:

a. de patologia oncológica (em relação com neoplasia do útero – CAP. XVI IV), para a qual foi proposto um coeficiente de incapacidade de 0,20;

b. de histerectomia (CAP. XII – A 2.2 C), para a qual foi proposto um coeficiente de incapacidade de 0,25;

16) Em 25.05.2011, a Autora era fumadora activa;

17) Em 2016, a Autora iniciou queixas de poliartralgias inflamatórias, nomeadamente a nível das grandes articulações (ombro, ancas, cotovelos, coluna sacro-coccígea) e das mãos;

18) No dia 23.04.2024, a Autora apresentava as seguintes sequelas:

a. Ráquis: marcada contratura paravetrebral dorsolombar bilateral, com mobilidades segmentares preservadas embora dolorosas; marcha possível em pontas e calcanhares embora despertando dores;

b. Membros superiores: mobilidades do ombro, cotovelo e punho preservadas e simétricas, diminuição acentuada da força muscular das mãos (grau 3) edema acentuado das mãos;

c. Membros inferiores: mobilidades do joelho e tornozelos preservadas, flexão, extensão, abdução e adução da anca mantidas, limitação dolorosa das rotações;

19) A Autora, desde 11.12.2017, aufere uma pensão por invalidez relativa;

20) Na sequência da participação de sinistro pela Autora à Ré, em dia não concretamente apurado, mas anterior a 15.01.2019, a Ré não procedeu a qualquer pagamento à Autora por conta do acordo identificado em 1), por não ter sido informada do verdadeiro estado de saúde da Autora em 25.05.2011 e perante o artigo 6.º.1 das condições gerais aplicáveis à apólice vigente, tendo comunicado tal posição à Autora através de missivas datadas de 23.08.2019 e de 23.10.2019;

21) Se a Ré tivesse conhecimento, à data da subscrição da apólice referida em 1), da situação clínica da Autora vertida em 15), a contratação do referido seguro não se teria concretizado nos moldes em que o foi;

22) À data de 31.12.2021, a Autora era devedora ao Banco Banco 1..., S.A., no âmbito do crédito hipotecário abrangido pelo acordo referido em 1), de € 28.129,73.          

                                                                       ***

2.2. Enquadramento jurídico.

Com fundamento na anulabilidade do contrato de seguro a que os autos se reportam, foi julgada improcedente a pretensão que a autora formulou em sede articulados, tendo a 1ª instância considerado, contrariamente ao defendido pela ora recorrente, que não tinha caducado o direito de invocar a referida excepção peremptória.

Os fundamentos que integram a decisão impugnada, relativamente a esta matéria, são os seguintes:  

Dispõe o artigo 227.º, n.º 1, do Código Civil que [q]uem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte.

De tal preceito extrai-se que a boa-fé constitui um pilar basilar sobre o qual assenta a ordem jurídica portuguesa, conferindo segurança ao comércio jurídico na mesma medida que confere confiança aos particulares que iniciam qualquer processo negocial.

Tal princípio da boa-fé surge especialmente evidenciado no já referido Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), relevante para a presente decisão considerando o seu objecto.

Na verdade, a declaração do risco no contrato de seguro surge actualmente disciplinada em três artigos do RJCS, a saber: o artigo 24.º, que delimita o dever de declaração de risco do proponente, o artigo 25.º, que regula o incumprimento doloso daquele dever e o artigo 26.º, que disciplina o incumprimento negligente do mesmo.

Assim, nos termos do disposto no artigo 24.º, n.º 1, do RJCS, sob a epígrafe Declaração inicial do risco, [o] tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador. Acrescenta o seu n.º 2 que [o] disposto no número anterior é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito.

No preceito ora referido – no que tange aos citados n.ºs 1 e 2 – consagra-se um dever geral de informação que recai sobre o tomador do seguro acerca das circunstâncias relevantes a declarar para a devida apreciação do risco, por parte da seguradora.

Nas palavras de Pedro Romano Martinez, a respeito do n.º 1 daquele artigo 24.º, [q]uanto a cada facto relevante, o dever de informação pelo tomador depende de (1) este ter conhecimento do facto e de (2) o tomador «razoavelmente dever [tê-lo] por significativo para a apreciação do risco pelo segurador» (in Pedro Romano Martinez et. al., Lei do Contrato de Seguro Anotada, 4.ª edição, Almedina, 2023, p. 157).

O mesmo autor, sobre o n.º 2 do mesmo artigo, acrescenta que o dever de informar quanto a todos os factos conhecidos relevantes, nos termos vistos, não cessa no caso de o segurador ter exigido ao tomador a resposta a um questionário pré-elaborado. Mesmo nesses casos, mantém-se o dever geral de informar (op. cit., p. 158).

Na jurisprudência, são vários os arestos que se debruçam sobre a observância do dever de declaração do risco por parte do proponente, sobretudo quando lhe é solicitado o preenchimento de um questionário na fase pré-contratual. Nesta senda, cita-se o Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça, de 19.06.2019, relatado por Ilídio Martins, processo n.º 4702/15.9T8MTS.P1.S1, onde se lê que [o] elemento decisivo para a celebração do contrato é o questionário apresentado ao segurado, na medida em que se presume não serem aí feitas perguntas inúteis e, através dele, é o próprio segurador que indica ao tomador quais as circunstâncias que julga terem influência no contrato (…) [a]s respostas ao questionário são o repositório das declarações de risco da pessoa segura em que a seguradora deve confiar e em função das quais aceita o não o contrato e fixa as respectivas condições, não se concebendo a formulação de perguntas inúteis ou irrelevantes (disponível em www.juris.stj.pt).

Por sua vez, estatui o artigo 25.º do referido Regime Jurídico do Contrato de Seguro, sob a epígrafe Omissões ou inexactidões dolosas, que:

1 - Em caso de incumprimento doloso do dever referido no n.º 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.

2 - Não tendo ocorrido sinistro, a declaração referida no número anterior deve ser enviada no prazo de três meses a contar do conhecimento daquele incumprimento.

3 - O segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no n.º 1 ou no decurso do prazo previsto no número anterior, seguindo-se o regime geral da anulabilidade.

4 - O segurador tem direito ao prémio devido até ao final do prazo referido no n.º 2, salvo se tiver concorrido dolo ou negligência grosseira do segurador ou do seu representante.

5 - Em caso de dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, o prémio é devido até ao termo do contrato.

Deste modo, o artigo 25.º, n.º 1, determina a anulabilidade do contrato de seguro viciado por erro, relevando, para este efeito, o referido o questionário/formulário preenchido acerca da situação do proponente do seguro.

Assim sendo, para que se possa afirmar que o contrato se encontra viciado por erro devido a dolo, por aplicação subsidiária do artigo 254.º, n.º 1, do Código Civil, é necessário o preenchimento de dois requisitos: a causalidade entre o dolo e o erro e a essencialidade do erro para o negócio celebrado.

No que respeita ao primeiro requisito – causalidade entre o dolo e o erro – exige-se que o dolo do tomador seja causa do erro do segurador. Não o sendo, é aplicável o regime do erro simples, o qual não afecta a validade do contrato

Por sua vez, o requisito da essencialidade do erro quer significar que o contrato só é anulável se a decisão do segurador de se vincular se tiver devido, de modo juridicamente relevante, ao erro. Com efeito, o erro revela-se essencial quando a vontade hipotética do errante, se não estivesse em erro, teria sido a de não celebrar aquele negócio jurídico ou de o não celebrar nos moldes em que o fez.

De acordo com o artigo 253.º, n.º 1, do Código Civil, que releva na presente sede, entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante, salvaguardando, no entanto, o n.º 2 do artigo que não constituem dolo ilícito as sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos segundo as concepções dominantes no comércio jurídico, nem a dissimulação do erro, quando nenhum dever de elucidar o declarante resulte da lei, de estipulação negocial ou daquelas concepções.

Do ora exposto que resulta que recai sobre o segurado a obrigação de não prestar declarações inexactas, assim como não omitir qualquer facto ou circunstância que possam influir na existência ou condições do contrato.

No caso, mostra-se provado que, objectivamente, as declarações prestadas pela autora não correspondiam à verdade, considerando que: i) já tinha sido submetida a uma histerectomia (remoção do útero) em momento anterior ao preenchimento do questionário (cerca de dois anos antes); ii) já lhe tinha sido diagnosticado um tumor (neoplasiasia do útero, cerca de dois anos antes e relacionado com a dita cirurgia); e iii) fumava.

Tendo respondido negativamente quanto a estas questões apostas no formulário, dúvidas não se colocam sobre a consciência da Autora quanto à falsidade de tais declarações. Assim, optou por prestar falsas declarações nas questões que lhe foram apresentadas.

Neste conspecto, não se nos oferecem dúvidas de que a Ré logrou provar, como era seu ónus (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil), que a referida tomadora do seguro lhe prestou declarações inexactas, omitindo patologias e episódios clínicos relevantes aquando da proposta de celebração do seguro de vida que apresentou à seguradora.

Ademais, resultou provado que se a Ré tivesse conhecimento, à data da subscrição da apólice em apreço, da verdadeira situação clínica da Autora, a contratação do referido seguro não se teria concretizado nos moldes em que o foi.

Ora, do exposto, resulta que não só se encontra preenchido o requisito da causalidade entre o dolo e o erro – na medida em que foi o dolo da tomadora do seguro, consubstanciado nas falsas declarações prestadas em sede de questionário de saúde, a causa do erro negocial da Seguradora -, como também o requisito da essencialidade do erro. Com efeito, o erro revelou-se essencial para a decisão da Seguradora em contratar nos termos em que o fez, porquanto, se soubesse da patologia de que padecia a proponente, o contrato não teria sido firmado nos termos em que o foi.

Estão, assim, reunidos os enunciados pressupostos para a verificação da excepção invocada pela Ré.

Todavia, foi, pela Autora, invocada a caducidade do direito de arguição de tal excepção, pelo que cumpre apreciar o invocado.

Nos termos do disposto no artigo 287.º do Código Civil: 1. Só tem legitimidade para arguir a anulabilidade as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, e só dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento. 2. Enquanto, porém, o negócio não estiver cumprido, pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via de acção como por via de excepção.

Com efeito, decorre do n.º 2 do preceito ora citado que, enquanto o negócio não estiver cumprido, a anulação pode ser feita independentemente de prazo.

Na verdade, o objecto dos presentes autos prende-se, e tendo em consideração a petição inicial apresentada, com o pedido de condenação da Ré no cumprimento do contrato de seguro celebrado entre ambas. Assim, fácil é de concluir que o negócio, rectius, o contrato de seguro, não se encontra cumprido.

Deste modo, e sem necessidade de mais considerações, improcede a invocada caducidade de arguição da excepção de anulabilidade do contrato de seguro em apreço, por declarações inexactas – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 23.11.2021, relatado por Vítor Amaral, Processo n.º 3361/18.1T8VIS.C1, disponível em www.dgsi.pt.

Face a todo o exposto, constituindo a anulabilidade do contrato de seguro um facto impeditivo da validade do contrato, e tendo a Ré logrado provar a invocada matéria de excepção peremptória, a Autora não tem direito ao crédito sobre o capital seguro à data do sinistro, havendo que concluir, que a presente acção tem de improceder.”.

Concorda-se, em absoluto, com a argumentação expendida pelo Tribunal a quo.

Com efeito, é evidente, atento o acervo factual provado, que a autora omitiu, aquando do preenchimento do questionário que antecedeu a celebração do contrato de seguro, um conjunto de informações relativas ao seu estado clínico [2] e hábitos de vida [3], omissão que implica a anulabilidade do vínculo em apreço, atento o disposto nos arts. 24º, nº1, e 25º, nº1, ambos do RJCS.      

O art. 24º, nº1, do RJCS estabelece que “O tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.” [4].

E o art. 25º, nº1, do mesmo Regime acrescenta que “Em caso de incumprimento doloso do dever referido no n.º 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.” [5].

Por seu turno, o nº 2 do art. 25º prescreve que o segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no n.º 1, sendo aplicável, o regime geral da anulabilidade.

As regras gerais que se ocupam da anulabilidade dos negócios jurídicos encontram-se previstas, como se sabe, no nosso Código Civil, devendo levar-se em consideração, no caso vertente, o quadro normativo que resulta do art. 287º, cuja redacção é a seguinte:

1. Só têm legitimidade para arguir a anulabilidade as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, e só dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento.

2. Enquanto, porém, o negócio não estiver cumprido, pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via de acção como por via de excepção.”.

Embora a ré, recorrida nos presentes autos, tenha tido conhecimento [6], na sequência da participação do sinistro, das circunstâncias que determinam a anulabilidade, a verdade é que a prestação essencial que decorre do contrato em questão (pagamento do capital que a respectiva apólice prevê) não se mostra realizada [7].     

Deste modo, como bem salientou a 1ª instância, não se verifica a caducidade do direito de invocar a anulabilidade do referido vínculo contratual [8], o que significa, consequentemente, que não é exigível a importância que a autora/recorrente veio peticionar no presente litígio.

Atentos os motivos apontados, deve o recurso improceder, com as consequências legais.

                                    ***

III – DECISÃO.

Pelo exposto, decide-se julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a sentença recorrida

Custas pela apelante.


Coimbra, 25 de Março de 2025

(assinado digitalmente)

Luís Manuel de Carvalho Ricardo

(relator)

Hugo Meireles

(1º adjunto)

Cristina Neves

(2ª adjunta)



[1] A sentença recorrida não integra factos não provados.
[2] Histerectomia (remoção do útero), em momento anterior ao preenchimento do questionário que precedeu a celebração do contrato, e neoplasia do útero, cerca de dois anos antes e relacionado com a referida cirurgia.
[3] Tabagismo.
[4] O sublinhado é nosso.
[5] Relativamente a esta matéria – o que constitui um entendimento jurisprudencial constante -, salienta-se no Acórdão do STJ de 19/9/2024 (Aresto disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/09c0defafd972fea80258b9e005a01f0?OpenDocument) que “A anulação do contrato de seguro pressupõe um incumprimento doloso do dever de informação a que alude o art. 24.º do RJCS, sendo que o regime dessa anulação do contrato de seguro constitui uma particularização do regime da anulabilidade do erro causada por dolo, previsto em geral no art. 254.º do CC.”.
[6] Pelo menos em 23 Agosto de 2019 – cf. facto provado nº20 - a recorrida tinha conhecimento das circunstâncias que determinavam a anulabilidade do contrato de seguro.
[7] Dispõe o art. 1º do RJCS que “Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente.”.
[8] Conforme se refere no Acórdão desta Relação (Coimbra) de 23/4/2024 (Aresto disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/aeb54aa1318c9a2080258b1d0047842d?OpenDocument) “Não estando o contrato cumprido – por a seguradora não ter realizado a prestação contratualmente definida a seu cargo –, pode a anulabilidade ser arguida a todo o tempo, designadamente por via de exceção na ação tendente ao cumprimento, sem que tal configure abuso do direito.”.
No mesmo sentido, cf. o Acórdão, também da Relação de Coimbra, de 23/11/2021, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/f6a2538cf80af36f8025879c003c7909?OpenDocument