Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | PAULO REGISTO | ||
| Descritores: | VÍCIO DA CONTRADIÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO CRIME DE HOMICÍDIO QUALIFICADO NA FORMA TENTADA COM DOLO EVENTUAL TENTATIVA MOTIVO FÚTIL DOLO EVENTUAL CRIME DE RESISTÊNCIA E COACÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO COMPORTAMENTOS VIOLENTOS | ||
| Data do Acordão: | 10/08/2025 | ||
| Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
| Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA - JUIZ 3 | ||
| Texto Integral: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
| Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 14.º, N.º 3, 22.º, N.º 1, 132.º, N.º 2, ALÍNEA E), E 347.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL ARTIGO 410.º, N.º 2, ALÍNEA B), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL | ||
| Sumário: | I - Os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, devem resultar do próprio “texto da decisão recorrida”, ainda que conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, independentemente da apreciação que foi realizada pelo tribunal a quo da prova produzida em audiência de julgamento.
II - Tratam-se de vícios da própria decisão, em si mesmo considerada, que se diferenciam de erros de julgamento, que servem de fundamento à apresentação de recurso da matéria de facto, com base em errada apreciação da prova produzida em audiência, nos termos do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP. III - O vício previsto pela al. b) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, tanto pode resultar dos factos provados serem inconciliáveis entre si, como existir incompatibilidade entre factos provados e/ou factos não provados, como no caso da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto se mostrar contraditória com os factos provados e/ou os factos não provados, como quando a fundamentação de facto se mostrar inconciliável com a fundamentação de direito ou ainda no caso em que a fundamentação for incompatível com a própria decisão proferida. IV - Não padece do vício da al. b) deste preceito, por contradição da matéria de facto, o acórdão que julgou provado que o agente admitiu a possibilidade de retirar a vida ao ofendido, conformando-se com esse resultado, por lhe ter desferido um golpe com uma navalha na zona do abdómen, após lhe ter dito “mato-te já”, mesmo que permaneçam por esclarecer os motivos que o levaram a não empreender outros comportamentos agressivos. V - O conceito indeterminado de “motivo fútil” da al. e) do n.º 2 do art. 132.º do CP encontra-se consolidado na jurisprudência e na doutrina nacionais, enquanto motivo insignificante, sem importância ou sem sentido perante o senso comum, que quase chega a não ser motivo, em que o comportamento do agente surge notoriamente desproporcional perante a actuação da vítima. VI - Para efeitos do disposto na al. e) do n.º 2 do art. 132.º do CP, constitui “motivo fútil”, revelador de especial censurabilidade da conduta, se o agente defere um golpe com uma navalha na zona abdominal na vítima, após afirmar “anda cá seu filho da puta, que eu mato-te já”, por esta o ter repreendido, na sequência do agente, momentos antes, ter cuspido na direcção das suas pernas. VII - O conceito de tentativa plasmado no n.º 1 do art. 22.º do CP não exclui que os actos de execução do tipo possam ser imputados ao agente a título de dolo eventual (art. 14.º, n.º 3, do CP), por também, nestes casos, o julgador se deparar com um crime que o agente “decidiu cometer”. VIII - O art. 22.º, n.º 1, do CP, ao estabelecer que “há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer”, admite que o agente tenha actuado com dolo eventual, na medida em que, em qualquer uma das modalidades de dolo, o agente quis empreender os actos de execução e aceita ou conforma-se com o resultado criminoso. IX - Deste modo, não há qualquer obstáculo para que o agente venha a sancionado pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, mesmo quando se encontre provado que actuou com dolo eventual. X - Integra a prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário do art. 347.º, n.º 1, do CP, a conduta do agente que, ao esbracejar e ao espernear, deitou ao chão um dos militares da GNR, o que fez com que este batesse com a cabeça num pilar e sofresse cinco dias de doença com incapacidade para o trabalho, para que, de seguida, lhes dirigir, entre outras, as seguintes palavras, “vocês vão pagá-las”, “os vossos carros, as vossas vidas, nunca mais vão ter paz” e “vocês não imaginam o que vos vai acontecer”, por forma a eximir-se à sua detenção. XI - A violência exercida, que implicou o emprego de força física e a prolacção de diversas palavras de intimidação, afectou a liberdade de actuação dos militares desta força de segurança e mostrou-se adequada a dificultar o exercício das suas funções. XII - Não se exige que os comportamentos violentos sejam irresistíveis, intransponíveis ou insuperáveis, de modo a que quem exerce autoridade pública fique impossibilitado de praticar os actos relativos ao exercício das suas funções ou que fique compelido a praticá-los contra os deveres a que se encontra subordinado. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
| Decisão Texto Integral: | * Acordam os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra
I - RELATÓRIO: …, melhor identificado nestes autos, veio interpor recurso do acórdão proferido no dia 16-06-2025 pelo Juízo Central Criminal de Coimbra – Juiz 3, que julgou parcialmente procedente, por provada, a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência, condenou-o pela prática, em concurso efectivo de infracções, de: --1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e), 22.º, n.ºs 1 e 2, als. a) e b), 23.º, n.º 2, do CP, na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão; --1 (um) crime de resistência e coação sobre funcionário p. e p. pelo art. 347.º, n.º 1, do CP, na pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão; --1 (um) crime de ameaça agravada p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do CP, na pena de 6 (seis) meses de prisão; --na pena única de 6 (seis) anos e 9 (nove) meses de prisão, uma vez realizado o cúmulo jurídico das penas parcelares acima enunciadas. * Na parte final do recurso que interpôs, o recorrente … formulou as seguintes conclusões:
“1. O primeiro segmento de dissenso que se pretende manifestar diz respeito à factualidade dada como demonstrada pelo Tribunal recorrido. 2. Na verdade, salvo o devido respeito, a fundamentação factual eleita no Acórdão posto em crise omite um elemento probatório de crucial importância, 3. Justamente o registo videográfico captado pelas câmaras instaladas no interior do estabelecimento comercial – de café e restaurante – onde correram os eventos em discussão. 4. Na verdade, todo o envolvimento entre o recorrente e os Agentes da Guarda nacional Republicana – testemunhas … – está registado em imagem, as quais estão juntas aos autos em suporte cd. 5. Ora, esse filme dos eventos emerge em distonia com a materialidade provada. 6. Vale por dizer que, examinado o sobredito elemento probatório, quer pelo seu valor facial, quer sob a égide das chamadas regras da experiência comum a valoração imanente à demonstração dos factos constantes dos pontos 16 a 18, 20 a 23 e 25 é insusceptível de se manter. 7. Na verdade, aquilo que é possível presenciar nas aludidas gravações de imagem colide com as narrativas efectuadas pelas sobreditas testemunhas … – de resto, não inteiramente coincidentes entre ambas… 8. Ora, do filme dos factos é possível constatar a entrada dos Senhores Agentes no estabelecimento em causa e que um e outro, em momentos ligeiramente distanciados no tempo, se dirigem ao recorrente, que se encontrava junto ao balcão. 9. É possível constatar que o abordam e que dialogam no local em que o arguido se encontrava, estando os Senhores Agentes a ladeá-lo. 10. No entanto, essa troca de impressões decorre sem qualquer sobressalto ou agitação dos Senhores Agentes que em momento algum esboçam qualquer reacção de advertência ao arguido. … 30. Por outra banda, uma inequívoca e frontal contradição resulta imanente à factualidade dita de 8 a 10, 30 e 31 e 25 a 37. … 32. Portanto, provado está que o recorrente perpetrou uma única acção, nada mais tendo feito, ou tentado posteriormente, 33. Não havendo notícia que a ausência de repetição do acto (ou, sequer, de tentativa nesse sentido) fosse devida a qualquer constrangimento físico, afastamento coercitivo ou impedimento exógeno. 34. Como demonstrado está as limitadas consequências da conduta quer na sua evidência física – ferida inferior a meio centímetro – quer na respectiva repercussão médico-legal. 35. Vale por dizer que se tratou de um acto isolado, praticamente inconsequente e sem qualquer sinal de intento de reiteração. 36. Ora, salvo o devido respeito, emerge profundamente contraditório que tal actuação seja tida como um acto de execução de um homicídio, designadamente consubstanciando substracto objectivo para uma actuação a título de dolo eventual. 37. Razão por que ou o Acórdão estará fulminado pelo vício que emana da al. b), do artigo 410º, n.º 2 do CPP, … 40. De um ponto de vista estritamente jurídico, o Acórdão recorrido viola o disposto no artigo 132º, 2, al. e), 131º, 153º, 1, 155º, 1 e 347º do CP. 41. De facto, não se levou em conta a especial técnica legislativa adoptada pelo legislador na criação do específico tipo de homicídio qualificado. 42. É que a qualificação passa pelo agente do crime manifestar uma personalidade especialmente perversa ou censurável na execução de tal ilícito. As circunstâncias enunciadas no nº 2 do mesmo inciso legal são-no, única e simplesmente, a título exemplificativo do desvalor de determinadas condutas. 43. Ora, a decisão de que se recorre olvida, inapelavelmente, a referência a uma imagem global do facto de onde decorram as especificas censurabilidade ou perversidade da actividade do agente. 44. Mais a mais, não se logra vislumbrar na actuação do recorrente que este tenha agido animado subjectivamente por qualquer das condições referenciadas na al. e), do nº 2 do art. 132.º do CP. 45. De resto, sendo a qualificativa em causa operante do lado da especial censurabilidade apelando à intensidade da motivação do agente, tal será dificilmente conciliável com uma actuação a título de dolo eventual. 46. Na verdade, tal tipologia de dolo sempre fragiliza a motivação da actuação do arguido. 47. Para já não invocar a incompatibilidade com a tentativa, na medida em que nesta modalidade dolosa inexiste uma decisão em sentido próprio. 48.Por outro lado, a douta decisão em recurso olvida que a imputação do crime de homicídio, mesmo na forma tentada, tem de ancorar racionalmente em factos que consubstanciem um ataque ao bem jurídico vida. 49. O que, como se assinalou, na hipótese em apreço não se verifica realmente, 50. Razão por que se mostram identicamente violados os n.ºs 1 e als. a) a c) do n.º 2 do artigo 22º. 51. Violado se mostra, como supra se adiantou, o n.º 1 do art. 153º do CP. 52. Na verdade, a expressão “se tens amor à vida” não representa uma ameaça directa com um mal futuro, na dependência da vontade do autor da fraseologia apta a coarctar a liberdade de decisão da destinatária da frase. … 54.Mesmo que assim se não entendesse, a interpretação daquele fraseado como implicando a emissão de ameaça com a prática de crime contra a vida punível com pena superior a três anos não é suportada pela correcta hermenêutica sobre o tipo. 55. Na verdade, a antedita expressão mais não é do que uma verbalização polissémica insusceptivel de preencher o tipo qualificado do n.º 1 do art 155º, 56. Razão por que a desistência formulada pela suposta vítima deve operar nos termos do art 115º do CP, com a consequente extinção do procedimento criminal. 57. Finalmente, também se mostra violado o art. 347º do diploma penal. 58. Na verdade, o tipo em causa, como crime de execução vinculada, exige que a resistência oposta funcionário emirja por ameaça ou violência, 59. Sendo que para averiguar da violência necessário se torna deitar mão do critério objectivo-individual em função das especiais qualidades do agente. 60. Ora, esbracejar ou espernear para se libertar não representa violência passível de constranger dois agentes da autoridade especialmente treinados para lidar com tais conflitos … 69. Na verdade, quer as penas parcelares quer a pena única fixada assumem-se moldadas numa intencionalidade de castigar o arguido, absolutamente desgarradas da normatividade aplicável. … * O MINISTÉRIO PÚBLICO, junto do Juízo Central Criminal de Coimbra – Juiz 3, veio responder ao recurso … * O Senhor Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal da Relação de Coimbra, emitiu parecer, no qual apôs “visto”. * Admitido o recurso, realizada a audiência a que alude o n.º 5 do art. 411.º do CPP e colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO: a) Factos provados: A primeira instância considerou como provados os seguintes factos:
“Da acusação pública: 1. No dia 05 de maio de 2024, em hora não concretamente apurada, mas cerca das 21h00, AA … encontrava-se no interior do estabelecimento … 2. No referido local encontrava-se também BB … acompanhado de CC …, sua cônjuge, tendo ambos estado a ver um jogo de futebol. 3. Passado alguns minutos, AA, dirige-se ao exterior do estabelecimento e senta-se numa mesa junto à porta do estabelecimento. 4. No intervalo do jogo de futebol, BB … saiu para o exterior, para a zona da esplanada, do estabelecimento, com a sua cônjuge, CC …. 5. Quando BB … passou por AA …, este cuspiu na direcção da perna daquele. 6. Perante tal atuação, BB … perguntou a AA … se aquilo era educação ou se ele era um porco para cuspir para cima das pessoas. 7. AA …, permanecendo sentado, perguntou ao ofendido com voz alta “o que é que queres?” 8. De imediato, AA … levantou-se, agarrou num objecto, de cabo em material não concretamente apurado numa extremidade e na outra extremidade, ponta metálica pontiaguda, vulgo navalha, que trazia consigo no bolso das calças que vestia, abriu-a e dirigiu-se com o braço esticado na direcção a BB, dizendo-lhe “anda cá seu filho da puta, que eu mato-te já”. 9. BB …, tentou empurrar com as duas mãos AA, para o afastar. 10. Contudo, em ato contínuo, AA … desferiu um golpe na zona do abdómen, mais concretamente na zona das costelas, de BB …, tendo-o atingido nessa zona, o que fez com que … começasse a sangrar. 11. AA …, após o referido em 10., continuou a dirigir-se a BB …, em tom elevado, e proferiu as seguintes expressões: “gatuno, ladrão de combustível, filho da puta, cabrão”, mais referindo “vou-te matar”. 12. De imediato CC … - quando BB … e AA … estavam de frente em para o outro, puxou o cônjuge … para o afastar e proteger do arguido. 13. AA … voltou a entrar no interior do estabelecimento …, para lavar as mãos que tinham sangue, enquanto BB … permaneceu no exterior a aguardar a chegada da GNR e da assistência médica. 14. BB … foi transportado para o Hospital ... a fim de receber tratamento médico. 15. Àquele local, dirigiu-se uma patrulha da GNR ..., composta pelos militares DD … e EE …, devidamente uniformizados, identificados e no exercício das suas funções. 16. No momento em que os militares da GNR chegaram ao local e depois de BB … ter identificado o arguido, aqueles dirigiram-se a AA … que se encontrava junto ao balcão. 17. Solicitaram que este os acompanhasse até ao exterior do café, ao que aquele, de imediato, disse: “o quê? Mas o que é que vocês querem?”, “sei mais das leis do que vocês”, “não tenho de me identificar nada”. 18. Nessa altura, os militares da GNR explicaram o motivo pelo qual ali se encontravam, pelo que, solicitaram que o mesmo se identificasse. 19. De seguida, o arguido disse: “não me identifico, vão para o caralho que enquanto não beber uma mini, eu não vou”, tendo, naquele momento, pedido à proprietária do estabelecimento, …, que lhe fornecesse a tal bebida, o que esta recusou. 20. Novamente informado pelos militares da GNR que solicitaram que se identificasse e esclarecesse o que se tinha passado, AA … continuou a dizer “fodam-se caralho, vocês são uns corruptos de merda que só apoiam quem anda a roubar gasóleo”. 21. Tendo nestas circunstâncias AA … sido advertido para moderar o seu tom de voz, bem como as insinuações que se encontrava a fazer contra os referidos militares. 22. Não obstante as advertências, AA … continuou a proferir o seguinte: “já vos disse fodam-se, deixem-me em paz, vocês estão tão fodidos que nem imaginam, vou-vos foder, não sabem com quem se estão a meter” e “seus filhos da puta”. 23. Neste momento foi pelos militares da GNR dada ordem de detenção a AA …. 24. De imediato, os militares da GNR agarraram AA … pelos braços e tentam levá-lo para o exterior do estabelecimento. 25. Nessa circunstância, AA … começou a esbracejar, espernear e a gritar “estão fodidos seus filhos de uma puta”, fazendo força e projetando o militar da GNR EE para o chão. 26. No momento da projeção para o chão, o Militar da GNR EE …embateu com a cabeça no pilar que se encontra no centro do referido estabelecimento. 27. Provado apenas que após alguns minutos, os militares da GNR conseguiram proceder à detenção do arguido e enquanto o encaminham para o exterior do estabelecimento, o mesmo continuou a fazer força para trás e a empurrar os militares da GNR com o corpo. 28. Já no exterior, durante a introdução de AA … na viatura da GNR e, posteriormente, na condução para o posto da GNR ..., AA … continuou a proferir as seguintes expressões, que repetia: “corruptos de merda”, “vão pagá-las seus merdas, seus filhos da puta”, “Juro pela minha filha que vocês vão pagá-las”, “os vossos carros, as vossas vidas, nunca mais vão ter paz”, “vocês não imaginam o que vos vai acontecer, vocês vão ver quem é o AA, artilheiro de ...”; 29. Dirigindo-se ao Militar da GNR EE …, enquanto se deslocavam para o posto, e este Militar conduzia a viatura da GNR, AA … disse ainda “Vais ver o que vai acontecer ao teu mercedes outra vez, podes meter as câmaras que quiseres na varanda”. 30. Como consequência direta, necessária e adequada dos factos descritos em 8. a 10., BB … sofreu: -Tronco: penso no terço distal da face anterior do hemitórax direito, ligeiramente repassado, a recobrir ferimento linear discretamente curvilíneo de concavidade medial medindo 0,4cm de comprimento 31. Tais lesões demandaram 8 (oito) dias para a cura, com afetação da capacidade de trabalho geral em 4 dias e com afetação da capacidade de trabalho profissional em 4 dias. 32. Como consequência direta, necessária e adequada dos factos descritos em 24. a 27., EE … sofreu: -Face: na região frontal direita, anteriormente à linha de implantação capilar, equimose ligeiramente arroxeada, medindo 3cm x 1,5cm; na face mucosa do hemilábio inferior esquerdo, ferimento medindo 0,5 cm de diâmetro; -Membro inferior esquerdo: no terço médio da face antero-lateral da coxa, equimose ligeiramente arroxeada, medindo 6cmx4cm. 33. Tais lesões determinaram em condições normal, um período de doença fixável em cinco dias: sem afetação da capacidade de trabalho geral e/ou trabalho profissional. 34. Com as condutas descritas em 8. a 11., AA … agiu com o propósito de intimidar BB … e provocar-lhe receio de vir a sofrer atos atentatórios contra a sua integridade física e vida, bem sabendo que essa sua conduta era adequada a causar-lhe tal receio, como efetivamente causou. 35. AA … não podia ignorar que ao actuar do modo descrito, poderia atingir o corpo de BB … perfurando-lhe a zona do abdómen/tronco provocando-lhe lesões graves ou até mesmo a morte, o que não logrou alcançar por circunstâncias alheias à sua vontade, em virtude de BB … se ter esquivado, impulsionando-se para trás e empurrando AA … com as mãos assim se protegendo da investida do arguido, apesar do golpe desferido e da região do corpo (torácica e abdominal) que atingiu onde se alojam órgãos, artérias e veias essenciais, e que desse modo, podia ferir gravemente ou até mesmo matar o ofendido BB …, possibilidade que representou como possível e com a qual se conformou. 36. AA … sabia que o objeto com lâmina aguçada, vulgo navalha, que trazia consigo e usou para atingir BB … era meio idóneo a provocar no corpo daquele, lesões capazes de acarretar a morte, como era intenção de AA …. 37. Provado apenas que AA … ao desferir um golpe no corpo de BB …, com uma navalha, representou como possível provocar-lhe a morte, tendo igualmente consciência que o fazia apenas por aquele ter reagido ao seu comportamento descrito em 5) não havendo motivo para tal atuação, bem como esta era despropositada e desadequada. 38. AA … ao proferir as expressões mencionadas em 17., 19., 20., 22., 25. e 28., fez com o propósito concretizado de atingir os Militares …, na sua honra, dignidade e bom nome, sabendo que estes eram militares da GNR no exercício de funções, atingindo-os, assim, na sua dignidade e bom nome enquanto pessoas e profissionais, humilhando-os e vexando-os. 39. AA … com os comportamentos descritos a 25. e 28., agiu de forma livre e com o propósito concretizado de utilizar tais expressões que sabiam ser adequadas a produzir receio, medo e inquietação aos militares da GNR, bem como pretendia afetar as suas liberdades de movimentos e autodeterminação, querendo atuar dessa forma. 40. Mercê do seu comportamento referido em 25., e 26., AA … agiu de forma livre e com o propósito concretizado de molestar o corpo e saúde do Militar da GNR EE … e de lhes produzir as lesões verificadas, resultado que este representou. 41. AA … agiu de forma livre e com o propósito concretizado de utilizar a expressão referida em 29. que sabia ser adequada a produzir receio, medo e inquietação ao militar, EE …, bem como pretendia afetar a sua liberdade de movimentos e autodeterminação, querendo atuar dessa forma. 42. Agiu, ainda, com o propósito de se eximir ao cumprimento dos comandos (in casu, detenção) que os militares da GNR, cuja qualidade de militares da Guarda Nacional Republicana conhecia e lhe pretendiam impor, assim pondo em causa a autoridade subjacente aos mesmos, o que representou. 43. No dia 09 de maio de 2024, pelas 12h30m, AA … dirigiu-se ao “Restaurante …”, tendo pedido a FF … que lhe fornecesse um café, ao que aquela lhe disse “se queres ser respeitado, tens que te dar ao respeito”, tendo AA … dito a FF … “fecha a fossa”. 44. Já no exterior do estabelecimento, quando FF … se encontrava a limpar a esplanada, AA … foi na sua direção e disse-lhe “dá-me as imagens de domingo pois sabes que há muitas pessoas que me querem prejudicar”. 45. Nessa sequência, FF … recusou-se a facultar as imagens, tendo AA … ficado exaltado e proferiu as seguintes expressões com um tom de voz alto: “é que és uma amiga, és uma vaca, és uma puta e se tens amor à tua vida pensa bem em dar-me as imagens, pois sabes que há pessoas que me querem prejudicar. Tu sabes que estou em pena suspensa e que há pessoas que me querem prejudicar”. 46. AA …, ao actuar da forma acima descrita, fê-lo com o propósito de provocar medo e inquietação a FF … e de lhe prejudicar a sua liberdade de determinação, o que conseguiu, pois a ofendida acreditou que aquele tivesse intenção de atentar contra a sua vida. 47. Sabia AA … que as aludidas expressões que dirigiu a FF … eram adequadas a causar-lhe insegurança, medo e receio pela lesão da sua vida, e a prejudicar-lhe a sua liberdade de determinação. 48. Em todas as circunstâncias descritas AA … agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal, não se coibindo, porém, de assim atuar. … [Dos antecedentes criminais]: 65. Constam as seguintes antecedentes criminais averbados no seu Certificado de Registo Criminal: i. No âmbito de um processo que correu termos num Tribunal da Suíça foi condenado em 31-07-2011 por violação grave das regras de circulação rodoviária numa pena de multa. ii. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 3/15.... por factos praticados em 07-01-2015 foi condenado por decisão de 04-10-2016, transitado em Julgado em 23-10-2017, por um crime de dano, numa pena de 80 dias de muta à taxa diária de 6€. iii. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 311/17.... foi condenado pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez em 30-07-2017, por acórdão de 06-02-2019, transitado em julgado em 08-03-2019, numa pena de 100 € à razão diária de 6 €. iv. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 207/20.... foi condenado pela prática em 10-07-2021 e 11-07-2021 de um crime de uso de arma sob o efeito do álcool, de um crime de condução em estado de embriaguez, de um crime de ameaça agravada e de um crime de detenção de arma proibida na pena de 1 ano, 2 meses e 29 dias suspensa por 1 ano e 6 meses com regime de prova.”
O tribunal de primeira instância considerou que não ficaram provados os seguintes factos:
…
b) Objecto do recurso: …
… O arguido AA … começou por sustentar que o registo videográfico, captado pelas câmaras instaladas no interior do estabelecimento comercial mencionado nos autos, permite concluir que os factos (máxime arts. 16.º a 18.º, 20.º a 23.º e 25.º dos factos provados) ocorreram de forma completamente distinta daquela está narrada. Deste modo, verifica-se que o arguido … sustenta que o tribunal colectivo incorreu em erro de julgamento e que pretende impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, por entender as imagens recolhidas pelo sistema de videovigilância do café/ restaurante contrariam a versão dos factos vertida no acórdão recorrido. De acordo com o disposto no art. 412.º, n.º 3, do CPP, o recorrente, sempre que pretenda impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto pelo tribunal de julgamento, deve especificar “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados” - vide al. a) - e “as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida” - vide al. b) deste dipositivo. Como a interposição de recurso não determina a realização de um novo julgamento da causa pelo tribunal de recurso, o recorrente encontra-se onerado com a indicação dos factos que considera terem sido mal julgados e, de igual modo, com a indicação dos meios de prova (v.g. documentos, testemunhas, perícias) que impõem diferente decisão sobre a matéria de facto impugnada. O recorrente deve sustentar, de modo fundamentado, por remissão para os meios de prova produzidos, que o tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento quando fixou os factos provados e/ou os factos não provados. Se o julgador, por regra, aprecia livremente a prova produzida, de acordo com o disposto no art. 127.º do CPP, o recorrente pode sindicar essa avaliação, demonstrando que ocorreu um erro de julgamento e que a prova produzida, ainda que conjugada com as regras da experiência comum, impunha uma diferente decisão sobre a matéria de facto. O Supremo Tribunal de Justiça assinalou que “a livre apreciação da prova não se confunde nem se pode confundir com a apreciação arbitrária da mesma nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova” e que o tribunal de recurso deve verificar se “as regras comuns da lógica da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, susceptíveis de objectivar a apreciação dos factos, foram observados, a respeito de cada um deles, na motivação apresentada pelo tribunal recorrido” – vide acórdão de 03-05-2006, Proc. n.º 06P557, acessível em www.dgsi.pt. . No caso vertente, procedendo à visualização das imagens do sistema de videovigilância instalado no estabelecimento comercial mencionado nos autos, não se vislumbra que o tribunal a quo tenha incorrido em erro de julgamento na apreciação da matéria de facto em causa, seja no que diz respeito à troca de palavras entre o arguido … e os militares da Guarda Nacional Republicana, seja no que diz respeito à projecção ao solo, junto a um pilar, de um dos elementos policiais. … Por conseguinte, não se afigura que a versão dos factos que fez vencimento no acórdão recorrido resulte de erro de julgamento, que o tribunal a quo tenha apreciado de modo arbitrário os meios de prova produzidos em sede de audiência de julgamento (muito em particular imagens do sistema de videovigilância instalado no estabelecimento comercial) ou que tenha violado as regras da experiência comum. Em face do exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pelo arguido … na parte em que pretendia a modificação (ou a eliminação) da matéria de facto constante dos arts. 16.º a 18.º, 20.º a 23.º e 25.º dos factos provados.
Prosseguindo:
De igual modo, o arguido … veio sustentar que o acórdão recorrido padece do vício previsto pela al. b) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, no que diz respeito aos factos provados constantes dos arts. 8.º a 10.º, 30.º e 31.º e 25.º a 37.º, na medida em que entende que as circunstâncias da acção e que as consequências da conduta por si empreendida surgem contraditórias perante a imputação de um crime de homicídio qualificado (tentado) a título de dolo eventual. De um modo mais detalhado, veio alegar que desferiu um só golpe com uma navalha no tronco da vítima, que o ofendido BB … sofreu uma ferida inferior a meio centímetro e que a ausência de repetição do acto de agressão não foi determinada por constrangimento físico, por afastamento coercitivo ou por qualquer impedimento exógeno. Recorde-se que o acórdão recorrido julgou provado, com particular destaque, que o arguido …, após afirmar “anda cá seu filho da puta, que eu mato-te já”, desferiu um golpe com uma navalha na zona do abdómen de BB … (vide arts. 8.º a 10.º), altura em que a testemunha CC … - quando os dois estavam à frente um do outro - puxou o seu cônjuge para o afastar e para o proteger do arguido … (vide art. 12.º dos factos provados). A decisão recorrida julgou ainda como provado que ele, ao atingir a vítima com um golpe de navalha, admitiu como possível e conformou-se com a possibilidade de lhe retirar a vida (vide arts. 35.º a 37.º dos factos provados). No que diz respeito à fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto, o Juízo Central Criminal de Coimbra – Juiz 3 deixou consignado, essencialmente a este respeito, que a circunstância do “ofendido … ter referido perentoriamente que ouviu o arguido a dizer-lhe que o ia matar, facto também confirmado pela testemunha pela mulher, solidifica a convicção deste Tribunal Colectivo, de que o arguido teve a intenção de agredir fisicamente o ofendido com a navalha que tinha na sua posse, representando como possível a possibilidade de o atingir de forma letal (matar)” - vide fls. 56 da decisão recorrida. Logo de seguida, o acórdão recorrido (vide fls. 57) deixa explicado que “(…) se a intenção não fosse de matar (…) não teria o arguido ameaçado (…) que o iria matar, e muito menos o atingiria naquela zona corporal atingida (região do corpo onde, consabidamente, se situam relevantes órgãos internos para além de veias e artérias - torácica e abdominal) que colocavam em perigo a vida daquele (possibilidade que previu e com a qual se conformou) (…)”. Para concluir que “o dolo da actuação do arguido ressalta (…) à evidência, além do que já se adiantou, da análise do modo de actuação pelo crivo das regras da lógica, experiência e senso comum (…)”. Deste modo, de acordo com a alegação que foi apresentada pelo recorrente …, importa averiguar se existe (ou não) alguma contradição, incompatibilidade ou inconciliabilidade entre os factos provados ou entre esta factualidade e a fundamentação que o tribunal recorrido encontrou a respeito do elemento subjectivo deste crime. De acordo com disposto no art. 410.º, n.º 2, do CPP, “(…) mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) o erro notório na apreciação da prova”. Os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, devem resultar do próprio “texto da decisão recorrida”, ainda que conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, independentemente da apreciação que foi realizada pelo tribunal a quo da prova produzida em audiência de julgamento. Tratam-se de vícios da própria decisão, em si mesmo considerada, que se diferenciam de erros de julgamento, que servem de fundamento à apresentação de recurso da matéria de facto, com base em errada apreciação da prova produzida em audiência, nos termos do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP. Neste último caso, pede-se ao tribunal de recurso que proceda a uma reapreciação da prova que foi produzida em sede de audiência de julgamento, por forma a que seja alterada a matéria de facto provada e/ou não provada, que o recorrente entende ter sido mal julgada pelo tribunal a quo. Por seu turno, o recurso apresentado nos termos do disposto no art. 410.º, n.º 2, do CPP, deve assentar na própria decisão, avaliada de per si, sem recorrer à prova produzida e sem apreciar as conclusões que dela foram retiradas no âmbito do julgamento da matéria de facto. Os vícios que fundamentam a apresentação deste recurso encontram-se taxativamente enumerados nas alíneas do n.º 2 do art. 410.º do CPP e traduzem-se, grosso modo, em faltarem factos indispensáveis à decisão, em ocorrerem contradições insanáveis ou em existirem erros manifestos na apreciação da prova, percepcionados através da simples leitura da decisão, ainda que conjugada com as regras da experiencia comum, mas sem necessidade de se proceder à reapreciação da prova produzida em audiência. Como decorre expressamente do normativo, os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP, todos eles relativos ao julgamento da matéria de facto, têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, seja quando ocorra insuficiência para a decisão da matéria de facto (al. a) ), seja quando a fundamentação da matéria de facto comporte, em si mesma, graves e insupríveis contradições ou quando essa fundamentação se mostre inconciliável com os factos provados ou com os factos não provados (al. b) ), seja ainda quando a prova produzida foi apreciada de uma forma ilógica, arbitrária ou insustentável, na perspectiva do homem médio, quando os factos provados ou não provados se apresentem manifestamente incompatíveis com a prova que foi produzida em sede de audiência de julgamento (al. c) ). Como se deixou assinalado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-10-2008, Proc. n.º 1051/07.0GAFAF (www.dgsi.pt): “(…) o recurso da matéria de facto tem em vista questionar o passo que se deu da prova produzida aos factos dados por assentes e/ou o passo que se deu destes à decisão. No primeiro caso, o recorrente deverá impugnar a matéria de facto devido ao confronto entre a prova que se fez e o que se considerou provado, lançando mão do disposto no n.º 3 do art. 412.º do CPP, e podendo mesmo ser pedida a renovação de prova; no segundo, invocar um dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP. Neste caso, o vício há-de resultar da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e tanto pode incidir sobre a relação entre a prova efectivamente produzida e o que se considerou provado (al. c) do n.º 2 do art. 410.º), como sobre a relação entre o que se considerou provado e o que se decidiu (als. a) e b) do n.º 2 do art. 410.º). Quando o recorrente alega, por referência ao art. 410.º, n.º 2, do CPP, vícios da decisão recorrida, mas fora das condições previstas nesse normativo, limita-se a impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento, esquecendo a regra da livre apreciação da prova inserta no art. 127.º do CPP”. A respeito do vício da al. b) do n.º 2 do aludido artigo, o Senhor Conselheiro Pereira Madeira afirma o seguinte: “(…) a contradição tanto pode emergir entre factos contraditoriamente provados entre si, como entre estes e os não provados (p. ex. «provado que matou», «não provado que matou»), como finalmente entre a fundamentação (em sentido amplo, abrangendo a fundamentação de facto e também a de direito) e a decisão. É exemplo deste último tipo de contradição, a circunstância da sentença se espraiar em considerações tendentes à irresponsabilidade penal do arguido e a decisão final concluir, sem mais explicações, por uma condenação penal (…)” – in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, págs. 1358 e 1359. Em idêntico sentido, escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-07-2012, Proc. n.º 350/98.4TAOLH.E1(www.dgsi.pt): “(…) tanto constitui fundamento de recurso ao abrigo da al. b) do n.º 2 do art. 410.º a contradição entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada, pois pode existir contradição insanável não só entre os factos dados como provados, mas também entre os dados como provados e os não provados, como entre a fundamentação probatória da matéria de facto (…) A contradição insanável da fundamentação é a contradição ou oposição intrínseca na matéria de facto ou na respectiva fundamentação. O vício consiste na afirmação de factos animados de sinal contrário, cuja verificação simultânea é impossível, sendo a sua coexistência inexoravelmente inconciliável (…)”. Deste modo, o vício da contradição insanável tanto pode resultar dos factos provados serem inconciliáveis entre si, como existir incompatibilidade entre factos provados e/ou factos não provados, como no caso da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto se mostrar contraditória com os factos provados e/ou os factos não provados, como a fundamentação de facto se mostrar inconciliável com a fundamentação de direito ou ainda quando a fundamentação for incompatível com a própria decisão proferida. No caso vertente, de acordo com a próprio texto da decisão recorrida, conjugada com as regras da experiência comum, não se vislumbra qualquer contradição insanável, incompatibilidade ou inconciliabilidade dos factos provados entre si, nem tão-pouco com a fundamentação encontrada pelo tribunal de primeira instância para julgar essa matéria de facto como provada. De acordo com as regras da experiência comum não custa admitir que o arguido … tenha agido como dolo eventual (art. 14.º, n.º 3, do CP), ou seja, que tenha admitido como possível e que se tenha conformado com a possibilidade de retirar a vida, quando desferiu um golpe com uma navalha que empunhava no abdómen (mais propriamente na zona das costelas) do ofendido BB. Sempre de acordo com o próprio texto da decisão recorrida (independentemente da prova que foi produzida em audiência de julgamento e da sua apreciação por parte do tribunal a quo), importa, desde logo, deixar assinalado o propósito anunciado pelo arguido …, antes de ter iniciado a agressão com a navalha que trazia consigo. Como o agente anunciou o propósito de matar o ofendido BB … (“anda cá seu filho da puta, que eu mato-te já”), afigura-se plausível, de acordo com as regras da experiência comum, que tenha actuado dolosamente, isto é, com o conhecimento e com a vontade da realização típica. Por outro lado, como também se deixou assinalado no acórdão recorrido, o arguido …, fazendo uso de uma navalha (ou seja, um objecto com “ponta metálica pontiaguda”), atingiu o ofendido …, com um golpe, na zona do abdómen, onde se alojam importantes órgãos, artérias e veias do corpo humano. Não se limitou a anunciar um mal futuro quando pronunciou as palavras acima mencionadas, assumiu uma postura agressiva perante a vítima, que ainda se procurou defender, empurrando com as mãos o arguido … (vide art. 9.º dos factos provados). Não obstante essa atitude defensiva, a vítima … acabou por ser golpeada com a dita navalha na zona abdominal. Deste modo, levando em consideração o anúncio que mataria BB …, seguido do golpe que desferiu com a navalha, não se consegue afirmar que seja ilógico, desrazoável, destituído de sentido ou sequer contraditório, o tribunal a quo ter julgado como provado o elemento subjectivo do crime de homicídio, na forma tentada, imputado ao arguido …. Por conseguinte, não merece qualquer reparo que o dolo, enquanto elemento interno respeitante ao agente, tenha sido extraído ou obtido pelo tribunal recorrido a partir da apreciação crítica das circunstâncias externas anteriores e contemporâneas ao mencionado comportamento. A conclusão a que chegou o tribunal a quo no sentido, como se viu, de que o agressor agiu dolosamente, quando desferiu um golpe na vítima com a navalha que empunhava (máxime que “AA … não podia ignorar que ao actuar do modo descrito, poderia atingir o corpo de BB … perfurando-lhe a zona do abdómen/tronco provocando-lhe lesões graves ou até mesmo a morte, o que não logrou alcançar por circunstâncias alheias à sua vontade”), não se mostra comprometida ou contrariada, de acordo com as regras da experiência comum, pela circunstância do comportamento agressivo não ter perdurado ao longo do tempo ou por não se ter desdobrado em diversos actos. Não se consegue afirmar que a falta de repetição de actos agressivos exclua o dolo eventual ou que seja demonstrativa que o arguido AA … não se conformou com a possibilidade de retirar a vida à vítima, quando a atingiu com um golpe da navalha que empunhava. Assim como também não deixa de consubstanciar um comportamento doloso quando o agente dispara uma única vez uma arma de fogo a curta distância da vítima, mesmo que tivesse a possibilidade de efectuar outros disparos. A intenção deve ser avaliada no momento em que o agente concretizou a agressão, ou seja, quando, após ter proferido as palavras ameaçadoras acima mencionadas, espetou uma navalha no corpo da vítima, atingindo-o numa zona que alberga importantes órgãos, artérias e veias do corpo humano. Ao contrário do que se sustenta no recurso interposto, não se consegue afirmar que a dinâmica dos factos, conforme se encontram descritos no acórdão recorrido, seja incompatível, contraditória ou inconciliável com a imputação do crime tentado de homicídio a título de dolo eventual. Ainda este propósito, importa recordar que o tribunal recorrido considerou provado que, após os factos acima descritos, a testemunha puxou o seu cônjuge … para o afastar e para o proteger do arguido … (vide art. 12.º dos factos provados). Aparentemente terá sido esta a atitude que impediu o arguido … de continuar a golpear a vítima com a mencionada arma. Mesmo que assim não se entenda, ou seja, que se sustente que o arguido … não estava impossibilitado de prosseguir com a sua conduta, essa circunstância não invalida as considerações acima tecidas, no sentido do acórdão recorrido não padecer de qualquer vício. De acordo com o próprio texto da decisão recorrida, conjugado com as regras da experiência comum, o tribunal a quo não incorreu em contradição insanável por ter considerado que o arguido … agiu como dolo eventual no momento desferiu um golpe com uma navalha que empunha na zona abdominal da vítima, independentemente da factualidade subsequente. Não padece do vício da al. b) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, por contradição da matéria de facto, o acórdão que julgou provado que o agente admitiu a possibilidade de retirar a vida ao ofendido, conformando-se com esse resultado, por lhe ter desferido um golpe com uma navalha na zona do abdómen, após lhe ter dito “mato-te já”, mesmo que permaneçam por esclarecer os motivos que o levaram a não empreender outros comportamentos agressivos. Por último, importa referir que não se vislumbra qualquer contradição entre a fundamentação apresentada pelo tribunal a quo e a matéria de facto julgada como provada no que diz respeito ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada, imputado ao arguido …. Em face do exposto, sem necessidade de demais considerações, improcede, nesta parte, o recurso interposto pelo arguido … e, por consequência, que a conduta que lhe é imputada passe a integrar a prática de um crime de ofensa à integridade física.
Mais:
De seguida, o arguido … veio também defender que o acórdão recorrido violou o disposto no art. 132.º, n.º 2, al. e), do CP, na medida em que olvida a referência a uma imagem global do facto de onde decorra censurabilidade ou perversidade da actividade do agente. Como se viu, o acórdão recorrido condenou-o pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e), 22.º, n.ºs 1 e 2 e 23.º, n.º 2, todos do CP. A este propósito, entendeu, com particular destaque, que “(…) foi na sequência de uma discussão motivada pela «cuspidela» feita de forma propositada pelo arguido em direcção ao ofendido, quando este ia a sair do mesmo estabelecimento que se encontravam a frequentar juntos, que o arguido, desferiu uma facada no peito do ofendido, picando-o, que só não lhe provocou lesões traumáticas torácicas, na parede torácica (ou outros órgãos ou veias) por razões alheias à vontade do arguido, na medida em que a «imagem global do facto», revela que o arguido agiu por motivo fútil, sem a ocorrência de qualquer desavença ou situação anterior com significado relevante (…)” – vide fls. 75 do acórdão recorrido. Concorda-se com a conclusão a que chegou o tribunal de primeira instância. De acordo com o disposto no art. 132.º, n.º 2, al. e), do CP, constitui circunstância qualificativa, susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade, o agente ser determinado “por qualquer motivo torpe ou fútil”. Como a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a assinalar, de modo unânime, a especial censurabilidade ou perversidade constituem conceitos indeterminados que o legislador concretiza, através da enunciação exemplificativa, nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 132.º do CP, de circunstâncias (exemplos-padrão) que representem uma culpa e/ou uma ilicitude acrescidas (entre, muitos outros, vide, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17-12-2014, Proc. n.º 937/12.4JAPRT - 5.ª, de 01-10-2014, Proc. n.º 88/14.7YFLSB - 3.ª, de 09-07-2014, Proc. n.º 38/05.1SVLSB - 5.ª, de 03-07-2014, Proc. n.º 417/12.8TAPTL - 5.ª e de 04-06-2014, Proc. n.º 298/12.1JDLSB - 3.ª, todos acessíveis em www.dgsi.pt.) Isto significa que, para além das que se encontram expressamente previstas pelo n.º 2 do art. 132.º do CP, podem ocorrer outras circunstâncias, que sejam juridicamente equivalentes, que qualificam o crime, por também serem representativas de uma especial censurabilidade ou perversidade. De igual sorte, a verificação de uma das circunstâncias previstas pelo n.º 2 do art. 132.º do CP constitui mero indício da existência dessa especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, estes exemplos-padrão não são de aplicação necessária e automática, o julgador só deve concluir pela qualificação do crime quando essas circunstâncias típicas representem uma culpa ou uma ilicitude acrescida. O conceito indeterminado de “motivo fútil” da al. e) do n.º 2 do art. 132.º do CP (que ditou a qualificação da conduta delituosa imputada ao arguido AA) encontra-se consolidado pela jurisprudência e pela doutrina nacionais, que lhe têm dedicado atenção ao longo dos últimos anos. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que “motivo fútil” é aquele que se revela insignificante, sem importância ou sem sentido perante o senso comum, que quase chega a não ser motivo, que se verifica quando o comportamento do agente surge notoriamente desproporcional perante a actuação da vítima (vide, v.g., Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26-10-2023, Proc. n.º 911/21.0JALRA - 5.ª, de 02-02-2023, Proc. n.º 22/22.0JAPRT - 5.ª, de 07-04-2021, Proc. n.º 86/19.4GILRS, de 29-06-2017, Proc. n.º 661/15.6PBLRS - 5.ª, de 13-04-2016, Proc. n.º 61/15.8PFLRS - 3.ª, de 24-09-2014, Proc. n.º 994/12.3PBAMD - 3.ª e de 30-05-2013, Proc. n.º 132/07.4JBLSB - 5.ª, acessíveis em www.dgsi.pt.). Também na doutrina tem-se entendido que “motivo fútil” é “(…) o notoriamente desproporcionado ou inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime praticado”, é “o motivo de importância mínima, mas também o motivo frívolo, leviano, a ninharia” (vide, neste sentido, Miguez Garcia e Castela Rio, in “Código Penal – Parte geral e especial, 2014, pág. 508), que “motivo fútil é o motivo de importância mínima” (vide Leal-Henriques e Simas Santos, in “Código Penal”, II Volume, pág. 43) ou que “motivo fútil” significa que “o motivo de actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito” (vide, neste sentido, Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 32). A este propósito, no acórdão recorrido deixou-se expressa a seguinte fundamentação: “(…) o que originou a conduta do arguido foi o ofendido o ter questionado, na sequência daquele lhe ter cuspido na direcção da perna, o que revela que o arguido perante uma pergunta legítima [tanto mais que cuspir para uma pessoa é uma acto socialmente censurável] e insignificante, reagiu de forma inexplicável, sendo sua conduta homicida totalmente desproporcionada em face da atitude da vítima, e reveladora de motivo fútil (…)”. Concorda-se com a fundamentação que foi encontrada pelo tribunal de primeira instância para qualificar a conduta imputada ao arguido …, que revela, de modo inequívoco, uma culpa acrescida. De acordo com a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo (vide arts. 5.º a 8.º dos factos provados), o comportamento do arguido … surgiu na sequência do ofendido … o ter repreendido por ter cuspido em direcção à sua perna. Deste modo, verifica-se que o comportamento do arguido …, ao desferir um golpe com uma navalha na zona do abdómen da vítima, após lhe ter dito “mato-te já”, se afigura manifestamente desadequado perante a atitude do ofendido …, que se limitou a repreendê-lo, na sequência do agente ter cuspido na direcção da sua perna. De acordo com os padrões sociais vigentes, a repreensão surge como um motivo insignificante ou de mínima importância perante o comportamento do arguido … que, ao ser chamado à atenção por ter cuspido na direcção das pernas da vítima …, de imediato, espetou-lhe uma navalha que trazia consigo na zona abdominal. Para efeitos do disposto na al. e) do n.º 2 do art. 132.º do CP, constitui “motivo fútil”, revelador de especial censurabilidade da conduta, se o agente defere um golpe com uma navalha na zona abdominal na vítima, após afirmar “anda cá seu filho da puta, que eu mato-te já”, por esta o ter repreendido, na sequência do agente, momentos antes, ter cuspido na direcção das suas pernas. Ao contrário do que se mostra alegado, também se verifica que o tribunal recorrido considerou provado que o arguido … pretendeu reagir à repreensão que lhe foi dirigida pelo ofendido … e que sabia que o seu comportamento era despropositado e desadequado (vide máxime art. 37.º dos factos provados). Em face do exposto, deverá ser julgado improcedente, nesta parte, o recurso interposto pelo arguido … e, por consequência, confirmado o acórdão proferido pelo tribunal a quo.
Prosseguindo:
De igual modo, não merecerá procedência o recurso apresentado, na parte em que o arguido … sustenta que existe uma situação de incompatibilidade entre o homicídio tentado qualificado e a imputação da conduta ao agente a título de dolo eventual. Como o próprio o arguido … reconhece, a jurisprudência tem vindo a entender (pelo menos de modo maioritário) que o conceito de tentativa plasmado no n.º 1 do art. 22.º do CP não exclui que os actos de execução do tipo possam ser imputados ao agente a título de dolo eventual (vide art. 14.º, n.º 3, do CP), por também, nestes casos, o julgador se deparar com um crime que o agente “decidiu cometer”. O art. 22.º, n.º 1, do CP, ao estabelecer que “há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer”, admite que o agente tenha actuado com dolo eventual, na medida em que, em qualquer uma das modalidades de dolo, o agente quis empreender os actos de execução e aceitou ou conformou-se com o resultado criminoso. A favor da tese da compatibilidade entre a tentativa e o dolo eventual, escreveu-se o seguinte no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-04-2009, proferido no âmbito do Proc. n.º 08P3277 (in www.dgsi.pt.): “crime que decidiu cometer” “(…) significa (…), tão só, comportamento que o agente decidiu levar a cabo, comportamento esse que é crime. Se é crime porque aí o dolo se configura como directo, necessário, ou eventual, não interessa (…)”. Acrescenta ainda o Conselheiro Souto de Moura neste acórdão que “os actos de execução praticados, que integram o elemento objectivo da tentativa, devem integrar-se num comportamento que o agente decidiu levar a cabo, comportamento esse que, globalmente considerado, é crime. Mas a ocorrência de tal crime pode bastar-se com a simples aceitação de um resultado criminoso, sem que esse resultado tenha sido o móbil, no sentido de causa final da acção”. Também a favor da tese da compatibilidade entre estes conceitos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-10-2001, proferido no Proc. n.º 951/01 - 5.ª Secção (in www.dgsi.pt.), pronunciou-se nos seguintes termos: “(…) Quer o agente actue com a intenção de realizar o facto criminal típico que representou (dolo directo), quer sabendo que a sua conduta conduzirá inevitavelmente ao preenchimento do facto criminal típico (dolo necessário), quer, enfim, representando embora o facto criminal típico como resultado possível da sua acção, essa possibilidade o não demova da sua actuação (dolo eventual), está configurada a componente subjectiva do comportamento delituoso (da sua dimensão máxima de dolo directo à sua expressão mínima de dolo eventual). “Transpondo o explanado para a problemática da compatibilidade do dolo eventual com as formas tentadas de crimes, terá de convir-se que (…) cabe na significação da expressão «que decidiu cometer» (n.º 1 do art. 22.º do CP), decisão de comissão que, neste plano, se traduza em o agente ter decidido cometer o crime cujo resultado representou como possível com essa possibilidade se conformando e praticando actos de execução sob a égide de tal conformação (…).” De tudo resulta, pois, que há compatibilidade da tentativa com o dolo eventual (…)” No mesmo sentido, vide, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-05-2005, proferido no Proc. n.º 1439/05 - 5.ª Secção. No caso vertente, encontrando-se provado, grosso modo, que o arguido … desferiu um golpe com uma navalha na zona do abdómen da vítima …, que sabia que estava a atingir uma região do corpo humano onde se encontram importantes órgãos e que se conformou com a possibilidade de lhe vir a retirar a vida (vide máxime arts. 35.º, 36.º e 37.º dos factos provados), ou seja, que empreendeu esta conduta com dolo eventual, não há qualquer obstáculo para que venha a sancionado pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e), 22.º, n.ºs 1 e 2, als. a) e b), 23.º, n.º 2, do CP. Em face do exposto, improcede, também nesta parte, o recurso interposto pelo arguido …, por se mostrarem preenchidos os elementos constitutivos deste tipo de crime e por não existir incompatibilidade legal entre a tentativa e o dolo eventual.
De seguida:
O arguido … veio também sustentar que o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento ao tê-lo condenado pela prática de um crime de ameaça p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do CP, na medida em que entende que a expressão “se tens amor à vida” não representa uma ameaça directa com um mal futuro e que, por isso, não se encontram preenchidos os elementos objectivos deste tipo de crime. Vejamos: A este respeito, importa recordar que o tribunal de primeira instância deu como provado que o arguido …, exaltado por a ofendida FF … não lhe ter facultado as imagens captadas pelo sistema de videovigilância do estabelecimento comercial, proferiu as seguintes expressões com um tom de voz alto: “(…) se tens amor à tua vida pensa bem em dar-me as imagens (…)” – vide art. 45.º dos factos provados. De igual modo, ficou ainda demonstrado (vide art. 46.º) que “(…) fê-lo com o propósito de provocar medo e inquietação a FF … e de lhe prejudicar a sua liberdade de determinação, o que conseguiu, pois a ofendida acreditou que aquele tivesse intenção de atentar contra a sua vida (…)”. De acordo com a matéria de facto fixada, acima transcrita nos segmentos mais significativos, não subsistem quaisquer dúvidas que o arguido … anunciou um mal futuro à ofendida FF …, que constitui crime contra a vida, ao dizer-lhe, de forma exaltada e com tom de voz alto, “(…) se tens amor à tua vida (…)”. Ao proferir esta expressão, transmitiu à ofendida …, de uma forma mais ou menos expressa, que ela podia ser vítima de um crime contra a vida, ou, dito por outras palavras, que podia sofrer a prática de um crime de homicídio, que, como se sabe, é punível com pena de prisão superior a 3 anos (vide, máxime, arts. 131.º e 132.º, ambos do CP). Não merece acolhimento a argumentação apresentada com o presente recurso no sentido de que o arguido …, ao proferir as palavras acima mencionadas, se estava a referir à “vida económica”, à “vida social”, à “vida privada” ou a “vida familiar” da destinatária. Note-se que, singelamente, se refere à “vida” da ofendida …, sem qualquer adjectivo, o que significa que dirigiu estas palavras à sua própria existência, enquanto ser humano, de modo nenhum à situação financeira, patrimonial, social, privada ou familiar da visada. Aliás, o sentido que lhe pretende atribuir o arguido … surge, completamente, desgarrado no contexto em que as palavras foram proferidas, marcado pela agressão ao ofendido … e pela resistência às autoridades policiais que compareceram ao local. Por outro lado, não subsistem quaisquer dúvidas, de acordo com a matéria de facto provada, que esse anúncio se mostrou adequado a provocar medo, inquietação e que perturbou a liberdade de determinação da ofendida FF … (segundo o art. 46.º dos factos provados, a vítima, inclusive, acreditou que “tivesse intenção de atentar contra a sua vida”). Por conseguinte, não custa acreditar que o bem jurídico tutelado pela incriminação (ou seja, a liberdade pessoal) foi infringido pela conduta empreendida pelo arguido … (os arts. 153.º e 155.º do CP encontram-se inseridos no Capítulo IV do Título I do Livro II do Código Penal, onde se tipificam os crimes contra a liberdade pessoal). De acordo com as circunstâncias do caso, muito em particular tendo em conta os factos anteriormente praticados pelo arguido … (sobretudo os que tiveram como vítima BB …, que, como se viu, foi golpeado com uma navalha na zona do abdómen) e o anúncio das suas prévias condenações penais (“tu sabes que estou em pena suspensa”) não custa acreditar que a ofendida FF … se sentiu, na realidade, intimidada e amedrontada pelas palavras que lhe foram dirigidas, tanto mais que exerce actividade profissional num estabelecimento comercial conhecido e frequentado pelo primeiro. Deste modo, concorda-se com o acórdão recorrido quando integrou a conduta imputada ao arguido … na al. a) do n.º 1 do art. 155.º do CP, na medida em que, grosso modo, anunciou uma mal futuro que constitui a prática de crime de homicídio, que é punível com pena de prisão superior a 3 anos (vide, máxime, arts. 131.º e 132.º, ambos do CP). Sublinhe-se que a ameaça agravada p. e p. pelo art. 155.º do CP assume natureza pública e que, ao contrário, do crime de ameaça (simples) p. e p. pelo art. 153.º do CP não se encontra dependente da apresentação de queixa (n.º 2) e que, por conseguinte, o procedimento criminal não se extingue com a correspondente desistência (arts. 48.º e 51.º do CPP e art. 116.º, n.º 2, do CP) - ainda a este propósito, vide, acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/2013, proferido no dia 20-02-2013 e, entre outros, os acórdãos deste Tribunal da Relação de Coimbra de 26-03-2005, de 08-05-2019 e de 06-07-2016, proferidos, respectivamente, no âmbito dos Procs. n.ºs 446/23.6T9CLD, 62/17.1GBCNF e 467/13.7GASEI, todos acessíveis em www.dgsi.pt. Em face do exposto, improcede recurso apresentado pelo arguido … e, em consequência, deve ser confirmado, também nesta parte, o acórdão proferido pelo tribunal de primeira instância.
Prosseguindo:
Ainda ao nível do enquadramento jurídico, o arguido … veio defender, a respeito do crime de resistência e coacção sobre funcionário p. e p. pelo art. 347.º do CP, que o simples esbracejar ou espernear não representa violência passível de constranger os agentes de autoridade especialmente treinados para lidar com conflitos. Vejamos: Dispõe o n.º 1 do art. 347.º do CP, sob a epigrafe resistência e coacção sobre funcionário, que “(…) quem empregar violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, agente das forças ou dos serviços de segurança, guarda prisional, ou bombeiro e demais agentes de proteção civil, para se opor a que ele pratique ato relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique ato relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres (…)”. O bem jurídico tutelado pela incriminação é a autoridade pública. É o que decorre da inserção sistemática deste preceito no CP (integra o Título V do Livro II, respeitante aos crimes contra o Estado) e de os sujeitos passivos deste crime terem de exercer funções nas Forças Armadas, em forças de segurança pública ou em organismos de protecção civil, conforme decorre, expressamente, da primeira parte do dispositivo. A execução vinculada deste crime, pressupõe sempre o emprego de “violência” sobre algum dos sujeitos que exercem funções de autoridade pública, entendida em sentido amplo, por forma a abranger tanto o exercício da força física (seja ou não causadora de ofensa à integridade física), como comportamentos de intimidação que sejam graves.
Todavia, não se exige que os comportamentos violentos sejam irresistíveis, intransponíveis ou insuperáveis, de modo a que quem exerce autoridade pública fique impossibilitado de praticar os actos relativos ao exercício das suas funções ou que fique compelido a praticá-los contra os deveres a que se encontra subordinado. Basta que esses comportamentos sejam adequados a perturbar a liberdade de actuação e a dificultar o exercício legítimo das funções de autoridade pública. No caso vertente, verifica-se que a “violência” física exercida não se limitou a um mero esbracejar ou espernear e que, devido à força física empregue, implicou inclusive a projecção e a queda ao solo de um dos militares da Guarda Nacional Republicana que compareceu no local e o subsequente embate com a cabeça num pilar do estabelecimento comercial em causa, o que lhe causou diversas lesões físicas e cinco dias de doença com incapacidade para o trabalho. Por outro lado, verifica-se que o arguido … proferiu “ameaças graves”, com o intuito de intimidar, de intranquilizar ou de perturbar os membros daquela força militarizada de segurança, quando lhes dirigiu, entre outras, as seguintes palavras: “vocês vão pagá-las”, “os vossos carros, as vossas vidas, nunca mais vão ter paz” e “vocês não imaginam o que vos vai acontecer”. A gravidade do comportamento violento cometido pelo agente mostra-se adequado a perturbar a liberdade de actuação e a dificultar o exercício das funções policiais por partes dos militares da Guarda Nacional Republicana que foram chamados ao local, conforme decorre, aliás, dos arts. 41.º e 42.º dos factos provados. Por último, não subsistem quaisquer dúvidas que o arguido … pretendeu opor-se a que os militares da Guarda Nacional Republicana exercessem as suas funções, muito em particular que viessem a concretizar à sua detenção na sequência dos factos por si cometidos. Integra a prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário do art. 347.º, n.º 1, do CP, a conduta do agente que, ao esbracejar e ao espernear, deita ao chão um dos militares da GNR, o que fez com que este batesse com a cabeça num pilar do edifício e sofresse cinco dias de doença com incapacidade para o trabalho, para que, de seguida, lhes dirigir, entre outras, as seguintes palavras, “vocês vão pagá-las”, “os vossos carros, as vossas vidas, nunca mais vão ter paz” e “vocês não imaginam o que vos vai acontecer”, por forma a eximir-se à sua detenção. A violência exercida, que implicou o emprego da força física e a prolacção de diversas palavras de intimidação, perturbou a liberdade de actuação dos militares desta força de segurança e mostrou-se adequada a dificultar o exercício das suas funções. Em face do exposto, improcede recurso apresentado pelo arguido … e, em consequência, deve ser confirmado o acórdão recorrido, na parte em que ditou a sua condenação pela prática do crime de resistência e coacção sobre funcionário.
Por último:
O arguido … veio também contestar as penas concretas de prisão em que foi condenado, que considera serem desadequadas, ao mesmo tempo em que pugna pela aplicação de uma pena única inferior a 5 anos de prisão, suspensa na sua execução. Vejamos: Como se viu, foi condenado nas penas de 5 anos e 3 meses de prisão, de 3 anos e 3 meses de prisão e ainda de 6 meses de prisão, pela prática, respectivamente, dos crimes de homicídio qualificado na forma tentada, de resistência e coação sobre funcionário e de ameaça na forma agravada. À data da prática dos factos, estes crimes eram puníveis, em abstracto, com pena de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão, com pena de 1 a 5 anos de prisão (como deixa assinalado a decisão recorrida, a actual redacção do art. 347.º do CP, introduzida pela Lei n.º 26/2025, não se aplica in casu, por punir de forma mais severa o crime de resistência e coação sobre funcionário) e com pena de prisão até 2 anos (ou com pena de multa até 240 dias). De acordo com o entendimento jurídico há muito reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos casos em que o recorrente se insurge contra a determinação da medida da pena, o tribunal de recurso deve cingir-se à verificação sobre se foram (ou não) observados os critérios legais por parte da decisão recorrida. Conforme se deixou consignado no Acórdão de 14-07-2010, proferido no Proc. n.º 149/07.9JELSB.E1.S1 (in www.dgsi.pt), no seguimento de jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal de Justiça: “(…) no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”. In casu, não se vislumbra que o tribunal recorrido tenha infringido, muito menos, de forma grosseira, os critérios legais atinentes à operação de determinação da medida das penas, sobretudo os limites intransponíveis da culpa e as exigências de prevenção geral e especial, que justifiquem uma intervenção correctiva por parte deste tribunal, com o intuito das penas serem reduzidas, com excepção do que sucede com o crime de resistência e coacção sobre funcionário. Levando em conta os limites (mínimos e máximos) acima enunciados, não se afigura que as penas encontradas para o crime de homicídio qualificado na forma tentada e para o crime de ameaça na forma agravada ultrapassem a medida da culpa ou que se mostrem desadequadas (ou melhor dizendo, exageradas) para satisfazer as exigências preventivas da condenação. Importa assinalar que se fazem sentir particulares necessidades de prevenção especial (o arguido … apresenta diversos antecedentes, conforme decorre do certificado de registo criminal que se mostra junto aos autos, o que significa que as anteriores condenações não serviram de advertência suficiente para o afastar do cometimento de novos delitos) e que os factos revelam elevado grau de ilicitude (após ter desferido um golpe com uma navalha na zona abdominal da vítima BB …, entrou em confronto físico e verbal com os militares da GNR que compareceram no local, causando a um deles lesões corporais). Deste modo, afiguram-se certeiras as considerações, a este propósito, tecidas pelo acórdão recorrido, muito em particular quando se afirma que “os factos imputados ao arguido são extremamente graves e foram levados a cabo com forte publicidade, criando forte alarme social e sentimento de insegurança e alarme social criado” ou que “a personalidade do arguido (…) é fonte de elevada preocupação dado que os seus comportamentos exigem especiais cuidados na determinação concreta da pena (…)”, de modo a que sirva de “contrapeso de tal propensão, evitando futuras condutas similares”. Aliás, para além de considerações de índole muito genérica a respeito dos finalidades das penas, o arguido … não avança com argumentos decisivos que levem a considerar que as penas aplicadas pela prática dos crimes de homicídio e de ameaça em referência se afiguram desproporcionais e desadequadas, levando em consideração o grau de culpa do agente e as exigências preventivas subjacentes à presente condenação. Em face do exposto, este tribunal de recurso decide manter as penas impostas pelo tribunal de primeira instância no que diz respeito ao crime de homicídio qualificado na forma tentada e ao crime de ameaça na forma agravada, por respeitarem os critérios legais acima enunciados, e, em consequência, julgar improcedente, nesta parte, o recurso apresentado. Todavia, decide-se reduzir para 2 (dois) anos e 6 (meses) a pena de prisão a aplicar pela prática do crime de resistência e coaccção sobre funcionário em referência nestes autos, medida concreta da pena que não ultrapassa a culpa revelada pelo agente nos factos em apreciação. O comportamento delituoso do arguido …, não obstante a inequívoca censurabilidade, não impediu os militares da Guarda Nacional Republicana de concretizarem a missão que tinham em execução (ou seja, procederam à detenção do agente, apesar das dificuldades que sentiram para concretizar esse desiderato) e acabou por não determinar consequências particularmente gravosas para a integridade física de um dos militares envolvidos (como se viu, o militar EE … sofreu cinco dias de doença com incapacidade para o trabalho e/ou para o trabalho profissional). Deste modo, como se procedeu à redução de uma das penas parcelares dos crimes em concurso de infracções, importa determinar (ou reponderar) a pena única a aplicar ao arguido …. Para além dos critérios gerais de determinação da medida da pena do art. 70.º, n.º 1, do CP (a culpa do agente e as exigências de prevenção, quer gerais, quer especiais), o legislador mandar atender, na operação de fixação da pena única conjunta, ao critério específico estabelecido pelo n.º 1 do art. 77.º do CP, segundo o qual, se deve valorar, em conjunto, os factos praticados e a personalidade do agente. Na operação destinada à fixação da pena conjunta os factos devem deixar de ser analisados individualmente, deve ser retirada a imagem global da actuação do agente e esta devem ser valorada, de forma conjugada, com a personalidade do agente, de modo a apurar se o arguido apresenta tendências criminosas (ou mesmo uma carreira criminosa) ou se, ao invés, a pluralidade de infracções não radica em características negativas do seu ser. Dito por outras palavras: os factos deixam de interessar de per si, isoladamente, impondo-se ao julgador, que procede à determinação da pena única em caso de conhecimento superveniente do concurso de infracções, uma avaliação global de toda a actuação do arguido, desprendida do caso a caso resultante dos crimes integrantes desse concurso e das penas parcelares impostas, conjugada com a personalidade do agente. Conforme se deixou explanado, a este propósito, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-01-2012, Proc. n.º 34/05.9 PAVNG – 3.ª Secção (acessível em www.dgsi.pt): “(…) há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido, de modo a surpreenderem-se, ou não, conexões entre os diversos comportamentos ajuizados, através duma visão ou imagem global do facto, encarado na sua dimensão e expressão global, tendo em conta o que ressalta do contexto factual narrado e atender ao fio condutor presente na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, tendo-se em conta a caracterização desta, com sua projecção nos crimes praticados; enfim, há que proceder a uma ponderação da personalidade do agente e correlação desta com os concretos factos ajuizados, a uma análise da função e da interdependência entre os dois elementos do binómio, não sendo despicienda a consideração da natureza dos crimes em causa, da verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, até porque o modelo acolhido é o de prevenção, de protecção de bens jurídicos (…)”. Acrescenta-se ainda no mencionado acórdão que:“ (…) todo este trabalho de análise global se justifica tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados pelo(a) condenado(a) é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, a feridente repetição comportamental dos valores estabelecidos emergirá antes e apenas de factores meramente ocasionais (…)”. Muito embora seja de excluir o recurso a fórmulas aritméticas ou a cálculos matemáticos, indiferentes aos critérios gerais ou específicos previstos pelos arts. 71.º e 77.º, ambos do CP, não devam ser esquecidos os esforços desenvolvidos pela jurisprudência para objectivar a determinação da medida da pena única, de acordo com princípios de igualdade, de justiça, de adequação e de proporcionalidade. A este propósito, conforme se afirmou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-04-2015, Proc. n.º 558/12.1PCLRS – 3.ª (in www.dgsi.pt): “(…) a determinação da pena única, resultante de cúmulo jurídico de conhecimento superveniente, quer pela sua sujeição aos critérios gerais da prevenção e da culpa, quer pela necessidade de proceder à avaliação global dos factos na ligação com a personalidade, não é compatível com a utilização de critérios rígidos, com fórmulas matemáticas ou abstratas de fixação da sua medida. Como em qualquer outra pena, é a justiça do caso que se procura, e ela só é atingível com a criteriosa ponderação de todas as circunstâncias que os factos revelam, sendo estes, no caso do concurso, avaliados globalmente e em relação com a personalidade do agente (…)” Não obstante o que se deixa exposto, importa aqui recordar as conclusões extraídas pelo Senhor Conselheiro Carmona da Mota no coloquio realizado no dia 03-06-2009 no Supremo Tribunal de Justiça, com inequívocos intuitos de justiça relativa e de objectivação da medida da pena única: “I) A representação das penas singulares na pena conjunta é, em regra, parcial, só se justificando que esta se aproxime ou atinja a sua soma material nos casos em que todas as penas singulares co-envolvidas correspondam a crimes de gravidade similar (puníveis por exemplo com penas de 1 a 5 anos de prisão) e a sua soma material se contenha dentro da moldura penal abstracta dos crimes concorrentes (no exemplo, 5 anos de prisão); II) A pena conjunta só deverá conter-se no seu limite mínimo ou na sua vizinhança em casos de grande disparidade entre a gravidade do crime mais grave (representada por uma pena por exemplo de 15 anos de prisão) e a gravidade dos demais (representadas por penas que, somadas, não excedam, por exemplo, 1 ano); III) Nos demais casos (em que os limites mínimo e máximo da pena conjunta distem significativamente), a representação das penas menores na pena conjunta não deve exceder um terço do seu peso quantitativo conjunto (acquis jurisprudencial conciliatório da tendência da jurisprudência mais «permissiva» - na procura desse terceiro termo de referência - em somar à «maior» 1/4 ou menos das demais com a jurisprudência mais «repressiva» que àquela usa - com o mesmo objectivo - adicionar metade ou mais das outras); IV) O tratamento no quadro da pena conjunta da pequena criminalidade deve divergir do tratamento devido à média criminalidade e o desta do imposto pelo tratamento da criminalidade muito grave, de tal modo que a pena conjunta de um concurso (ainda que numeroso) de crimes de menor gravidade não se confunda com a atribuída a um concurso (ainda que menos numeroso) de crimes de maior gravidade: E daí, por exemplo, que um somatório de penas até 2 anos de prisão - ainda que materialmente o ultrapasse em muito - não deva exceder, juridicamente, 8 anos, v.g.; que um somatório de penas até 4 anos de prisão não ultrapasse, v.g., 10 anos, que um somatório de penas até 6 anos de prisão não ultrapasse, v.g., 12 anos; que um somatório de penas de 10 anos de prisão não ultrapasse, v.g., 16 anos, etc.; V) A medida da pena conjunta só deverá atingir o seu limite máximo absoluto em casos extremos (4 penas de 20 anos de prisão), devendo por isso o efeito repulsivo/compressor desse limite máximo ser, proporcionalmente, tanto maior quanto maior o limite mínimo imposto pela pena parcelar mais grave e maior o somatório das demais penas parcelares.” No caso vertente, tendo em consideração a gravidade global dos factos, a personalidade através deles demonstrada pelo arguido …, as exigências de prevenção geral e especial subjacentes condenação (devido aos seus antecedentes criminais são sentidas particulares necessidades de prevenção especial), ponderando os princípios da proporcionalidade, da adequação e da justiça, entende este tribunal de recurso aplicar-lhe a pena única conjunta de 6 (seis) anos de prisão, uma vez efectuado o cúmulo jurídico das penas parcelares em que foi condenado nos presentes autos. Deste modo, como a pena única de prisão ficou fixada em medida superior a 5 anos (vide art. 50.º, n.º 1, do CP), mostra-se prejudicada a pretensão apresentada pelo arguido AA para que viesse a ser decretada a sua suspensão, por inobservância do pressuposto formal decorrente da lei.
III – DECISÃO: Em face do exposto, acordam os juízes que integram a 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar parcialmente procedente o recurso interposto e, em consequência, condenar o arguido … na pena única de 6 (seis) anos de prisão, confirmando, quanto ao demais, acórdão proferido no dia 16-06-2025 pelo Juízo Central Criminal de Coimbra – Juiz 3. Sem custas (art. 513.º, n.º 1, do CPP). Comunique esta decisão, de imediato, ao tribunal recorrido. Notifique.
Lisboa, 08 de Outubro de 2025 Paulo Registo Paula Cristina Carvalho e Sá (que votou vencida, apresentando o seguinte voto: «VOTO DE VENCIDO Com o mais elevado respeito pela posição sufragada pela maioria, dela me aparto, porquanto entendo que o acórdão recorrido padece do vício previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, consubstanciado numa contradição insanável entre os factos provados, ao considerar demonstrado o dolo eventual de homicídio qualificado, na forma tentada (cfr. pontos 35.º e 36.º), com base na factualidade objetiva constante, designadamente, dos pontos 8.º a 10.º, 30.º e 31.º da matéria de facto provada. A convicção maioritária assentou, essencialmente, em dois elementos: Todavia, no meu entender, a inferência extraída desses elementos não encontra suporte lógico na globalidade da matéria de facto apurada, nem na concreta configuração da conduta do recorrente. A lesão resultante do golpe — com apenas 0,4 cm de comprimento, superficial, discretamente curvilínea, situada na parte inferior do hemitórax direito, com profundidade ligeiramente repassada — traduz uma consequência de reduzida gravidade, que não afetou órgãos vitais, não penetrou cavidades torácicas, não atingiu estruturas vasculares relevantes e exigiu apenas oito dias de cura, com quatro dias de afetação funcional. Trata-se de um resultado manifestamente incompatível com a ideia de aceitação da morte como possível consequência da ação. O instrumento utilizado — uma navalha — é, sem dúvida, objetivamente perigoso, mas o que releva é a concreta forma como foi utilizado. E, neste caso, o gesto não se revelou letal, mas antes contido. A ausência de reiteração, a falta de persistência agressiva e o resultado obtido fragilizam decisivamente a tese de que o recorrente admitiu a possibilidade da morte da vítima e se conformou com ela. A ameaça verbal que antecede o golpe, embora não despicienda, não pode ser lida isoladamente. Proferida num contexto de tensão, não encontra respaldo numa atuação subsequente que a densifique ou confirme. A agressão limitou-se a um único golpe de efeito mínimo, sem qualquer tentativa de o repetir ou de prosseguir o ataque, mesmo após o cônjuge da vítima intervir. Não acompanho, assim, a maioria, quando sustenta que foi o afastamento pelo cônjuge da vítima que impediu o arguido de continuar a agressão. Tal entendimento parte de um raciocínio contrafactual que não se encontra alicerçado na matéria de facto. Não se demonstrou que o arguido tenha tentado resistir ao afastamento, que estivesse impedido de continuar a agressão ou que, de qualquer forma, pretendesse prosseguir com a mesma. Ao invés, a ausência de qualquer reiteração deve ser valorada como indicador claro de que a conduta visava apenas a integridade física da vítima, e não a sua vida. Quanto à qualificativa do motivo fútil, também dela discordo. A censura formulada no acórdão maioritário — de que a reação do arguido foi desproporcionada a uma pergunta legítima — não se coaduna com os elementos de prova. O arguido proferiu expressões como “gatuno, ladrão de combustível” e reiterou, perante os agentes de autoridade, que “só apoiam quem anda a roubar gasóleo” (cfr. pontos 11.º e 20.º). Mais resulta do texto da decisão recorrida que o ofendido conhecia o arguido da vila, tendo já separado o arguido uma vez que este agrediu o seu patrão, tendo o arguido afirmado que o ofendido é conhecido pela alcunha de “GG”, alcunha que o ofendido confirmou mas para a qual deu uma explicação que o tribunal a quo reputou convincente, o que aponta para um histórico relacional prévio, marcado por desconfianças e acusações. Ainda que infundadas ou subjetivas, tais perceções afastam a gratuitidade da conduta e, por conseguinte, não permitem a qualificação da motivação como fútil, em sentido técnico-jurídico. Neste quadro, a factualidade provada é compatível com a prática de um crime de ofensa à integridade física grave, nos termos dos artigos 143.º e 144.º, alínea d), do Código Penal, em virtude da utilização de meio particularmente perigoso — a navalha — numa zona sensível do corpo, com dolo de perigo (que implica a alteração da redação dos pontos 35º e 36º), em concurso real com 1 (um) crime de resistência e coação sobre funcionário p. e p. pelo art. 347.º, n.º 1, do CP e 1 (um) crime de ameaça agravada p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do CP.
Critico, porém, o segmento do acórdão recorrido que ao ponderar a medida concreta das penas parcelares, formula juízos desproporcionados quanto à gravidade dos factos e à personalidade do arguido. O acórdão recorrido refere que os factos revelam um “elevado grau de ilicitude”, que o arguido apresenta uma “tendência criminosa” e que possui uma “personalidade fonte de elevada preocupação”, retirando da ausência de confissão ilações negativas, premissas que não encontram respaldo na factualidade provada e que são de molde a inquinar a conclusão do tribunal a quo sobre a necessidade de penas robustas, alinhando-me com a maioria no segmento em que, apesar de não se ter demarcado destas considerações, corrigiu o manifesto excesso de uma das penas parcelares ( a relativa ao crime de resistência e coação sobre funcionário). Assim, considero ajustadas as seguintes penas parcelares: - 3 ( três) anos de prisão pela prática do crime de ofensa à integridade física grave, resultante da diferente qualificação defendida neste voto; - 2 (dois) anos e 6 ( seis) meses de prisão pelo crime de resistência e coação sobre funcionário (seguindo o decidido pela maioria); - 6 (seis) meses de prisão pelo crime de ameaça agravada, conforme fixado pela primeira instância e mantido pelo acórdão maioritário; Sobre a pena única, também considero inusitada a alusão do tribunal recorrido a uma “tendência criminosa” do arguido, supostamente alicerçada em sucessivas e recentes condenações por crimes de natureza idêntica, evidenciando ser detentor de um comportamento impulsivo e reativo – pag. 115 – com alusão ao objeto de alegados inquéritos pendentes, que na perspetiva do tribunal a quo terão justificado a atribuição de um “efeito expansivo” e, mais uma vez, a opção por uma pena robusta no que respeita à fixação de uma pena única, que manifestamente não sufrago. Tendo em conta a imagem global da conduta do arguido – que, apesar dos antecedentes, essencialmente de natureza diversa, estão longe de revelar um padrão uniforme de violência grave ou reiterada contra terceiros, a moldura abstrata do cúmulo, tendo por base as penas parcelares que aplicaria - 3 a 6 anos de prisão -, fixaria a pena única em 5 anos de prisão. É certo que o arguido cometeu estes factos em pleno período de suspensão da pena de prisão em que foi condenado, no âmbito do processo nº 178/21.... (pena única de 1 ano e 2 meses e 29 dias de prisão, pela prática dos crimes de ameaça agravada, condução de veiculo em estado de embriaguez e detenção de arma proibida, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 6 meses). Todavia, a natureza dos antecedentes, ainda que penalmente relevantes, não revela um padrão uniforme de violência grave ou reiterada contra terceiros – com exceção da condenação por ameaça agravada, os demais crimes são de natureza distinta (dano, condução em estado de embriaguez e posse de arma proibida). Por outro lado, inserção familiar e profissional do arguido (antes da reclusão), permite antever uma evolução positiva e suporte comunitário. Acresce que, a factualidade apurada embora juridicamente censurável não revela um grau de perigosidade incompatível com o esforço de ressocialização do recorrente em meio livre, pelo que entendo que o quadro fáctico e pessoal do arguido não inviabiliza, por si só, um juízo de prognose favorável, quanto à possibilidade de ressocialização do arguido em liberdade, pelo que ainda assim ponderaria a suspensão da execução da pena de prisão, por igual período e com sujeição do recorrente a regime de prova. Nestes termos, voto pela revogação do acórdão recorrido, na parte em que condena o recorrente pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com dolo eventual, por entender que a factualidade objetiva apurada não consente a afirmação de um dolo homicida, nem autoriza a subsistência da qualificativa do motivo fútil, integrando a conduta do arguido num crime de ofensas à integridade física grave p. e p. pelos art. 143º e 144º d) do C.P., ao qual aplicaria uma pena parcelar de 3 anos de prisão e, considerando as demais parcelares e a moldura do cúmulo, fixaria a pena única em 5 anos de prisão e ponderaria a suspensão da sua execução, por igual período, com sujeição do condenado a regime de prova».
Sandra Maria Rocha Ferreira
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