Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1033/22.1T8LRA-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: DOAÇÃO
CLÁUSULA MODAL
RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
IMPUGNAÇÃO DA RESOLUÇÃO
Data do Acordão: 09/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 963.º DO CÓDIGO CIVIL, 120.º, N.º 3, E 121.º, N.º 1, AL.ª B), DO CIRE
Sumário: I – A doação, ainda que onerada com encargos (cláusula modal) nos termos previstos no art.º 963.º do CC, constitui um acto/negócio gratuito.

II – Sendo um acto gratuito, a doação (ainda que modal) – desde que celebrada dentro dos dois anos anteriores à data de início do processo de insolvência – é resolúvel em benefício da massa insolvente, nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do art.º 121.º do CIRE, de forma incondicional e sem dependência da verificação de quaisquer outros requisitos, sem necessidade, portanto, da demonstração da sua concreta prejudicialidade (prejudicialidade que se presume nos termos previstos no n.º 3 do art.º 120.º sem admissão de prova em contrário) e da existência de má-fé.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: Relatora: Maria Catarina Gonçalves

1.º Adjunto: Anabela Marques Ferreira

2.º Adjunto: José Avelino Gonçalves

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

AA, residente na Rua ...., ..., ... ..., veio instaurar acção, nos termos do art.º 125.º do CIRE, contra a Massa Insolvente de BB, com vista à impugnação da resolução em benefício da Massa Insolvente levada a cabo pelo Sr. Administrador em 17/04/2023 e com referência à doação da fracção que identifica realizada pela Insolvente à Autora por escritura de 19/05/2021.

Alegou, em resumo, para fundamentar essa pretensão:

- Que o negócio não é passível de resolução condicional ao abrigo do artigo 120º do CIRE, na medida em que não se verificam os requisitos cumulativos que dali decorrem, uma vez que:

- a intenção subjacente ao acto praticado não era o de diminuir, frustrar, dificultar, colocar em perigo ou retardar a satisfação dos créditos dos credores, mas sim prover pela habitação própria da Autora, pelo que não existe a prejudicialidade que é exigível para a resolução;

- desconhecia a situação económica e financeira da Insolvente, pelo que não estava de má fé;

- Que também não há fundamento para a resolução incondicional nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do art.º 120.º, uma vez que a doação em questão foi uma “doação modal” por ter sido efectuada com a condição de a Autora realizar o pagamento das prestações referente ao crédito habitação, não correspondendo, por isso, a um negócio gratuito para os efeitos previstos na norma citada;

- Que, nessas circunstâncias, é inválida a resolução operada pelo Sr. Administrador.

A Massa Insolvente de BB contestou, invocando a caducidade do direito da Autora nos termos do art.º 125.º do CIRE, impugnando os factos alegados e alegando e sustentando que o negócio foi prejudicial à massa e que tanto a Autora como a Ré tinham pleno conhecimento do negócio que celebravam, bem como da situação económica por que atravessava a insolvente.

Em resposta à excepção, a Autora veio pugnar pela sua improcedência

Foi realizada audiência prévia e foi proferido despacho saneador onde, além do mais, se julgou improcedente a invocada excepção de caducidade.

Na sequência dos demais trâmites legais e após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu julgar a acção improcedente e, em consequência, absolver a Massa Insolvente de BB do pedido contra ela formulado.

Inconformada com essa decisão, a Autora, AA, veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).

A Massa Insolvente respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).


/////

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

· Saber se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos propostos pela Apelante;

· Saber, à luz da matéria de facto provada, se está em causa uma doação modal (onerada com encargo) e se, por força dessa circunstância, a doação perde a sua natureza gratuita, devendo ser considerada como acto oneroso;

· Saber, em função da resposta dada às questões anteriores, se estão reunidos os pressupostos necessários para que a doação em causa nos autos – celebrada pela Insolvente dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência – deva ser resolvida em favor da massa insolvente, apurando, designadamente, se está sujeita a resolução incondicional nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do art.º 121.º sem necessidade de demonstração da sua concreta prejudicialidade e da existência de má fé.


/////

III.

Na 1.ª instância julgou-se provada a seguinte matéria de facto:

1. O processo de insolvência teve início a 11.03.2022, tendo sido decretada a insolvência de BB no dia 11.04.2022.

2. A A. é filha de BB.

3. Por escritura pública de doação, outorgada a 19 de Maio de 2021, BB declarou doar, por conta da sua quota disponível, a sua filha, AA e esta declarou aceitar a doação do seguinte imóvel:

- fracção designada pela letra “C” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...81 e inscrito na matriz predial urbana sob o número ...19, denominado lote ...3, sito em Rua ..., ..., correspondente ao primeiro andar esquerdo, destinado a habitação e um espaço demarcado na cave para uma viatura com a mesma letra.

4. A fracção encontra-se registada pela Ap. ...87 de 2021.05.21 a favor da A..

5. O administrador de insolvência enviou a AA uma carta datada de 17.04.2023, com o seguinte conteúdo:

Assunto: Resolução de negócio jurídico denominado “DOAÇÃO” em benefício da massa insolvente, ao abrigo do disposto nos artigos 120º a 123º do CIRE:

(…)

CC, na qualidade de Administrador Judicial nomeado por sentença proferida em 11-04-2022, (…) em que é insolvente BB, (…) vem NOTIFICAR V.ª Ex.ª, ao abrigo do disposto nos artigos 120° a 123° do CIRE, e efetivar a RESOLUÇÃO do seguinte negócio jurídico:

- "DOAÇÃO" da fração designada pela letra "C" do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...81 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...19, denominado lote ...3, sito em Rua ..., ..., correspondente ao primeiro andar esquerdo, destinado a habitação, espaço demarcado na cave para uma viatura com a mesma letra, a favor de AA, em 19 de maio de 2021 outorgada por Escritura no Cartório Notarial da Drª DD, sito na Rua ..., Frações .../BL, ... ..., (cfr. doc. 2).

A referida doação encontra-se registada sobre o bem imóvel supra identificado pela Ap. ...87-de-2021/05/21, a favor de AA.

I- Dos factos:

Por sentença proferida em 11-04-2022, publicada no portal Citius com a Ref: 100010480 (cfr. doc. 1), nos autos de insolvência do processo no 1033/22.1T8LRA que corre seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo de Comércio de Leiria, Juiz 2, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de BB, NIF ...87.

2. Ora, realizadas as competentes diligências inerentes ao processo supramencionado, foi possível apurar que, em 2014, a insolvente adquiriu a fração designada pela letra "C" do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...81 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...19, denominado lote ...3, sito em Rua ..., ..., correspondente ao primeiro andar esquerdo, destinado a habitação e um espaço demarcado na cave para uma viatura com a mesma letra, conforme consta da ap. ...91 de 29-07-2014 da descrição supra referida.

3. Sucede, porém, que, em 19 de maio de 2021, momento em que já se encontrava em situação económica bastante frágil, a ora insolvente decidiu doar a referida fração a V. Ex.

4. Analisando o exposto, facilmente se percebe que o negócio em causa celebrado é prejudicial à massa insolvente, ao abrigo do disposto no artigo 121° n° 1 alínea b) do C.I.R.E, uma vez que se trata de um ato celebrado pelo devedor, ora insolvente, a titulo gratuito - doação-, realizado dentro do período de dois anos anteriores à data do início do processo de Insolvência.

5. Nesta conformidade, o negócio em causa é passível de resolução incondicional em benefício da massa insolvente, por preencher os requisitos plasmados no artigo 121° do C.I.R.E.,

6. Resolução essa que ora se comunica e efetiva.

Sem prescindir,

7. O referido negócio seria também sempre passível de resolução ao abrigo do disposto no artigo 120° do C.I.R.E. uma vez que preenche, também, os pressupostos da resolução condicional...

Senão vejamos,

8. O referido negócio, incidindo sobre um bem imóvel propriedade da insolvente, diminuiu, dificultou e colocou em perigo a satisfação dos credores da Insolvência, uma vez que, transmitido tal bem, poderia correr-se o risco de não existirem mais bens cuja liquidação seja suficiente para o pagamento aos credores - conforme disposto no artigo 120° n° 2 do C.I.R.E.

9. Foi realizado em 19 de maio de 2021, ou seja, dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de Insolvência - conforme disposto no artigo 120º, nº 1 do C.I.R.E.

10. Por todo o exposto e bem sabendo da frágil situação económica em que se encontrava a insolvente BB e AA decidiram celebrar o negócio que ora se resolve, com o objetivo de dissipar o seu património e consequentemente frustrar o pagamento aos seus Credores. (…)”.

6. Sobre a fracção referida em 3), encontra-se registada, pela Ap. ...92 de 2014.07.29, uma hipoteca voluntária a favor da Banco 1... CRL.

7. A Banco 1... CRL reclamou no processo de insolvência um crédito, com a natureza de garantido, no valor de 17.392,61€.

8. O valor patrimonial do imóvel referido em 3), no ano de 2021, era de €45.035,55.

9. A Autora tinha conhecimento que, à data da doação referida em 3), a insolvente encontrava-se em situação económica e financeira difícil.

*

Não se julgou provado que:

a) a doação tenha sido feita com o encargo/condição de a Autora passar a realizar o pagamento das prestações associadas ao crédito à habitação.


/////

IV.

Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto

(…).

Direito

Está em causa nos presentes autos a resolução – efectuada pelo Sr. Administrador da Insolvência em benefício da massa insolvente – de uma doação realizada pela Insolvente à Autora por escritura de 19/05/2021 e que teve por objecto a fracção identificada no ponto 3 da matéria de facto.

A sentença recorrida considerou válida a resolução da referida doação, julgando improcedente a pretensão da Autora de impugnação dessa resolução, considerando, no essencial, que estava em causa um negócio gratuito que, tendo sido praticado menos de dois anos antes da data do início do processo de insolvência, estava sujeito a resolução incondicional nos termos do art.º 121.º, n.º 1, b), do CIRE, sem necessidade de verificação de qualquer outro requisito ou pressuposto.

Em descordo com a decisão, sustenta a Apelante que a doação em questão não se configurava, no caso, como acto gratuito, na medida em que era uma doação modal em que havia sido estabelecido o encargo para a donatária (a Autora/Apelante) de realizar o pagamento das prestações associadas ao crédito à habitação. E – continua a sustentar a Apelante –, não sendo um acto gratuito, não era susceptível de resolução incondicional e apenas podia ser resolvido em benefício da massa caso se verificassem os pressupostos exigidos no art.º 120.º, o que, no caso, não acontece, sendo certo que não resultou provada a prejudicialidade do acto e a má fé da Autora.

Analisemos então a questão suscitada.

Conforme resulta do disposto no art.º 120.º, n.º 1, do CIRE, podem ser resolvidos em benefício da massa os actos prejudiciais à massa que tenham sido praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência. Aí se dispõe igualmente que, além da prejudicialidade do acto, a respectiva resolução pressupõe, em regra e ressalvando as situações previstas no art.º 121.º, a má-fé do terceiro, explicitando o n.º 5 o que deve entender-se por má-fé e enunciando o nº 4 as situações em que essa má-fé se presume.

O art.º 121.º vem, todavia, enumerar uma série de actos que são resolúveis em benefício da massa, sem dependência de quaisquer outros requisitos. Está aqui em causa a resolução que a própria lei qualifica como incondicional, na medida em que não está dependente de quaisquer outras condições além de o acto em causa se integrar numa das situações descritas nas diversas alíneas da referida norma; desde que o acto se integre numa das situações que aí se encontram previstas ele será automaticamente resolúvel independentemente da sua concreta prejudicialidade e independentemente da existência de má-fé.

Fora das situações previstas no art.º 121.º, o acto só poderá ser resolvido – como preceitua o art.º 120.º - se tiver sido praticado dentro do período temporal ali definido e desde que o acto em causa seja prejudicial à massa e exista má-fé do terceiro. Está aqui em causa, portanto, aquilo que normalmente se designa por resolução condicional, por contraposição à resolução que a própria lei qualifica como incondicional.

Ora, na parte em que releva para os autos, dispõe o citado art.º 121.º, n.º 1, alínea b), que são resolúveis de forma incondicional – sem dependência, portanto, de quaisquer outros requisitos – os “actos celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência...”, tendo considerado a decisão recorrida que o acto em causa nos autos – uma doação realizada dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência – se inseria no âmbito dessa previsão legal e, portanto, era resolúvel.

Em linhas gerais, podemos dizer, apelando às palavras de Antunes Varela[1], que o contrato é oneroso quando “…a atribuição patrimonial efectuada por cada um dos contraentes tem por correspectivo, compensação ou equivalente a atribuição proveniente do outro”, ou seja, “para alcançar ou manter a atribuição patrimonial da contraparte, cada contraente tem (o ónus, hoc sensu) de realizar uma contraprestação”; o contrato é gratuito quando “…segundo a comum intenção dos contraentes, um deles proporciona uma vantagem patrimonial ao outro, sem qualquer correspectivo ou contraprestação”. No mesmo alinhamento, diz Carlos Alberto da Mota Pinto[2] que os negócios onerosos “...pressupõem atribuições patrimoniais de ambas as partes, existindo, segundo a perspectiva destas, um nexo ou relação de correspectividade entre as referidas atribuições patrimoniais”, fazendo cada uma das partes uma atribuição patrimonial que considera retribuída ou contrabalançada pela atribuição da contraparte; os negócios gratuitos, ao invés, caracterizam-se “...pela intervenção de uma intenção liberal (...) Uma parte tem a intenção, devidamente manifestada, de efectuar uma atribuição patrimonial a favor da outra, sem contrapartida ou correspectivo...”; o acto será, portanto, gratuito “...quando for realizado com uma particular intenção ou causa que é a de proporcionar uma vantagem à outra parte”.

Sendo indiscutível que a doação – definida no art.º 940.º, n.º 1, do CC como “...o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente” – é um negócio tipicamente gratuito, na medida em que a vantagem patrimonial a que se reporta é concedida pelo doador ao donatário de forma gratuita, ou seja, sem qualquer correspectivo ou contraprestação, sustenta, no entanto, a Apelante que, no caso, está em uma causa uma doação modal, não sendo, por isso, um negócio gratuito.

Não lhe assiste, no entanto, qualquer razão.

As doações modais vêm previstas no art.º 963.º e segs. do CC e correspondem às doações que são oneradas com encargos (cláusula modal), impondo-se, portanto, ao donatário o cumprimento de um ónus ou encargo nos termos e nas condições que são definidas nas referidas disposições legais.

No caso dos autos, não resultou sequer provado que estivesse em causa uma doação modal, porquanto não resultou provado que ela tivesse sido efectuada, como havia sido alegado, com imposição à donatária do encargo de pagar as prestações associadas ao crédito contraído para aquisição da fracção que foi objecto da doação.

Mas, ainda que resultasse provado que a doação em causa era efectivamente uma doação modal por estar efectivamente onerada com o referido encargo e ainda que pudesse ser considerada a validade da cláusula modal, apesar de não ter ficado a constar da escritura, isso não alteraria a natureza gratuita da doação e não a transformava em acto/negócio oneroso, porque, segundo a perspectiva e a intenção dos contraentes, os encargos estabelecidos por via de uma cláusula modal não funcionam como retribuição ou correspectivo da vantagem patrimonial que é atribuída pelo doador ao donatário e não alteram a intenção liberal e a vontade de conceder uma vantagem patrimonial sem qualquer correspectivo que estão subjacentes a uma doação e que, apesar de poderem serem restringidas ou limitadas em termos económicos com a imposição de cumprimento dos encargos, continuam presentes.

Isso mesmo afirmam Pires de Lima e Antunes Varela[3] quando dizem que a doação modal continua a ter natureza gratuita, sendo que “...os encargos (modo) impostos ao beneficiário, sendo meras cláusulas acessórias, funcionam como meras limitações ou restrições à prestação do disponente (liberalidade) e não como o seu correspectivo...”. Em idêntico sentido, diz Antunes Varela[4] que tais doações “...constituem verdadeiras liberalidades, em toda a sua extensão (embora desfalcadas do contrapeso do encargo, quando economicamente avaliável)...”, dizendo também Rute Teixeira Pedro[5] que “o encargo não é perspectivado como uma contrapartida da vantagem patrimonial recebida pelo donatário, sendo antes uma restrição à sua liberdade de atuação” sem que fique prejudicada a natureza gratuita da doação, até porque o valor correspondente ao encargo não pode representar um montante superior ao da doação.

Também Manuel Baptista Lopes[6] se pronuncia no mesmo sentido, dizendo: que “...o acto no terreno dos princípios não se torna oneroso, porque o encargo, por muito pesado que seja, não se integra na sua estrutura ou função específica, é uma cláusula acessória, e não lhe cabe o papel de contra-prestação...” e que “O encargo ou modo (...) não modifica os efeitos típicos do negócio, mas acrescenta a este outros efeitos, que não reagem sobre os primeiros, embora os limitem em sentido económico (...) O modus nunca se torna correspectivo da disposição negocial e por isso a causa do negócio atributivo continua a ser liberal, sem mistura com um elemento de onerosidade (...) Por isso deve entender-se que o modo, ao contrário da condição e do termo, representa verdadeiramente uma vontade acessória relativamente à vontade da liberalidade».”.

Ao nível da jurisprudência, pronunciaram-se também nesse sentido os seguintes acórdãos: Acórdão do STJ de 09/12/2014 (processo n.º 26439/93.8TVLSB.L1.S1), Acórdãos da Relação do Porto de 09/04/2015 (processo n.º 1894/11.0TBPRD.P1) e de 14/09/2006 (processo n.º 0633771) e Acórdãos da Relação de Coimbra de 10/07/2014 (processo n.º 1108/12.5T2AVR-D.C1), de 08/03/2016 (processo n.º 955/14.8TBCLD.C1) e de 24/04/2012 (processo n.º 322-C/2002.C1)[7].

Concluimos, portanto, em face de tudo o exposto, que, ainda que estivesse em causa uma doação modal (onerada com encargos), não estaria em causa – ao contrário do que sustenta a Apelante – um acto oneroso; apesar dos encargos, a doação não deixaria de ser um acto gratuito.

De qualquer forma e conforme se referiu, nem sequer resultou provado que a doação tivesse sido onerada com qualquer encargo e que, por isso, corresponda a uma doação modal.

É inquestionável, portanto, que estamos perante um acto gratuito.

Nessas circunstâncias, estando em causa um acto gratuito que foi celebrado dentro dos dois anos anteriores à data de início do processo de insolvência, é indiscutível que ele se insere no âmbito de previsão da alínea b) do n.º 1 do art.º 121.º do CIRE, sendo, por isso, resolúvel em benefício da massa insolvente, de forma incondicional e sem dependência da verificação de quaisquer outros requisitos, conforme determinado na referida disposição legal. O acto era, portanto, resolúvel independentemente da demonstração da sua concreta prejudicialidade (prejudicialidade que se presume nos termos previstos no n.º 3 do art.º 120.º sem admissão de prova em contrário) e independentemente da existência de má-fé.

Assim sendo, improcede o recurso e confirma-se a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).


/////

V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                             (Anabela Marques Ferreira)

                                                (José Avelino Gonçalves)


[1] Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3.ª edição, pág. 298.
[2] Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição actualizada, págs. 402 e 403.
[3] Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª edição revista e actualizada, pág. 289.
[4] Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª edição, pág. 456.
[5] Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, 2017, pág. 1193.
[6] Das Doações, Almedina, 1970, págs. 110 a 112.
[7] Todos disponíveis em https://www.dgsi.pt.